quarta-feira, 22 de setembro de 2021

Repensando e atualizando o marxismo

O livro não é dos maiores – são apenas 114 páginas. Mas que páginas! E o título também pode induzir a uma interpretação incorreta: Repensando o marxismo não significa, como se poderia pensar, abandonando o marxismo mas, ao contrário, enriquecendo o marxismo.


Por José Carlos Ruy

 


A grandeza do livro pode ser aferida pelo extenso leque de temas que aborda, em profundidade. Temas fundamentais para a atualização, fortalecimento e enriquecimento do pensamento revolucionário. Que vão desde a chamada crise do socialismo e do marxismo; a redescoberta do pensamento de Hegel e sua importância para o materialismo moderno; a nova face do capitalismo; as mudanças na classe operária e sua necessária relação com outros trabalhadores assalariados; a feição moderna da luta de classes; a China, Mao Tsé Tung e as condições da luta pelo socialismo.

Repensando o marxismo (que a Anita Garibaldi acaba de lançar) reúne reflexões teóricas sobre as contradições contemporâneas, a luta pela superação do capitalismo e o início da transição para o socialismo. E enfrenta com vigor a luta teórica que ocorre entre os trabalhadores, sobretudo entre a vanguarda organizada da classe operária e o conjunto da classe. Qual é o papel da vanguarda? Em que condições ocorre a direção exercida por ela e em que medida essa direção reflete, e se relaciona, com o conjunto da classe?

São algumas questões fundamentais, que Duarte Pereira enfrenta com a mesma profundidade e franqueza encontrada nos clássicos do marxismo.

A enorme qualidade deste livro é reunir textos que foram publicados esparsamente entre 1991 e 2008, em inúmeros periódicos populares e democráticos, tratando de questões candentes no momento em que foram escritos, mas que teriam repercussão teórica de largo alcance. Daí a importância de reuni-los em livro, facilitando o acesso a eles.

São textos que respondem a problemas surgidos no bojo da chamada “crise do socialismo” e, anteriormente, da “crise do marxismo”, agravados pela derrocada do socialismo no leste europeu e na União Soviética, na passagem dos anos 1980 à década de1990.

O impacto daquela crise, ocorrida faz quase trinta anos, foi extenso. Muitos simplesmente abandonaram o marxismo, o comunismo, e qualquer projeto coletivo, fixando-se apenas nos sonhos individuais. E rendendo-se à nova dominância capitalista, expressa no pensamento único neoliberal.

Não é este o tema de Duarte Pereira nos vários artigos que formam os capítulos de seu livro – ele não fica na superfície mas navega em águas mais profundas e tenta entender o impacto daquelas mudanças no pensamento marxista, nas condições da militância anticapitalista. E, em outro aspecto desta realidade, a avaliação da experiência chinesa frente ao fracasso da experiência soviética, vista até então, por muitos, como o modelo inconteste de transição para o socialismo.

No início da década de 1990, muitos partidos comunistas simplesmente desapareceram. O Partido Comunista Italiano, por exemplo, deixou de existir – o mesmo ocorrendo com o Partido Comunista Brasileiro (PCB), cuja maioria decidiu se transformar no Partido Popular Socialista (PPS) em 1992.

Outros, nas antípodas, reafirmaram o marxismo, reavaliaram as condições teóricas e práticas da ação revolucionária, e mantiveram a identidade originária – como o Partido Comunista do Brasil.

Haroldo Lima, no prefácio a este livro, registrou que “o próprio marxismo, nessa fase pós- 1991, viu-se reexaminado mais a fundo e desafiado a enfrentar novos problemas, em movimento para perseverar no objetivo socialista, revigorando a doutrina”.

Duarte Brasil Lago Pacheco Pereira – ou simplesmente Duarte Pereira, como ficou conhecido no pensamento marxista brasileiro – foi aluno brilhante na Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, no início dos anos 1960. Tornou-se um dos vice-presidentes da União Nacional dos Estudantes (UNE) na época do governo João Goulart; foi também um dos fundadores da Ação Popular, que reunia jovens católicos que atuavam no movimento estudantil, tendo sido um dos redatores do Documento-Base que fundamentava a ação prática e teórica daquela organização. Nos anos 1970 foi redator no jornal Movimento e, depois, nas várias versões do Retrato do Brasil feitas por profissionais da mesma equipe.

