sábado, 4 de setembro de 2021

A crise socialista e a renovação do marxismo

 

                                                                       Umbo (Otto Umbehr) (1902–1980),  Mistério da Rua, 1928.


Por Ernest Mandel*


O marxismo só pode permanecer vivo se não se tornar um dogma petrificado, então somente se ele for aberto e criativo.


Depois do colapso das ditaduras stalinistas e pós-stalinistas na Europa oriental e na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas [URSS], importantes setores da população, nesses países como no restante do mundo, chegaram à conclusão de que o socialismo havia fracassado como modelo de sociedade qualitativamente superior.

A ditadura burocrática foi identificada com o comunismo e o socialismo sob o efeito da campanha paralela de intoxicação dos stalinistas e pós-stalinistas, assim como de ideólogos burgueses e pró ocidente. Como as massas rejeitaram resolutamente tal ditadura, elas também rejeitaram o comunismo, o marxismo e o socialismo, pelo menos até a etapa presente.

É certo que essa identificação é totalmente infundada. Stálin e a nomenklatura soviética não eram “utópicos” comprometidos com a construção de uma sociedade sem classes. Eles eram partidários cínicos da “realpolitik”, agarrados à consolidação de seu poder e de privilégios materiais. Para os defensores do materialismo histórico, esses processos se desenvolveram em função de combates entre forças sociais particulares. Se o stalinismo se proclamava marxista-leninista, negando tanto na teoria quanto na prática partes decisivas das elaborações e dos propósitos de Marx e Lênin, isso tinha uma finalidade precisa.

O stalinismo surgiu como uma contrarrevolução política (o Termidor soviético) em um país que foi abalado [bouleversé] por uma profunda revolução social e em um partido que era completamente dedicado ao socialismo. Se reivindicar de uma continuidade histórica, com suas tradições, tornou mais fácil a consolidação do poder burocrático. Mas a crise de credibilidade do socialismo não é prioritariamente o resultado dessa continuidade reivindicada.

Se setores inteiros da população rejeitaram o “modelo” stalinista e pós-estalinista, é em primeiro lugar porque tal “modelo” se opunha aos seus interesses mais elementares. Ele [o “modelo”] não atendeu às suas expectativas no plano material. Negou seus direitos humanos fundamentais. Cometeu crimes terríveis, provocou a morte de milhões de seres humanos, dentre os quais um milhão de comunistas. Traiu a aspiração humana fundamental por justiça e igualdade. Desde então, nenhuma propaganda burguesa foi necessária para estimular sua hostilidade diante de tal sistema. Sua experiência cotidiana foi suficiente para fazer nascer a sua oposição.

A responsabilidade social-democrata

 Há uma segunda fonte da crise mundial de credibilidade de um projeto socialista. É o fracasso histórico da social-democracia. É verdade que este último precisa ser descrito de modo mais preciso. O movimento operário social-democrata (em relação, mais tarde, com os partidos comunistas de massa que sofreram um processo de social-democratização “de facto”) arrancou concessões importantes da classe capitalista, essencialmente durante os períodos de mobilização e de lutas impetuosas das massas.

Os mais importantes dentre esses ganhos foram a redução do tempo de trabalho por semana de 72 horas para uma média de 38 horas, o sufrágio universal para todos os homens e mulheres e sistemas diferenciados de proteção contra diversos perigos próprios à condição proletária. O conjunto dessas reformas mudou de maneira importante o mundo em comparação com aquele de 1800, 1850 ou 1914. Quanto a isso, só podemos nos orgulhar das realizações das lutas socialistas, combates nos quais os marxistas jogaram um papel chave.

Mas lugar algum a acumulação dessas reformas conduziu a uma mudança qualitativa da sociedade. Em lugar algum elas eliminaram os traços constitutivos da ordem (desordem) social.  Não se trata de uma disputa de ordem semântica. Isso tem implicações extremamente práticas. O fato de que essa reformas não transcenderam a natureza da economia e da sociedade capitalista implica que elas não impediram a emergência cíclica de crises econômicas, a explosão repetida do desemprego e da pobreza em massa, as restrições ou supressões periódicas das liberdades democráticas assim como dos direitos da pessoa humana, sem mencionar outras catástrofes. Resulta disso que as próprias reformas são constantemente ameaçadas, enquanto a classe burguesa dispuser do poder que a permite derrotá-las.

Enfim, resulta que a extensão dessas reformas é pelo menos correlata a um certo nível de desenvolvimento econômico. Portanto, elas estão em larga medida limitadas a um número dado de países. Contudo, é um fato histórico que milhões de assalariados por todo o mundo estiveram profundamente convencidos de que essas conquistas parciais conduziriam em definitivo em direção a uma nova sociedade, justa, em direção ao socialismo.

Hoje, aos seus olhos, é claro que não foi assim. A dimensão negativa do balanço da social-democracia e da neo-social-democracia é reforçado pelo vasto repertório de crimes cometidos pelas direções social-democratas: desde as guerras coloniais até as vigorosas ofensivas de austeridade conduzidas contra as condições de vida dos trabalhadores, para citar os exemplos mais importantes.

