sábado, 27 de janeiro de 2018

Um pouco da história da esquerda



 Por Hamilton Cardoso




Ser comunista e organizar-se enquanto comunistas é proibido, no Brasil. O Partido Comunista Brasileiro e todas as demais organizações políticas congêneres são proibidas. Mesmo assim o PCB, que antigamente chamava-se Partido Comunista do Brasil, é, entre os atuais partidos políticos brasileiros, o mais antigo: tem 62 anos. Grandes partidos políticos nacionais, como o PMDB, devem parte da sua existência a ele. Sem falar que a história dos partidos da esquerda brasileira, que se reivindica marxista, começa pelo PCB. Antes, existiam os anarquistas; hoje, o espectro é bem mais amplo. Mas limitemo-nos às organizações mais ortodoxas do marxismo.

Fundado por um grupo de operários ex-anarquistas, foi dele que se desgarraram os primeiros grupos trotskistas (em 1929 e 1938), o atual PC do B (1962) e boa parte das organizações guerrilheiras que atuaram no Brasil, após o golpe militar de 64, entre 1966 e 1974. Ainda hoje, quando velhos conceitos como ditadura do proletariado, centralismo democrático e outros, considerados essenciais para o comunismo ortodoxo, são colocados em xeque, o PCB não só continua no centro das atenções como é o palco dos principais debates. Afinal, é dele também que surgiram as principais lideranças da esquerda e dos grupos brasileiros ditos marxistas.

Prestes, Armênio Guedes, Giocondo Dias, Hermínio Saccheta, João Amazonas, Marighela, Cláudio Campos, Mário Pedrosa, todos, sem exceção, foram seus militantes ou simpatizantes. Apesar de proibido e criticado, o PCB é parte essencial da história da República e mesmo da cultura brasileira. É, até mesmo, o pai da nova esquerda, que o recusa, mas nasceu dele.


Filhos do PC

Os dois principais grupos que inicialmente "racharam" com o PCB eram liderados por trotskistas. O primeiro foi em 1929. Deu origem à Liga Comunista Revolucionária — LCR, liderada por Mário Pedrosa e desarticulada em 37 pelo Estado Novo. Surgiu ao mesmo tempo que seu principal mentor intelectual, Leon Trotsky, crítico feroz de Joseph Stalin — a quem acusou de ser um ditador e responsável pela "burocratização" do regime soviético —, era expulso da URSS, para depois criar a IV Internacional. Reprimida pelo Estado Novo, a LCR acabou; seus líderes foram presos e Pedrosa exilou-se.

Em 1938, porém, apareceu Hermínio Saccheta, também trotskista. Criou o PSR — Partido Socialista Revolucionário, que desapareceu quando foi quebrada a unidade da IV Internacional, dividida em quatro tendências, em 1952, após a derrota da revolução boliviana. A terceira dissidência importante do PCB ficou com seu nome original. É o PC do B, Partido Comunista do Brasil, criado em 1962, com o relançamento do jornal A Classe Operária.

Este grupo começou nascer em 1943, durante a Conferência da Mantiqueira, com o núcleo de Pedro Pomar e Diógenes Arruda. O grupo ganhou influência na direção do partido, até que o PC russo fez a autocrítica do stalinismo, expurgado da galeria de heróis soviéticos em 1956. A partir daí, o grupo começou a perder prestígio. A dissidência, porém, começou a ganhar forma com o acirramento das divergências entre os PCs soviético e chinês, em 1959: os russos defendiam a "via pacífica" ao socialismo e os chineses, a guerra popular.

No Brasil, o "racha" aconteceu durante a luta pela legalização do partido que, até então, se chamava PC do B e, para ser legalizado, passou a se chamar PCB. O núcleo organizado em torno de Pomar e Arruda manteve a sigla PC do B, preservou a memória de Stalin e assimilou os conceitos de "guerra popular" — cerco da cidade pelo campo — desenvolvidos por Mao Tsé-Tung na China. Tornou-se "maoísta".


