Por que motivo continua a chamar-se esquerda àquela que hoje existe com este nome?
Por João Bernardo
1.
As grandes derrotas que temos sofrido não se deveram principalmente aos ataques vindos de fora, aos inimigos explícitos, mas sobretudo ao inimigo insidioso, gerado pelo desenvolvimento das contradições internas da esquerda. Por isso a crítica da esquerda pela esquerda é pelo menos tão urgente como a crítica da direita pela esquerda.
Reina na esquerda um conformismo que garante o conforto mental, enquanto a grande preocupação deveria ser o estudo das causas das derrotas.
2.
O capitalismo goza hoje de uma indisputada hegemonia.
Por todo o mundo, a esquerda governamental perdeu a identidade e nada de significativo a diferencia da direita. Abandonando quaisquer transformações económicas substanciais e restringindo-se nesse campo aos paliativos, a esquerda governamental concentrou-se nas questões de costumes, mas mesmo aí deixa a desejar. Numa época recente ela ainda se singularizava por adoptar uma certa latitude moral, enquanto a direita era moralmente restritiva. Agora já nem isto sucede. Ao confundir-se com o politicamente correcto, a esquerda começou a pautar os comportamentos por normas muito mais estritas do que aquelas que o conservadorismo impõe. Até a defesa do direito ao aborto esqueceu a sua justificação originária, decorrente da má situação económica das mães que pretendiam recorrer a essa prática, e, pior ainda, em vez de assinalar uma progressão das fronteiras da imoralidade, invoca os argumentos da nova moral do exclusivismo feminino. Especialmente perversa, tanto nos pressupostos como nos resultados, é a institucionalização do casamento entre homossexuais, já que aplica o padrão tradicional dos casais heterossexuais e reprodutores àqueles de quem se poderia esperar que rompessem com esse formato moral.
A mesma perda de identidade atingiu a esquerda exterior às instituições estatais, que passou a repetir e desenvolver temas gerados na transição do século XVIII para o século XIX pela extrema-direita anticapitalista, conservadora ou radical. Nesta deslocação de sentidos e de referências, a esquerda exterior às instituições estatais, que em várias épocas constituiu uma efectiva ameaça, não passa agora de uma irrelevância. Exceptuando em alguns — poucos — países da Europa ocidental e da América Latina, esta esquerda tem sido ignorada nas principais lutas sociais dos últimos anos.
Por que motivo, aliás, continua a chamar-se esquerda àquela que hoje existe com este nome?
3.
Está em curso uma profunda transformação orgânica da classe trabalhadora, resultante da convergência de seis processos.
a. A mundialização da classe trabalhadora praticamente extinguiu os sistemas pré-capitalistas e se antes tínhamos formações económico-sociais constituídas por vários sistemas sob a hegemonia do modo de produção capitalista, temos hoje um só modo de produção capitalista com variantes internas. Ora, por um lado este processo foi correctamente entendido como uma globalização, mas por outro lado deu origem à falsa noção de que o capitalismo estaria a dissolver-se numa multiplicidade de formas.
b. A redução de todos os tipos de exploração ao sistema de exploração capitalista ocorreu muito mais rapidamente no plano económico do que no plano cultural, em que persistem tradições herdadas de sistemas pré-capitalistas entretanto assimilados pelo capitalismo. Assim, uma parte considerável dos trabalhadores pensa em quadros ideológicos que já não correspondem à sua base socioeconómica. Trata-se de uma falsa consciência resultante de um desfasamento temporal.
c. O capital está transnacionalizado, mas o mesmo não sucede com o mercado de trabalho, sujeito a barreiras nacionais ou regionais e onde se erguem obstáculos à migração. Ao contrário do que fora previsto pelos socialistas do século XIX, não foi o proletariado mas os capitalistas quem se internacionalizou e, perante o grande capital unificado mundialmente, os trabalhadores apresentam-se fragmentados. A esta situação de inferioridade corresponde uma falsa consciência, estando os trabalhadores divididos entre uma aspiração de globalização e as pressões do nacionalismo. O nacionalismo hoje difundido na esquerda é a expressão dessa falsa consciência. E este nacionalismo tornar-se-á tanto mais estridente quanto mais se confinar ao plano ideológico e cultural, tentando compensar assim a ausência de um substrato económico.
