sábado, 29 de maio de 2021

Notas sobre capitalismo e socialismo (2)

 




Por Wladimier Pomar


O Brasil e o que hoje são os Es­tados Unidos da Amé­rica do Norte en­traram na his­tória como colô­nias. De ime­diato ti­veram si­mi­la­ri­dade nas ma­té­rias-primas pro­du­zidas para cada me­tró­pole, mas di­fe­renças sig­ni­fi­ca­tivas quanto à forma de ocu­pação po­pu­la­ci­onal.

Para a In­gla­terra al­gumas das colô­nias ame­ri­canas de­ve­riam ser su­pri­doras de al­godão para suas ma­nu­fa­turas de te­cidos, en­quanto ou­tras de­ve­riam ab­sorver os ex­ce­dentes po­pu­la­ci­o­nais que in­fes­tavam as ci­dades in­glesas. Para Por­tugal in­te­res­sava uni­ca­mente que o Brasil lhe for­ne­cesse açúcar, ouro e as drogas do sertão nor­tista, e que não des­po­vo­asse a me­tró­pole.

Assim, en­quanto as colô­nias in­glesas do sul da Amé­rica do Norte e a maior parte da colônia por­tu­guesa igua­lavam-se pela adoção das plan­ta­tions tra­ba­lhadas por es­cravos, o norte da colônia in­glesa di­fe­ren­ciava-se pela ocu­pação de ho­mens li­vres. Grande parte desses tra­ba­lha­dores li­vres ocupou as terras como far­mers (la­vra­dores in­de­pen­dentes), ca­pazes de uti­lizar má­quinas idên­ticas às da me­tró­pole, e/ou como tra­ba­lha­dores as­sa­la­ri­ados.

Nas colô­nias in­glesas e na colônia por­tu­guesa o co­mu­nismo ou co­mu­ni­ta­rismo in­dí­gena, com sua re­pulsa ao es­cra­vismo e à in­vasão de seus ter­ri­tó­rios de caça e co­leta, foi con­si­de­rado uma aber­ração hu­mana a ser eli­mi­nada pelos ar­ca­buzes. Apenas no norte da colônia por­tu­guesa (Pro­víncia do Grão-Pará) ocorreu uma di­fe­ren­ci­ação pela co­leta de es­pe­ci­a­rias re­a­li­zada por in­dí­genas das re­du­ções re­li­gi­osas.

Assim, com a cons­tante des­truição das tribos in­dí­genas, a com­po­sição so­cial das colô­nias in­glesas su­listas com­por­tava, além dos fun­ci­o­ná­rios civis e mi­li­tares da me­tró­pole, uma classe agrária es­cra­vista, que mo­rava em casas grandes nas pró­prias terras, assim como mer­ca­dores de di­fe­rentes tipos e es­cravos afri­canos. Nas colô­nias in­glesas nor­tistas con­formou-se, pa­ra­le­la­mente a uma classe cam­po­nesa livre e a uma classe de tra­ba­lha­dores des­pro­vidos de pro­pri­e­dades, uma classe de re­pa­ra­dores e fa­bri­cantes de má­quinas agrí­colas (prin­ci­pal­mente para a cul­tura do trigo), e uma classe co­mer­cial di­ver­si­fi­cada.

Já a com­po­sição so­cial bra­si­leira in­cluiu, na maior parte do ter­ri­tório li­to­râneo, além dos fun­ci­o­ná­rios civis e mi­li­tares da me­tró­pole, os ses­meiros, ou a classe agrária es­cra­vista que re­cebia da Coroa por­tu­guesa o di­reito fun­diário de plantar cana e tocar en­ge­nhos de açúcar, os es­cravos afri­canos e, mi­no­ri­ta­ri­a­mente, es­cravos in­dí­genas, en­quanto na Pro­víncia do Grão-Pará, ao norte, mis­si­o­ná­rios ca­tó­licos e in­dí­genas mes­clavam-se no co­o­pe­ra­ti­vismo apa­ren­te­mente co­mu­nista das re­du­ções.

Os ses­meiros pro­pri­e­tá­rios das plan­ta­tions de cana e dos en­ge­nhos do Brasil ti­nham o dever de ex­portar a pro­dução de açúcar para Por­tugal ou para a Ho­landa, em grande parte por serem fi­nan­ci­ados por co­mer­ci­antes desses reinos feu­dais. Cons­ti­tuíram ini­ci­al­mente a classe la­ti­fun­diária, ou o es­ta­mento dos homes bons, com di­reito a par­ti­ci­parem das câ­maras das vilas. A eles, mais adi­ante, se jun­taram os ses­meiros dos ser­tões, pro­pri­e­tá­rios das fa­zendas de gado.

Nas plan­ta­tions de al­godão das colô­nias in­glesas su­listas da Amé­rica do Norte, assim como nas plan­ta­tions e en­ge­nhos de cana da colônia por­tu­guesa, do Nor­deste ao Su­deste do Brasil, as re­la­ções de pro­dução eram, pois, es­cra­vistas: os es­cravos eram obri­gados ao tra­balho nos eitos das plan­ta­ções e nas for­na­lhas dos en­ge­nhos. Nas fa­zendas de gado do Brasil, porém, as re­la­ções de pro­dução eram apa­ren­tadas às re­la­ções de pro­dução feu­dais.