Nova esquerda

Em 1959, e nos anos seguintes, a experiência de Cuba e a sua revolução foram determinantes para definir novos rumos à história da esquerda brasileira e sua árvore genealógica. Castro no poder estimulou uma verdadeira onda revolucionária que invadiu a América Latina. O pensamento de Regis Debray e o engajamento de Che Guevara na guerrilha boliviana foram uma espécie de senha para o desenvolvimento da guerrilha urbana. Duas novas organizações, capazes de ampliar as tonalidades do arco-íris vermelho brasileiro, apareceram, desde então. A primeira foi a POLOP — Política Operária. A segunda, a AP — Ação Popular.

A AP foi uma organização da esquerda cristã. Começou com a crítica feita pela Juventude Universitária Católica (JUC) à alienação religiosa. Desembocou na adesão dos seus principais quadros ao marxismo. Daí para a frente sobrevieram divisões: parcela considerável de seus militantes aderiu ao maoísmo.

Um grupo menor, sob influência cubana, criou o PRT — Partido Revolucionário dos Trabalhadores. A AP passou a chamar-se APML — Ação Popular Marxista Leninista. Parte dos seus militantes, no entanto, foram para o PC do B. A APML sobreviveu até 1980, mas o PRT foi dizimado pela repressão. Estas experiências armadas são, certamente, um importante referencial crítico para a chamada Igreja progressista.

O destino reservado à Organização Revolucionária Marxista Política Operária — POLOP não foi diferente. Sua principal área de influência, porém, foi o meio intelectual. Nasceu de uma fusão de grupos antistalinistas, neotrotskistas e outras correntes críticas do marxismo ortodoxo. Como a AP, tinha uma trajetória completamente diferente do PCB. Suas concepções e táticas políticas tinham muito a ver com a nova mentalidade surgida em Cuba, dos debates travados entre a direção do Partido Comunista Cubano (PSP) e Fidel Castro. Vulgarizou, a exemplo de Cuba, a idéia de que a revolução socialista nos países de capitalismo dependente pode ocorrer sem que sejam cumpridas "etapas" prévias, supostamente definidas por leis históricas. Sua influência, porém, começou a acabar com as primeiras dissidências que desembocariam na criação da VPR — Vanguarda Popular Revolucionária, que daria origem à Vanguarda Armada Revolucionária Palmares — VAR-Palmares, que também absorveu ex-militantes cassados, como Carlos Lamarca. Foi destruída pela repressão do regime militar.

Como herança da POLOP e dos vários grupos que dela se originaram restaram apenas duas novas organizações: o Movimento de Emancipação do Proletariado — MEP, que está praticamente desaparecendo, através da sua fusão com outra organização mais recente, o PRC — Partido Revolucionário Comunista; e a Democracia Socialista, que é o resultado da união de ex-militantes da POLOP, do grupo Centelha (de Minas), o Partido Operário Comunista (POC, uma dissidência da POLOP) e "rachas" de grupos trotskistas. A DS está alinhada à IV Internacional.


O PC do B

Estas três organizações, o PC, a AP e a POLOP, foram os principais pontos de partida para as atuais organizações de esquerda contemporâneas. O PC do B, dissidente, foi um grupo pequeno inicialmente. Depois cresceu, com a adesão dos dissidentes da AP. Apesar da derrota na guerrilha do Araguaia, é uma das maiores organizações de esquerda atuais. Como o PCB, tem vários parlamentares no PMDB. Deixou de ser maoísta, com a "modernização" da China e a derrota do "Grupo dos quatro", responsável pela Revolução Cultural Chinesa, e passou a oscilar em torno do Partido do Trabalho, da Albânia, liderado por Enver Hodja.



