Didático porém profundo, livro de Jorge Grespan
apresenta obra de um filósofo indispensável para explicar realidade do século
XXI – examinando-a por meio de conceitos como alienação, consumismo, fetiche,
ideologia e revolução
Por
Jorge Grespan
Apresentação
Apresentar
a obra de Karl Marx (1818-1883) parece ser, uma tarefa relativamente fácil. Em
primeiro lugar, porque já foi escrita com a intenção de ser assimilada por
trabalhadoras e trabalhadores no século XIX, contribuindo para a transformação
radical da sociedade burguesa. Por isso, além das longas análises do sistema
econômico capitalista presentes em livros e manuscritos, a obra é composta por
inúmeros manifestos, programas e artigos de jornal que evidenciam a preocupação
de Marx em colocar sua teoria em prática pelo exame da conjuntura política e
social e pela proposição de linhas de ação revolucionária. Em segundo lugar,
porque as tendências de desenvolvimento do capitalismo identificadas por Marx se
realizaram. O surgimento de enormes conglomerados financeiros e industriais,
invertendo a lógica da concorrência do século XIX; o processo gradativo de
substituição de mão de obra por máquinas cada vez mais sofisticadas; a
irradiação da forma de mercadoria a quase todos os produtos e relações sociais;
as crises econômicas recorrentes; a esfera política como manifestação de
conflitos sociais distributivos de propriedade e renda; o predomínio da
especulação financeira sobre a criação de riqueza real, com a consequente
projeção de todos os preços e expectativas para um futuro incerto: todos esses
fenômenos são percebidos em germe pela interpretação de Marx em obras
como O capital [1] 1.
No
entanto, justamente essa percepção aguda, que às vezes se confunde com uma
espécie de antevisão, pode constituir um obstáculo para apreender o objetivo
central de Marx. Se as tendências do capitalismo atual forem compreendidas como
“normais”, conformando um mundo que existe tal como deveria existir, perde-se o
componente crítico do diagnóstico feito por Marx. O objetivo de Marx era, ao
contrário, desmascarar a pretensa normalidade de que se revestem até mesmo os
fenômenos mais insuspeitos e contraditórios da sociedade moderna. Além de
descritiva e explicativa, sua obra é uma teoria crítica do capitalismo que
revela a contradição profunda na base desse sistema, isto é, a correlação entre
sua dimensão positiva e sua dimensão negativa. Para isso, inspira-se na
dialética do filósofo alemão Georg W. F. Hegel (1770-1831), condenando seu
caráter idealista, mas conservando o que chama de “cerne racional”[2]2: a dialética é a forma capaz de reproduzir o
movimento contraditório pelo qual os fenômenos aparecem como o inverso do que
são em sua essência. Em sua versão idealista, de acordo com Marx, a dialética
ensina que um aspecto positivo se oculta por trás dos acontecimentos negativos
da história e acaba por predominar sobre eles; assim, a dialética seria capaz
de promover uma revelação com enorme poder consolador, o que explicaria por que
a filosofia de Hegel foi moda por tanto tempo. Em contrapartida, na versão
materialista proposta por Marx, a própria dialética tem seus polos negativo e
positivo invertidos. Ou seja, até os eventos aparentemente positivos para o
capital, como a acumulação e o lucro, redundam na negatividade interna das
crises econômicas e políticas, que sempre voltam a assombrar.
A
partir da compreensão crítica da dialética hegeliana, Marx pôde desvendar as
várias estratégias adotadas pelo capitalismo para encobrir suas contradições.