Colocar um fim à arrogância dos “experts”

Assim, os dois principais projetos históricos de realização do socialismo fracassaram aos olhos das massas. Na medida em que os socialistas revolucionários atuando à esquerda dos partidos comunistas e da social-democracia ainda são muito fracos para representar uma alternativa política, não existe então nenhum projeto crível para o conjunto dos assalariados(as).

Isso não significa que esses últimos aceitam o capitalismo com todos os seus males ou que não lutarão para defender os seus interesses tais como os concebem. Ao contrário, certos combates de massa que ocorrem hoje são mais amplos do que no passado. Mas são lutas sobre temas únicos, que não se inscrevem em uma orientação visando constituir uma alternativa de conjunto, social e política, ao capitalismo. Então essas mobilizações tendem a ser descontínuas e fragmentadas.

A fim de superar essa crise de credibilidade do projeto socialista, é necessário eliminar da prática e da teoria socialista toda forma de substitucionismo e retornar assim à contribuição essencial de Marx para a teoria socialista: a saber, que a emancipação das massa trabalhadoras só pode ser obra delas próprias.

Se os stalinistas e pós-stalinistas foram responsáveis pelas formas mais extremas de substitucionismo, de longe eles não são os únicos culpados. Os social-democratas, os reformistas de todo tipo, os ecologistas fundamentalistas pertencem, de fato, à mesma corrente. Em nome de todo tipo de prioridades, tais como eficácia econômica, economia “aberta”, proteção do meio ambiente, contenção da “explosão demográfica”, eles querem impor políticas que as massas não estão prontas para aceitar.

Assim, tais políticas só podem ser aplicadas por organizações e instituições que pretendem substituir, elas próprias, a autoatividade e a auto-organização dos assalariados como principais instrumentos do progresso e da emancipação. Este substitucionismo se baseia numa arrogância tecnocrática segundo a qual os “experts” e os ideólogos sabem melhor, para não dizer que são infalíveis.

O substitucionismo é a ideologia da burocracia operária. É isso o que tentei demonstrar no meu livro “Poder e dinheiro” [Power and money] (1992). Essa abordagem é estranha ao marxismo e ao interesse dos assalariados(as). Além do mais, ela é, a longo prazo, fundamentalmente ineficaz. Se existe uma lição para se extrair do colapso do stalinismo e da crise da social-democracia, nós poderíamos exprimir da seguinte forma: não se pode fazer as massas felizes contra a vontade delas; não se pode forçá-las a engolir um “futuro brilhante”; mais cedo ou mais tarde, elas o cuspirão na sua cara.

A reapropriação da prática e da teoria da autoatividade e da auto-organização dos assalariados(as) como elemento motriz da emancipação – sindicatos, partidos e governos são instrumentos indispensáveis, mas devem se subordinar à autoatividade e auto-organização do proletariado [1] – deve ir de mãos dadas com um apoio inabalável ao combate de massa em escala internacional, independentemente de “prioridades de ordem superior” tais como o anti-imperialismo, a proteção “da capacidade competitiva da economia nacional no mercado mundial”, etc.

Do mesmo modo, ela deve de par com uma defesa, sem nenhuma restrição, das liberdades democráticas e dos direitos da pessoa humana. Não é um dos crimes menores dos stalinistas, dos maoístas ou dos social-democratas ter rompido a unidade primária entre socialismo e liberdade. Essa liberdade se expressa simbolicamente no canto tradicional do movimento operário italiano “Bandiera Rossa”, quando, após a chegada de Mussolini ao poder, os trabalhadores e intelectuais comunistas italianos acrescentaram como frase final: “E viva il comunismo e la libertà”.

Hoje, como amanhã, o socialismo recuperará sua credibilidade aos olhos de amplos setores da população se a experiência lhes ensinar que os socialistas são mais radicalmente a favor da liberdade do que os liberais burgueses, que o objetivo socialista que nós visamos garantirá muito mais liberdade do que a sociedade burguesa.

Um programa de pesquisas prioritárias

Milhares de livros, de revistas e um número incalculável de artigos de imprensa proclamam: “Marx está morto” e “o marxismo está morto”. Não é necessário aderir ao pensamento dialético para compreender que essa campanha prova exatamente o oposto do que ela pretende estabelecer. Nós não vemos centenas de médicos se reunirem, dia após dia, no cemitério para provar que um dado caixão contém um corpo. Na verdade, se esse ataque ininterrupto tende a demonstrar algo, é que Marx e o marxismo estão vivos e incomodam.

Mas o marxismo só pode permanecer vivo se não se tornar um dogma petrificado, então somente se ele for aberto e criativo. A crise do stalinismo e do pós-stalinismo, desde a revolução húngara de 1956, já suscitou um primeiro florescimento de um marxismo criativo, rompendo com a escolástica estéril, o neopositivismo e o pragmatismo vulgar.

