Por Ricardo Musse
A PUBLICAÇÃO do sexto volume da História do marxismo no Brasil conclui um monumental projeto editorial coletivo, esboçado em 1988 no grupo de trabalho "Partidos e Movimentos de Esquerda". Propósito que deslanchou efetivamente com a edição, em 1991, do primeiro volume da coleção.
Inspirada na História do marxismo, edição coordenada por Eric Hobsbawm (1983-1989) entre 1978-1982 e traduzida no Brasil a partir de 1983, a versão brasileira foi planejada em torno de três eixos temáticos: "a recepção e apropriação teórica do marxismo no Brasil, sua influência na análise e interpretação da sociedade brasileira e a trajetória das organizações que nele se inspiraram" (Quartim de Moraes & Aarão Reis, 2007a, p.7). esses eixos foram desdobrados em blocos distintos, "(1) o influxo das teorias, doutrinas e revoluções internacionais; (2) a formulação do marxismo no Brasil: autores e correntes; (3) a história das organizações marxistas no Brasil: experiências e momentos relevantes" (ibidem).1
Uma vez finda a empreitada, tornam-se mais nítidos tanto os êxitos e acertos como as aporias e limitações inerentes a essa escolha temática, juízo facilitado pela inevitável explicitação da concepção de marxismo subjacente ao projeto. Afinal, apesar do esforço de delimitação, os eixos tendem a se embaralhar, seja pela dificuldade em calibrar a dialética entre o nacional ("o marxismo no Brasil") e o mundial ("o influxo internacional") seja na sobreposição entre organizações e "formulações do marxismo".
O primeiro volume delineia uma apresentação geral da trajetória do marxismo no país a partir do influxo externo (Quartim de Moraes & Aarão Reis, 1991; 2007b). Seu subtítulo, "O impacto das revoluções", descreve apenas parte do conteúdo. O livro contempla a influência direta da Revolução Russa de 1917 na formação do Partido Comunista Brasileiro (em um escopo menos amplo que o do livro clássico de Moniz Bandeira) (Moniz Vianna, 1967, 1980), e da revolução cubana (em 1959) na sua desagregação em inúmeras facções que levaram adiante a luta armada (a partir e em reação ao golpe militar de 1964). Mas contém também artigos sobre a presença e o peso no comunismo brasileiro da institucionalização revolucionária na rotina burocrática de Estados socialistas na China e na URSS, sob a capa doutrinária do maoísmo e do stalinismo (e de sua denúncia, em 1956, por Nikita Khrushchov no XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética). Por fim, discute-se "a proto-história do marxismo no Brasil", um processo inexplicável sem a consideração do influxo externo.2
Os critérios de organização do primeiro volume mostram-se bastante refratários à contestação. O mesmo não pode ser dito, no entanto, do segundo livro, seja por conta das dificuldades inerentes ao tema "influxos teóricos", explicitado no subtítulo, seja pelas escolhas realizadas pelo editor (Quartim de Moraes, 1995).
Os dois artigos iniciais versam sobre a incorporação e a difusão do marxismo entre militantes e organizações políticas no Brasil, provas de fôlego num arco amplo que se desdobra em dois momentos: da passagem do século até a fundação do PCB, e de 1922 até o presente. O desequilíbrio advém com a inclusão de ensaios que tentam demonstrar a influência do marxismo na economia e na filosofia brasileiras. O primeiro, além de passar ao largo dos poucos economistas marxistas do país (com a exceção de Caio Prado Jr.), detecta equivocadamente a presença do marxismo em autores e teorias de perfil reconhecidamente keynesiano, weberiano ou estruturalista. O segundo aborda apenas um filósofo, José Arthur Giannotti, de escassa ascendência sobre a doutrina, a militância e as organizações marxistas (a não ser que se conceda esse epíteto ao PSDB) e pioneiro apenas no que tange ao "marxismo uspiano". Porém, ao lado dessas considerações acerca do conteúdo ou da execução, impõe-se a seguinte indagação: se o propósito era estabelecer um balanço do influxo do marxismo sobre as ciências humanas no Brasil, como ignorar áreas em que seu impacto mostrou-se bastante profícuo como a historiografia e a sociologia?
