sábado, 16 de fevereiro de 2013

A democracia em Cuba

Por Elaine Tavares (*)

A ilha de Cuba viveu no último dia 21 de outubro as suas eleições gerais. Por todos os lugares as pessoas escolheram seus delegados municipais, provinciais e nacionais.

O voto não é obrigatório, mas a porcentagem de votantes passa dos 80%. É a democracia socialista se expressando de tal forma que uma pessoa que só conheça a democracia liberal jamais poderá entender. Quem explicou os princípios da vida política cubana foi a professora Mylai Burgos Matamoros, da Universidade Nacional Autônoma do México, que esteve em Florianópolis para a VII Conferência Latino-Americana de Crítica Jurídica, evento integrante do Programa de Pesquisa Derecho y Sociedad, coordenado pelo professor Antônio Carlos Wolkmer e Oscar Correas e da Revista Crítica Jurídica.

Segundo ela, Cuba precisa ser entendida como uma democracia que não é capitalista, portanto, ancorada em outra forma de organizar a vida. Olhar para a ilha com olhos liberais não serve para compreender a realidade daquele país. Mylai conta que Cuba passou por três grandes fases de organização política. A primeira delas foi do triunfo da revolução até 1968 quando todo o sistema começou a ser estruturado. As empresas estrangeiras foram nacionalizadas, realizou-se uma reforma agrária radical e começaram a se formar as Organizações Sociais e de Massa, espaço concreto da democracia cubana. Essas organizações são entidades que congregam setores específicos da população como as mulheres, os estudantes, os agricultores, os artistas, desportistas etc... É a partir dessas organizações que as pessoas participam ativamente da vida política. A adesão a uma federação ou entidade de massa é facultativa, só entra quem quer, mas é comum que todos se filiem por conta da já tradicional atitude de participar das decisões.

Também nos anos 60 nasceram os famosos CDRs, Comitês de Defesa da Revolução, porque Cuba era -e ainda é depois de meio século de bloqueio- um país em guerra com a maior potência do mundo. Assim, era necessário que em cada rua das cidades houvesse um Comitê para observar e vigiar, impedindo agressões e ataques terroristas por parte do império. "É desses comitês que vem a raiz da participação popular em Cuba. Todo mundo queria fazer parte, cuidar da revolução e dos CDRs para as demais organizações passou a ser um salto natural. Em Cuba somos os mais críticos. Criticamos tudo, mas é porque temos formação cultural de qualidade e queremos aprofundar o socialismo".

Mylai lembra que a ilha tem apenas um partido, mas ao contrário da estrutura numa democracia liberal, não é o partido o que governa. Ele tem apenas a função de aplicar o que é definido pelas organizações sociais e de massa nas suas estruturas democráticas. "No mundo liberal há muitos partidos e quem governa é um pequeno grupo. Em Cuba há um único partido que encaminha as políticas, mas quem governa é a população a partir das organizações. É radicalmente diferente".

A segunda fase da organização política de Cuba vai do ano 68 até 1986. Começa com a morte de Che Guevara na Bolívia e o acirramento do bloqueio econômico dos Estados Unidos. A derrota da missão de Che, que era a de fazer a revolução socialista em toda a América Latina, frustra toda uma linha de atuação que Cuba tinha traçado para o continente. Sem o apoio dos países latino-americanos e totalmente asfixiada pelo bloqueio ianque, não houve outra alternativa a não ser virar-se para a então União Soviética. "Foi um tempo de reconfiguração do sistema. Tivemos de nacionalizar tudo mesmo, até o sapateiro, o eletricista, tudo, era um tempo de muita dificuldade. Novas instituições foram criadas, novas leis, novas formas de resistência.

O terceiro período de organização política começa em 1986 com a queda do regime soviético. Sem parceiros na América Latina, bloqueada pelos EUA e sem a União Soviética a pequena ilha do Caribe se viu numa sinuca de bico. Estava sozinha e tinha de resolver seus problemas consigo mesma. Assim, em meio a uma crise gigantesca, Cuba decidiu abrir-se para o turismo, com todas as implicações boas e ruins que isso poderia trazer. Hoje, esse ainda é um tema bastante discutido na ilha. "Eu mesma faço parte de um grupo que tem criticado bastante os novos rumos de Cuba. Nós queremos mudanças para aprofundar o socialismo".

Questionada sobre se existe mesmo democracia em Cuba, Mylai reafirmou que a democracia socialista não é a mesma a que estamos acostumados no mundo liberal. "Para nós, a democracia não é unicamente representativa, ela é direta. É uma articulação dialética entre partido, organizações e representantes. Nossos delegados municipais (vereadores) provinciais (deputados estaduais) e nacionais são eleitos por votação direta e secreta. Tudo começa no bairro, é ali que os nomes que vão disputar a eleição aparecem. As organizações se reúnem, discutem e indicam seus nomes. Esses nomes se apresentam para a eleição. Não há propaganda aos moldes liberais. As pessoas se conhecem e cada um sabe se aquele candidato é sério, é honesto, tem trabalho comunitário".

