Por Wladimir Pomar
Apesar de haver perdurado por um período tão longo quanto o escravismo, a agregação ainda hoje é simplesmente ignorada. Ou, na melhor das hipóteses, torna-se razão para batalhas teóricas sobre sua conceituação como semifeudal ou pré-capitalista. Seu papel, como freio ou o que quer que seja no desenvolvimento capitalista brasileiro não é considerado, embora tenha subordinado, por mais de meio século, cerca de 70% da população ativa brasileira.
Em
outras palavras, a agregação, uma relação de produção não-capitalista,
ou pré-capitalista, se tornou predominante desde o final da escravidão,
represando a maior parte da força de trabalho nacional apenas para a produção
de renda fundiária. Mesmo assim há quem acredite que seu esvaziamento, nos
anos 1960 e 1970, ocorreu porque a burguesia queria criar um mercado de fabricação
e importação de máquinas agrícolas para disputar o mercado mundial de
commodities agrícolas. Todo o processo político e econômico ditatorial-militar
de transformação ou modernização dos latifúndios em agroindústrias capitalistas
teria se resumido a tal objetivo.
Quem
pensa assim não entendeu, por um lado, o aprofundamento das mudanças estruturais
nos capitalismos avançados estadunidense, europeu e japonês, que os
levou a acelerar a exportação de capitais, ou seus investimentos no exterior.
Suas empresas multinacionais intensificaram tais investimentos na
construção e operação de plantas industriais em países como o Brasil.
Porém, para efetivar tais investimentos era preciso contar com oferta abundante
e barata de força de trabalho que, no Brasil, encontrava-se subordinada
às relações de produção de agregação na agricultura. Os camponeses, parceiros
ou rendeiros, estavam amarrados aos latifúndios, sem liberdade para
vender sua força de trabalho no mercado.
Em
tais condições, as burguesias estrangeira e nacional-subordinada necessitavam
de um Estado forte o suficiente para impor à classe latifundiária uma reforma
que liberasse a força de trabalho agregada aos latifúndios, sem liquidar
o monopólio da propriedade do solo. O golpe de 1964, que resultou na implantação
da ditadura militar, vindo aparentemente para impedir a comunização
do Brasil, mostrou imediatamente a que veio. Decretou o Estatuto da
Terra e “obrigou” os latifundiários a uma modernização agrícola financiada
pelo Estado.
Milhões
de agregados rurais foram substituídos por máquinas e outros insumos
agrícolas, criando uma das mais intensas migrações populacionais dos
campos para as cidades que o Brasil conhece. Uma enorme força de trabalho barata
inundou as cidades industriais ou em processo de industrialização. Com
isso, inverteu totalmente a proporção entre as populações rural e urbana
brasileiras num prazo inferior a 20 anos. E intensificou a urbanização
caótica que hoje caracteriza as grandes e médias cidades do país, contendo
cerca de 80% da população.
Ou
seja, para promover o “milagre econômico” que procurava justificar sua
ditadura e consolidar o desenvolvimento do modo capitalista de produção,
subordinado, dependente e desnacionalizado, que havia sido intensificado
desde os anos 1950, os governos militares “obrigaram” os latifundiários
brasileiros a um processo de modernização agrícola diferente tanto do
processo sulista estadunidense no século 19 quanto do processo inglês
do século 14.
Os
feudais ingleses transformaram-se em capitalistas pressionados pelas
demandas de lã das manufaturas holandesas. O que os levou a expulsar milhões
de camponeses das terras de cultivo feudais e comunais e criar a imensa
massa desprovida da propriedade de meios de produção e de subsistência
apta a vender sua força de trabalho por salário. Foi isso, aliado à intensificação
mercantil global, que forneceu a principal base para a disseminação das
relações de produção que caracterizaram o capitalismo em substituição
às relações feudais. Já os estadunidenses escravistas sulistas foram
transformados em agricultores capitalistas pela Guerra de Secessão que
eliminou revolucionariamente as relações escravistas e impôs as relações
assalariadas a todos os Estados da União norte-americana.
Os
latifundiários brasileiros, porém, foram “forçados” a obter financiamentos
do Banco do Brasil para expulsar os trabalhadores agregados e substituí-los
por máquinas, fertilizantes químicos e trabalho assalariado. As áreas
rurais foram, em geral, esvaziadas de trabalhadores agregados, libertados
para se tornarem mão-de-obra barata para as indústrias estrangeiras e nacionais
em processo de implantação. A maior parte dos latifundiários tornou-se
uma fração agrícola da burguesia, embora mantendo, como os sulistas
norte-americanos, a ideologia escravocrata e racista que acha a indústria
um setor secundário da economia e a democracia, mesmo a liberal, um sistema
subversivo.
Nessas condições, o desenvolvimento do capitalismo brasileiro diferencia-se
brutalmente do desenvolvimento do capitalismo norte-americano. Primeiro
porque este criou uma poderosa indústria nacional de bens de produção e
de bens intermediários, construindo uma base segura para o desenvolvimento
tecnológico e a produção competitiva dos bens de consumo em termos internacionais.
Segundo, porque tal desenvolvimento nacional permitiu, já no final do
século 19 e início do século 20, que o capitalismo norte-americano aproveitasse
o anacronismo colonial espanhol para iniciar a prolongada disputa que
viria a travar contra a hegemonia colonial e semicolonial britânica
na América Latina.