No início dos anos 1970 foi dele a proposta de incorporação da AP ao PCdoB – caminho organizativo seguido pela maior parte de seus companheiros de organização, mas que Duarte Pereira – devido a fortes divergências sobre a maneira como aquela incorporação ocorreu – não acompanhou.

Sua trajetória foi resumida por Haroldo Lima, que foi seu companheiro de AP e hoje é um dos principais quadros do PCdoB. “Tivemos muita unidade e também divergências. E nunca nos unimos ou divergimos por questões menores. Todos os que bem conhecem Duarte, ou mesmo os que têm a seu respeito um conhecimento menor, sabem da firmeza de sua têmpera de luta, da decisão inquebrantável com que mantém suas convicções, da perspicácia de suas análises, da acuidade com que percebe as coisas relevantes”.

Foi em homenagem a este passado, de unidade e divergência, que Haroldo Lima organizou, generosamente, esta coletânea, com a concordância de Duarte Pereira. É um livro necessário.

 

FONTE: https://vermelho.org.br/2016/07/25/repensando-e-atualizando-o-marxismo/

 


sábado, 11 de setembro de 2021

E o 11 de Setembro chileno?

 

Por Aluizio Moreira

Data fatídica  essa  do 11 de setembro!  O Chile tambem teve o seu 11 de setembro.


 Palacio La Moneda


Exatamente em 11 de setembro de 1973, tropas do exército chileno sob o comando do General Pinochet, bombardeavam o Palácio La Moneda em Santiago. O Presidente Salvador Allende, democraticamente eleito, que se encontrava reunido com membros do governo,  fora ali mesmo morto, em circunstâncias ainda não esclarecidas (suicídio ou assassinato?). Iniciava-se uma das mais sangrentas ditaduras militares na America do Sul, que  duraria 17 longos anos.

Cifras da ditadura:  3.197 vítimas. Dessas 1.197 pessoas desaparecidas.Cálculos mais otimistas, estimam 100 mil o número de torturados.Cerca de 500 mil presos políticos, exilados e exonerados.

Segundo Norbert Ahrens em artigo publicado no dia 10 do corrente na página Calendário Histórico da  edição eletrônica do jornal alemão DEUTSCHE WELLE (1):

 O golpe de Pinochet foi festejado politicamente pelo governo norte-americano de Richard Nixon, do qual também obteve apoio logístico. O golpe militar de 11 de setembro de 1973 foi o sangrento ponto final da política exterior dos EUA contra o socialista Allende, que fora combatido por Washington desde o início do seu governo.

 Fato confirmado com o desarquivamento de documentos da  CIA, Pentágono, Departamento de Estado e FBI, solicitado em 1999 pelo ex-presidente dos Estados Unidos, Bill Clinton, que inclusive revelam as “operações secretas” da CIA no Chile desde 1962.

 Emir Sader, brasileiro, Sociólogo e Doutor em Ciência Politica, na época exilado no Chile, juntamente com outros brasileiros em decorrência do golpe de 1964, chega a afirmar que antes mesmo da posse de Allende:

Em reunião no Salão Oval da Casa Branca, Agustin Edwards, proprietário do jornal El Mercurio, se reuniu com Nixon e com Kissinger, começando a planejar o golpe. Kissinger afirmou que era preciso “salvar o povo chileno das suas loucuras”. Essa articulação desembocou no golpe, na destruição da ditadura chilena e na instauração do regime mais feroz que o Chile conheceu. (2)

No dia 10 setembro de 2011, enquanto rendia-se tributo às vítimas do World Trade Center e a data desperta um grande movimento de comoção e solidariedade internacionais, no Chile, nesta mesma data, em cerimônia privada que reuniu familiares e amigos, aconteceu o  traslado dos restos mortais do ex-Presidente Salvador Allende para o Mausoleu da família Allende Bussi.

