terça-feira, 29 de junho de 2021

Notas sobre capitalismo e socialismo (3)

 Por Wladimir Pomar

 



Apesar de haver per­du­rado por um pe­ríodo tão longo quanto o es­cra­vismo, a agre­gação ainda hoje é sim­ples­mente ig­no­rada. Ou, na me­lhor das hi­pó­teses, torna-se razão para ba­ta­lhas teó­ricas sobre sua con­cei­tu­ação como se­mi­feudal ou pré-ca­pi­ta­lista. Seu papel, como freio ou o que quer que seja no de­sen­vol­vi­mento ca­pi­ta­lista bra­si­leiro não é con­si­de­rado, em­bora tenha su­bor­di­nado, por mais de meio sé­culo, cerca de 70% da po­pu­lação ativa bra­si­leira.

Em ou­tras pa­la­vras, a agre­gação, uma re­lação de pro­dução não-ca­pi­ta­lista, ou pré-ca­pi­ta­lista, se tornou pre­do­mi­nante desde o final da es­cra­vidão, re­pre­sando a maior parte da força de tra­balho na­ci­onal apenas para a pro­dução de renda fun­diária. Mesmo assim há quem acre­dite que seu es­va­zi­a­mento, nos anos 1960 e 1970, ocorreu porque a bur­guesia queria criar um mer­cado de fa­bri­cação e im­por­tação de má­quinas agrí­colas para dis­putar o mer­cado mun­dial de com­mo­di­ties agrí­colas. Todo o pro­cesso po­lí­tico e econô­mico di­ta­to­rial-mi­litar de trans­for­mação ou mo­der­ni­zação dos la­ti­fún­dios em agroin­dús­trias ca­pi­ta­listas teria se re­su­mido a tal ob­je­tivo.

Quem pensa assim não en­tendeu, por um lado, o apro­fun­da­mento das mu­danças es­tru­tu­rais nos ca­pi­ta­lismos avan­çados es­ta­du­ni­dense, eu­ropeu e ja­ponês, que os levou a ace­lerar a ex­por­tação de ca­pi­tais, ou seus in­ves­ti­mentos no ex­te­rior. Suas em­presas mul­ti­na­ci­o­nais in­ten­si­fi­caram tais in­ves­ti­mentos na cons­trução e ope­ração de plantas in­dus­triais em países como o Brasil. Porém, para efe­tivar tais in­ves­ti­mentos era pre­ciso contar com oferta abun­dante e ba­rata de força de tra­balho que, no Brasil, en­con­trava-se su­bor­di­nada às re­la­ções de pro­dução de agre­gação na agri­cul­tura. Os cam­po­neses, par­ceiros ou ren­deiros, es­tavam amar­rados aos la­ti­fún­dios, sem li­ber­dade para vender sua força de tra­balho no mer­cado.

Em tais con­di­ções, as bur­gue­sias es­tran­geira e na­ci­onal-su­bor­di­nada ne­ces­si­tavam de um Es­tado forte o su­fi­ci­ente para impor à classe la­ti­fun­diária uma re­forma que li­be­rasse a força de tra­balho agre­gada aos la­ti­fún­dios, sem li­quidar o mo­no­pólio da pro­pri­e­dade do solo. O golpe de 1964, que re­sultou na im­plan­tação da di­ta­dura mi­litar, vindo apa­ren­te­mente para im­pedir a co­mu­ni­zação do Brasil, mos­trou ime­di­a­ta­mente a que veio. De­cretou o Es­ta­tuto da Terra e “obrigou” os la­ti­fun­diá­rios a uma mo­der­ni­zação agrí­cola fi­nan­ciada pelo Es­tado.

Mi­lhões de agre­gados ru­rais foram subs­ti­tuídos por má­quinas e ou­tros in­sumos agrí­colas, cri­ando uma das mais in­tensas mi­gra­ções po­pu­la­ci­o­nais dos campos para as ci­dades que o Brasil co­nhece. Uma enorme força de tra­balho ba­rata inundou as ci­dades in­dus­triais ou em pro­cesso de in­dus­tri­a­li­zação. Com isso, in­verteu to­tal­mente a pro­porção entre as po­pu­la­ções rural e ur­bana bra­si­leiras num prazo in­fe­rior a 20 anos. E in­ten­si­ficou a ur­ba­ni­zação caó­tica que hoje ca­rac­te­riza as grandes e mé­dias ci­dades do país, con­tendo cerca de 80% da po­pu­lação.