Uma vez escolhidos os delegados nacionais (que seriam equivalentes aos nossos deputados federais), que formarão a Assembleia Nacional do Poder Popular, são eles que definem, no grupo, um conjunto de 31 membros que formarão o Conselho de Estado, órgão que terá o papel que tem, no nosso modelo, o de poder executivo. Ou seja, as políticas discutidas e aprovadas desde a base, são executadas por esse Conselho. Ao final, esse grupo de 31 pessoas elege o presidente do Conselho que é o representante legal do país. "Isso significa que nesses anos todos que Fidel foi presidente do Conselho, ele teve de passar por todo o processo de eleição que todos passam. O nome dele é indicado pela organização de bairro a qual ele faz parte, vai para a cédula e as pessoas votam nele. Todos esses anos ele tinha sido eleito, democraticamente. Por isso não faz o menor sentido falar em ditadura".

Outra diferença do regime cubano para o que existe no mundo liberal é o nível de compromisso que os delegados eleitos têm com as bases que os elegeram. A cada seis meses esses delegados, municipais, provinciais e nacionais, precisam prestar contas de seus atos às suas organizações de base. O controle é feito de forma direta, nas assembleias populares. E se, por algum motivo, as promessas e os compromissos assumidos não forem cumpridos, esses delegados têm os seus mandatos revogados pelos eleitores. Em Cuba, nenhum dos delegados recebe dinheiro para servir ao povo. Cada delegado segue com sua vida e seu trabalho, servir como tal é só mais uma atribuição. Poucos delegados são os que têm como função específica apenas tarefas de Estado.

Cabe lembrar que em Cuba não há divisão de poderes como no mundo liberal que se divide em Legislativo, Executivo e Judiciário, cada um separado e gerindo a si mesmo. Na democracia socialista o princípio básico é a unidade de poder. E o que isso significa? Que o poder maior é o popular. Tudo está concentrado na Assembleia Nacional do Poder Popular. Tanto os parlamentares, como os executivos e os juízes são obrigados a prestar contas. No sistema jurídico também há um elemento bastante diferente do sistema capitalista burguês. Todo tribunal, em qualquer instância é formado por um juiz togado, de carreira, e dois leigos, porque os cubanos entendem que a lei não é apenas uma letra morta que deve ser cumprida a ferro e fogo. Há que se levar em conta outras variáveis que só um leigo pode perceber. "Isso dá mais segurança para a população sobre o sentido de justiça".

No que diz respeito ao sistema econômico e social, a democracia socialista também é bastante diferente. Nela a economia é planificada, mas isso não significa que não exista a propriedade privada. O que não há é o livre mercado. "como quase toda a produção cubana vai para o exterior, o governo precisa planejar a distribuição dos recursos para que todos tenham acesso à comida e aos bens básicos. Temos saúde e educação totalmente gratuitas, os medicamentos são muito baratos e Cuba é ponta de lança nessa área. Assim, os recursos são centralizados para poderem ser distribuídos com justiça", diz Mylai.

Desde 1992 Cuba abriu espaço para atividades privadas. O que o estado controla são os meios fundamentais de produção. Mas, há muitas cooperativas e também existem ainda muitas terras privadas. Também é comum em Cuba o direito ao usufruto gratuito de bens como terra e moradia. Mais de 90% vivem em casas próprias. "A prioridade é sobre a posse da propriedade. Se uma família vive numa casa que é de outra pessoa, e essa outra pessoa tem mais de uma casa, a família adquire o direito de viver ali para sempre. Não há incentivo para o acúmulo de bens".

Segundo Mylai, a constituição cubana, discutida e aprovada pela população, mantém o limite sobre três direitos: o de liberdade de expressão, de associação e de manifestação. O limite de liberdade de expressão vale apenas para a mídia oficial. Os meios não podem divulgar conteúdo que estejam contra o socialismo. Mas, os meios alternativos podem, existem e são muitos. Alguns deles até financiados por organizações estadunidenses. "Os cubanos criaram esses limites porque são um povo que vive sob o ataque sistemático dos Estados Unidos. É uma proteção. Todo sistema se protege e Cuba não é diferente. Se formos avaliar os sistemas de proteção do capitalismo também vamos encontrar coisas que alguns não vão gostar".

Para a professora cubana a caminhada de Cuba é uma experiência única, cheia de avanços, retrocessos e contradições. Mas, é um processo que vem sendo construído pelo povo cubano e só a ele cabe o direito de mudar ou seguir aprofundando o socialismo. "É certo que temos hoje uma geração que não viveu a revolução, que está bastante conectada com as promessas do capitalismo, afinal, a ilha nunca esteve isolada. Sempre fomos um país aberto a toda a gente. Então, é natural que aconteçam mudanças, novas ideias, novas formas de organizar. Há um desejo muito grande de conhecer o mundo, viajar, vivenciar as experiências que a qualidade cultural criada em Cuba exige. E, ao mesmo tempo, há uma impossibilidade por conta das dificuldades financeiras. Então é sempre uma tensão permanente". Mylai está inserida num grupo que discute e reivindica o aprofundamento do socialismo. Vê com reservas certas aberturas e propostas hoje trabalhadas pelo governo. "Faço parte da terceira geração, que tem avós e até pais que fizeram a revolução. Morando no México, vivencio o capitalismo na pele e tenho convicção de que o sistema socialista é melhor. Há que aperfeiçoá-lo".

(*) Elaine Tavares é jornalista do Instituto de Estudos Latino-americanos

FONTE: Diário Liberdade

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