Os va­queiros e os peões eram se­mi­li­vres, agre­gados aos cur­rais es­pa­lhados por di­versos pontos das ses­ma­rias, para criar bois de tração para as mo­endas e pro­duzir couro para o en­sa­ca­mento do açúcar a ser em­bar­cado para a Eu­ropa. Em­bora não per­ten­cessem à gleba, como no feu­da­lismo, eram obri­gados ao cambão (tra­balho grátis em ser­viços do fa­zen­deiro, idên­tico à cor­veia), e ti­nham di­reito a parte da pro­dução do re­banho (quarta ou quinta parte das crias).

Os la­ti­fun­diá­rios bra­si­leiros mo­ravam nas casas grandes das plan­ta­tions. So­mente cons­ti­tuíram outra re­si­dência nas vilas e cen­tros ur­banos desse pe­ríodo à me­dida que estes se de­sen­vol­veram. Os es­cravos mo­ravam nas sen­zalas, en­quanto os va­queiros e peões mo­ravam em chou­panas pró­ximas aos cur­rais es­pa­lhados pelas fa­zendas. Nos cen­tros ur­banos mai­ores, portos para a ex­por­tação, ha­bi­tavam prin­ci­pal­mente os fun­ci­o­ná­rios da Coroa por­tu­guesa, o clero, os co­mer­ci­antes e os es­cravos do­més­ticos. Tra­ba­lha­dores as­sa­la­ri­ados eram mi­noria in­sig­ni­fi­cante.

As re­la­ções de pro­dução es­cra­vistas pre­do­mi­nantes man­ti­veram-se re­la­ti­va­mente inal­te­radas no Brasil e nas colô­nias su­listas da In­gla­terra por mais de dois sé­culos. Na se­gunda me­tade do sé­culo 18, porém, ocor­reram mo­vi­mentos ra­di­cal­mente de­sen­con­trados nas duas colô­nias. No Brasil da época mi­nis­te­rial me­tro­po­li­tana de Pombal, as re­du­ções re­li­gi­osas na Pro­víncia do Grão-Pará foram ex­tintas e a es­cra­vidão foi es­ten­dida a essa re­gião. Por outro lado, a ex­plo­ração mi­neira das Ge­rais in­ten­si­ficou tanto a pro­dução e o co­mércio de gado bo­vino, equino e muar quanto a pro­dução de ali­mentos para as po­pu­la­ções li­vres e es­cravas da mi­ne­ração.

Apro­vei­tando-se dessas de­mandas, a agre­gação es­tendeu-se, então, além do vale do São Fran­cisco e dos pampas su­linos, pelo vale do Pa­raíba e ao longo das es­tradas reais que li­gavam o sul e o nor­deste da colônia às minas. Ao mesmo tempo co­meçou a surgir a fi­gura do pos­seiro, homem livre que se apro­priava de terras de­vo­lutas para de­sen­volver ati­vi­dades agrí­colas.

Nas colô­nias in­glesas, por outro lado, os es­cra­vistas su­listas e os ho­mens li­vres nor­tistas (que também in­cluíam ne­gros fu­gidos da es­cra­vidão su­lista) uniram-se numa das pri­meiras guerras an­ti­co­lo­niais vi­to­ri­osas da his­tória do nas­cente ca­pi­ta­lismo. A Guerra de In­de­pen­dência, ou a Re­vo­lução Ame­ri­cana (1775-1783), deu sur­gi­mento aos Es­tados Unidos da Amé­rica do Norte, com a ini­ci­ante in­dús­tria nor­tista de­sem­pe­nhando papel im­por­tante. Con­for­maram-se assim dois grupos de Es­tados in­de­pen­dentes: os su­listas he­ge­mo­ni­zados pela classe agrária es­cra­vista, e os nor­tistas he­ge­mo­ni­zados por uma bur­guesia aven­tu­reira e ra­pace.

Na colônia por­tu­guesa do Brasil, porém, a in­de­pen­dência só foi ob­tida na se­gunda dé­cada do sé­culo 19 (1822), após su­focar a Re­vo­lução Prai­eira e ou­tros mo­vi­mentos re­vo­lu­ci­o­ná­rios in­de­pen­den­tistas. A an­tiga me­tró­pole por­tu­guesa e o novo país in­de­pen­dente, este he­ge­mo­ni­zado pela classe agrária es­cra­vista, pas­saram a ser de­pen­dentes e su­bor­di­nados à In­gla­terra. Esta, a maior po­tência ca­pi­ta­lista e co­lo­ni­a­lista da época, pro­cu­rava, con­tra­di­to­ri­a­mente, dar fim ao es­cra­vismo para am­pliar os mer­cados para seus pro­dutos in­dus­triais.

Em me­ados do sé­culo 19, os la­ti­fun­diá­rios es­cra­vistas bra­si­leiros viram-se con­fron­tados por di­versos de­sa­fios. Ex­ter­na­mente, ti­veram que en­frentar o sis­tema de caça da frota de guerra in­glesa às naves que tra­fi­cavam es­cravos afri­canos para as Amé­ricas, que re­per­cutia ne­ga­ti­va­mente no preço dos es­cravos con­tra­ban­de­ados e na oferta de novos ca­tivos. In­ter­na­mente con­fron­taram-se com mo­vi­mentos abo­li­ci­o­nistas, com fugas de es­cravos e cri­ação de qui­lombos, e com re­be­liões de­mo­crá­ticas, tanto ur­banas quanto ru­rais, como as dos ca­banos e ba­laios.