Exemplo disso é a igualdade jurídica entre empregados e empregadores que não
corresponde a uma igualdade de condições sociais. Marx detecta na base da
igualdade pressuposta no contrato de trabalho seu exato contrário, isto é, a
desigualdade criada pela situação na qual a maioria da população é obrigada a vender
sua força de trabalho, uma vez despojada da propriedade dos meios que lhe
permitiram trabalhar para si e por si mesma. Esse despojamento, porém, é
apresentado pelo capitalismo como o avesso do que é, a saber, como a
propriedade que cada trabalhador tem de sua força de trabalho e a liberdade daí
decorrente de trabalhar em qualquer lugar ou em qualquer ramo da produção. Marx
explica ainda que, por um lado, a ideia de autonomia inculcada nos membros da
sociedade sob comando do capital leva-os a um individualismo cada vez mais
exacerbado e à fragmentação das várias esferas da vida coletiva; por outro,
essa autonomia decorre de uma dependência crescente e universal em relação aos
mecanismos de valorização e expansão do capital, em geral difíceis de serem percebidos.
Portanto, a igualdade no plano jurídico é dialeticamente determinada pela
desigualdade no plano social e a liberdade individual, pelo vínculo implacável
das relações criadas pelo capital.
De
acordo com Marx, é notável como essas mistificações parecem naturais, algo que
sempre foi e sempre será, para o que não há alternativa. No entanto, a
naturalização de condições historicamente muito específicas não é mera aparência
ilusória e, sim, uma das engrenagens que estrutura a sociedade capitalista. Trata-se
do “fetichismo”: um dos conceitos centrais do pensamento de Marx para explicar
de modo extremamente fértil os processos de inversão desen- cadeados pelo
capital, desde suas formas mais elementares de mercadoria e de dinheiro.
A
formulação do conceito de fetichismo e de todo o aparato conceitual mobilizado
por Marx no diagnóstico crítico do capitalismo originou-se do rigoroso estudo
da economia política. Desde a juventude, Marx dedicou-se à análise rigorosa e
extensiva das obras maiores e menores dessa disciplina, que surgiu com as
revoluções burguesas na Inglaterra do século XVII e, posteriormente, com a
Revolução Industrial entre os séculos XVIII e XIX. O estudo extensivo da
economia política lhe permitiu elaborar uma crítica tanto do sistema capitalista
real quanto dos autores que o estudavam. Contando com o auxílio de Friedrich
Engels (1820-1895), amigo e colaborador de quase toda a vida, Marx desenvolveu
gradativamente o projeto de explorar com paciência e aplicação as lacunas nas
obras dos economistas clássicos, reconstituir seus debates e evidenciar a forma
como, nelas, as contradições fundantes do capitalismo são encobertas e
justificadas. Segundo sua crítica, a própria realidade desse sistema social
aparece de maneira invertida e apenas parcial.
De
fato, desde o tempo em que Marx produziu sua obra, a força adquirida pelo
capitalismo cresceu a ponto de tornar quase hegemônica uma visão distorcida e
unilateral da economia. Parece que a economia é comandada pelo mercado e que os
agentes econômicos são livres e autônomos em suas decisões individuais; parece
que o trabalhador, com as novas formas de trabalho e remuneração, é um
empresário de si mesmo que deve ser considerado e considera a si mesmo um
“prestador de serviço”, um “consumidor”, e não um produtor. A crítica de Marx
ao capitalismo explica essas inversões como próprias de uma situação histórica
peculiar e contraditória, na qual a exploração da força de trabalho pelo
capital adquire sempre novas conformações para continuar existindo. Ao perceber
a contradição como constitutiva dessa situação, Marx alcança um ponto de vista
muito mais abrangente do que a maioria dos economistas do seu tempo e de hoje,
um ponto de vista adequado à dinâmica social capitalista, baseada
simultaneamente em progresso e destruição. Segundo as conhecidas palavras do
Manifesto Comunista, escrito com Engels em 1848:
Essa
subversão contínua da produção, esse abalo constante de todo o sistema social,
essa agitação permanente e essa falta de segurança distinguem a época burguesa
de todas as precedentes. Dissolvem-se todas as relações sociais antigas e
cristalizadas, com seu cortejo de concepções e de ideias secularmente
veneradas; as relações que as substituem tornam-se antiquadas antes de se
consolidarem. Tudo o que era sólido e estável se desmancha no ar, tudo o que
era sagrado é profanado […] [3] 3.