Paralelamente, o  Museo de La Memoria y los Derechos Humanos, preparou para o dia 11 a exibição de 2 mil fotografias dos mortos pela ditadura de Pinochet. Trata-se de “una homenje audiovisual para los hombres y mujeres  muertos por la violencia de Estado entre El 11 de septiembre de 1973 y el 10 de marzo de 1990.”

Pouquíssimos órgãos de comunicação (impressa e/ou virtual) lembraram-se desse fato. Como esquecerão os milhares de mortos no Afeganistão e no Iraque.

________


(1) www.dw-world.de/dw/article/0,2144,319346,00.html Acesso em 10.Set.2011 
(2) www.cartamaior.com.br/templates/blogMostrar.cfm?blog_id=1&alterarHomeAtual=1 Acesso em 10.Set.2011

 


sábado, 4 de setembro de 2021

A crise socialista e a renovação do marxismo

 

                                                                       Umbo (Otto Umbehr) (1902–1980),  Mistério da Rua, 1928.


Por Ernest Mandel*


O marxismo só pode permanecer vivo se não se tornar um dogma petrificado, então somente se ele for aberto e criativo.


Depois do colapso das ditaduras stalinistas e pós-stalinistas na Europa oriental e na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas [URSS], importantes setores da população, nesses países como no restante do mundo, chegaram à conclusão de que o socialismo havia fracassado como modelo de sociedade qualitativamente superior.

A ditadura burocrática foi identificada com o comunismo e o socialismo sob o efeito da campanha paralela de intoxicação dos stalinistas e pós-stalinistas, assim como de ideólogos burgueses e pró ocidente. Como as massas rejeitaram resolutamente tal ditadura, elas também rejeitaram o comunismo, o marxismo e o socialismo, pelo menos até a etapa presente.

É certo que essa identificação é totalmente infundada. Stálin e a nomenklatura soviética não eram “utópicos” comprometidos com a construção de uma sociedade sem classes. Eles eram partidários cínicos da “realpolitik”, agarrados à consolidação de seu poder e de privilégios materiais. Para os defensores do materialismo histórico, esses processos se desenvolveram em função de combates entre forças sociais particulares. Se o stalinismo se proclamava marxista-leninista, negando tanto na teoria quanto na prática partes decisivas das elaborações e dos propósitos de Marx e Lênin, isso tinha uma finalidade precisa.

O stalinismo surgiu como uma contrarrevolução política (o Termidor soviético) em um país que foi abalado [bouleversé] por uma profunda revolução social e em um partido que era completamente dedicado ao socialismo. Se reivindicar de uma continuidade histórica, com suas tradições, tornou mais fácil a consolidação do poder burocrático. Mas a crise de credibilidade do socialismo não é prioritariamente o resultado dessa continuidade reivindicada.

Se setores inteiros da população rejeitaram o “modelo” stalinista e pós-estalinista, é em primeiro lugar porque tal “modelo” se opunha aos seus interesses mais elementares. Ele [o “modelo”] não atendeu às suas expectativas no plano material. Negou seus direitos humanos fundamentais. Cometeu crimes terríveis, provocou a morte de milhões de seres humanos, dentre os quais um milhão de comunistas. Traiu a aspiração humana fundamental por justiça e igualdade. Desde então, nenhuma propaganda burguesa foi necessária para estimular sua hostilidade diante de tal sistema. Sua experiência cotidiana foi suficiente para fazer nascer a sua oposição.

A responsabilidade social-democrata

 Há uma segunda fonte da crise mundial de credibilidade de um projeto socialista. É o fracasso histórico da social-democracia. É verdade que este último precisa ser descrito de modo mais preciso. O movimento operário social-democrata (em relação, mais tarde, com os partidos comunistas de massa que sofreram um processo de social-democratização “de facto”) arrancou concessões importantes da classe capitalista, essencialmente durante os períodos de mobilização e de lutas impetuosas das massas.