Ou seja, para pro­mover o “mi­lagre econô­mico” que pro­cu­rava jus­ti­ficar sua di­ta­dura e con­so­lidar o de­sen­vol­vi­mento do modo ca­pi­ta­lista de pro­dução, su­bor­di­nado, de­pen­dente e des­na­ci­o­na­li­zado, que havia sido in­ten­si­fi­cado desde os anos 1950, os go­vernos mi­li­tares “obri­garam” os la­ti­fun­diá­rios bra­si­leiros a um pro­cesso de mo­der­ni­zação agrí­cola di­fe­rente tanto do pro­cesso su­lista es­ta­du­ni­dense no sé­culo 19 quanto do pro­cesso in­glês do sé­culo 14.

Os feu­dais in­gleses trans­for­maram-se em ca­pi­ta­listas pres­si­o­nados pelas de­mandas de lã das ma­nu­fa­turas ho­lan­desas. O que os levou a ex­pulsar mi­lhões de cam­po­neses das terras de cul­tivo feu­dais e co­mu­nais e criar a imensa massa des­pro­vida da pro­pri­e­dade de meios de pro­dução e de sub­sis­tência apta a vender sua força de tra­balho por sa­lário. Foi isso, aliado à in­ten­si­fi­cação mer­cantil global, que for­neceu a prin­cipal base para a dis­se­mi­nação das re­la­ções de pro­dução que ca­rac­te­ri­zaram o ca­pi­ta­lismo em subs­ti­tuição às re­la­ções feu­dais. Já os es­ta­du­ni­denses es­cra­vistas su­listas foram trans­for­mados em agri­cul­tores ca­pi­ta­listas pela Guerra de Se­cessão que eli­minou re­vo­lu­ci­o­na­ri­a­mente as re­la­ções es­cra­vistas e impôs as re­la­ções as­sa­la­ri­adas a todos os Es­tados da União norte-ame­ri­cana.

Os la­ti­fun­diá­rios bra­si­leiros, porém, foram “for­çados” a obter fi­nan­ci­a­mentos do Banco do Brasil para ex­pulsar os tra­ba­lha­dores agre­gados e subs­tituí-los por má­quinas, fer­ti­li­zantes quí­micos e tra­balho as­sa­la­riado. As áreas ru­rais foram, em geral, es­va­zi­adas de tra­ba­lha­dores agre­gados, li­ber­tados para se tor­narem mão-de-obra ba­rata para as in­dús­trias es­tran­geiras e na­ci­o­nais em pro­cesso de im­plan­tação. A maior parte dos la­ti­fun­diá­rios tornou-se uma fração agrí­cola da bur­guesia, em­bora man­tendo, como os su­listas norte-ame­ri­canos, a ide­o­logia es­cra­vo­crata e ra­cista que acha a in­dús­tria um setor se­cun­dário da eco­nomia e a de­mo­cracia, mesmo a li­beral, um sis­tema sub­ver­sivo.
 
Nessas con­di­ções, o de­sen­vol­vi­mento do ca­pi­ta­lismo bra­si­leiro di­fe­rencia-se bru­tal­mente do de­sen­vol­vi­mento do ca­pi­ta­lismo norte-ame­ri­cano. Pri­meiro porque este criou uma po­de­rosa in­dús­tria na­ci­onal de bens de pro­dução e de bens in­ter­me­diá­rios, cons­truindo uma base se­gura para o de­sen­vol­vi­mento tec­no­ló­gico e a pro­dução com­pe­ti­tiva dos bens de con­sumo em termos in­ter­na­ci­o­nais. Se­gundo, porque tal de­sen­vol­vi­mento na­ci­onal per­mitiu, já no final do sé­culo 19 e início do sé­culo 20, que o ca­pi­ta­lismo norte-ame­ri­cano apro­vei­tasse o ana­cro­nismo co­lo­nial es­pa­nhol para ini­ciar a pro­lon­gada dis­puta que viria a travar contra a he­ge­monia co­lo­nial e se­mi­co­lo­nial bri­tâ­nica na Amé­rica La­tina.
 