d. As profissões liberais extinguiram-se devido à proletarização dos seus processos de trabalho, que passaram a obedecer à padronização e a uma avaliação estritamente quantitativa. Por este motivo, a maior parte dos antigos profissionais liberais converteu-se em trabalhadores proletarizados e os restantes, uma pequena minoria, converteram-se em gestores. Porém, a maioria dos antigos profissionais liberais convertidos em trabalhadores, em vez de assumir a consciência deste processo, pelo contrário, reage contra ele mediante uma falsa consciência que implica um comportamento elitista relativamente aos trabalhadores assumidos como tais.
e. O sistema de relações de trabalho geralmente denominado pós-fordismo ou toyotismo recorre à terceirização extensiva, de modo que uma parte considerável da força de trabalho é apresentada no plano jurídico como profissionais independentes quando na realidade socioeconómica se trata de um assalariamento precário. Gerou-se assim uma cisão entre a consciência social dos trabalhadores precários e a dos trabalhadores integrados num assalariamento formal e de longo prazo.
f. A produção de bens imateriais desenvolve-se cada vez mais. Ora, apesar de o capitalismo ter sempre incluído serviços e de as relações de exploração se definirem em termos de tempo de trabalho e não de fabrico de objectos palpáveis, divulgou-se a noção de que a diminuição da percentagem dos trabalhadores encarregues de fabricos materiais corresponderia a um declínio da própria classe trabalhadora, o que implica que os produtores de bens imateriais sejam concebidos como exteriores à classe trabalhadora.
A convergência destes processos leva uma grande parte dos trabalhadores, ao mesmo tempo que perde a noção antiquada da classe, a não adquirir uma noção modernizada e pertinente. Enquanto a classe trabalhadora atravessa uma profunda transformação orgânica, que está longe de chegar ao seu termo, as ideologias hegemónicas na esquerda actual reflectem esta transformação em modalidades de falsa consciência. Generalizaram-se noções vagas e especulativas, a futilidade, a cisão entre o cultural e o fundamento socioeconómico e o distanciamento relativamente à economia, que é deixada ao bel-prazer dos tecnocratas. Este misto de ambiguidade e de falsa consciência reflecte-se nos intelectuais profissionais da esquerda mediante a ideia difusa de que o capitalismo actual dispensaria a classe trabalhadora. Houve épocas em que alguns intelectuais contribuíram decisivamente para a formação e a generalização de uma consciência de classe trabalhadora, mas sucede hoje o contrário e a nova consciência de classe, quando ressurgir, virá da multiplicidade de elaborações silenciosas, resultantes de uma acumulação de pequenas e grandes lutas e alheias ao discurso intelectual.
4.
Uma teoria revolucionária não é apenas uma teoria que revoluciona o panorama intelectual. No que diz respeito à sociedade, é também uma teoria da revolução. Não existe actualmente teoria social revolucionária, em nenhum destes dois sentidos.
a. O marxismo pereceu devido a duas implosões sucessivas: uma resultou da burocratização da revolução russa e do estabelecimento do regime soviético como capitalismo de Estado e a outra deveu-se à extinção dos regimes de tipo soviético e à sua fragmentação geopolítica.
b. O anarquismo pereceu em virtude de um duplo processo, repetido ao longo do tempo: a dissolução que o atinge quando se confunde com uma liberdade indeterminada ou com um naturismo primitivista e o congelamento que o imobiliza num museu de relíquias veneradas e indiscutidas.
Aquilo que hoje sobra de ambas as correntes restringe-se a alguns meios universitários, onde se limita a constituir um objecto de estudo e a alimentar os currículos. Nem contribui para revolucionar o meio intelectual nem para inspirar uma teoria da revolução.
5.
Não valeria a pena perder tempo aqui com a velha esquerda composta pelos saudosistas do capitalismo de Estado, viúva do regime soviético aguardando que a deitem ao lado do defunto, não fosse o facto de o capitalismo de Estado ter continuado a ser um atractivo, mas agora em sistemas mistos que não excluem o recurso a outras modalidades de inter-relacionamento das empresas.