Essa si­tu­ação con­fli­tuosa obrigou o sis­tema im­pe­rial a criar uma Guarda Na­ci­onal, trans­for­mando os la­ti­fun­diá­rios em seus co­man­dantes, como co­ro­néis, ma­jores e ca­pi­tães ru­rais. As me­didas re­pres­sivas, porém, não eram ca­pazes de re­solver o cres­cente pro­blema de re­dução da oferta de mão de obra, o que levou os ca­fei­cul­tores pau­listas a in­tro­duzir a par­ceria em suas plan­ta­tions e, de­pois, o co­lo­nato, com tra­ba­lha­dores li­vres im­por­tados. Ou seja, in­tro­du­ziram em suas la­vouras novas formas da agre­gação pra­ti­cada até então na pe­cuária.

Nos Es­tados Unidos, os su­listas con­ti­nu­aram man­tendo as re­la­ções es­cra­vistas de pro­dução, ao mesmo tempo em que os es­tados nor­tistas pro­mo­viam uma rá­pida ex­pansão po­pu­la­ci­onal, fer­ro­viária e agrí­cola das far­mers para o oeste, de­sen­vol­viam suas in­dús­trias com tra­balho as­sa­la­riado e ti­nham cres­cente de­manda de ho­mens li­vres ven­de­dores de força de tra­balho. Em con­sequência, as pres­sões para a ex­tinção da es­cra­va­tura ele­varam as con­tra­di­ções entre os es­cra­vo­cratas su­listas e a bur­guesia nor­tista, con­tra­di­ções que de­sem­bo­caram na Guerra de Se­cessão (1861-1865), le­vando à abo­lição re­vo­lu­ci­o­nária do es­cra­vismo e à pre­do­mi­nância do tra­balho as­sa­la­riado em todo o ter­ri­tório es­ta­du­ni­dense.

Com a vi­tória do norte dis­se­minou-se um de­sen­vol­vi­mento econô­mico e so­cial ti­pi­ca­mente ca­pi­ta­lista, apesar da ide­o­logia e da dis­cri­mi­nação ra­cista e es­cra­vista ha­verem per­du­rado for­te­mente nos es­tados su­listas e em inú­meras ca­madas so­ciais norte-ame­ri­canas, como é pos­sível com­provar ainda hoje com os cho­ques san­grentos em Char­lot­tes­ville, na Vir­gínia, pro­mo­vidos por su­pre­ma­cistas, ra­cistas, ne­o­na­zistas e ou­tras ten­dên­cias idên­ticas.

No Brasil, o fim do es­cra­vismo não re­vo­lu­ci­onou as re­la­ções de pro­dução agrá­rias nem su­perou a he­ge­monia da classe la­ti­fun­diária. Essa classe subs­ti­tuiu, na agri­cul­tura, as re­la­ções de pro­dução es­cra­vistas pela agre­gação, que se tornou pre­do­mi­nante, e con­ti­nuou mo­no­po­li­zando a pro­pri­e­dade das terras na­ci­o­nais e man­tendo a he­ge­monia sobre o poder po­lí­tico. A maior parte dos an­tigos es­cravos afro­des­cen­dentes per­ma­neceu nos la­ti­fún­dios como par­ceiros (me­eiros ou ter­ceiros), uma re­lação so­cial não-ca­pi­ta­lista, nem es­cra­vista ou ple­na­mente feudal. Os tra­ba­lha­dores não per­ten­ciam às glebas, como no feu­da­lismo, mas se tor­naram pri­si­o­neiros do la­ti­fúndio ao se en­di­vi­darem através das fer­ra­mentas e dos ali­mentos que ad­qui­riam na forma de for­ne­ci­mento a ser pago aos la­ti­fun­diá­rios.

Assim, as re­la­ções de pro­dução es­cra­vistas pre­do­mi­naram no campo bra­si­leiro por mais de 350 anos. A agre­gação não ca­pi­ta­lista ou pré-ca­pi­ta­lista foi se­cun­dária até a abo­lição, quando se tornou pre­do­mi­nante e per­durou até a se­gunda me­tade dos anos 1960. Só então passou a ser pra­ti­ca­mente eli­mi­nada pela mo­der­ni­zação ca­pi­ta­lista da agri­cul­tura, re­a­li­zada pelo re­gime mi­litar.