Os artigos restantes delineiam um subconjunto dedicado ao exame da influência na intelectualidade e na militância das obras de Leon Trotsky e dos "marxistas ocidentais" com maior impacto no país: Georg Lukács, Antonio Gramsci e Louis Althusser. Destaque-se a imperdoável ausência de Herbert Marcuse.3
O terceiro e o quarto volumes dedicam-se às análises e interpretações da sociedade brasileira formuladas na linhagem do marxismo. Substituindo a pretensão inicial de mapear autores e correntes, prevaleceu a opção, mais sensata e exeqüível, de organizar as concepções e teorias dos marxistas brasileiros por temas (Quartim de Moraes, 1998; Quartim de Moraes & del Roio, 2000).4
Assim, os artigos do terceiro livro versam sobre tópicos gerais: a questão da democracia, tendo como foco o PCB no período 1944-1954; a questão do desenvolvimento nacional, a partir do embate entre as diversas interpretações presentes no interior do Instituto superior de estudos Brasileiros (Iseb); e a questão cultural, priorizando o aparato de divulgação do PCB (jornais, revistas e editoras) e sua política cultural no pós-1964.5 Contém ainda um importante ensaio acerca de um dos pontos mais controvertidos do debate marxista no país, a especificidade do capitalismo brasileiro.6
O quarto volume, com o subtítulo "Visões do Brasil", trata da questão da colonização e de conceitos que lhe estão conectados como escravismo e capital mercantil; da peculiaridade da "revolução burguesa" no país; da questão nacional; da questão agrária, nas décadas de 1950 e 1960; e da nossa "questão meridional", o atraso secular do Nordeste. O livro inclui ainda dois artigos que indicam que o projeto de apresentar "autores e correntes" não foi inteiramente descartado: um sobre as análises de conjuntura de Caio Prado Jr. e outro acerca dos principais teóricos dos anos 1920, Astrojildo Pereira, Octavio Brandão e Mário Pedrosa.7
A decisão de priorizar temas clássicos do marxismo foi, entretanto, prejudicada pelo recorte dos artigos, excessivamente pormenorizados no que tange ao arco do tempo ou à linha partidária. Ressalte-se também a ausência de uma maior concatenação entre os blocos, patente no tom demasiado "local" da reconstituição das interpretações da sociedade brasileira, muitas vezes tendendo a desconsiderar o impacto – tão bem sopesado nos primeiros volumes – das teorias, doutrinas e revoluções internacionais.8 Apesar da abertura demonstrada pelos organizadores no planejamento geral da coleção, e nesse bloco em particular, a maioria dos colaboradores restringiu suas análises à órbita do PCB, seja por vínculos partidários, afetivos, seja por conta de conhecimentos acumulados em pesquisas anteriores, numa concentração que subestima a diversidade do marxismo no Brasil.
Os dois últimos livros da coleção debruçam-se sobre as trajetórias dos partidos (ou organizações) e dos movimentos influenciados pelo marxismo no Brasil. O quinto volume abrange o arco dos anos 1920 aos anos 1960 (Ridenti & Aarão Reis, 2002). A história do PCB foi separada em ensaios que abordam, respectivamente, os períodos 1920-1940 e 1943-1964. Outro partido estudado foi o Partido Socialista Brasileiro (PSB), em seu flerte com o marxismo. os demais artigos tratam das ligas trotskistas e de duas organizações muito influentes na primeira metade da década de 1960, a Política Operária (Polop) e a Ação Popular (AP).9
O sexto volume, compreendendo o período que se estende dos anos 1960 aos nossos dias, desdobra-se em duas partes: uma dedicada a partidos e organizações, outra aos movimentos (Ridenti & Aarão Reis, 2007). O primeiro bloco aborda o Partido Comunista (PCB) até sua extinção em 1991; sua dissidência a partir de 1962, o PC do B; o Partido dos trabalhadores (PT); as trajetórias das diversas organizações trotskistas surgidas após 1966 e sua consolidação em partidos; e a miríade de organizações que brotaram no pós-1964 visando à luta armada. A seção consagrada aos movimentos contém ensaios sobre sindicalismo, feminismo, a ação política dos cristãos e sobre a discussão, nos anos 1970, entre os marxistas no exílio, um elo importante na transição das facções armadas às organizações de massas. Fecha o livro um ensaio sintético acerca das relações entre os partidos atuais e o marxismo.10
A delimitação do marxismo sempre foi objeto de controvérsias, mesmo quando Marx e Engels ainda estavam vivos (cf. Haupt, 1983). O confronto com a obra, a ação política e os programas partidários elaborados por eles, em geral, buscam apenas ressaltar incongruências, revisões e desvios. Nessa chave, por exemplo, nem mesmo as grandes revoluções do século XX, como lembram muitos autores, poderiam ser consideradas marxistas, já que teriam sido, sobretudo, sublevações camponesas que desembocaram em variantes do capitalismo de estado ou do socialismo estatal.
