Por David Graeber e Andrej Grubačić
Há um século, morria pensador notável do anarquismo e das lutas revolucionárias. Ainda atual, ele derrubou dogma crucial ao liberalismo e demonstrou a centralidade da cooperação – nas sociedades e na própria evolução das espécies.
De vez em quando — mas não com muita frequência — algum argumento particularmente convincente contra o senso político comum e dominante apresenta tal choque para o sistema, que torna-se necessário criar um corpo teórico inteiro para refutá-lo. Essas intervenções são eventos por si mesmas, no sentido filosófico; isto é, eles revelam aspectos da realidade que eram amplamente invisíveis mas que, após revelados, parecem tão óbvios que nunca mais passarão despercebidos. Grande parte da direita intelectual se dedica a identificar e eliminar tais desafios.
A seguir, apresentamos três exemplos:
Nos anos 1680, um estadista hurão (da etnia Huron-Wendat), chamado Kondiaronk, que tinha passado pela Europa e estava intimamente familiarizado com a sociedade de colonos francesa e inglesa, travou uma série de debates com o governador francês de Quebec e com um de seus principais assessores, um tal de Lahontan. Nestes debates, ele apresentou o argumento de que a lei punitiva e todo o aparato do estado existiam não por causa de alguma falha fundamental na natureza humana, mas devido à existência de outro conjunto de instituições — propriedade privada, dinheiro — que, por sua própria natureza, levavam as pessoas a agir de determinada forma e, por isso, medidas coercivas tornavam-se necessárias. A igualdade é, portanto, a condição para qualquer liberdade significativa, argumentou.
Posteriormente, Lahontan transformou esses debates em um livro que foi um grande sucesso nas primeiras décadas do século XVIII. Tornou-se uma peça teatral que esteve em cartaz durante vinte anos em Paris e, aparentemente, todo pensador iluminista escreveu alguma imitação. Por fim, esses argumentos — e a ampla crítica indígena sobre a sociedade francesa — tornaram-se tão poderosos que os defensores da ordem social existente, como Turgot e Adam Smith, tiveram que, efetivamente, inventar a noção de evolução social como uma resposta direta. Aqueles que primeiro propuseram a ideia de que as sociedades humanas podiam ser organizadas de acordo com seus estágios de desenvolvimento, cada um com suas próprias tecnologias e formas de organização características, foram bastante explícitos em explicar que era disso mesmo que se tratava. “Todos amam liberdade e igualdade”, observou Turgot; a questão é o quanto de cada um deles é consistente com uma sociedade comercial avançada, baseada em uma sofisticada divisão de trabalho. As teorias de evolução social resultantes dominaram o século XIX e ainda hoje estão entre nós, embora de forma ligeiramente modificada.
No final do século XIX e início do século XX, a crítica anarquista do estado liberal — de que a lei baseava-se basicamente na violência arbitrária e que, em última instância, não passava de uma versão secularizada de um Deus todo-poderoso que só poderia ter criado a moralidade por estar do lado de fora dela — foi levada tão a sério pelos defensores do Estado, que teóricos jurídicos de direita, como Karl Schmitt, acabaram criando a armadura intelectual do fascismo. Schmitt termina sua obra mais famosa, Teologia Política, com um discurso retórico contra Bakunin, cuja rejeição do “decisionismo” — a autoridade arbitrária para criar uma ordem jurídica, mas também para afastá-la — teria sido, em última análise, tão arbitrária quanto a autoridade à qual Bakunin afirmava se opor, afirmou ele. A própria concepção de teologia política de Schmitt, fundamental para quase todo o pensamento de direita contemporâneo, foi uma tentativa de responder à obra “Deus e o Estado”, de Bakunin.
O desafio apresentado por Kropotkin em “Mutualismo: Um Fator de Evolução” (Mutual Aid, no título em inglês), vai, sem sombra de dúvidas, ainda mais fundo, uma vez que não se trata apenas da natureza do governo, mas da própria natureza da natureza — isto é, a própria realidade.