 

FONTE: Correio da Cidadania


terça-feira, 11 de maio de 2021

Convite a (re)ler um Marx ainda mais atual

 

Didático porém profundo, livro de Jorge Grespan apresenta obra de um filósofo indispensável para explicar realidade do século XXI – examinando-a por meio de conceitos como alienação, consumismo, fetiche, ideologia e revolução

 


Por Jorge Grespan

 

O texto a seguir reúne a apresentação e um capítulo de:
Marx — Uma Introdução
Por Jorge Grespan
Lançado pela Boitempo, parceira editorial de Outras Palavras

Apresentação

 
 Marx — uma introdução, 
disponível no site da editora

 

Apresentar a obra de Karl Marx (1818-1883) parece ser, uma tarefa relativamente fácil. Em primeiro lugar, porque já foi escrita com a intenção de ser assimilada por trabalhadoras e trabalhadores no século XIX, contribuindo para a transformação radical da sociedade burguesa. Por isso, além das longas análises do sistema econômico capitalista presentes em livros e manuscritos, a obra é composta por inúmeros manifestos, programas e artigos de jornal que evidenciam a preocupação de Marx em colocar sua teoria em prática pelo exame da conjuntura política e social e pela proposição de linhas de ação revolucionária. Em segundo lugar, porque as tendências de desenvolvimento do capitalismo identificadas por Marx se realizaram. O surgimento de enormes conglomerados financeiros e industriais, invertendo a lógica da concorrência do século XIX; o processo gradativo de substituição de mão de obra por máquinas cada vez mais sofisticadas; a irradiação da forma de mercadoria a quase todos os produtos e relações sociais; as crises econômicas recorrentes; a esfera política como manifestação de conflitos sociais distributivos de propriedade e renda; o predomínio da especulação financeira sobre a criação de riqueza real, com a consequente projeção de todos os preços e expectativas para um futuro incerto: todos esses fenômenos são percebidos em germe pela interpretação de Marx em obras como O capital [1] 1.

No entanto, justamente essa percepção aguda, que às vezes se confunde com uma espécie de antevisão, pode constituir um obstáculo para apreender o objetivo central de Marx. Se as tendências do capitalismo atual forem compreendidas como “normais”, conformando um mundo que existe tal como deveria existir, perde-se o componente crítico do diagnóstico feito por Marx. O objetivo de Marx era, ao contrário, desmascarar a pretensa normalidade de que se revestem até mesmo os fenômenos mais insuspeitos e contraditórios da sociedade moderna. Além de descritiva e explicativa, sua obra é uma teoria crítica do capitalismo que revela a contradição profunda na base desse sistema, isto é, a correlação entre sua dimensão positiva e sua dimensão negativa. Para isso, inspira-se na dialética do filósofo alemão Georg W. F. Hegel (1770-1831), condenando seu caráter idealista, mas conservando o que chama de “cerne racional”[2]2: a dialética é a forma capaz de reproduzir o movimento contraditório pelo qual os fenômenos aparecem como o inverso do que são em sua essência. Em sua versão idealista, de acordo com Marx, a dialética ensina que um aspecto positivo se oculta por trás dos acontecimentos negativos da história e acaba por predominar sobre eles; assim, a dialética seria capaz de promover uma revelação com enorme poder consolador, o que explicaria por que a filosofia de Hegel foi moda por tanto tempo. Em contrapartida, na versão materialista proposta por Marx, a própria dialética tem seus polos negativo e positivo invertidos. Ou seja, até os eventos aparentemente positivos para o capital, como a acumulação e o lucro, redundam na negatividade interna das crises econômicas e políticas, que sempre voltam a assombrar.

A partir da compreensão crítica da dialética hegeliana, Marx pôde desvendar as várias estratégias adotadas pelo capitalismo para encobrir suas contradições. Exemplo disso é a igualdade jurídica entre empregados e empregadores que não corresponde a uma igualdade de condições sociais. Marx detecta na base da igualdade pressuposta no contrato de trabalho seu exato contrário, isto é, a desigualdade criada pela situação na qual a maioria da população é obrigada a vender sua força de trabalho, uma vez despojada da propriedade dos meios que lhe permitiram trabalhar para si e por si mesma. Esse despojamento, porém, é apresentado pelo capitalismo como o avesso do que é, a saber, como a propriedade que cada trabalhador tem de sua força de trabalho e a liberdade daí decorrente de trabalhar em qualquer lugar ou em qualquer ramo da produção. Marx explica ainda que, por um lado, a ideia de autonomia inculcada nos membros da sociedade sob comando do capital leva-os a um individualismo cada vez mais exacerbado e à fragmentação das várias esferas da vida coletiva; por outro, essa autonomia decorre de uma dependência crescente e universal em relação aos mecanismos de valorização e expansão do capital, em geral difíceis de serem percebidos. Portanto, a igualdade no plano jurídico é dialeticamente determinada pela desigualdade no plano social e a liberdade individual, pelo vínculo implacável das relações criadas pelo capital.

De acordo com Marx, é notável como essas mistificações parecem naturais, algo que sempre foi e sempre será, para o que não há alternativa. No entanto, a naturalização de condições historicamente muito específicas não é mera aparência ilusória e, sim, uma das engrenagens que estrutura a sociedade capitalista. Trata-se do “fetichismo”: um dos conceitos centrais do pensamento de Marx para explicar de modo extremamente fértil os processos de inversão desen- cadeados pelo capital, desde suas formas mais elementares de mercadoria e de dinheiro.