Nas três pri­meiras dé­cadas do sé­culo 20, o ca­pi­ta­lismo norte-ame­ri­cano as­sistiu à he­ge­monia de sua fração in­dus­trial, com um in­tenso de­sen­vol­vi­mento de seu de­par­ta­mento de bens de pro­dução (má­quinas e tec­no­lo­gias) e de des­truição (armas pe­sadas), cres­cente for­ta­le­ci­mento de sua fração fi­nan­ceira e pau­la­tino in­gresso em sua fase de ex­pansão im­pe­ri­a­lista, in­cluindo sua par­ti­ci­pação em todos os as­pectos da Pri­meira Guerra Mun­dial. Não por acaso o ca­pi­ta­lismo norte-ame­ri­cano se tornou o epi­centro da crise mun­dial ini­ciada em 1929, que levou à Se­gunda Guerra Mun­dial e se pro­longou até 1945, com imensa des­truição de forças pro­du­tivas, in­cluindo mais de 50 mi­lhões de vidas hu­manas.

O ca­pi­ta­lismo bra­si­leiro, porém, só con­se­guiu dar passos in­dus­triais con­cretos nos anos 1910, como de­cor­rência não de forças in­ternas ino­va­doras, mas dos cortes sig­ni­fi­ca­tivos que a Pri­meira Guerra Mun­dial impôs às im­por­ta­ções de bens de con­sumo fa­bri­cados na Eu­ropa. O pri­meiro so­luço in­dus­tri­a­li­zante re­sultou, assim, não da pers­pec­tiva da fa­bri­cação de bens de pro­dução in­dus­triais como ele­mento es­sen­cial para a so­be­rania na­ci­onal. Re­sultou da sim­ples subs­ti­tuição de im­por­ta­ções de bens de con­sumo. O único fator po­si­tivo desse so­luço con­sistiu na emer­gência de uma pe­quena classe ope­rária in­dus­trial em al­gumas ci­dades do país.

A esse in­gresso torto na in­dus­tri­a­li­zação somou-se um se­gundo so­luço in­dus­tri­a­li­zante nos anos 1930, co­man­dado por fra­ções la­ti­fun­diá­rias que se opu­nham à he­ge­monia da ca­fei­cul­tura pau­lista e a seu há­bito de “so­ci­a­lizar” os pre­juízos cau­sados pelas crises no mer­cado mun­dial de com­mo­di­ties agrí­colas. A crise mun­dial ca­pi­ta­lista, ini­ciada em 1929, agravou tal con­tra­dição ao ponto de levar a cho­ques ar­mados, ma­te­ri­a­li­zados na vi­to­riosa “re­vo­lução li­beral” e na fra­cas­sada e opo­si­tora “re­vo­lução cons­ti­tu­ci­o­na­lista pau­lista”.
 
As re­formas “li­be­rais” le­varam o Es­tado as­sumir papel ativo na in­dus­tri­a­li­zação, seja cri­ando em­presas es­ta­tais, seja fi­nan­ci­ando em­pre­en­de­dores bur­gueses, e em não mais con­si­derar as de­mandas econô­micas e so­ciais da li­mi­tada força de tra­balho as­sa­la­riada como as­sunto po­li­cial (o que se ma­te­ri­a­lizou na for­ma­li­zação de leis tra­ba­lhistas). Mas a de­manda de uma re­forma agrária que li­qui­dasse ou li­mi­tasse o do­mínio la­ti­fun­diário e li­be­rasse grandes con­tin­gentes da força de tra­balho agre­gada ja­mais foi con­si­de­rada.      
 
