Na obra de Richard Evans, os muitos deslocamentos,
paisagens e idiomas que formaram um dos maiores intelectuais do século XX.
Comunista, rompeu os limites do marxismo ortodoxo, e revolucionou a observação
da História
Por Ugo
Rivetti, no A Terra é Redonda
Chega-se
ao fim do livro de Richard Evans – consagrado historiador britânico baseado na
Universidade de Cambridge e autor de uma celebrada trilogia sobre o Terceiro
Reich –, com a descoberta de que são muitos os lugares, paisagens e idiomas que
se cruzam na biografia de Eric Hobsbawm (1917-2012). Neto de judeus poloneses
que se estabeleceram em Londres em meados dos anos 1870; filho de pai inglês e
mãe austríaca de origem judaica; jovem que nasceu em Alexandria e viveu em
Viena, Berlim e Londres. Todos esses deslocamentos estão gravados na história
de seu nome: do “Obstbaum” do avô, que se converteu, em um centro de imigração
em Londres, no “Hobsbaum” do pai, até o “Hobsbawm” atribuído, por alguma
distração dos órgãos universitários, ao estudante de Cambridge.
Deslocamentos
que conformaram a vida de um jovem órfão aos quatorze anos de idade e cuja
família se resumia (para além da irmã três anos mais nova, Nancy) a tios,
tios-avós e primos espalhados por Áustria, Alemanha e Inglaterra. Após a morte
da mãe, Nelly, em 1931, Hobsbawm se viu em um trânsito incessante entre as
casas de parentes mais ou menos distantes e conhecidos. Como se isso não
bastasse, toda a insegurança que perpassou os primeiros anos de sua vida foi
reforçada pela vaga antissemita que só aumentava na Europa dos anos 1930 e por
uma aparência física que era fonte permanente de desconforto.
Mas o que Evans mostra (e esse é um dos pontos altos de seu argumento) é como o jovem Eric procurou superar todas essas inseguranças por meio do engajamento apaixonado em atividades e espaços pelos quais ele pudesse se redefinir: primeiro, com os escoteiros, logo após a morte do pai, Leopold, em 1929 e, depois (e até o fim), com a vida intelectual e o movimento comunista. Ao menos essas eram as expectativas de Hobsbawm em seus primeiros anos: contra a aparência frágil e desengonçada, a persona do intelectual; contra a solidão em uma família dispersa, a camaradagem e solidariedade dos companheiros de partido; contra as incertezas e inseguranças engendradas por uma origem materialmente desfavorável e pela ameaça da perseguição, a força de um movimento que prometia um novo mundo.
De
todos esses engajamentos, aquele com a teoria e o movimento comunistas foi,
seguramente, o mais importante. E, para tanto, foi determinante, sobretudo, o
contexto histórico da Berlim dos anos 1930, na qual Hobsbawm viveu entre 1931 e
1933. Pois foi nesse meio que ele presenciou não apenas o avanço dos nazistas
em meio à debacle econômica e política da República de Weimar, mas também a
resistência oferecida pelo movimento comunista alemão, capaz de reunir 130 mil
pessoas em uma manifestação realizada em janeiro de 1933 a que o próprio
Hobsbawm compareceu. Segundo Evans, a atração pelo comunismo talvez fosse mera
questão de tempo para um jovem vivendo naquela conjuntura, com suas raízes e o
pendor para a vida intelectual e o mundo da cultura.
E
foi essa filiação apaixonada que o levou a optar, quando do ingresso em
Cambridge em 1936, pelo curso de História – a disciplina que lhe parecia mais
afeita ao emprego de uma abordagem materialista. Contudo, não demoraria muito
para que essa relação de forças se invertesse, com o intelectual marxista e
historiador profissional se sobrepondo ao militante comunista.
