Por Wladimir Pomar
O socialismo volta, paulatinamente, a ser um tema prioritário de debate,
à medida que os países capitalistas enfrentam problemas profundos no enfrentamento
da pandemia, e em que alguns deles tendem a fazer intervenções estatais
para recuperar a economia e os empregos. Não será surpresa se Biden for
acusado de “socialista” por pretender taxar as grandes fortunas e investir
em programas sociais que minorem as condições de pobreza dos trabalhadores
excluídos do mercado de trabalho em virtude da crescente produtividade
industrial norte-americana.
De qualquer modo, para início de conversa
sobre o socialismo, não se pode considerá-lo uma invenção teórica, um sonho,
ou uma utopia humanitária. Ela está intimamente associada à prática
existencial do capitalismo. À medida que essa formação histórica eleva
a produtividade de suas forças produtivas, podendo atender a todas as necessidades
sociais, ela gera, ao mesmo tempo, uma contradição chave: um forte desemprego
tecnológico, com uma queda brutal na efetivação da circulação das mercadorias
que produz.
Com uma estupenda capacidade produtiva,
o capitalismo torna-se incapaz de atender às necessidades sociais básicas,
em virtude da manutenção da propriedade privada e da busca do lucro. O
aumento da produtividade cria uma massa humana sem condições de vender
sua força de trabalho e, em consequência, sem condições de consumir as mercadorias
produzidas pelo capital. Em tais condições, Marx e Engels concluíram que
a superação de tal contradição só pode ocorrer numa nova formação econômica,
social e política que, extinguindo a propriedade privada dos meios de
produção, agilize um crescente igualitarismo na administração das
forças produtivas e na distribuição dos bens necessários à vida humana.
O socialismo, desse modo, consiste
em realizar o processo intermediário para a superação humanitária daquela
contradição do capitalismo desenvolvido. Por outro lado, um dos problemas
desse processo, descoberto pelos dois pensadores alemães, consiste em
que o desenvolvimento capitalista dos países tem sido historicamente
muito desigual. Diante das nações muito desenvolvidas, a exemplo dos Estados
Unidos, Canadá, Alemanha, França e Japão, encontram-se inúmeras nações e
povos atrasados em tal desenvolvimento, a exemplo do Brasil, Chile, Gana,
Tailândia etc. etc.
Teoricamente, os povos economicamente
mais desenvolvidos deveriam chegar ao ponto máximo daquela contradição
antes dos mais atrasados. No entanto, do ponto de vista prático, para embaralhar
tal processo, a história real apresentou situações de crises profundas,
com tentativas de transição socialista, em países de pequeno desenvolvimento
capitalista. Neles, as contradições básicas ainda estavam atadas à predominância
de relações feudais, como foram os casos emblemáticos da Rússia e da
China, ou da subordinação colonial, nos casos da China, Vietnã e Coréia,
ou ainda a desenvolvimentos capitalistas mais lentos, como no leste europeu.
Na Rússia e na China, o feudalismo
ainda estava fortemente presente na agricultura e na organização política,
e a indústria capitalista era secundária. No caso chinês, havia o agravante
de que áreas importantes do país se encontravam sob jurisdição de potências
colonizadoras, além de sua indústria ser fraca e sob forte domínio estrangeiro.
Nessas condições, as contradições básicas das sociedades russa e chinesa
ainda não eram as contradições capitalistas, mas as contradições feudais
e coloniais, embora os trabalhadores assalariados, mesmo minoritários,
fossem uma das principais bases sociais e políticas para a luta pela superação
do feudalismo e do domínio colonial.
Por outro lado, ambos os países foram
assolados pelas guerras imperialistas fomentadas pelo capitalismo desenvolvido,
seja pela repartição dos países coloniais, ou pela transformação de
países independentes em colônias. Tanto na Rússia quanto na China foram as
guerras desse tipo que criaram as condições para a eclosão de revoluções
socialistas e democrático-populares.
Dizendo de outro modo, as forças revolucionárias
desses países atropelaram a história, embora em momentos muito diferentes
(Rússia, em 1917; China, em 1949), imediatamente após guerras imperialistas
mundiais. Ou seja, a questão do socialismo eclodiu antes que as condições
materiais para tal transição houvessem amadurecido. Em ambos os países,
o modo de produção capitalista ainda não havia desenvolvido sua contradição
de transformação.
Lênin teve a perspicácia de reconhecer
isso imediatamente após a revolução russa de 1917, propondo a criação
da NEP (Nova Política Econômica), que combinava o desenvolvimento do
mercado com a orientação estatal. Experiência que findou em 1928, em
grande parte em virtude da preparação de uma nova guerra mundial, tendo o
imperialismo alemão como carro chefe. Embora parecesse voltada para destruir
a experiência soviética, na verdade a nova guerra de expansão do nazismo
pretendia, acima disso, uma nova divisão colonial do mundo.