Apesar dessas li­mi­ta­ções, o ca­pi­ta­lismo “li­beral” bra­si­leiro so­freu cons­tantes ata­ques do agra­rismo la­ti­fun­diário e dos países ca­pi­ta­listas de­sen­vol­vidos. Os pri­meiros con­ti­nu­avam con­si­de­rando que o des­tino do Brasil era se tornar a la­voura do mundo, en­quanto os se­gundos se opu­nham ao cres­ci­mento de con­cor­rentes in­dus­triais. O de­sen­vol­vi­mento in­dus­trial dos anos 1930 e 1940 só contou com a trans­fe­rência de tec­no­lo­gias es­tran­geiras em vir­tude das con­tra­di­ções que le­varam à Se­gunda Guerra Mun­dial. Nesse sen­tido, os de­bates entre agra­ristas e in­dus­tri­a­listas re­tratam me­lhor do que quais­quer ou­tros as bases das grandes de­si­gual­dades de de­sen­vol­vi­mento ca­pi­ta­lista nos Es­tados Unidos e no Brasil.

A Se­gunda Guerra Mun­dial e o pe­ríodo pos­te­rior a ela per­mitiu ao ca­pi­ta­lismo norte-ame­ri­cano dar saltos enormes na in­cor­po­ração das mu­lheres à forca de tra­balho ativa, na con­cen­tração do ca­pital, na re­vo­lução tec­no­ló­gica, na re­es­tru­tu­ração de sua po­lí­tica de ex­por­tação de ca­pi­tais, na cen­tra­li­zação de ca­pi­tais em em­presas mul­ti­na­ci­o­nais e no au­mento da ex­plo­ração de países atra­sados, colô­nias ou se­mi­colô­nias.
 
Essa fase in­cluiu, ainda, o con­fronto de guerra fria com a União So­vié­tica e países de de­mo­cracia po­pular, assim como com os mo­vi­mentos de des­co­lo­ni­zação, per­mi­tindo ao ca­pi­ta­lismo norte-ame­ri­cano se elevar à con­dição de força he­gemô­nica mun­dial ca­pi­ta­lista. Nos anos 1970, porém, a cen­tra­li­zação do ca­pital em grandes cor­po­ra­ções trans­na­ci­o­nais e a ten­dência de queda da taxa média de lucro im­pu­seram re­for­mu­la­ções es­tru­tu­rais nas po­lí­ticas de ex­por­ta­ções de ca­pital dos Es­tados Unidos e dos de­mais países ca­pi­ta­listas cen­trais, in­ten­si­fi­cando o pro­cesso de glo­ba­li­zação do modo de pro­dução ca­pi­ta­lista.

Na so­ci­e­dade bra­si­leira só co­me­çaram a ocorrer mo­di­fi­ca­ções sig­ni­fi­ca­tivas quando ela se con­frontou com os cres­centes in­ves­ti­mentos pro­mo­vidos pelas ex­por­ta­ções de ca­pi­tais do ca­pi­ta­lismo de­sen­vol­vido, a partir dos anos 1950. De lá para cá, todas as re­formas de sen­tido ca­pi­ta­lista pra­ti­cadas no Brasil, in­cluindo a mo­der­ni­zação agrí­cola e a li­be­ração da força de tra­balho agre­gada dos la­ti­fún­dios dos anos 1960-70, foram con­ser­va­doras. Man­ti­veram a eco­nomia bra­si­leira su­bor­di­nada, de­pen­dente e des­na­ci­o­na­li­zada, e to­tal­mente à mercê das cor­po­ra­ções trans­na­ci­o­nais e de suas crises glo­bais.
 
Em ou­tras pa­la­vras, o ca­pi­ta­lismo bra­si­leiro só é na­ci­onal no sen­tido de que está im­plan­tado no seu ter­ri­tório. No mais, as prin­ci­pais de­ci­sões sobre seu de­sen­vol­vi­mento estão lo­ca­li­zadas em Washington, Berlim, Tó­quio, Paris e Lon­dres. Em tais con­di­ções, ao con­frontar-se com as ten­dên­cias reais do ca­pi­ta­lismo, a exemplo da ten­dência de pau­pe­ri­zação re­la­tiva e ab­so­luta da força de tra­balho, o ca­pi­ta­lismo no Brasil não só man­teve, mas agravou todas as de­si­gual­dades econô­micas, so­ciais e po­lí­ticas que herdou do es­cra­vismo e da agre­gação.


FONTE: Correio da Cidadania


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