Ainda
que nunca tenha se desligado formalmente do Partido Comunista da Grã-Bretanha
(até mesmo no rescaldo da crise de 1956), Hobsbawm sempre se manteve um outsider nas
fileiras partidárias. O que, contudo, não impediu que ele sofresse as
conseqüências de um compromisso político desse tipo em um mundo mergulhado na
Guerra Fria, sobretudo a vigilância do serviço secreto britânico e os
obstáculos impostos a seu percurso acadêmico, o que redundou em uma carreira
realizada, de 1947 até a aposentadoria em 1982, no Birkbeck College,
da Universidade de Londres.
A
complexa interação entre os percursos político e intelectual que se revela na
trajetória de Hobsbawm não constitui, no entanto, uma singularidade do seu caso
– sinalizando, ao contrário, a relação sempre difícil que o comunismo manteve
com a vida intelectual inglesa. Outro indicativo pode ser encontrado na
trajetória do Grupo dos Historiadores do Partido Comunista, espaço no qual a
atuação partidária de Hobsbawm se concentrou.
Embora
tenha sido estabelecido em 1938 com uma finalidade abertamente política –
contribuir para a formação de trabalhadores conscientes das conquistas
históricas de sua classe e empreender investigações sobre a história do partido
e do movimento comunistas –, ainda assim, também esse grupo (formado, entre
outros, por Edward Thompson, Rodney Hilton, Christopher Hill e John Morris) foi
rapidamente isolado pela burocracia partidária. Suas atividades logo se
restringiram à realização de produtivos encontros e debates e, no final, o
maior legado do grupo (e nada poderia ser mais significativo do que isso) foi a
criação, em 1952, da revista Past & Present, projetada como uma
versão britânica dos Annales (e ainda hoje em circulação).
Mas
se é verdade que os papeis do historiador e do intelectual ganharam cada vez
mais espaço em relação ao do militante, é igualmente verdadeiro que, apesar de
todos os percalços na atuação política, a influência teórica do marxismo nunca
desapareceu. Mais do que isso, a abordagem analítica e metodológica
proporcionada pelo marxismo é o que explica, em grande medida, o caminho que
Hobsbawm percorreu em sua trajetória intelectual e a enorme importância que a
sua obra conquistou.
Desde
sua tese de doutoramento sobre a Sociedade Fabiana (concluída em 1950),
Hobsbawm se contrapôs às modalidades de história política e diplomática então
dominantes – isto é, as narrativas das grandes figuras e da evolução dos
Estados nacionais. Para ele, importava fazer uma história de fato materialista,
capaz de apreender a importância dos condicionantes econômicos (o que nunca
significou recair em leituras deterministas ou reducionistas). Tratava-se, para
tanto, de eleger como principal objeto de análise o desenvolvimento do
capitalismo, o que, por sua vez, implicava em abordar as várias dimensões desse
processo (econômica, política, artística, científica, geográfica), seu alcance
mundial e a crescente relação de interdependência entre as nações por ele
engendrada.
É
essa perspectiva – ao mesmo tempo abrangente e sintética – o que confere o tom
inovador a alguns de seus clássicos, como os três volumes de sua história da
Europa da segunda metade do século XVIII ao começo do XX: A era das
revoluções (1962), A era do capital (1975) e A
era dos impérios (1987).
Se
a obra de Hobsbawm se beneficiou da mobilização do arsenal teórico marxista,
isso, ainda assim, não explica tudo. Afinal, todos os historiadores oriundos do
Partido Comunista se apoiavam nas mesmas bases. Conforme Evans revela de modo
bastante persuasivo, o que singulariza a contribuição de Hobsbawm – em relação
não só à historiografia mais tradicional, mas também aos demais representantes
da historiografia marxista britânica – é o olhar que vai além dos limites do
mundo inglês.
