quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

Marx e o Colapso da União Soviética



Por Jorge  Miglioli*


Nas últimas décadas do século XIX e nas duas primeiras do presente século, populistas e marxistas russos muito discutiram a idéia de Marx de que o socialismo somente seria historicamente possível depois que o capitalismo tivesse desenvolvido todas suas forças produtivas. 

Em sua época, Marx achava que pouquíssimos países se encontravam suficientemente avançados para uma revolução socialista, e entre eles certamente não estava a Rússia czarista. Esta idéia se apoiava em sua concepção  de sistema sócio-econômico (ou formação social, para usar um termo mais em moda), e, por exemplo, no Prefácio à Contribuição para a Crítica da Economia Política ele escreveu: 

"Em certo estágio de desenvolvimento as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes, ou, o que é sua expressão jurídica, com as relações de propriedade no seio das quais tinham-se movido até então" e "uma organização social nunca desaparece antes que se desenvolvam todas as forças produtivas que ela é capaz de conter; nunca é substituída por relações de produção novas e superiores antes que as condições materiais de existência dessas relações se produzam no próprio seio da velha sociedade". 

Portanto, no que se refere a capitalismo e socialismo, este último só é possível quando o primeiro já se encontra em sua plena maturidade, já desenvolveu todas as suas potencialidades.


Desta idéia decorrem algumas indagações relevantes para o movimento socialista. Por exemplo: o capitalismo teria um fim automático, resultante de tendências internas degenerativas, ou precisaria ser derrubado por forças sociais revolucionárias? (Este constituiu o tema do grande debate sobre o colapso do capitalismo realizado principalmente nas primeiras décadas deste século). 

Aceitando a posição não-determinista de que o capitalismo não desmorona por si mesmo, resta a questão de como saber o momento em que esse sistema já desenvolveu todas as suas potencialidades e, portanto, está maduro para ser derrubado, seja de forma progressiva (como pretendiam os social-democratas) ou seja de forma abrupta (como queriam os comunistas). 

Uma terceira questão, extremamente interessante, mas raramente levantada, refere-se ao sistema socioeconômico que substituiria o capitalismo: ele teria de ser necessariamente o socialismo (como está suposto no pensamento marxista) ou poderia ser um outro sistema ainda não visualizado ou percebido? Neste ponto é preciso não descartar a hipótese de que esse "terceiro" sistema poderia até mesmo ser o produto involuntário de forças sociais favoráveis ao socialismo, de acordo com a idéia de Marx de que embora sejam os próprios homens que façam a história, o resultado não é necessariamente o desejado por eles.

Tudo isso tem a ver com nascimento, crescimento e morte da União Soviética (e de outros países denominados "socialistas"). A URSS serve como exemplo da tentativa de substituir o capitalismo por um "terceiro" sistema, apesar de o objetivo inicial ter sido a criação do socialismo. Seria uma agressão à história e à memória dos comunistas russos que fizeram a revolução negar-Ihes a intenção de criar um sistema socialista. 

Contudo, o resultado final, que começou a se delinear a partir do período da NEP - Nova Política Econômica (na metade da década de 1920), foi a instauração de um "terceiro" sistema, nem capitalista nem socialista e que tendeu a se afastar cada vez mais deste último. Sem dúvida, alguns elementos da teoria marxista, ou do que se interpretava como tal, e quase que exclusivamente na área econômica, foram incorporados ou experimentados, mas o sistema vigente na União Soviética tinha muito pouco em comum com os princípios do socialismo. 

O discurso oficial, mascarado de socialista-marxista e que convenceu tanta gente, foi usado para legitimar o sistema dentro e fora da URSS, para captar a simpatia e o apoio dos trabalhadores e dos movimentos socialistas (comunistas) de todo o mundo, em defesa dos interesses do Estado soviético colocados acima dos interesses desses movimentos.

Assim, o que desmoronou no território da União Soviética (e de outros países do Leste Europeu) não foi o ou um sistema socioeconômico socialista, mas sim a tentativa de consolidação de um "terceiro" sistema, que pode ser chamado de soviético. Mas por que desmoronou? Os dois elementos básicos para explicar o colapso estão contidos na idéia de Marx mencionada anteriormente: 1. o sistema soviético tentou substituir o capitalismo antes que este desenvolvesse na Rússia as suas forças produtivas, e 2. o sistema soviético estava em contradição com o desenvolvimento dessas forças.

Todo o esforço da URSS se concentrou em promover o desenvolvimento econômico baseado numa industrialização forçada e voltado principalmente para as necessidades militares, às custas do consumo popular, de um enorme esforço de trabalho, repressão política, migrações compulsórias de grandes massas populacionais etc. 

O desenvolvimento atingido pela URSS poderia ter sido conseguido, embora de maneira mais lenta, porém com menos sacrifício da população, dentro do capitalismo, principalmente se este contasse com uma organização eficiente e o apoio do mundo ocidental (como o Plano Marshall após a Segunda Guerra Mundial). Para o sistema soviético, a tentativa de substituir o capitalismo antes que este tivesse alcançado um certo nível de desenvolvimento (representado por um melhor nível de renda e de consumo e por um avanço dos direitos políticos e individuais, como os conquistados nos países capitalistas centrais) constituiu um tremendo desgaste junto a sua população - a qual, na primeira oportunidade, manifestou seu repúdio ao sistema.

Para atingir seu objetivo fundamental- um desenvolvimento econômico em nada diferente do capitalista -, o sistema soviético se apoiou numa estrutura cujos pilares principais eram a propriedade estatal dos meios de produção (com algumas concessões para as cooperativas), a forma extremamente centralizada de planejamento e gestão da economia, o trabalho assalariado e o modelo fordista de exploração do trabalho. 

Até a década de 1950, baseando-se no uso extensivo de recursos naturais e de mão-de-obra, e mesmo com baixa produtividade, a URSS conseguiu atingir altas taxas de crescimento econômico, quando comparadas com as do mundo capitalista central, que passava por um longo período de estagnação. Quando, a partir daí, o capitalismo reiniciou sua expansão econômica, acompanhada de importantes avanços sociais e políticos, a União Soviética não conseguiu acompanhá-la. Seu sistema mostrou-se incompatível com o desenvolvimento das forças produtivas e com o progresso social e político.

Na década de 1960 o sistema deu evidentes sinais de crise de esgotamento; as diversas propostas de reforma (grande parte das quais postulava maior aproximação com o capitalismo) não deram certo ou não foram aplicadas; a crise se aprofundou e no final da década de 1980 veio o inevitável colapso.


* Professor da Universidade Estadual Paulista (Araraquara)


Sem comentários:

Enviar um comentário