Por Mário Maestri
Leon Trotsky (1879-1940) |
Em 21 de agosto de 1940, em Coyoacán, na periferia da cidade do México, León Trotsky, com 60 anos, era assassinado por um esbirro estalinista, o espanhol Ramon Mercader (1913-1978), tema objeto do magnífico romance, de 2009, de Leonardo Padura, O homem que amava os cachorros. Quando de sua morte, havia décadas que Trotsky era infamado pelo grande capital e pela burocracia da URSS. Após a guerra, a sofrida vitória da população soviética sobre o nazismo serviu para consolidar as ignomínias lançadas pelo stalinismo contra o construtor do Exército Vermelho. O pecado maior de León Trotsky fora que, desde 1923, até sua morte, ele exigira a restauração do poder dos trabalhadores na URSS.
Georg Lukács (1885-1971) propôs que um grande romance histórico nasce do encontro de um grande tema com um grande ficcionista. Podemos dizer o mesmo das obras biográficas realizadas com sucesso, que exigem igualmente que um escritor de talento, no pleno domínio da arte historiográfica, se debruce sobre uma vida referencial. Por melhor que seja o escritor, uma biografia de Jair Bolsonaro apresentaria material apenas para uma triste ficção em prosa burlesca ou macabra.
O “Pai dos Povos” reinara como faraó sobre a URSS, até sua morte em 1953, endeusado mundialmente pelos partidos comunistas burocratizados. Em 1956, ele foi derrubado do seu mega-pedestal por Nikita Khrushchov (1894-1971), membro da casta que o levara à vitória, e seguiria agarrada firmemente ao poder e aos privilégios. Em 1954, um ano após a morte de Stalin, Isaac Deutscher (1907-67) publicava, em inglês, o primeiro tomo de sua biografia monumental Trotsky: o profeta armado, seguida, em 1959, por Trotsky: o profeta desarmado, e, finalmente, em 1963, por Trotsky: o profeta banido.
A trilogia de Isaac Deutscher surgia como a mais poderosa reivindicação político-biográfica do revolucionário caluniado com as mais terríveis e estapafúrdias infâmias, escrita por um autor de dotes estilísticos singulares, investigador insaciável, que vivera na primeira pessoa muitos daqueles sucessos. Tratado político por excelência, os três Profetas envolvem igualmente os apreciadores de romances biográficos e de romances históricos. Quem inicia a leitura, dificilmente a interrompe.
Cortando os cachos
Isaac Deutscher nasceu em 1907, na atual Polônia, no seio de família judaica, sendo destinado ao rabinado. Muito jovem, cortou os cachinhos ortodoxos e aderiu ao Partido Comunista da Polônia (1918-1938), do qual foi expulso, em 1933, por defender a aliança entre socialistas e comunistas contra o nazismo, proposta pela Oposição de Esquerda trotskista. Foi acusado de “exagerar o perigo nazista”. Em 1938, o Partido Comunista Polonês foi dissolvido, momentos antes do Pacto de 23 de agosto de 1939, que dividiu o país entre Stalin e Hitler, abrindo as portas à II Guerra Mundial. Praticamente todo o comitê central e milhares de militantes comunistas poloneses foram executados durante as purgas estalinistas.
Em 1933, Isaac Deutscher aderira à Oposição de Esquerda Internacional, liderada por Trotsky no exílio. Porém, rompeu com ela, em 1938, por divergir da fundação da IV Internacional, já que acreditava na possibilidade de auto-reforma do estalinismo. Em 1939, com 32 anos, no contexto da invasão nazi-estalinista da Polônia, refugiou-se na Inglaterra. Em 1949, publicou, em inglês, Stalin: uma biografia política, em plena era do culto do “Pai dos Povos”, que alguns poetas russos propunham mais refulgente do que o sol. Já nesse trabalho, o marxista polonês registrou sua crença na inevitabilidade da burocratização e da vitória de Stalin, e em uma certa contribuição do mesmo na construção da URSS. Porém, jamais deixou de denunciar os crimes do estalinismo.
Como vimos, em 1954, Deutscher iniciou a publicação, em inglês, de sua monumental trilogia, de fulgurante sucesso. Ela foi publicada, no Brasil, em plena retomada do movimento oposicionista contra a ditadura militar, em 1968, pela Civilização Brasileira, de Ênio Silveira, fazendo a cabeça de parte da juventude revolucionária de então. Creio que a melhor parte! Explico. Com 19 e 20 anos, como tantos companheiros, me formei politicamente lendo, primeiro, a insuperável História da Revolução Russa, de León Trotsky, de 1930, publicada no Brasil, pela Saga, em 1967, e os Profetas, como o chamávamos, em 1968.