A formulação do conceito de fetichismo e de todo o aparato conceitual mobilizado por Marx no diagnóstico crítico do capitalismo originou-se do rigoroso estudo da economia política. Desde a juventude, Marx dedicou-se à análise rigorosa e extensiva das obras maiores e menores dessa disciplina, que surgiu com as revoluções burguesas na Inglaterra do século XVII e, posteriormente, com a Revolução Industrial entre os séculos XVIII e XIX. O estudo extensivo da economia política lhe permitiu elaborar uma crítica tanto do sistema capitalista real quanto dos autores que o estudavam. Contando com o auxílio de Friedrich Engels (1820-1895), amigo e colaborador de quase toda a vida, Marx desenvolveu gradativamente o projeto de explorar com paciência e aplicação as lacunas nas obras dos economistas clássicos, reconstituir seus debates e evidenciar a forma como, nelas, as contradições fundantes do capitalismo são encobertas e justificadas. Segundo sua crítica, a própria realidade desse sistema social aparece de maneira invertida e apenas parcial.

De fato, desde o tempo em que Marx produziu sua obra, a força adquirida pelo capitalismo cresceu a ponto de tornar quase hegemônica uma visão distorcida e unilateral da economia. Parece que a economia é comandada pelo mercado e que os agentes econômicos são livres e autônomos em suas decisões individuais; parece que o trabalhador, com as novas formas de trabalho e remuneração, é um empresário de si mesmo que deve ser considerado e considera a si mesmo um “prestador de serviço”, um “consumidor”, e não um produtor. A crítica de Marx ao capitalismo explica essas inversões como próprias de uma situação histórica peculiar e contraditória, na qual a exploração da força de trabalho pelo capital adquire sempre novas conformações para continuar existindo. Ao perceber a contradição como constitutiva dessa situação, Marx alcança um ponto de vista muito mais abrangente do que a maioria dos economistas do seu tempo e de hoje, um ponto de vista adequado à dinâmica social capitalista, baseada simultaneamente em progresso e destruição. Segundo as conhecidas palavras do Manifesto Comunista, escrito com Engels em 1848:

Essa subversão contínua da produção, esse abalo constante de todo o sistema social, essa agitação permanente e essa falta de segurança distinguem a época burguesa de todas as precedentes. Dissolvem-se todas as relações sociais antigas e cristalizadas, com seu cortejo de concepções e de ideias secularmente veneradas; as relações que as substituem tornam-se antiquadas antes de se consolidarem. Tudo o que era sólido e estável se desmancha no ar, tudo o que era sagrado é profanado […] [3] 3.

Marx mantém essa formulação ao longo de toda a sua vida.Apesar do grande debate no século XX sobre as diferenças entre os textos redigidos na juventude e na maturidade, debate cujo pormenor não cabe aqui reconstituir, é possível afirmar com segurança que o conjunto da obra de Marx persegue um eixo central que lhe confere unidade: a crítica da sociedade burguesa. Na longa trajetória de Marx como intelectual e militante, esse sempre foi o alvo de sua teoria e prática. Marx desenvolve de maneira acabada sua crítica radical no já mencionado conceito de fetichismo e também nos conceitos de ideologia, de crise e revolução. Contudo, é preciso lembrar que, como a vida, seu pensamento e suas elaborações conceituais não são estanques. Muito ao contrário, ganham força e profundidade com as mudanças de enfoque e correções de rota que Marx, por vezes, precisou adotar.

1. Alienação

Karl Marx começou sua vida intelectual como estudante de Ciências Jurídicas na Universidade de Bonn, vizinha de sua cidade natal, Tréveris. Depois, transferiu-se para a Universidade de Berlim, onde participou da intensa polêmica sobre a herança teórica de Hegel que se iniciava naquele fim da década de 1830. Embora tenha passado do curso de Direito para o de Filosofia, Marx não se afastou completamente da formação jurídica, tornando-a produtiva na elaboração de seu ponto de vista específico sobre a filosofia hegeliana do Estado. Sob esse aspecto, Marx distinguia-se de companheiros como Ludwig Feuerbach (1804-1872), Bruno Bauer (1809-1982) e Max Stirner (1806-1856), que embasavam suas críticas na filosofia da religião. Nessa época, a industrialização finalmente alcançava a região do Reno, insuflando fortes reivindicações liberais. Marx considerou, então, que os fenômenos religiosos não representavam o principal problema enfrentado pela Alemanha, sendo, no máximo, uma forma de expressão da nova realidade social. Para ele, tampouco se tratava de simplesmente criticar a filosofia do direito de Hegel, apontando suas falhas teóricas ou seu viés conservador. Marx considerou ser necessário, antes, relacioná-la à própria realidade que ela buscava elaborar. O verdadeiro objeto da crítica a Hegel devia ser essa realidade, ou seja, as contradições profundas da sociedade civil. Hegel teria tido o mérito de apontá-las, imaginando que poderiam ser resolvidas no âmbito do Estado. Apesar de reconhecer esse mérito, Marx argumenta que a resolução seria uma tarefa impossível, pois a tentativa meramente política de conciliar os interesses públicos com os particulares levaria o Estado à condição de representante dos proprietários privados mais poderosos, e não à de um poder capaz de eliminar a raiz da desigualdade social.

De todo modo, a discussão sobre a propriedade privada a partir da obra de Hegel permitiu a Marx passar do âmbito jurídico ao econômico e encontrar o tema central de sua teoria da sociedade e da história. Foi quando identificou o problema da desigualdade social, oculto pela igualdade jurídica que a concepção política de Hegel priorizava. Essa descoberta ocorreu em um momento crucial de sua vida.