As teorias de evolução social, o que Turgot chamou de “progresso”, podem ter começado como um jeito de desarmar o desafio da crítica indígena, mas logo começaram a assumir uma forma mais virulenta, à medida em que liberais radicais como Herbert Spencer começavam a representar a evolução social não apenas como uma questão de crescente complexidade, diferenciação e integração, mas como uma espécie de luta hobbesiana pela sobrevivência. Na verdade, a frase “sobrevivência do mais apto” foi cunhada em 1852 por Spencer, para descrever a história humana — e presume-se que, em última análise, para justificar o genocídio europeu e o colonialismo. Só foi retomado por Darwin cerca de dez anos depois, quando, em “A Origem das Espécies”, ele usou o termo como uma forma de descrever as formas de seleção natural que ele havia identificado em sua famosa expedição às Ilhas Galápagos. Na época em que Kropotkin estava escrevendo, nas décadas de 1880 e 90, as ideias de Darwin haviam sido adotadas por liberais de mercado, mais notoriamente pelo seu “bulldog” Thomas Huxley, e pelo naturalista inglês Alfred Russel Wallace, para propor o que costuma ser chamado de “visão gladiadora” da história natural. As espécies lutam feito boxeadores em um ringue ou como comerciantes de títulos no chão do mercado; os fortes prevalecem.
A resposta de Kropotkin — de que a cooperação é um fator tão decisivo na seleção natural quanto a competição — não foi completamente original. E ele nunca fingiu ser. Na verdade, ele não só bebia da fonte do melhor conhecimento biológico, antropológico, arqueológico e histórico disponível de sua época, incluindo suas próprias explorações da Sibéria, mas também de uma escola alternativa russa, da teoria evolutiva, que sustentava que a escola ultracompetitiva inglesa era baseada, como ele mesmo disse, em “um tecido de absurdos”: homens como “Kessler, Severtsov, Menzbir, Brandt — quatro grandes zoólogos russos, junto de um quinto menor, Poliakov; e finalmente eu, um simples viajante”.
Ainda assim, devemos dar os devidos créditos a Kropotkin. Ele era muito mais do que um simples viajante. Esses homens haviam sido fortemente ignorados pelos darwinianos ingleses, mesmo em seu máximo apogeu — e, de fato, por quase todos os outros. Mas a afirmação de Kropotkin não passou batida. Sem dúvida, isso ocorreu, em parte, porque ele apresentou suas descobertas científicas em um contexto político mais amplo, de uma forma que tornava impossível negar o quanto a versão reinante da ciência darwiniana em si era apenas um reflexo inconsciente das categorias liberais dadas por garantidas. (Como diz a famosa frase de Marx, “A anatomia do homem é a chave para a anatomia do macaco”.) Foi uma tentativa de catapultar as visões das classes comerciais para a universalidade. Naquela época, o darwinismo ainda era uma intervenção política consciente e militante para remodelar o senso comum, uma insurgência centrista, pode-se dizer; ou melhor, uma pretensa insurgência centrista — visto que visava criar um novo centro. Ainda não era senso comum: era uma tentativa de criar um novo senso comum universal. Se não foi completamente bem-sucedido, isso se deve, de certo modo, ao próprio poder do contra-argumento de Kropotkin.
Não é difícil perceber o que deixava esses intelectuais liberais tão preocupados. Considere a famosa passagem de Mutualismo, que merece ser citada na íntegra:
Não é o amor, e nem mesmo a simpatia (compreendida em seu sentido próprio), que induz manadas de ruminantes ou de cavalos a formarem um círculo para resistir a um ataque de lobos; não é o amor que induz os lobos a formarem uma alcateia para sair à caça; não é o amor que induz gatinhos ou cordeiros a brincar, ou uma dúzia de espécies de pássaros jovens a passarem os dias juntos no outono; e não é o amor nem a simpatia pessoal que faz com que milhares de cervos espalhados por um território tão vasto como a França se agrupem em pares de rebanhos separados, todos marchando em direção a um determinado local, a fim de cruzar um rio. É um sentimento infinitamente mais amplo do que o amor ou a simpatia pessoal: um instinto que se desenvolveu lentamente entre os animais e os homens ao longo de uma evolução extremamente longa, e que ensinou aos animais e aos homens a força que eles podem obter da prática da ajuda e apoio mútuos, e as alegrias que podem encontrar na vida social… Não é o amor e nem mesmo a simpatia que fundamenta a existência da sociedade na humanidade. É a consciência — mesmo que apenas na fase instintiva — da solidariedade humana. É o reconhecimento inconsciente da força que a prática da ajuda mútua transfere a cada ser humano; da estreita dependência que a felicidade de cada um tem na felicidade de todos; e do senso de justiça ou equidade que leva o indivíduo a considerar os direitos de todos os outros indivíduos como iguais aos seus. Sobre este fundamento amplo e necessário, desenvolvem-se sentimentos morais ainda mais elevados.