Marx
mantém essa formulação ao longo de toda a sua vida.Apesar do grande debate no
século XX sobre as diferenças entre os textos redigidos na juventude e na
maturidade, debate cujo pormenor não cabe aqui reconstituir, é possível afirmar
com segurança que o conjunto da obra de Marx persegue um eixo central que lhe confere
unidade: a crítica da sociedade burguesa. Na longa trajetória de Marx como
intelectual e militante, esse sempre foi o alvo de sua teoria e prática. Marx
desenvolve de maneira acabada sua crítica radical no já mencionado conceito de
fetichismo e também nos conceitos de ideologia, de crise e revolução. Contudo,
é preciso lembrar que, como a vida, seu pensamento e suas elaborações
conceituais não são estanques. Muito ao contrário, ganham força e profundidade
com as mudanças de enfoque e correções de rota que Marx, por vezes, precisou
adotar.
1. Alienação
Karl
Marx começou sua vida intelectual como estudante de Ciências Jurídicas na
Universidade de Bonn, vizinha de sua cidade natal, Tréveris. Depois,
transferiu-se para a Universidade de Berlim, onde participou da intensa
polêmica sobre a herança teórica de Hegel que se iniciava naquele fim da década
de 1830. Embora tenha passado do curso de Direito para o de Filosofia, Marx não
se afastou completamente da formação jurídica, tornando-a produtiva na
elaboração de seu ponto de vista específico sobre a filosofia hegeliana do
Estado. Sob esse aspecto, Marx distinguia-se de companheiros como Ludwig
Feuerbach (1804-1872), Bruno Bauer (1809-1982) e Max Stirner (1806-1856), que
embasavam suas críticas na filosofia da religião. Nessa época, a
industrialização finalmente alcançava a região do Reno, insuflando fortes
reivindicações liberais. Marx considerou, então, que os fenômenos religiosos
não representavam o principal problema enfrentado pela Alemanha, sendo, no
máximo, uma forma de expressão da nova realidade social. Para ele, tampouco se
tratava de simplesmente criticar a filosofia do direito de Hegel, apontando
suas falhas teóricas ou seu viés conservador. Marx considerou ser necessário,
antes, relacioná-la à própria realidade que ela buscava elaborar. O verdadeiro objeto
da crítica a Hegel devia ser essa realidade, ou seja, as contradições profundas
da sociedade civil. Hegel teria tido o mérito de apontá-las, imaginando que
poderiam ser resolvidas no âmbito do Estado. Apesar de reconhecer esse mérito,
Marx argumenta que a resolução seria uma tarefa impossível, pois a tentativa
meramente política de conciliar os interesses públicos com os particulares
levaria o Estado à condição de representante dos proprietários privados mais
poderosos, e não à de um poder capaz de eliminar a raiz da desigualdade social.
De
todo modo, a discussão sobre a propriedade privada a partir da obra de Hegel
permitiu a Marx passar do âmbito jurídico ao econômico e encontrar o tema
central de sua teoria da sociedade e da história. Foi quando identificou o
problema da desigualdade social, oculto pela igualdade jurídica que a concepção
política de Hegel priorizava. Essa descoberta ocorreu em um momento crucial de
sua vida.