Depois de obter o grau de doutor, Marx teve de abandonar o plano de seguir uma carreira universitária em razão das mudanças na política acadêmica alemã realizadas pelo rei ultraconservador Frederico Guilherme IV, que subira ao trono da Prússia, em 1840. Desde então, começou a trabalhar como jornalista, profissão da qual viveria por muitos anos. Conforme escreveu mais tarde, no prefácio de Contribuição à crítica da economia política4 , o trabalho de editor da recém-fundada Gazeta Renana ofereceu-lhe a oportunidade de conhecer de perto “problemas materiais”,como o do chamado “furto” de madeira por camponeses da região do rio Mosela: florestas que desde a Idade Média eram comunais passaram a ser incluídas nas novas propriedades privadas demarcadas no começo do século XIX; e a livre coleta de lenha, antes considerada um direito feudal dos camponeses, era agora qualificada de “furto” e punida pela lei burguesa. Seguindo a orientação liberal da Gazeta Renana, Marx publicou uma série de artigos que denunciavam a violência da repressão prussiana contra os camponeses. Essa foi uma das razões pelas quais o jornal acabou interditado, o que levou ao encerramento precoce de sua existência. Para Marx, no entanto, a experiência lhe permitiu descobrir que:

as relações jurídicas, bem como as formas do Estado, não podem ser explicadas por si mesmas, nem pela chamada evolução geral do espírito humano; essas relações têm, ao contrário, suas raízes nas relações materiais de existência […] a anatomia da sociedade burguesa deve ser procurada na Economia Política.[5]5

Assim, por um lado, Marx aprofundava sua crítica da sociedade burguesa, abandonando definitivamente a ideia que acalentara até ali de que a extensão universal do direito de voto poderia enfraquecer a aristocracia prussiana e levar novos grupos sociais ao Parlamento. Agora, percebia que apenas uma transformação completa da forma de propriedade dos meios de produção poderia mudar a base da sociedade e igualar realmente a situação de todas aspessoas. Por outro, ao duvidar de uma solução dentro da esfera do Estado existente, Marx começou a elaborar uma perspectiva da história que englobava o exame das “relações materiais” da vida, isto é, da produção e da reprodução das condições sociais necessárias à sobrevivência humana, em geral deixadas de lado pela historiografi a de cunho político e cultural. Para Marx, a distribuição da propriedade dos meios de produção, como a terra ou as ferramentas de trabalho, é o fundamento para que um grupo humano garanta a manutenção da vida. Essa distribuição se dá em uma esfera básica da sociabilidade, que condiciona as formas da consciência política, religiosa, artística e científica, embora não as condicione de maneira absoluta. É a perspectiva chamada de “materialismo histórico”.

Como Marx esclareceu já em sua crítica à Filosofia do direito, de Hegel, as relações jurídicas tendem a idealizar de modo peculiar as relações sociais de propriedade existentes [6]6 . Percebeu que, no capitalismo, a esfera jurídica reflete de modo unilateral e deformado a esfera econômica porque, para a manutenção do direito de propriedade, o que interessa é apenas a norma que legaliza a relação entre a pessoa e o objeto da propriedade, e não o uso particular que a pessoa faz do objeto. Em outras palavras, o direito garante ao proprietário a liberdade, dentro de limites também legais, de usar e de dispor de algo sem prescrever um uso ou uma disposição determinada. No entanto, do ponto de vista econômico, o uso específico de uma coisa qualquer é decisivo, pois a mesma coisa pode servir tanto como objeto de consumo final, satisfazendo às necessidades do consumidor, quanto como instrumento de trabalho, produzindo outras coisas. Em ambos os casos, o direito se ocupa apenas de assegurar à pessoa a liberdade de usar a coisa, independentemente do modo como será usada.

Portanto, Marx concluiu que uma análise apenas jurídica não leva em conta a diferença básica que caracteriza a vida material, a saber, a diferença entre meio de consumo e meio de produção. No sistema capitalista, conforme o direito de propriedade, todas as pessoas são proprietárias de algo, mesmo que sejam proprietárias apenas de si mesmas e das coisas que adquirem para poder continuar vivendo. No entanto, conforme o uso econômico da propriedade, há uma diferença imensa entre ser proprietário de um objeto de consumo e ser proprietário de um meio de produção que lhe garanta a existência por um longo tempo. Embora todos possam ser proprietários de objetos de consumo, nem todos o são de meios de trabalho.

À idealização jurídico-política, Marx contrapôs a história da propriedade privada, mostrando que a propriedade não é um direito eterno da pessoa e não existiu desde sempre. Ao contrário, a forma privada da propriedade desenvolve-se a partir de uma época precisa da história europeia, entre os séculos XV e XVII, estimulada por uma distribuição dos meios de produção que os concentrava em

poucas mãos. Desse modo, a maioria despossuída viu-se obrigada a vender a única coisa que lhe restava: sua força de trabalho transformada em mercadoria. A partir da distribuição capitalista dos meios de produção desenvolveu-se a distribuição capitalista dos meios de consumo, isto é, o mercado, no qual os trabalhadores gastam o salário recebido pela venda de sua força de trabalho em outro mercado, o mercado de trabalho. Como são agentes em ambos os mercados, empregados e empregadores parecem igualar-se qualitativamente como proprietários, distinguindo-se apenas quantitativamente por seu poder aquisitivo.