Basta considerar a virulência da reação. Pelo menos dois campos de estudo (reconhecidamente sobrepostos) — a sociobiologia e a psicologia evolucionista — foram criados especificamente para reconciliar os pontos de Kropotkin sobre a cooperação entre animais com a suposição de que todos somos, em última instância, movidos por nossos “genes egoístas” (como Dawkins acabaria por dizer). Quando o biólogo britânico J.B.S. Haldane disse que estaria disposto a sacrificar sua vida para salvar “dois irmãos, quatro meio-irmãos ou oito primos de primeiro grau”, ele estava simplesmente repetindo o tipo de cálculo “científico” que foi introduzido por toda parte para responder a Kropotkin; da mesma forma que o progresso foi inventado para controlar Kondiaronk, ou a doutrina do estado de exceção surgiu para controlar Bakunin. A frase “gene egoísta” não foi escolhida ao acaso. Kropotkin havia revelado um comportamento no mundo natural que era exatamente o oposto do egoísmo: todo o jogo dos darwinistas agora passava a ser o de encontrar alguma razão, qualquer que fosse, para continuar insistindo na teoria de que mesmo o comportamento mais brincalhão, amoroso, caprichoso, heroicamente altruísta ou até sociável, no fundo, é egoísta.
Os esforços da direita intelectual para enfrentar a grandeza do desafio que a teoria de Kropotkin trouxe são compreensíveis. Como já apontamos, é exatamente isso que eles deveriam estar fazendo. É por isso que eles são chamados de “reacionários”. Eles de fato não acreditam na criatividade política como um valor em si — na verdade, acham que isso é algo profundamente perigoso. Como resultado, os intelectuais de direita estão lá principalmente para reagir às ideias apresentadas pela esquerda. Mas e a esquerda intelectual?
É aqui que as coisas ficam um pouco mais confusas. Enquanto os intelectuais de direita procuravam neutralizar o holismo evolucionário de Kropotkin desenvolvendo sistemas intelectuais inteiros, a esquerda marxista fingia que a intervenção do anarquista nunca havia ocorrido. Podemos até arriscar a dizer que a resposta marxista à ênfase de Kropotkin no federalismo cooperativo foi a de desenvolver ainda mais os aspectos da própria teoria de Marx que puxaram mais fortemente na outra direção: isto é, seus aspectos mais produtivistas e progressistas. Alguns insights riquíssimos de Mutualismo foram, na melhor das hipóteses, ignorados e, na pior, afastados com uma risada condescendente. Tem havido uma tendência tão persistente nos estudos marxistas e, por extensão, nos estudos de tendência da esquerda em geral, em ridicularizar o “socialismo de salva-vidas” e o “utopismo ingênuo” de Kropotkin, que um biólogo renomado, Stephen Jay Gould, se sentiu compelido a insistir, em um famoso ensaio, que “Kropotkin não era maluco”.
Existem duas explicações possíveis para essa destituição estratégica. Uma delas é: puro sectarismo. Como já observado, a intervenção intelectual de Kropotkin fazia parte de um projeto político mais amplo. O final do século XIX e o início do século XX viram as bases do estado de bem-estar — cujas instituições-chave foram criadas na verdade, em grande parte por grupos de mutualismo, totalmente independentes do Estado — serem gradualmente cooptadas pelo Estado e por partidos políticos. A maioria dos intelectuais de direita e esquerda estavam perfeitamente alinhados com isso: Bismarck admitiu plenamente que criou instituições de bem-estar social na Alemanha como um “suborno” à classe trabalhadora para que não se tornassem socialistas; enquanto os socialistas insistiam em que nada, desde o seguro social até as bibliotecas públicas, fosse administrado pelo bairro e nem pelos grupos sindicais (seus verdadeiros criadores), mas por partidos de vanguarda de cima para baixo.
Neste contexto, ambos lados viram a destruição das propostas éticas socialistas de Kropotkin, sob o imperativo supremo de taxá-las de tolice. Também vale a pena lembrar que — em parte por esta mesma razão — no período entre 1900 e 1917, as ideias marxistas anarquistas e libertárias eram muito mais populares entre a própria classe trabalhadora do que o marxismo de Lenin e Kautsky. Foi necessária a vitória do braço do partido bolchevique de Lenin na Rússia (na época, considerada a ala direita dos bolcheviques) e a supressão dos soviéticos, do Proletkult e de outras iniciativas de baixo para cima na própria União Soviética, para finalmente esfriar esses debates e deixá-los de lado.