O que se lia
Nós líamos a melhor literatura e não poucos companheiros, me perdoem, verdadeira sub-literatura. Os militantes que abraçavam o maoísmo portavam debaixo do braço o Livro vermelho, com os “Pensamentos de Mao-Tsé-Tung”. Os que optavam pelo foquismo, a Revolução na revolução, de Regis Debrey e o Mini-manual do guerrilheiro urbano, de Carlos Marighella, em cópias mimiografadas. Literatura que, hoje, permanece apenas como registro histórico daquela época. E os companheiros que seguiam no PCB, continuavam lendo a Formação Histórica do Brasil, de 1963, do general Werneck Sodré (1911-1999), historiador sério mas que falava maravilhas da “burguesia progressista”, naquele momento, mandando no país através dos militares desenvolvimentistas e de Delfim Netto.
As ilusões na possibilidade de regeneração do estalinismo, já presentes em Stalin, foram retomadas sobretudo nos segundos e terceiro tomos dos Profetas, quando Deutscher não raro briga com os fatos para defender suas posições na época daqueles sucessos. Essas posições conheceram correções, desde a esquerda, sobretudo por seus ex-camaradas trotskistas. Críticas que se mostraram corretas, com o andar da carroça histórica. No seu magnífico trabalho, Deutscher peca não raramente por explicações pós-fatos e, sobretudo, por deduzir de aspectos psicológicos, sobretudo de Trotsky e Stalin, fenômenos nascidos do confronto político e social, no qual um e outro foram apenas protagonistas atuantes, ainda que excelentes.
Nesses momentos, Deutscher abandona epistemologicamente o marxismo para avançar interpretações de viés positivistas. Ele acreditava que, com mais indústria, mais operários, mais educação, mais tecnologia, a reforma do estalinismo se teria imposto como necessidade ineludível. Porém, aqueles fenômenos ensejaram a rejeição pela burocracia das piores excrescências stalinistas, sem jamais abandonar a expropriação política dos trabalhadores. Deutscher realizou importante pesquisa e teve acesso aos arquivos de Trotsky. Sua obra de elevada qualidade literária e impactantes revelações historiográficas, prestou uma imensa contribuição política e cultural ao apresentar um quadro geral da vida e da luta de León Trotsky, soterrado por infâmias verdadeiramente terraplanistas.
Trinta e quatro anos mais tarde
Em 1988, em plena maré mundial contra-revolucionária, que levaria à dissolução da URSS, que tanto temera León Trotsky, o já reconhecido historiador marxista francês Pierre Broué lançou seu Trotsky. Portanto, um trabalho literalmente contra a corrente, em um momento em que no mundo e no Brasil, com as previsões do “fim da história” e a morte do comunismo, as livrarias liquidavam os livros marxistas, que os marxistas espertos compravam a preço de banana podre. Essa obra ainda não foi publicada no Brasil.
Pierre Broué, nasceu em 1926, aderindo ainda adolescente ao marxismo. Participou, quando secundarista, da resistência anti-fascista, recolhendo informações, ajudando no abastecimento da oposição armada, etc. Ainda durante a guerra, ingressou no PCF, do qual foi expulso por idéias trotsquista – em verdade, ele apenas lera, adolescente, a História da revolução russa. Em 1944, aderiu ao Partido Comunista Internacionalista, trotskista, tornando-se, nos quarenta anos seguintes, a principal referência intelectual do chamado “lambertismo”, de Pierre Lambert (1920-2008), que deu origem no Brasil à Libelu – Organização Socialista Internacionalista. Em 1989, quando lançava seu livro, foi expulso daquela organização por Jacque Lambert, salvo engano, por fazer uma conferência em um círculo conservador sobre seu livro.
Formado e pós-graduado em História, Pierre Broué foi professor no ensino secundário e, a seguir, universitário, produzindo trabalhos referenciais sobre o movimento comunista internacional e o marxismo-revolucionário, entre os quais A Revolução e a guerra da Espanha, de 1961; O Partido Bolchevique – história do PC da URSS, de 1963; a monumental Revolução na Alemanha, de 1917-1923, de 1971, e, finalmente, Trotsky, de 1988. Pierre Broué dirigiu o Instituto León Trotsky, que empreendeu a publicação das obras de Léon Trotsky de 1928 a 1940, em mais de 25 volumes. Era o principal animador dos Cadernos León Trotsky, trimestrais, publicados de 1979 a 2003.
Em 1992, Pierre Broué esteve em Porto Alegre, cidade vista então pela esquerda européia como espécie de Meca socialista, devido à direção petista e o “orçamento participativo”. Naquele então, a Secretaria Municipal de Cultura e sua divisão do Livro, esta última sob o comando do hoje ideólogo liberal Fernando Shuller, se destacavam em convidar pensadores conservadores para mostrar abertura ideológica. Armei um barraco pela imprensa nanica e me concederam, como cala-boca, o direito de convidar um esquerdista. Indiquei Pierre Broué que fez enorme sucesso ao lado do apagado Fukuyama, que levou 16 mil dólares, para passar quatro horas na capital sulina e ler com voz inaudível algumas páginas. Depois não sabem por que deu no que deu! Hoje Porto Alegre é governado por um rapazote direitista que surgiu do nada, apoiado no nome do pai, igualmente conservador, mas com alguns neurônios.