Nas três primeiras décadas do século 20, o capitalismo norte-americano
assistiu à hegemonia de sua fração industrial, com um intenso desenvolvimento
de seu departamento de bens de produção (máquinas e tecnologias) e de
destruição (armas pesadas), crescente fortalecimento de sua fração financeira
e paulatino ingresso em sua fase de expansão imperialista, incluindo
sua participação em todos os aspectos da Primeira Guerra Mundial. Não por
acaso o capitalismo norte-americano se tornou o epicentro da crise mundial
iniciada em 1929, que levou à Segunda Guerra Mundial e se prolongou até
1945, com imensa destruição de forças produtivas, incluindo mais de 50 milhões
de vidas humanas.
O
capitalismo brasileiro, porém, só conseguiu dar passos industriais concretos
nos anos 1910, como decorrência não de forças internas inovadoras, mas dos
cortes significativos que a Primeira Guerra Mundial impôs às importações
de bens de consumo fabricados na Europa. O primeiro soluço industrializante
resultou, assim, não da perspectiva da fabricação de bens de produção industriais
como elemento essencial para a soberania nacional. Resultou da simples
substituição de importações de bens de consumo. O único fator positivo
desse soluço consistiu na emergência de uma pequena classe operária industrial
em algumas cidades do país.
A
esse ingresso torto na industrialização somou-se um segundo soluço industrializante
nos anos 1930, comandado por frações latifundiárias que se opunham à hegemonia
da cafeicultura paulista e a seu hábito de “socializar” os prejuízos
causados pelas crises no mercado mundial de commodities agrícolas. A
crise mundial capitalista, iniciada em 1929, agravou tal contradição ao
ponto de levar a choques armados, materializados na vitoriosa “revolução
liberal” e na fracassada e opositora “revolução constitucionalista
paulista”.
As reformas “liberais” levaram o Estado assumir papel ativo na industrialização,
seja criando empresas estatais, seja financiando empreendedores burgueses,
e em não mais considerar as demandas econômicas e sociais da limitada
força de trabalho assalariada como assunto policial (o que se materializou
na formalização de leis trabalhistas). Mas a demanda de uma reforma
agrária que liquidasse ou limitasse o domínio latifundiário e liberasse
grandes contingentes da força de trabalho agregada jamais foi considerada.
Apesar dessas limitações, o capitalismo “liberal” brasileiro sofreu
constantes ataques do agrarismo latifundiário e dos países capitalistas
desenvolvidos. Os primeiros continuavam considerando que o destino
do Brasil era se tornar a lavoura do mundo, enquanto os segundos se opunham
ao crescimento de concorrentes industriais. O desenvolvimento industrial
dos anos 1930 e 1940 só contou com a transferência de tecnologias estrangeiras
em virtude das contradições que levaram à Segunda Guerra Mundial. Nesse
sentido, os debates entre agraristas e industrialistas retratam melhor
do que quaisquer outros as bases das grandes desigualdades de desenvolvimento
capitalista nos Estados Unidos e no Brasil.
A
Segunda Guerra Mundial e o período posterior a ela permitiu ao capitalismo
norte-americano dar saltos enormes na incorporação das mulheres à forca
de trabalho ativa, na concentração do capital, na revolução tecnológica,
na reestruturação de sua política de exportação de capitais, na centralização
de capitais em empresas multinacionais e no aumento da exploração de
países atrasados, colônias ou semicolônias.
Essa fase incluiu, ainda, o confronto de guerra fria com a União Soviética
e países de democracia popular, assim como com os movimentos de descolonização,
permitindo ao capitalismo norte-americano se elevar à condição de força
hegemônica mundial capitalista. Nos anos 1970, porém, a centralização
do capital em grandes corporações transnacionais e a tendência de
queda da taxa média de lucro impuseram reformulações estruturais nas
políticas de exportações de capital dos Estados Unidos e dos demais
países capitalistas centrais, intensificando o processo de globalização
do modo de produção capitalista.
Na
sociedade brasileira só começaram a ocorrer modificações significativas
quando ela se confrontou com os crescentes investimentos promovidos
pelas exportações de capitais do capitalismo desenvolvido, a partir
dos anos 1950. De lá para cá, todas as reformas de sentido capitalista praticadas
no Brasil, incluindo a modernização agrícola e a liberação da força de
trabalho agregada dos latifúndios dos anos 1960-70, foram conservadoras.
Mantiveram a economia brasileira subordinada, dependente e desnacionalizada,
e totalmente à mercê das corporações transnacionais e de suas crises
globais.
Em outras palavras, o capitalismo brasileiro só é nacional no sentido
de que está implantado no seu território. No mais, as principais decisões
sobre seu desenvolvimento estão localizadas em Washington, Berlim, Tóquio,
Paris e Londres. Em tais condições, ao confrontar-se com as tendências
reais do capitalismo, a exemplo da tendência de pauperização relativa
e absoluta da força de trabalho, o capitalismo no Brasil não só manteve,
mas agravou todas as desigualdades econômicas, sociais e políticas que
herdou do escravismo e da agregação.
FONTE: Correio da Cidadania
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