Para escapar dos riscos de uma determinação doutrinária ou mesmo dogmática, os historiadores tendem a considerar como pertinentes ao campo do marxismo teorias, programas, partidos e acontecimentos que reivindicam explicitamente ou tenham sido nitidamente marcados pelos legados de Marx e Engels. Nesse sentido, não é muito difícil circunscrever o território do marxismo no âmbito da teoria, posto que ele demanda, em alguma medida, o esforço de interpretar, sistematizar, complementar e atualizar a obra de Marx.11 A dificuldade é bem maior, no entanto, quando se trata das práticas políticas, como fica patente no exame dos últimos volumes dessa coleção.
Os partidos e as organizações estudados no período que se estende dos anos 1920 aos anos 1960 reivindicam em seus programas a inserção em alguma das diversas linhagens do marxismo que vicejaram ao longo do século XX. O último volume, no entanto, aborda partidos, organizações e movimentos que não mais avocam o marxismo como diretriz ou instância norteadora. Trata-se, evidentemente, de um sintoma da crise atual dessa tradição política.
O baralhamento de posições intensifica-se quando se considera o paradoxo apontado, com perspicácia, no artigo de Marco Aurélio Santana e Ricardo Antunes. A partir do final da década de 1970 e durante os anos 1980, na disputa pela hegemonia da esquerda brasileira, o PCB, que reivindica o marxismo, privilegia a política institucional em detrimento das ações de classe, tentando subordinar o movimento operário aos ditames da "frente democrática". Já os sindicalistas do ABC paulista, apesar de avessos a filiações doutrinárias, seguem passo a passo a descrição que Marx apresentou, no Manifesto do Partido Comunista, das etapas de organização autônoma dos proletários em classe, e com isso em partido político (Marx & Engels, 1998).
Os organizadores mostraram-se atentos às complicações inerentes às tentativas de demarcar com nitidez o marxismo contemporâneo. A seção final do sexto volume, consagrada aos movimentos políticos após os anos 1960, adota por fio precisamente a intersecção entre o marxismo e a ação política seja a assentada no sindicalismo, no feminismo ou no cristianismo. A leitura desses artigos não deixa de ampliar a sensação de que a aplicação desse mesmo fio ao PT (e até mesmo aos partidos que se reivindicam marxistas) teria enriquecido esse bloco da coleção.12
Para concluir, o mínimo que pode ser dito acerca desse empreendimento, com seus erros e acertos (num balanço em que preponderam os êxitos), é que constitui um marco, uma referência incontornável tanto para historiadores do marxismo brasileiro como para indivíduos e organizações do presente e do porvir, interessados em levar adiante a linhagem e o legado de Karl Marx.
Notas
1 Destacando o "marxismo no Brasil", a coleção diferencia-se de propostas mais abrangentes como a recente obra organizada por Ferreira & Aarão Reis (2007) ou o livro de Koval (1982).
2 O volume contém os seguintes artigos: (1) "A proto-história do marxismo no Brasil", por Evaristo de Moraes Filho; (2) "O impacto da revolução russa e da Internacional Comunista no Brasil", por Marcos del Roio; (3) "A influência do leninismo de Stalin no comunismo brasileiro", por João Quartim de Moraes; (4) "O maoísmo e a trajetória dos marxistas brasileiros", por Daniel Aarão Reis; (5) "Crise e pensamento moderno no PCB dos anos 1950", por Raimundo Santos; (6) "A influência da revolução cubana sobre a esquerda brasileira nos anos 60", por Carlos Alberto Barão.
3 O segundo volume reúne os seguintes artigos: (1) "A difusão do marxismo e os socialistas brasileiros na virada do século XIX", por Cláudio Batalha; (2) "A evolução da consciência política dos marxistas brasileiros", por João Quartim de Moraes; (3) "Marxismo na economia brasileira", por Guido Mantega; (4) "Origens do marxismo filosófico no Brasil: José Arthur Giannotti", por Paulo Eduardo Arantes; (5) "Presença de Lukács na política cultural do PCB e na Universidade", por Celso Frederico; (6) "Trotsky e o Brasil", por Dainis Karepovs, José Castilho Marques Neto e Michael Löwy.