Depois
de obter o grau de doutor, Marx teve de abandonar o plano de seguir uma
carreira universitária em razão das mudanças na política acadêmica alemã
realizadas pelo rei ultraconservador Frederico Guilherme IV, que subira ao
trono da Prússia, em 1840. Desde então, começou a trabalhar como jornalista,
profissão da qual viveria por muitos anos. Conforme escreveu mais tarde, no
prefácio de Contribuição à crítica da economia política4 , o trabalho
de editor da recém-fundada Gazeta Renana ofereceu-lhe a
oportunidade de conhecer de perto “problemas materiais”,como o do chamado
“furto” de madeira por camponeses da região do rio Mosela: florestas que desde
a Idade Média eram comunais passaram a ser incluídas nas novas propriedades
privadas demarcadas no começo do século XIX; e a livre coleta de lenha, antes
considerada um direito feudal dos camponeses, era agora qualificada de “furto”
e punida pela lei burguesa. Seguindo a orientação liberal da Gazeta
Renana, Marx publicou uma série de artigos que denunciavam a violência da
repressão prussiana contra os camponeses. Essa foi uma das razões pelas quais o
jornal acabou interditado, o que levou ao encerramento precoce de sua
existência. Para Marx, no entanto, a experiência lhe permitiu descobrir que:
as
relações jurídicas, bem como as formas do Estado, não podem ser explicadas por
si mesmas, nem pela chamada evolução geral do espírito humano; essas relações
têm, ao contrário, suas raízes nas relações materiais de existência […] a
anatomia da sociedade burguesa deve ser procurada na Economia Política.[5]5
Assim,
por um lado, Marx aprofundava sua crítica da sociedade burguesa, abandonando
definitivamente a ideia que acalentara até ali de que a extensão universal do
direito de voto poderia enfraquecer a aristocracia prussiana e levar novos
grupos sociais ao Parlamento. Agora, percebia que apenas uma transformação
completa da forma de propriedade dos meios de produção poderia mudar a base da
sociedade e igualar realmente a situação de todas aspessoas. Por outro, ao
duvidar de uma solução dentro da esfera do Estado existente, Marx começou a
elaborar uma perspectiva da história que englobava o exame das “relações
materiais” da vida, isto é, da produção e da reprodução das condições sociais
necessárias à sobrevivência humana, em geral deixadas de lado pela
historiografi a de cunho político e cultural. Para Marx, a distribuição da
propriedade dos meios de produção, como a terra ou as ferramentas de trabalho,
é o fundamento para que um grupo humano garanta a manutenção da vida. Essa
distribuição se dá em uma esfera básica da sociabilidade, que condiciona as
formas da consciência política, religiosa, artística e científica, embora não
as condicione de maneira absoluta. É a perspectiva chamada de “materialismo
histórico”.
Como
Marx esclareceu já em sua crítica à Filosofia do direito, de Hegel,
as relações jurídicas tendem a idealizar de modo peculiar as relações sociais
de propriedade existentes [6]6 . Percebeu que,
no capitalismo, a esfera jurídica reflete de modo unilateral e deformado a
esfera econômica porque, para a manutenção do direito de propriedade, o que
interessa é apenas a norma que legaliza a relação entre a pessoa e o objeto da
propriedade, e não o uso particular que a pessoa faz do objeto. Em outras
palavras, o direito garante ao proprietário a liberdade, dentro de limites
também legais, de usar e de dispor de algo sem prescrever um uso ou uma
disposição determinada. No entanto, do ponto de vista econômico, o uso
específico de uma coisa qualquer é decisivo, pois a mesma coisa pode servir
tanto como objeto de consumo final, satisfazendo às necessidades do consumidor,
quanto como instrumento de trabalho, produzindo outras coisas. Em ambos os
casos, o direito se ocupa apenas de assegurar à pessoa a liberdade de usar a
coisa, independentemente do modo como será usada.
Portanto,
Marx concluiu que uma análise apenas jurídica não leva em conta a diferença
básica que caracteriza a vida material, a saber, a diferença entre meio de
consumo e meio de produção. No sistema capitalista, conforme o direito de
propriedade, todas as pessoas são proprietárias de algo, mesmo que sejam
proprietárias apenas de si mesmas e das coisas que adquirem para poder
continuar vivendo. No entanto, conforme o uso econômico da propriedade, há uma
diferença imensa entre ser proprietário de um objeto de consumo e ser
proprietário de um meio de produção que lhe garanta a existência por um longo
tempo. Embora todos possam ser proprietários de objetos de consumo, nem todos o
são de meios de trabalho.