Os mais importantes dentre esses ganhos foram a redução do tempo de trabalho por semana de 72 horas para uma média de 38 horas, o sufrágio universal para todos os homens e mulheres e sistemas diferenciados de proteção contra diversos perigos próprios à condição proletária. O conjunto dessas reformas mudou de maneira importante o mundo em comparação com aquele de 1800, 1850 ou 1914. Quanto a isso, só podemos nos orgulhar das realizações das lutas socialistas, combates nos quais os marxistas jogaram um papel chave.

Mas lugar algum a acumulação dessas reformas conduziu a uma mudança qualitativa da sociedade. Em lugar algum elas eliminaram os traços constitutivos da ordem (desordem) social.  Não se trata de uma disputa de ordem semântica. Isso tem implicações extremamente práticas. O fato de que essa reformas não transcenderam a natureza da economia e da sociedade capitalista implica que elas não impediram a emergência cíclica de crises econômicas, a explosão repetida do desemprego e da pobreza em massa, as restrições ou supressões periódicas das liberdades democráticas assim como dos direitos da pessoa humana, sem mencionar outras catástrofes. Resulta disso que as próprias reformas são constantemente ameaçadas, enquanto a classe burguesa dispuser do poder que a permite derrotá-las.

Enfim, resulta que a extensão dessas reformas é pelo menos correlata a um certo nível de desenvolvimento econômico. Portanto, elas estão em larga medida limitadas a um número dado de países. Contudo, é um fato histórico que milhões de assalariados por todo o mundo estiveram profundamente convencidos de que essas conquistas parciais conduziriam em definitivo em direção a uma nova sociedade, justa, em direção ao socialismo.

Hoje, aos seus olhos, é claro que não foi assim. A dimensão negativa do balanço da social-democracia e da neo-social-democracia é reforçado pelo vasto repertório de crimes cometidos pelas direções social-democratas: desde as guerras coloniais até as vigorosas ofensivas de austeridade conduzidas contra as condições de vida dos trabalhadores, para citar os exemplos mais importantes.

Colocar um fim à arrogância dos “experts”

Assim, os dois principais projetos históricos de realização do socialismo fracassaram aos olhos das massas. Na medida em que os socialistas revolucionários atuando à esquerda dos partidos comunistas e da social-democracia ainda são muito fracos para representar uma alternativa política, não existe então nenhum projeto crível para o conjunto dos assalariados(as).

Isso não significa que esses últimos aceitam o capitalismo com todos os seus males ou que não lutarão para defender os seus interesses tais como os concebem. Ao contrário, certos combates de massa que ocorrem hoje são mais amplos do que no passado. Mas são lutas sobre temas únicos, que não se inscrevem em uma orientação visando constituir uma alternativa de conjunto, social e política, ao capitalismo. Então essas mobilizações tendem a ser descontínuas e fragmentadas.

A fim de superar essa crise de credibilidade do projeto socialista, é necessário eliminar da prática e da teoria socialista toda forma de substitucionismo e retornar assim à contribuição essencial de Marx para a teoria socialista: a saber, que a emancipação das massa trabalhadoras só pode ser obra delas próprias.

Se os stalinistas e pós-stalinistas foram responsáveis pelas formas mais extremas de substitucionismo, de longe eles não são os únicos culpados. Os social-democratas, os reformistas de todo tipo, os ecologistas fundamentalistas pertencem, de fato, à mesma corrente. Em nome de todo tipo de prioridades, tais como eficácia econômica, economia “aberta”, proteção do meio ambiente, contenção da “explosão demográfica”, eles querem impor políticas que as massas não estão prontas para aceitar.

Assim, tais políticas só podem ser aplicadas por organizações e instituições que pretendem substituir, elas próprias, a autoatividade e a auto-organização dos assalariados como principais instrumentos do progresso e da emancipação. Este substitucionismo se baseia numa arrogância tecnocrática segundo a qual os “experts” e os ideólogos sabem melhor, para não dizer que são infalíveis.