Um indiscutível avanço
A biografia Trotsky, de Pierre Broué, de 1.104 páginas, ainda não traduzida ao português, constituiu a mais acabada e refinada biografia do comunista internacionalista. A obra, escrita com elegância, respeita estritamente as normas da historiografia acadêmica, o que contribui também para que não alcance a densidade literária da trilogia de Deutscher. Como é inevitável, as idiossincrasias ideológicas e políticas do autor contribuíram para a maior ou menor ênfase de questões abordadas, no respeito permanente da documentação. A riqueza e a precisão documental, permitida pela intimidade visceral do autor com as fontes arquivais e outras, completam lacunas e corrigem hiatos historiográficos dos Profetas de Deutscher.
Uma das múltiplas qualidades desse trabalho é lançar luz sobre purgas e massacres promovidos por Stalin, tidos por muito como meros atos de sangue. Broué revela conspirações no âmbito da burocracia, de esquerda e de direita, contra os desmandos de Stalin. Movimentos que tiveram, alguns, Trotsky como referência possível. Broué corrige as visões da inevitabilidade do stalinismo e de seus aspectos positivos. Ressalta a vitória de Stalin como derrota terrível do operariado soviético e mundial que levou à dissolução da URSS, ainda em curso, quando da publicação de seu livro. Restaura a verdade histórica deixada de lado, quando Deutscher defende sua posição contrária à fundação da IV Internacional.
Stalin, Lenin e Trotsky
Ao saber da edição em francês de Trotsky: revolucionário sem fronteira, de Jean-Jacques Marie, de mais de 613 páginas, na versão espanhola, perguntei-me o que aquele historiador teria a dizer de novo, após as duas monumentais obras, ainda mais sendo o autor amigo e camarada de organização do saudoso Pierre Broué, onze anos mais velho do que ele. Jean-Jacques Marie, autor de biografias renomadas sobre Lenin e sobretudo Stalin, segue militando, hoje, no pequeninho Partido dos Trabalhadores, da França, no qual confluiu a Organização Comunista Internacionalista. Foi sempre professor secundário de História, o que, na França, ainda permite ter uma vida intelectual.
Também escritor de recursos, Jean-Jacques Marie nasceu na França, em 1937, tendo empreendido estudos universitários em História, russo e letras clássicas. Militante socialista de esquerda e muito ativo nas organizações sindicais do magistério, aderiu em fins dos anos 1950 ao grupo trotskista dirigido por Lambert, no qual se mantém, após suas diversas metamorfoses, até hoje. Ao aposentar-se, dedicou-se com maior intensidade à produção historiográfica, publicando uma detalhada biografia de Stalin, em 2003, de mais de oitocentas páginas, Stálin no Brasil, em uma tradução verdadeiramente horrível, e de Lenin, em 2004. Traduções pernetas brasileiras da obra de Broué são também comuns, algumas mais, outras menos.
A leitura desse trabalho torna-se obrigatória por inúmeras razões. Jean-Jacques Marie escreveu sua biografia em plena etapa contra-revolucionária, com a dissolução da URSS já consolidada e a hecatombe geral dos partidos comunistas estalinistas e pós-estalinistas. Pôde, portanto, aprofundar-se nos arquivos da URSS, o que Deutscher e Broué não tiveram oportunidade de fazer. Isso lhe permitiu fornecer algumas informações novas que, no geral, precisam e enriquecem o já conhecido. Uma maior intimidade com Stalin apoia também sua leitura da vida de Trotsky. O autor empreende igualmente uma apresentação mais equilibrada das relações de Lenin e Trotsky, pois escreve em contexto de refluxo do culto formal do fundador do Partido Bolchevique pelo estalinismo em dissolução. O perfil de Trotsky como indivíduo, sem retoques hagiográficos, é outro destaque na obra. Chama a atenção a apresentação que Jean-Jacques Marie faz da reflexão de Trotsky, nos anos finais do seu exílio, sobre a possibilidade da humanidade ter entrado em um período de decadência, eventualidade rejeitada por aquele revolucionário. Questão hoje candente.
Diríamos para concluir que a história, através da historiografia, fez justiça ao confronto Trotsky e Stalin. Hoje, quando se cumprem oitenta anos do assassinato de León Trotsky, destacam-se indiscutivelmente as três obras referidas entre outros excelentes resgates históricos do revolucionário amaldiçoado. E, sintomaticamente, quem quiser conhecer defesas históricas do “Pai dos Povos”, vai ter que se contentar sobretudo com as obras do italiano Domenico Losurdo (1941-2018) e do belga Ludo Martens (1946-2011), indiscutivelmente as mais citadas e apreciadas pelos estalinistas tardios e neo-estalinistas, entre tantos outros trabalhos. Dois escritores enfadonhos, resenhistas preguiçosos, estranhos à produção historiográfica acadêmica de qualidade, que jamais se preocuparam em colocar um pé em um arquivo ou aprender a ler o russo, para falar daqueles sucessos. Mais que biografias, são elogios áulicos a Stalin, continuação tardia de culto à personalidade já esfacelado pela história. Esses dois biógrafos de certo modo espelham o biografado. Merecem-se.
FONTE: Revista Espaço Acadêmico
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