À
idealização jurídico-política, Marx contrapôs a história da propriedade
privada, mostrando que a propriedade não é um direito eterno da pessoa e não
existiu desde sempre. Ao contrário, a forma privada da propriedade
desenvolve-se a partir de uma época precisa da história europeia, entre os
séculos XV e XVII, estimulada por uma distribuição dos meios de produção que os
concentrava em
poucas
mãos. Desse modo, a maioria despossuída viu-se obrigada a vender a única coisa
que lhe restava: sua força de trabalho transformada em mercadoria. A partir da
distribuição capitalista dos meios de produção desenvolveu-se a distribuição
capitalista dos meios de consumo, isto é, o mercado, no qual os trabalhadores gastam
o salário recebido pela venda de sua força de trabalho em outro mercado, o
mercado de trabalho. Como são agentes em ambos os mercados, empregados e
empregadores parecem igualar-se qualitativamente como proprietários,
distinguindo-se apenas quantitativamente por seu poder aquisitivo.
Assim,
propriedade privada significa apropriação excludente dos meios de produção. Só
faz sentido promover a concentração da propriedade, de um lado, porque há, do
outro, mão de obra disponível para trabalhar na propriedade de poucos. De uma
perspectiva histórica, quanto mais intensa é a concentração de propriedade,
maior é o número de trabalhadores à disposição, prontos a se empregarem em
troca de um salário.
O
momento histórico em que trabalho e propriedade dos meios de produção são
separados foi chamado por Marx de “acumulação original” do capital [7]7 : “original”
porque constitui o ponto de partida para toda a acumulação posterior de
capital, mas também porque alude ao “pecado original” bíblico. Assim como no
livro do Gênesis, a humanidade foi marcada a ferro e fogo por uma ruptura
profunda, também o mundo moderno se inicia com uma cisão: a cisão entre
propriedade e trabalho. No caso do capitalismo inglês, Marx a localizou no
processo dos “cercamentos” ocorrido no século XVI, quando uma nascente
burguesia fundiária expulsou os camponeses das terras onde viviam e nelas
instalou cercas, empregando depois como assalariados parte desses agora
despossuídos. Com essa exclusão, os proprietários privados passaram a dispor,
além da terra, de uma massa de trabalhadores formada pelos antigos camponeses
que haviam perdido sua fonte de sustento. Contudo, do ponto de vista jurídico,
os trabalhadores deixaram sua condição servil, tornando-se pessoas “livres”:
passaram a trabalhar por um contrato voluntário, e não mais por um vínculo
pessoal e compulsório com o senhor; conquistaram o direito de ir e vir, e de
empregar-se em um ou outro serviço. Marx ironiza o sentido duplo dessa
liberdade do assalariado, obtida com seu desligamento da terra e a expropriação
de seus meios de produção. Com essa liberdade, o trabalhador aparece como o
feliz proprietário de uma mercadoria, mas de uma única mercadoria: sua própria
força de trabalho. Ele está agora em pé de igualdade jurídica com o empregador
– esse é o aspecto igualitário do sistema social burguês. No entanto, com essa
liberdade, o trabalhador vê-se obrigado a seguir o capital por toda a parte,
que lhe dá emprego ora aqui, ora ali, de acordo com as variações do lucro. Com
essa liberdade, o empregado pode ser demitido sempre que for conveniente para o
capital, que deixa de ser responsável direto pela sobrevivência do trabalhador.
Na
verdade, a igualdade de direitos garante, antes de tudo, a liberdade do capital
em relação ao trabalho – liberdade necessária para que o capital se acumule
livremente – e resulta da cisão entre propriedade e trabalho. Essa cisão leva a
uma desigualdade social profunda, que transforma a força de trabalho em
mercadoria negociada por contratos de compra e venda. Em planos distintos,
igualdade e desigualdade se opõem e se determinam reciprocamente, definindo um
tipo de relação social que Marx caracterizou como “dialética”, numa referência
a Hegel, mas em clara oposição a ele. Para Marx, considerar o aspecto jurídico
como a instância determinante e exclusiva da sociabilidade comandada pelo
capital constitui a mistificação principal da filosofi a do direito hegeliana.