O substitucionismo é a ideologia da burocracia operária. É isso o que tentei demonstrar no meu livro “Poder e dinheiro” [Power and money] (1992). Essa abordagem é estranha ao marxismo e ao interesse dos assalariados(as). Além do mais, ela é, a longo prazo, fundamentalmente ineficaz. Se existe uma lição para se extrair do colapso do stalinismo e da crise da social-democracia, nós poderíamos exprimir da seguinte forma: não se pode fazer as massas felizes contra a vontade delas; não se pode forçá-las a engolir um “futuro brilhante”; mais cedo ou mais tarde, elas o cuspirão na sua cara.

A reapropriação da prática e da teoria da autoatividade e da auto-organização dos assalariados(as) como elemento motriz da emancipação – sindicatos, partidos e governos são instrumentos indispensáveis, mas devem se subordinar à autoatividade e auto-organização do proletariado [1] – deve ir de mãos dadas com um apoio inabalável ao combate de massa em escala internacional, independentemente de “prioridades de ordem superior” tais como o anti-imperialismo, a proteção “da capacidade competitiva da economia nacional no mercado mundial”, etc.

Do mesmo modo, ela deve de par com uma defesa, sem nenhuma restrição, das liberdades democráticas e dos direitos da pessoa humana. Não é um dos crimes menores dos stalinistas, dos maoístas ou dos social-democratas ter rompido a unidade primária entre socialismo e liberdade. Essa liberdade se expressa simbolicamente no canto tradicional do movimento operário italiano “Bandiera Rossa”, quando, após a chegada de Mussolini ao poder, os trabalhadores e intelectuais comunistas italianos acrescentaram como frase final: “E viva il comunismo e la libertà”.

Hoje, como amanhã, o socialismo recuperará sua credibilidade aos olhos de amplos setores da população se a experiência lhes ensinar que os socialistas são mais radicalmente a favor da liberdade do que os liberais burgueses, que o objetivo socialista que nós visamos garantirá muito mais liberdade do que a sociedade burguesa.

Um programa de pesquisas prioritárias

Milhares de livros, de revistas e um número incalculável de artigos de imprensa proclamam: “Marx está morto” e “o marxismo está morto”. Não é necessário aderir ao pensamento dialético para compreender que essa campanha prova exatamente o oposto do que ela pretende estabelecer. Nós não vemos centenas de médicos se reunirem, dia após dia, no cemitério para provar que um dado caixão contém um corpo. Na verdade, se esse ataque ininterrupto tende a demonstrar algo, é que Marx e o marxismo estão vivos e incomodam.

Mas o marxismo só pode permanecer vivo se não se tornar um dogma petrificado, então somente se ele for aberto e criativo. A crise do stalinismo e do pós-stalinismo, desde a revolução húngara de 1956, já suscitou um primeiro florescimento de um marxismo criativo, rompendo com a escolástica estéril, o neopositivismo e o pragmatismo vulgar.

Hoje, os portões podem novamente se abrir. Os marxistas devem integrar nas suas teorias fundamentais – que são hipóteses de trabalho e não axiomas ou verdades reveladas para a eternidade – os resultados acumulados por pesquisas científicas atuais. Eles devem examinar em que medida tais resultados podem ser integrados no seu conjunto teórico, levando em conta a sua coerência interna.

Sem pretender ser exaustivo, eu gostaria de levantar, de modo provisório, a lista de prioridades para uma “prática teórica”:

(1) Explicar a tendência fundamental em direção à “globalização” dos desenvolvimentos econômicos e sociais, evidentemente em relação com a internacionalização das forças produtivas do capital, e extraindo as conclusões no que se refere à internacionalização crescente da luta de classes.

(2) Integrar no combate pelo socialismo e no nosso modelo de socialismo os aspectos essenciais da crise ecológica e descobrir suas modalidades, permitindo a quantificação dos custos ecológicos e combinando esse cálculo com aqueles dos custos do trabalho.