No entanto, existe outra explicação possível, que tem uma relação maior com o que pode ser chamado de “posicionalidade”, tanto do marxismo tradicional quanto da teoria social contemporânea. Qual é o papel de um intelectual radical? A maioria dos intelectuais ainda afirma ser radical de algum tipo ou de outro. Em teoria, todos eles concordam com Marx no sentido de que não basta entender o mundo; mas que é preciso mudá-lo. Mas o que isso realmente significa na prática?
Num parágrafo relevante de Mutualismo, Kropotkin sugere: o papel de um estudioso radical é o de “restaurar as proporções reais entre o conflito e a união”. Isto pode parecer ambíguo, mas ele esclarece. Os estudiosos radicais são “obrigados a fazer uma análise minuciosa dos milhares de fatos e indícios tênues acidentalmente preservados nas relíquias do passado; interpretá-los com o auxílio da etnologia contemporânea; e depois de ter ouvido tanto sobre o que costumava dividir os homens, reconstruir pedra por pedra as instituições que costumavam uni-los.”
Um dos autores ainda recorda a sua empolgação juvenil após ter lido essas linhas. Quanta diferença do treinamento sem vida que recebiam na academia, sempre tão centrada no Estado. Esta recomendação deveria ser lida em conjunto com a de Karl Marx, cuja energia foi canalizada para a compreensão da organização e do desenvolvimento da produção capitalista de mercadorias. Em O Capital, a única atenção real dada à cooperação é num exame das atividades cooperativas como formas e consequências da produção da fábrica, onde os trabalhadores “formam meramente um modo particular de existência do capital”. Parece que ambos os projetos se complementariam muito bem.
Kropotkin procurava entender exatamente aquilo que o trabalhador alienado havia perdido. Mas integrar os dois significaria entender como até o capitalismo é substancialmente fundado no comunismo (“ajuda mútua”, mutualismo), mesmo que seja num comunismo que ele não reconhece; como o comunismo não é um ideal abstrato e distante, impossível de manter, mas uma realidade prática vivida na qual todos nos engajamos diariamente, em diferentes graus, e que nem as fábricas poderiam operar sem ela — mesmo se muitas delas operassem às escondidas, nas entrelinhas ou com mudanças, ou informalmente, ou no que não foi dito, ou de forma totalmente subversiva. Ultimamente, está na moda dizer que o capitalismo entrou em uma nova fase na qual se tornou parasita de formas de cooperação criativa, principalmente na internet. Isso não faz sentido. Sempre foi assim.
Trata-se de um projeto intelectual muito notável. Mas por algum motivo, quase ninguém está interessado em realizá-lo. Em vez de examinar como as relações de hierarquia e exploração são reproduzidas, recusadas e emaranhadas por relações de mutualismo, como as relações de cuidado tornam-se contínuas com as relações de violência — e como, ainda assim, mantêm sistemas de violência de modo a não se desintegrarem totalmente — tanto o marxismo tradicional quanto a teoria social contemporânea rejeitaram obstinadamente quase tudo que sugerisse generosidade, cooperação ou altruísmo como se se tratasse de algum tipo de ilusão burguesa. Conflito e cálculo egoísta provaram ser mais interessantes do que “união”. (Da mesma forma, é bastante comum a esquerda acadêmica escrever sobre Carl Schmidt ou Turgot, enquanto é quase impossível encontrar aqueles que escrevem sobre Bakunin e Kondiaronk).Como o próprio Marx já se queixava: nas últimas décadas, existir sob o modo de produção capitalista é acumular. Pouco se ouve, para além de exortações implacáveis, sobre estratégias cínicas usadas para aumentar nosso respectivo capital (social, cultural ou material) — estas são enquadradas como críticas. Mas se tudo o que você deseja falar é sobre o que você afirma ser contra, se tudo o que pode imaginar é aquilo ao que você afirma se opor, então, em que sentido você realmente se opõe? Às vezes, parece que a esquerda acadêmica acabou, gradualmente, internalizando e reproduzindo todos os aspectos mais angustiantes do economicismo neoliberal aos quais afirma se opor, a tal ponto que, lendo muitas dessas análises (vamos ser simpáticos e não mencionar nomes), alguém se pergunta: isso é realmente diferente da hipótese sociobiológica de que nosso comportamento é governado por “genes egoístas”?