Em
outras palavras, o aspecto ilusório da concepção hegeliana da sociedade civil
reside não no fato de ela afirmar a existência de uma igualdade jurídica entre
vendedores e compradores da força de trabalho, e sim no de afirmar queessa
igualdade jurídica implica igualdade social. O equívoco de Hegel, bem como de
grande parte dos teóricos da sociedade burguesa, é o de estender o plano
jurídico para o social, imaginando que a esfera do direito seja a expressão da
realidade inteira e que a igualdade entre as partes do contrato de trabalho
corresponda à igualdade econômica entre empregados e empregadores. Para Marx,
ao contrário dessa correspondência, a dialética que constitui a sociedade
capitalista estabelece-se entre o plano jurídico-formal e o plano
econômico-social. Os confl itos nesse último plano não podem ser resolvidos de
modo definitivo recorrendo-se às leis e ao direito, como idealizavam os
hegelianos, pois expressam a dialética irreconciliável da sociedade burguesa.
Marx,
porém, não atribuiu esse equívoco de Hegel e de seus discípulos a uma simples
cegueira subjetiva. Ele decorre da própria sociabilidade sob o modo de vida
capitalista, como será visto adiante, na discussão sobre o fetichismo. Seja
como for, a perda da propriedade dos meios de produção pelo trabalhador
estabelece as bases de um processo generalizado de perda de controle sobre as
demais condições sociais. Nas palavras de Marx e de Engels:
confronta-se
com essas forças produtivas a maioria dos indivíduos, dos quais essas forças se
separaram e que, por isso, privados de todo conteúdo real de vida, se tornaram
indivíduos abstratos, mas que somente assim são colocados em condições de
estabelecer relações uns com os outros na qualidade de indivíduos.
[8]8
De
acordo com o trecho, a perda da propriedade faz com que os indivíduos sejam
“privados de todo conteúdo real de vida” e tornem-se “abstratos”. A situação
social de desigualdade do trabalho diante da propriedade cria a igualdade
jurídica, que, contudo, é uma igualdade na “ abstração”, uma igualdade na qual
o indivíduo moderno se define pela homogeneidade, pela perda de suas
particularidades distintivas. Configura-se, assim, uma situação exatamente
oposta àquela em que se imaginam as pessoas ciosas de sua liberdade e de sua
individualidade.
Já
na juventude, Marx denominou esse fenômeno “alienação”, retomando outro
conceito caro ao meio filosófi co com o qual debatia. Formulado por Hegel, o
termo designava o momento em que o “espírito” se faz outro, distinto de si
mesmo, “alheio” à sua forma inicial, criando uma realidade objetiva na qual se
reconhecerá. Na Alemanha da década de 1840, os jovens críticos de Hegel recusavam
a certeza desse reconhecimento final do espírito no objeto por ele criado, isto
é, a reconciliação do sujeito com o objeto. Por exemplo, para Feuerbach, que
escreveu o livro A essência do cristianismo [9]9 , a alienação
significa que o indivíduo não se lembra mais de que Deus foi uma criação
coletiva humana, atribuindo-lhe existência autônoma e, ainda mais grave,
invertendo a relação: o criador humano imaginaria ter sido criado por sua
criatura divina.