(3) Aprofundar a nossa compreensão da dialética do trabalho, do tempo livre (lazer) e da educação e formação permanente, integrando esses elementos em uma compreensão mais ampla da hierarquia das necessidades humanas. Nada pode justificar uma visão do mundo e do seu futuro na qual isso não seja levado em consideração, como urgências prioritárias, a exigência de alimentar os famintos, de assegurar um teto aos desabrigados, de tratar os doentes, de eliminar a tortura e de lutar contra as principais formas de discriminação, de desigualdade e de injustiça.

(4) Desenvolver uma teoria das instituições políticas necessárias a uma emancipação radical, incluindo a democracia direta e representativa, utilizando para isso como trampolim os escritos de Marx e Engels sobre a Comuna de Paris, os escritos de Rosa Luxemburgo de 1918, os de Gramsci no “l’Ordine Nuovo”, os de Trótski ao longo dos anos 30 e as últimas contribuições da IV Internacional.

(5) Expandir a nossa compreensão do impacto dialético da revolução das mídias (a cultura da imagem como diferente da cultura impressa) sobre o consumo e a produção culturais. Analisar, sob este ângulo, a crise da contracultura proletária e suas repercussões sobre o declínio relativo da consciência de classe e identificar assim as vias para se ir contra tal tendência.

(6) Aprofundar nossa compreensão das origens da opressão das mulheres, dos meios para superá-la, da dialética da crise da família nuclear, e integrar essa compreensão àquela da crise mais ampla das comunidades humanas.

(7) Explorar melhor a nossa apreensão da dialética social e individual da emancipação e da liberdade.

Essa agenda de prioridades de uma “prática teórica” não pode, por razões epistemológicas, ser separada de um esforço para construir um mundo melhor. No fim das contas, não há nenhum outro mundo a não ser o da prática para testar a validade de qualquer teoria.

Práxis e imperativo moral

Do mesmo modo, essa agenda não pode ser separada de imperativos morais. O marxismo possui duas raízes que são independentes uma da outra, apesar de todas as suas interconexões evidentes. Ele possui uma base científica que deve responder às “leis da ciência” e isso não pode ser subordinado de forma utilitária a qualquer objetivo político. Ele dispõe também de um fundamento moral, claramente formulado pelo jovem Marx e reafirmado no fim de sua vida: o imperativo categórico de se lutar para subverter todas as condições nas quais os seres humanos são explorados, oprimidos, humilhados e alienados.

Esse imperativo categórico permanece tão válido hoje como era no passado. E ao deixá-lo guiar nossas ações e nossa vida, somos os herdeiros de uma nobre tradição de mais de três mil e quinhentos anos de rebelião, de revolta e de revolução. Que nossos inimigos disseminem seus gritos: “Perigosos utópicos!”. A História fala contra eles. No essencial, nós liquidamos o escravagismo, o feudalismo, a inquisição e a matança de hereges nas fogueiras. Nós tomamos de assalto múltiplas bastilhas. Nós superaremos assim a condição do trabalho assalariado.

Mas nós somente venceremos se nossa própria prática política e social estiver em conformidade estrita com os nossos princípios: se nos recusarmos a aprovar – mesmo fechando os olhos – toda política contrária a tais princípios, mesmo que tal política seja aplicada em nome do socialismo e do progresso, por socialistas que se proclamam como tais.

Neste sentido, se conseguirmos convencer setores cada vez maiores de nossa vontade real e honesta, nós afirmaremos uma superioridade moral sobre todas as outras forças sociais e políticas que nos tornará verdadeiramente invencíveis.


*Ernest Mandel (1923-1995) foi economista, escritor e político. Autor, entre outros livros, de O capitalismo tardio (Nova Cultural).

Tradução: João Vicente Alfaya dos Santos e Pedro Barbosa.

Trechos selecionados do capítulo redigido por Mandel para o livro coletivo Marxism in the Postmodern Age (The Guilford Press, 1995). 


Disponível em http://www.ernestmandel.org/new/ecrits/article/la-crise-socialiste-et-le

 

Nota

[1] Utilizamos o conceito de proletariado no sentido marxista clássico: todos aqueles que são constrangidos pelo constrangimento econômico a vender.


 FONTE: https://aterraeredonda.com.br