Hobsbawm
exibe uma desenvoltura com a cultura europeia praticamente ausente nos demais
expoentes do marxismo inglês. Particularidade que já se manifesta no jovem (e
voraz) leitor de literatura inglesa, francesa e alemã e que deu o tom à
carreira do historiador que circulava pelos principais meios acadêmicos dos
dois lados do Atlântico e que formou ao longo da vida uma relação de
interlocutores que incluía Carl Schorske, Eugene Genovese, Charles Tilly,
Michelle Perrot, Jacques Revel, Carlo Ginzburg, Arno Mayer, Immanuel Wallerstein,
além de muitos outros, espalhados do Leste Europeu até a América Latina.
Visão
cosmopolita e de longo alcance que permitiu a Hobsbawm, ademais, romper com os
limites do marxismo mais ortodoxo, seja ao reconhecer nos movimentos populares
da América Latina dos anos 1960 a mais promissora força revolucionária da
época, ou ao se dedicar,em livros como Rebeldes primitivos (1959)
e Bandidos (1969), ao estudo de atores socialmente
marginalizados até então ignorados por aportes teóricos concentrados na classe
trabalhadora tradicional.
Outra
característica que diferencia Hobsbawm dos demais representantes do marxismo
inglês é o investimento por ele realizado na carreira acadêmica. Convivendo com
o militante comunista revolucionário, sempre esteve presente o historiador que
persistiu com afinco no percurso profissional: ao defender uma tese de
doutorado cujos resultados foram publicados em revistas de prestígio;
frequentando com assiduidade congressos e encontros da área; assumindo a linha
de frente em atividades institucionais e organizativas. Que de fato prezava não
só os títulos conquistados como também o reconhecimento conferido pelas mais
tradicionais instituições acadêmicas do país, como a prestigiosa British
Academy, o ápice de qualquer carreira na área das artes e humanidades, e na
qual Hobsbawm ingressou em 1976.
A
importância de Hobsbawm só cresceu nas últimas décadas de sua vida. Não só pela
consagração do historiador mundialmente celebrado e reconhecido como um dos
principais responsáveis por reconfigurar sua área de atuação, mas também (e
cada vez mais) como referência da esquerda britânica. Como assinala Evans,
Hobsbawm é um dos pais (senão o pai) do Novo Trabalhismo de
Tony Blair e Gordon Brown, tendo lançado as bases teóricas de um projeto de
reformulação da esquerda britânica quando, sobretudo a partir do final dos anos
1970, passou a defender a formação de uma ampla coalizão capaz de articular as
forças contrárias ao thatcherismo – para ele, o inimigo a ser derrotado.
Prova
de seu antisectarismo e independência intelectual, o Hobsbawm que defendia uma
frente política mais ampla e moderada contra o avanço do neoliberalismo é o
mesmo que, após o colapso da União Soviética na virada dos anos 1980 para os
1990, reafirmou sua filiação ao marxismo e ao comunismo.Como destacado por
Evans (e declarado pelo próprio biografado, sobretudo em entrevistas a veículos
de grande mídia nas quais o questionamento era recorrente), a filiação de
Hobsbawm ao comunismo durou por toda a vida porque era mais do que um vínculo
político ou teórico.
Porque
fora como comunista que ele amadurecera intelectual e emocionalmente; fora no
seio do partido e de suas instituições que os primeiros e os mais duradouros
laços afetivos foram atados. Fora no comunismo que o jovem Eric encontrara seu
suporte. Não havia outra forma pela qual o nonagenário Hobsbawm pudesse se ver.
Ele não tinha dúvidas de que a experiência comunista no século XX (incluindo os
desvios e crimes cometidos) deveria ser examinada a fundo. Mas, pelo menos para
ele, isso só poderia ser feito a partir do ponto de vista de um comunista.
As
vidas política e intelectual de Hobsbawm seguiram lado a lado até em sua morte,
aos 95 anos de idade, em outubro de 2012. Seu corpo foi cremado em uma
cerimônia concluída com a execução da Internacional. Suas cinzas,
enterradas sob uma edição da London Review of Books, no Highgate
Cemetery, no norte de Londres, em um túmulo alguns metros à direita da
tumba de Marx.
Ugo
Rivetti é doutorando em sociologia na
Universidade de São Paulo.
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