Desde a sua origem, antes ainda da génese do marxismo, que na esquerda existe um acentuado pendor para o estatismo. Não se trata para essa esquerda de alterar as relações sociais de trabalho, mas de concentrar no Estado os principais mecanismos de decisão económica. Esta é a esquerda que corresponde exclusivamente aos interesses da classe dos gestores, cujo acesso ao capital passa pelo exercício de funções administrativas e não pela detenção de propriedades.
Os gestores podem ascender tanto no aparelho tecnoburocrático das grandes empresas como no aparelho tecnoburocrático do Estado. Todavia, as grandes empresas são muito exigentes nos seus critérios de selecção, que passam pela avaliação dos currículos e por entrevistas, intermediadas nas esferas superiores por firmas especializadas em recrutamento. É certo que há uma circulação entre os quadros administrativos das grandes empresas e a administração estatal, mas apenas enquanto assessores ou ministros técnicos, porque o acesso aos postos elegíveis obtém-se graças a clientelas partidárias ou simples compadrios. Ora, como não se trata aqui de convicções mas de oportunidades, pode ser conveniente usar com fins eleitorais um rótulo de esquerda, devido ao seu apelo populista. Esta diferença nos processos de escolha explica que os gestores candidatos eleitorais em listas de esquerda sejam muito menos competentes do que os seleccionados por recrutamento, o que leva a militância partidária na esquerda estatista a atrair sobretudo a tecnoburocracia de segunda e terceira ordens.
A armadura jurídica do capitalismo pode assim ser discutida pela esquerda no aparelho de Estado e eventualmente remodelada, enquanto nas empresas as relações capitalistas de trabalho se mantêm ou são mesmo reforçadas. Já na União Soviética o apreço pelo taylorismo fora levado a um grau extremo, a tal ponto que foi aí, durante os planos quinquenais, e não nos Estados Unidos, que se realizaram as maiores experiências fordistas. A situação não mudou e para esta porção da esquerda socialismo continua a significar ampliação do poder de decisão económica do Estado, ficando completamente posto de lado o problema das relações sociais de trabalho. É um socialismo de gestores, não de trabalhadores.
6.
Existe uma subespécie de eternos candidatos a gestores que têm como programa a ocupação do poder de Estado, mas com ilusões tais que nunca podem ser satisfeitas. Distinguem-se dos outros não pelos objectivos últimos, que em ambos os casos é a estatização da economia, mas pela ausência de noções práticas quanto ao caminho a percorrer. E como a sua vocação para o fracasso os leva a imaginarem-se revolucionários, consideram que é o sucesso eleitoral que classifica os outros como reformistas. Na verdade, trata-se de uma esquerda governamental in partibus, que só parece exterior às instituições estatais porque não consegue inserir-se nelas.
Nem conseguirá porque julga que o capitalismo perdeu as potencialidades de crescimento e o dinamismo interno. Esta esquerda é incapaz de se dar conta do aprofundamento do sistema de exploração e das novas formas de concentração económica que garantem ao capitalismo o aumento da produtividade e dos lucros e uma grande capacidade de absorção dos conflitos sociais. Embora invoque sempre referências marxistas, a sua compreensão nunca foi além da mais-valia absoluta. Os mecanismos da mais-valia relativa e da renovação das classes dominantes mantêm-se para ela envoltos em mistério.
O facto de arrastar uma história composta toda de fracassos não desanima esta esquerda, que se ocupa exclusivamente em dar lições aos governantes e aos patrões sobre a maneira de gerir o Estado e a economia e em profetizar o fim iminente do capitalismo. É estranho que não se dê conta de que traça assim uma distância crescente entre a sobranceria apocalíptica com que se refere ao capitalismo e a desconsolada mediocridade a que se confina. Qualquer teoria da revolução ficaria sem sentido se a crise do capitalismo não correspondesse à ascensão dos revolucionários e se a crise em que os revolucionários se encontram não indicasse a hegemonia do capitalismo.
Tudo isto seria trágico se fosse grandioso, mas como ocorre em esferas diminutas é só ridículo.
FONTE: Passa Palavra
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