É certo que esse tipo de internalização do inimigo atingiu seu ápice nas décadas de 1980 e 1990, quando a esquerda global estava em plena retirada. Mas, desde então, as coisas mudaram. Kropotkin voltou a ser relevante? Bem, obviamente, Kropotkin sempre foi relevante, mas este livro está sendo lançado com a crença de que há uma nova geração radicalizada, dentro da qual muitos nunca foram expostos a essas ideias diretamente, mas que mostram todos os sinais de serem capazes de fazer uma melhor avaliação da situação global do que seus pais e avós — até porque eles sabem que, se não o fizerem, o mundo que lhes é reservado logo se tornará um inferno absoluto.
Já está começando a acontecer. A relevância política das ideias defendidas pela primeira vez em “Mutualismo” vem sendo redescoberta pelas novas gerações de movimentos sociais em todo o planeta. A revolução social em curso na Federação Democrática do Nordeste da Síria (Rojava) foi profundamente influenciada pelos escritos de Kropotkin sobre ecologia social e federalismo cooperativo, em parte por meio das obras de Murray Bookchin, em parte voltando diretamente à fonte, e em grande parte, também, baseando-se em suas próprias tradições curdas e experiência revolucionária. Os revolucionários curdos assumiram a tarefa de construir uma nova ciência social antagônica às estruturas de conhecimento da modernidade capitalista. Os envolvidos em projetos coletivos de sociologia da liberdade e jineoloji começaram de fato a “reconstruir pedra por pedra as instituições que costumavam unir” pessoas e lutas. No Norte Global, por toda parte: desde movimentos de ocupação variados até projetos de solidariedade para enfrentar a pandemia, o mutualismo surgiu como uma frase-chave usada por ativistas e jornalistas. Atualmente, o mutualismo é invocado nas mobilizações de solidariedade de migrantes na Grécia e na organização da sociedade zapatista em Chiapas. Há rumores de que até mesmo alguns acadêmicos usam o termo ocasionalmente.
Quando Mutualismo foi lançado pela primeira vez, em 1902, tínhamos poucos cientistas corajosos o suficiente para desafiar a ideia de que o capitalismo e o nacionalismo estavam enraizados na natureza humana, ou que a autoridade dos Estados era, em última análise, inviolável. A maioria dos que fizeram isso foram, de fato, considerados malucos ou, se fossem muito importantes como para serem descartados dessa maneira — como Albert Einstein — eram tachados de “excêntricos”, cujas opiniões políticas eram praticamente iguais ao estilo de seus cabelos incomuns. Todavia, o resto do mundo está avançando. Será que os cientistas — inclusive os cientistas sociais — alguma hora irão segui-lo?
Escrevemos esta introdução enquanto acontece, globalmente, uma onda de revolta popular contra o racismo e a violência de Estado; enquanto as autoridades públicas vomitam veneno contra os “anarquistas”, da mesma forma que faziam na época de Kropotkin. Parece um momento peculiarmente adequado para fazer um brinde em nome daquele velho “desprezador da lei e da propriedade privada” que mudou a face da ciência de maneiras que continuam a nos afetar ainda hoje. A escola de Pyotr Kropotkin foi cuidadosa e colorida, perspicaz e revolucionária. E ele também envelheceu excepcionalmente bem. A rejeição de Kropotkin ao capitalismo e ao socialismo burocrático, suas previsões de onde o segundo poderia nos levar, foram justificadas repetidas vezes. Olhando para trás, para a maioria das discussões levantadas em sua época, não restam dúvidas sobre quem estava realmente certo.
Obviamente, ainda existem aqueles que discordam virulentamente nesse ponto. Alguns se apegam ao sonho de embarcar em navios há muito tempo perdidos. Outros são bem pagos para pensar nas coisas que fazem. Quanto a nós, autores desta modesta introdução, muitas décadas depois de encontrar pela primeira vez este livro encantador, ficamos — mais uma vez — surpresos com o quão profundamente concordamos com sua ideia central. A única alternativa viável à barbárie capitalista é o socialismo sem Estado: um produto, como o grande geógrafo sempre fez questão de nos lembrar, “de tendências que agora se manifestam na sociedade” e que “sempre foram, em certo sentido, iminentes no presente”. Para criar um novo mundo, só podemos começar redescobrindo aquilo que ele é, e que sempre esteve bem diante de nossos olhos.
Fonte da matéria: https://outraspalavras.net/pos-capitalismo/kropotkin-100-anos/
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