De qualquer modo, no caso soviético,
o Estado se viu compelido a assumir plenamente a preparação industrial
para tal enfrentamento, levando-o a estatizar todo o processo econômico.
Estatização que, com o sucesso bélico contra o nazismo, continuou no
pós-guerra, na suposição de que o planejamento econômico centralizado
seria capaz de resolver todos os problemas da transição socialista.
A experiência histórica mostrou
que tal suposição era errônea. A União Soviética e os países democrático-populares
do leste europeu naufragaram, como países de transição socialista, muito
mais por sua incapacidade de atender às demandas comuns da vida de seus
habitantes do que por outros motivos.
No caso chinês, houve inicialmente
a perspicácia de sugerir um caminho “democrático popular”, pré-socialista,
levando em conta que parte da burguesia nacional chinesa apoiava tanto a
guerra de libertação contra o imperialismo japonês quanto a guerra civil
revolucionária contra o domínio feudal na agricultura. Porém, embora a
reforma agrária tenha sido a principal marca da primeira fase da República
Popular da China, logo depois a burguesia nacional chinesa tentou impor
seu próprio caminho, levando a uma disputa acirrada em torno da industrialização,
do controle dos preços e de diversos outros itens do processo econômico e
social.
Nessa disputa, os socialistas chineses
foram levados a adotar várias das experiências soviéticas, tanto na
agricultura – fazendas coletivas, comunas populares – quanto na indústria.
Para elevar a produção de bens industriais e reduzir o desemprego, intensificaram
a estatização industrial e criaram o sistema 3:1 (um trabalho / 3 empregos),
e se empenharam em realizar grandes movimentos sociais. Mas esbarraram
sempre em seu próprio atraso tecnológico e científico, fazendo com que
tais experiências se esgotassem com o fracasso da Revolução Cultural,
por volta de 1976.
Nos dois anos de avaliação dessas
experiências, tentadas entre os anos 1949-1976 (27 anos), os chineses chegaram
à mesma conclusão de Lênin. Ou seja, num país industrialmente atrasado
não era possível abolir o mercado por decreto. Seria necessário combinar
a ação primária do mercado com a orientação científica, econômica, social
e política do Estado, de modo a desenvolver as ciências, as tecnologias
e as indústrias como carros chefes do processo geral de desenvolvimento
econômico e social.
Ou seja, a orientação do Estado deveria
não só fazer com que a indústria e a agricultura fossem marcadas pelo desenvolvimento
científico e tecnológico, elevando constantemente sua produtividade,
mas também tivessem como alvo o atendimento das necessidades sociais e a
constante elevação do padrão de vida e do nível educacional da população
trabalhadora. Por outro lado, tal orientação estatal não deveria ser
apenas genérica. Deveria ser moldada por planos (anuais, quinquenais e de
mais longo prazo), e pela participação prática e concorrencial das empresas
estatais.
As estatais, por sua vez, não deveriam
ser monopolistas. Cada setor econômico deveria ter três ou mais empresas
estatais, concorrendo entre si e com as empresas privadas, de modo a
evitar a burocratização, elevar o padrão tecnológico e rebaixar os
preços. O mesmo deveria ocorrer com as empresas privadas, evitando os monopólios
e a estagnação tecnológica.
Por outro lado, para dar o salto industrial
e tecnológico necessário, foi possível aproveitar-se da tendência de
mundialização das grandes empresas capitalistas multinacionais,
acelerada a partir dos anos 1970. Seus investimentos foram admitidos em
zonas econômicas especiais, desde que estabelecessem joint ventures com
empresas chinesas, e transferissem a elas novas e/ou altas tecnologias.
Além disso, muitos trabalhadores e
técnicos do sistema industrial 3:1 foram incentivados a elaborar projetos
de investimento a serem financiados pelos bancos estatais, de modo a diversificar
a produção industrial e suprir as crescentes necessidades sociais. Ou
seja, ao mesmo tempo em que admitia a presença do capital estrangeiro em
áreas delimitadas de seu território, o Estado chinês financiou o ressurgimento
de uma burguesia nacional capaz de concorrer não só com esse capital externo,
mas também com o capital estatal, embora subordinada aos programas ou
planos de desenvolvimento orientados pelo Estado e pelas ciências e
tecnologias.
O que explica, por um lado, e em
grande medida, o crescente papel do ensino científico e tecnológico na
ampliação do sistema educacional chinês e, por outro, a presença crescente
do conhecimento científico e tecnológico nos planos estatais de orientação
das empresas estatais e do mercado.
É desse modo que o socialismo chinês
está se aproximando do nível científico, tecnológico e econômico das
grandes potências, e dando condições de seu povo ter um crescente padrão
de vida. Numa escala menor, mas com características próprias, é também o
que o socialismo vietnamita está fazendo.
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