Hoje, os portões podem novamente se abrir. Os marxistas devem integrar nas suas teorias fundamentais – que são hipóteses de trabalho e não axiomas ou verdades reveladas para a eternidade – os resultados acumulados por pesquisas científicas atuais. Eles devem examinar em que medida tais resultados podem ser integrados no seu conjunto teórico, levando em conta a sua coerência interna.

Sem pretender ser exaustivo, eu gostaria de levantar, de modo provisório, a lista de prioridades para uma “prática teórica”:

(1) Explicar a tendência fundamental em direção à “globalização” dos desenvolvimentos econômicos e sociais, evidentemente em relação com a internacionalização das forças produtivas do capital, e extraindo as conclusões no que se refere à internacionalização crescente da luta de classes.

(2) Integrar no combate pelo socialismo e no nosso modelo de socialismo os aspectos essenciais da crise ecológica e descobrir suas modalidades, permitindo a quantificação dos custos ecológicos e combinando esse cálculo com aqueles dos custos do trabalho.

(3) Aprofundar a nossa compreensão da dialética do trabalho, do tempo livre (lazer) e da educação e formação permanente, integrando esses elementos em uma compreensão mais ampla da hierarquia das necessidades humanas. Nada pode justificar uma visão do mundo e do seu futuro na qual isso não seja levado em consideração, como urgências prioritárias, a exigência de alimentar os famintos, de assegurar um teto aos desabrigados, de tratar os doentes, de eliminar a tortura e de lutar contra as principais formas de discriminação, de desigualdade e de injustiça.

(4) Desenvolver uma teoria das instituições políticas necessárias a uma emancipação radical, incluindo a democracia direta e representativa, utilizando para isso como trampolim os escritos de Marx e Engels sobre a Comuna de Paris, os escritos de Rosa Luxemburgo de 1918, os de Gramsci no “l’Ordine Nuovo”, os de Trótski ao longo dos anos 30 e as últimas contribuições da IV Internacional.

(5) Expandir a nossa compreensão do impacto dialético da revolução das mídias (a cultura da imagem como diferente da cultura impressa) sobre o consumo e a produção culturais. Analisar, sob este ângulo, a crise da contracultura proletária e suas repercussões sobre o declínio relativo da consciência de classe e identificar assim as vias para se ir contra tal tendência.

(6) Aprofundar nossa compreensão das origens da opressão das mulheres, dos meios para superá-la, da dialética da crise da família nuclear, e integrar essa compreensão àquela da crise mais ampla das comunidades humanas.

(7) Explorar melhor a nossa apreensão da dialética social e individual da emancipação e da liberdade.

Essa agenda de prioridades de uma “prática teórica” não pode, por razões epistemológicas, ser separada de um esforço para construir um mundo melhor. No fim das contas, não há nenhum outro mundo a não ser o da prática para testar a validade de qualquer teoria.

Práxis e imperativo moral

Do mesmo modo, essa agenda não pode ser separada de imperativos morais. O marxismo possui duas raízes que são independentes uma da outra, apesar de todas as suas interconexões evidentes. Ele possui uma base científica que deve responder às “leis da ciência” e isso não pode ser subordinado de forma utilitária a qualquer objetivo político. Ele dispõe também de um fundamento moral, claramente formulado pelo jovem Marx e reafirmado no fim de sua vida: o imperativo categórico de se lutar para subverter todas as condições nas quais os seres humanos são explorados, oprimidos, humilhados e alienados.

Esse imperativo categórico permanece tão válido hoje como era no passado. E ao deixá-lo guiar nossas ações e nossa vida, somos os herdeiros de uma nobre tradição de mais de três mil e quinhentos anos de rebelião, de revolta e de revolução. Que nossos inimigos disseminem seus gritos: “Perigosos utópicos!”. A História fala contra eles. No essencial, nós liquidamos o escravagismo, o feudalismo, a inquisição e a matança de hereges nas fogueiras. Nós tomamos de assalto múltiplas bastilhas. Nós superaremos assim a condição do trabalho assalariado.

Mas nós somente venceremos se nossa própria prática política e social estiver em conformidade estrita com os nossos princípios: se nos recusarmos a aprovar – mesmo fechando os olhos – toda política contrária a tais princípios, mesmo que tal política seja aplicada em nome do socialismo e do progresso, por socialistas que se proclamam como tais.

Neste sentido, se conseguirmos convencer setores cada vez maiores de nossa vontade real e honesta, nós afirmaremos uma superioridade moral sobre todas as outras forças sociais e políticas que nos tornará verdadeiramente invencíveis.


*Ernest Mandel (1923-1995) foi economista, escritor e político. Autor, entre outros livros, de O capitalismo tardio (Nova Cultural).

Tradução: João Vicente Alfaya dos Santos e Pedro Barbosa.

Trechos selecionados do capítulo redigido por Mandel para o livro coletivo Marxism in the Postmodern Age (The Guilford Press, 1995). 


Disponível em http://www.ernestmandel.org/new/ecrits/article/la-crise-socialiste-et-le

 

Nota

[1] Utilizamos o conceito de proletariado no sentido marxista clássico: todos aqueles que são constrangidos pelo constrangimento econômico a vender.


 FONTE: https://aterraeredonda.com.br


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