Para
Marx, embora a alienação diga respeito não aos problemas religiosos, e sim à
situação social do mundo capitalista, ela conserva a forma da autonomização e
da inversão. Privado da propriedade dos meios de produção, o indivíduo não se
reconhece mais plenamente no produto de seu trabalho e tem acesso a ele apenas
mais tarde, ao comprá-lo no mercado. Ou seja, em vez de se apropriar de
imediato do produto resultante do ato de trabalho, o trabalhador precisa
comprar no mercado aquilo que, muitas vezes, ele mesmo produziu para seu
empregador. A apropriação só acontece por meio da mediação do mercado, que
aparece como a instância central da economia, tal como pensa a maioria dos
economistas ainda hoje. O produtor não se reconhece no produto, não se
reconhece como produtor, e afirma-se socialmente como comprador e consumidor.
Assim como o devoto descrito por Feuerbach se esqueceu de que foi a imaginação
humana que criou Deus, o trabalhador não tem consciência de que o produto
existe graças às suas mãos.
Marx,
então, pôde dizer que “a própria ação do homem torna-se um poder que lhe é
estranho e que a ele é contraposto, um poder que subjuga o homem em vez de por
este ser dominado” [10]10 . Nessa
conhecida definição, a alienação consiste na “estranheza” do mundo dominado por
um poder social sobre o qual os indivíduos perderam qualquer controle, depois
de o terem criado, em um evidente movimento de autonomização e inversão. As
condições de trabalho e de distribuição dos frutos do trabalho tornam-se
independentes dos agentes econômicos e, em seguida, aparecem como “um poder que
subjuga” seus criadores, “em vez de ser dominado” por eles.
Em
uma inversão surpreendente, o produto aparece como o produtor e o produtor,
como o produto. Dessa inversão resulta uma espécie de mal-estar generalizado,
próprio do mundo capitalista. O indivíduo burguês orgulha-se de ter alcançado a
liberdade e a autonomia, mesmo que essa individuação resulte apenas na perda de
diferenças qualitativas: a produção e o mercado conseguem incorporar somente o
indivíduo médio, comum, originário de um processo de normalização, de
“abstração”, nas palavras de Marx. Esse tipo de igualdade reflete-se no
preceito jurídico de que “a lei não faz diferenças nem reconhece privilégios”,
é “isenta”, “neutra”, “justa”. Na verdade, trata-se de uma igualdade e de uma
liberdade instituídas pelo poder estranho, fetichista, que o conjunto da
sociedade gerou e que faz todos sentirem, pelo menos em algum momento, quando é
possível refletir, que algo da vida lhes escapa.
1 O primeiro livro da obra foi publicado
em 1867, a segunda edição alemã de 1873. O segundo e o terceiro livros foram
editados por Friedrich Engels e publicados em 1885 e 1894, respectivamente.
2 Karl Marx, “Posfácio”, em O capital,
Livro I (trad. Rubens Enderle, São Paulo, Boitempo, 2011), p. 91.
3 Karl Marx e Friedrich Engels, Manifesto
Comunista (trad. Álvaro Pina
e Ivana Jinkings, São Paulo, Boitempo, 1998), p. 43.
4 Karl Marx, Contribuição à
crítica da economia política (trad.Florestan Fernandes, 2. ed., São
Paulo, Expressão Popular, 2008).
5 Ibidem, p. 47.
6 Idem, Crítica da filosofia do
direito de Hegel (trad. Rubens Enderle e Leonardo de Deus, São Paulo,
Boitempo, 2005).
7 Baseada na tradução francesa de 1872
de O capital, revista por Marx, a expressão “acumulação primitiva”
consagrou-se em traduções para vários idiomas, inclusive o português. No
entanto, a expressão “acumulação original” tem a vantagem de preservar a alusão
bíblica presente na expressão “ursprüngliche Akkumulation” da edição original
alemã.
8 Karl Marx e Friedrich Engels, A
ideologia alemã (trad. Rubens Enderle, Nélio Schneider e Luciano
Cavini Martorano, São Paulo, Boitempo, 2007), p. 72.
9 Ludwig Feuerbach, A essência do
cristianismo (trad. José da Silva Brandão, 4. ed., Petrópolis, Vozes,
2013).
10 Karl Marx e Friedrich Engels, A ideologia alemã, cit., p. 37.
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