Assim, propriedade privada significa apropriação excludente dos meios de produção. Só faz sentido promover a concentração da propriedade, de um lado, porque há, do outro, mão de obra disponível para trabalhar na propriedade de poucos. De uma perspectiva histórica, quanto mais intensa é a concentração de propriedade, maior é o número de trabalhadores à disposição, prontos a se empregarem em troca de um salário.

O momento histórico em que trabalho e propriedade dos meios de produção são separados foi chamado por Marx de “acumulação original” do capital [7]7 : “original” porque constitui o ponto de partida para toda a acumulação posterior de capital, mas também porque alude ao “pecado original” bíblico. Assim como no livro do Gênesis, a humanidade foi marcada a ferro e fogo por uma ruptura profunda, também o mundo moderno se inicia com uma cisão: a cisão entre propriedade e trabalho. No caso do capitalismo inglês, Marx a localizou no processo dos “cercamentos” ocorrido no século XVI, quando uma nascente burguesia fundiária expulsou os camponeses das terras onde viviam e nelas instalou cercas, empregando depois como assalariados parte desses agora despossuídos. Com essa exclusão, os proprietários privados passaram a dispor, além da terra, de uma massa de trabalhadores formada pelos antigos camponeses que haviam perdido sua fonte de sustento. Contudo, do ponto de vista jurídico, os trabalhadores deixaram sua condição servil, tornando-se pessoas “livres”: passaram a trabalhar por um contrato voluntário, e não mais por um vínculo pessoal e compulsório com o senhor; conquistaram o direito de ir e vir, e de empregar-se em um ou outro serviço. Marx ironiza o sentido duplo dessa liberdade do assalariado, obtida com seu desligamento da terra e a expropriação de seus meios de produção. Com essa liberdade, o trabalhador aparece como o feliz proprietário de uma mercadoria, mas de uma única mercadoria: sua própria força de trabalho. Ele está agora em pé de igualdade jurídica com o empregador – esse é o aspecto igualitário do sistema social burguês. No entanto, com essa liberdade, o trabalhador vê-se obrigado a seguir o capital por toda a parte, que lhe dá emprego ora aqui, ora ali, de acordo com as variações do lucro. Com essa liberdade, o empregado pode ser demitido sempre que for conveniente para o capital, que deixa de ser responsável direto pela sobrevivência do trabalhador.

Na verdade, a igualdade de direitos garante, antes de tudo, a liberdade do capital em relação ao trabalho – liberdade necessária para que o capital se acumule livremente – e resulta da cisão entre propriedade e trabalho. Essa cisão leva a uma desigualdade social profunda, que transforma a força de trabalho em mercadoria negociada por contratos de compra e venda. Em planos distintos, igualdade e desigualdade se opõem e se determinam reciprocamente, definindo um tipo de relação social que Marx caracterizou como “dialética”, numa referência a Hegel, mas em clara oposição a ele. Para Marx, considerar o aspecto jurídico como a instância determinante e exclusiva da sociabilidade comandada pelo capital constitui a mistificação principal da filosofi a do direito hegeliana.

Em outras palavras, o aspecto ilusório da concepção hegeliana da sociedade civil reside não no fato de ela afirmar a existência de uma igualdade jurídica entre vendedores e compradores da força de trabalho, e sim no de afirmar queessa igualdade jurídica implica igualdade social. O equívoco de Hegel, bem como de grande parte dos teóricos da sociedade burguesa, é o de estender o plano jurídico para o social, imaginando que a esfera do direito seja a expressão da realidade inteira e que a igualdade entre as partes do contrato de trabalho corresponda à igualdade econômica entre empregados e empregadores. Para Marx, ao contrário dessa correspondência, a dialética que constitui a sociedade capitalista estabelece-se entre o plano jurídico-formal e o plano econômico-social. Os confl itos nesse último plano não podem ser resolvidos de modo definitivo recorrendo-se às leis e ao direito, como idealizavam os hegelianos, pois expressam a dialética irreconciliável da sociedade burguesa.

Marx, porém, não atribuiu esse equívoco de Hegel e de seus discípulos a uma simples cegueira subjetiva. Ele decorre da própria sociabilidade sob o modo de vida capitalista, como será visto adiante, na discussão sobre o fetichismo. Seja como for, a perda da propriedade dos meios de produção pelo trabalhador estabelece as bases de um processo generalizado de perda de controle sobre as demais condições sociais. Nas palavras de Marx e de Engels:

confronta-se com essas forças produtivas a maioria dos indivíduos, dos quais essas forças se separaram e que, por isso, privados de todo conteúdo real de vida, se tornaram indivíduos abstratos, mas que somente assim são colocados em condições de estabelecer relações uns com os outros na qualidade de indivíduos. [8]8

De acordo com o trecho, a perda da propriedade faz com que os indivíduos sejam “privados de todo conteúdo real de vida” e tornem-se “abstratos”. A situação social de desigualdade do trabalho diante da propriedade cria a igualdade jurídica, que, contudo, é uma igualdade na “ abstração”, uma igualdade na qual o indivíduo moderno se define pela homogeneidade, pela perda de suas particularidades distintivas. Configura-se, assim, uma situação exatamente oposta àquela em que se imaginam as pessoas ciosas de sua liberdade e de sua individualidade.