4 A bibliografia individualizada sobre os principais expoentes do marxismo brasileiro encontra-se em expansão crescente. Na contramão dessa tendência, ressalte-se a quase ausência de reflexão acerca do papel do marxismo na produção intelectual brasileira. Uma exceção são os breves esboços reunidos em Konder (1991).
5 Apresento uma avaliação pormenorizada do conteúdo desse volume em Musse (2001).
6 O terceiro volume congrega ainda dois artigos atinentes ao bloco anterior: "O impacto da teoria althusseriana da história na vida intelectual brasileira", por Décio Saes, e "Gramsci no Brasil: recepção e usos", por Carlos Nelson Coutinho. O subtítulo "Interpretações" encerra os seguintes ensaios: (1) "Concepções comunistas do Brasil democrático: esperanças e crispações (1944-1954), por João Quartim de Moraes; (2) "O dual, o feudal e o etapismo na teoria da revolução brasileira", por Carlos Alberto D ória; (3) "Intelectuais do Iseb, esquerda e marxismo", por Caio Navarro de Toledo; (4) "A política cultural dos comunistas", por Celso Frederico; (5) "Marxismo, cultura e intelectuais no Brasil", por Antônio Albino Canelas Rubim.
7 O quarto volume compreende os seguintes artigos: (1) "Feudalismo, capital mercantil, colonização", por Lígia Osório Silva; (2) "A teoria da revolução brasileira: tentativas de particularização de uma revolução burguesa em processo", por Marcos del Roio; (3) "Tempo de fundadores", por Ângelo José da Silva; (4) "O programa nacional-democrático: Fundamentos e permanência", por João Quartim de Moraes; (5) "Luta por terra e organização dos trabalhadores rurais: a esquerda no campo nos anos 1950/1960", por Leonilde Sevolo de Medeiros; (6) "O nordeste: 'problema nacional' para a esquerda", por Carlos Alberto Dória; (7) "Opinião pública e partidos políticos em algumas análises de conjuntura de Caio Prado Jr.", por Raimundo Santos.
8 Uma versão mais equilibrada entre o marxismo local e as correntes do debate internacional pode ser encontrada em Löwy (1999).
9 O volume reúne os seguintes artigos: (1) "Os comunistas, a luta social e o marxismo (1920-1940)", por Marcos del Roio; (2) "Entre reforma e revolução: a trajetória do Partido Comunista no Brasil entre 1943 e 1964", por Daniel Aarão Reis; (3) "Os trotskistas brasileiros e suas organizações políticas (1930-1966)", por Dainis Karepovs e José Castilho Marques Neto; (4) "O Partido Socialista Brasileiro e o marxismo (1947-1965)", por Margarida Luiza de Matos Vieira; (5) "Em busca da revolução socialista: a trajetória da Polop (1961-1967)", por Marcelo Badaró Mattos; (6) "Ação Popular: cristianismo e marxismo", por Marcelo Ridenti.
10 O volume apresenta os seguintes artigos: (1) "a valorização da política na trajetória pecebista: Dos anos 1950 a 1991", por José Antonio Segatto e Raimundo Santos; (2) "Partido Comunista do Brasil: Definições ideológicas e trajetória política", por Jean Rodrigues Sales; (3) "Esquerdas armadas urbanas: 1964-1974", por Marcelo Ridenti; (4) "Os trotskismos no Brasil: 1966-2000", por Dainis Karepovs e Murilo Leal; (5) "O Partido dos Trabalhadores e a conquista do Estado:1980-2005", por Paulo Henrique Martinez; (6) "Debate no exílio: em busca da renovação", por Denise Rollemberg; (7) "O encontro marxismo-feminismo no Brasil", por Maria Lygia Quartim de Moraes; (8) "O PCB, os trabalhadores e o sindicalismo na história recente do Brasil", por Marco Aurélio Santana e Ricardo Antunes; (9) "Cristianismo da libertação e marxismo", por Michael Löwy; (10) "Marxismo, sociedade e partidos políticos hoje", por Daniel Aarão Reis.
11 Apresento uma distinção entre os textos canônicos do materialismo histórico e os procedimentos e providências que permitiram ao marxismo, após a morte de seus fundadores, se constituir como tradição teórica e prática, em Musse (2000).
12 A intersecção entre o marxismo e o PT, além de presente de forma ocasional na extensa bibliografia sobre a história des-se partido, tornou-se recentemente objeto de estudos monográficos. Cf., por exemplo, Iasi (2006).
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Ricardo Musse é professor no Departamento de Sociologia da USP. @ – rmusse@usp.br
FONTE: Scielo
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