Já na juventude, Marx denominou esse fenômeno “alienação”, retomando outro conceito caro ao meio filosófi co com o qual debatia. Formulado por Hegel, o termo designava o momento em que o “espírito” se faz outro, distinto de si mesmo, “alheio” à sua forma inicial, criando uma realidade objetiva na qual se reconhecerá. Na Alemanha da década de 1840, os jovens críticos de Hegel recusavam a certeza desse reconhecimento final do espírito no objeto por ele criado, isto é, a reconciliação do sujeito com o objeto. Por exemplo, para Feuerbach, que escreveu o livro A essência do cristianismo [9]9 , a alienação significa que o indivíduo não se lembra mais de que Deus foi uma criação coletiva humana, atribuindo-lhe existência autônoma e, ainda mais grave, invertendo a relação: o criador humano imaginaria ter sido criado por sua criatura divina.

Para Marx, embora a alienação diga respeito não aos problemas religiosos, e sim à situação social do mundo capitalista, ela conserva a forma da autonomização e da inversão. Privado da propriedade dos meios de produção, o indivíduo não se reconhece mais plenamente no produto de seu trabalho e tem acesso a ele apenas mais tarde, ao comprá-lo no mercado. Ou seja, em vez de se apropriar de imediato do produto resultante do ato de trabalho, o trabalhador precisa comprar no mercado aquilo que, muitas vezes, ele mesmo produziu para seu empregador. A apropriação só acontece por meio da mediação do mercado, que aparece como a instância central da economia, tal como pensa a maioria dos economistas ainda hoje. O produtor não se reconhece no produto, não se reconhece como produtor, e afirma-se socialmente como comprador e consumidor. Assim como o devoto descrito por Feuerbach se esqueceu de que foi a imaginação humana que criou Deus, o trabalhador não tem consciência de que o produto existe graças às suas mãos.

Marx, então, pôde dizer que “a própria ação do homem torna-se um poder que lhe é estranho e que a ele é contraposto, um poder que subjuga o homem em vez de por este ser dominado” [10]10 . Nessa conhecida definição, a alienação consiste na “estranheza” do mundo dominado por um poder social sobre o qual os indivíduos perderam qualquer controle, depois de o terem criado, em um evidente movimento de autonomização e inversão. As condições de trabalho e de distribuição dos frutos do trabalho tornam-se independentes dos agentes econômicos e, em seguida, aparecem como “um poder que subjuga” seus criadores, “em vez de ser dominado” por eles.

Em uma inversão surpreendente, o produto aparece como o produtor e o produtor, como o produto. Dessa inversão resulta uma espécie de mal-estar generalizado, próprio do mundo capitalista. O indivíduo burguês orgulha-se de ter alcançado a liberdade e a autonomia, mesmo que essa individuação resulte apenas na perda de diferenças qualitativas: a produção e o mercado conseguem incorporar somente o indivíduo médio, comum, originário de um processo de normalização, de “abstração”, nas palavras de Marx. Esse tipo de igualdade reflete-se no preceito jurídico de que “a lei não faz diferenças nem reconhece privilégios”, é “isenta”, “neutra”, “justa”. Na verdade, trata-se de uma igualdade e de uma liberdade instituídas pelo poder estranho, fetichista, que o conjunto da sociedade gerou e que faz todos sentirem, pelo menos em algum momento, quando é possível refletir, que algo da vida lhes escapa.

1 O primeiro livro da obra foi publicado em 1867, a segunda edição alemã de 1873. O segundo e o terceiro livros foram editados por Friedrich Engels e publicados em 1885 e 1894, respectivamente.

2 Karl Marx, “Posfácio”, em O capital, Livro I (trad. Rubens Enderle, São Paulo, Boitempo, 2011), p. 91.

3 Karl Marx e Friedrich Engels, Manifesto Comunista (trad. Álvaro Pina e Ivana Jinkings, São Paulo, Boitempo, 1998), p. 43.

4 Karl Marx, Contribuição à crítica da economia política (trad.Florestan Fernandes, 2. ed., São Paulo, Expressão Popular, 2008).

5 Ibidem, p. 47.

6 Idem, Crítica da filosofia do direito de Hegel (trad. Rubens Enderle e Leonardo de Deus, São Paulo, Boitempo, 2005).

7 Baseada na tradução francesa de 1872 de O capital, revista por Marx, a expressão “acumulação primitiva” consagrou-se em traduções para vários idiomas, inclusive o português. No entanto, a expressão “acumulação original” tem a vantagem de preservar a alusão bíblica presente na expressão “ursprüngliche Akkumulation” da edição original alemã.

8 Karl Marx e Friedrich Engels, A ideologia alemã (trad. Rubens Enderle, Nélio Schneider e Luciano Cavini Martorano, São Paulo, Boitempo, 2007), p. 72.

9 Ludwig Feuerbach, A essência do cristianismo (trad. José da Silva Brandão, 4. ed., Petrópolis, Vozes, 2013).

10 Karl Marx e Friedrich Engels, A ideologia alemã, cit., p. 37.

 

FONTE: Outras Palavras