Outras organizações

Outras organizações originadas do PCB foram para a guerrilha após 68. Duas dissidências estudantis da Guanabara (66 a 69) deram origem ao atual MR-8 — Movimento Revolucionário 8 de Outubro. O primeiro grupo foi dizimado; o segundo continua, hoje. Publicou o jornal Hora do Povo. Carlos Marighela, após participar da OLAS — Organização Latino-Americana de Solidariedade, em 66 fundou a ALN — Aliança Libertadora Nacional, ao mesmo tempo que Mário Alves e Apolônio de Carvalho, também antigos militantes do PCB, fundavam o PCBR, Partido Comunista Brasileiro Revolucionário, que sobrevive ainda, no Nordeste. Também apareceu a Dissidência Paulista, que depois uniu-se à ALN, enquanto a Dissidência Leninista, gaúcha, juntou-se à POLOP, de onde surgiu também o POC — Partido Operário Comunista.

Como críticos da sua política nasceram pelo menos três dissidências do PC do B. O PCR — Partido Comunista Revolucionário, que depois engrossaria o MR-8; a Ala Vermelha, que, apesar de dissolver-se dentro do PT, em São Paulo, continua organizada no Estado do Rio de Janeiro, e o PRC — Partido Revolucionário Comunista, recente, e que atualmente esforça-se por se ampliar, absorvendo o MEP. Seus militantes também são membros do PT.

Os trotskistas sobreviveram, após a crise da IV Internacional em 52, graças a um grupo pequeno e polêmico, hoje inexpressivo, o Partido Operário Revolucionário Trotskista — PORT, organização internacional dirigida por J. Posadas. De uma dissidência formou-se a fração bolchevique, que, por sua vez, deu origem a dois grupos: a Liga Operária e a Organização Marxista Brasileira — OMB, mais conhecida como Liberdade e Luta. Ambas, ligadas à IV Internacional, foram criadas em meados dos anos 70. Ao final da década, a Liga Operária transformou-se na Convergência Socialista, e a OMB, após várias fusões, tranformou-se na Organização Socialista Intemacionalista — OSI, que mudou seu nome recentemente para fração da IV Internacional. Ambas integram o PT.

Apesar de uma parcela significativa da direção do Partido Comunista Brasileiro ter sido dizimada pelo regime militar durante os anos 70, ainda hoje ele continua sendo uma importante organização da esquerda marxista do Brasil. É também a principal arena de dissidências. No exílio, parte dos seus dirigentes aproximou-se do eurocomunismo, num movimento de afastamento da influência direta de Moscou. É o caso de Armênio Guedes. Outros, como Luiz Carlos Prestes, em direção inversa, acusam o PCB de "capitular frente à burguesia". Mas é impossível fluir o debate. Sem direito à livre organização, sua direção tentou organizar, em 82, um congresso semilegal. Foi reprimida. A nova direção, indicada através do próprio Comitê Central, pelo método do centralismo democrático, foi contestada por diversos setores dissidentes.

A direção estadual de São Paulo, que não a reconheceu, foi afastada, mas continuou organizada em torno do jornal A Esquerda, e ajudou aos eurocomunistas no lançamento da revista Presença. O Comitê Central — o Coletivo Nacional pela legalização do Partido Comunista — resiste, tentando controlar a estrutura partidária. Seu jornal é a Voz da Unidade.

Prestes foi afastado após meio século na sua direção. Outros, como Guedes, têm uma situação indefinida. Enquanto não vier a legalização, porém, será praticamente impossível retomar a unidade. Fica, para a direção do PCB e, mesmo, para os detentores do regime, a lembrança do período final da Segunda Grande Guerra: de uma centena de militantes em 1942, com a legalidade conquistada em 45, o então PC do B chegou a 200 mil filiados. E naquele tempo o centralismo democrático e o conceito de ditadura do proletariado eram dogmas, ao contrário de hoje, quando deixou de ser um pecado questionar o marxismo. E, como se não bastasse, existem os filhos do PCB que também pretendem conquistar a legalidade. E crescer.

Ainda há amplos segmentos, não necessariamente marxistas, mas que se autodefinem à esquerda, com uma identidade anti-capitalista, socialista, e que dizem lutar por uma nova sociedade, sem exploração econômica, tendo à sua frente os trabalhadores. Esta a idéia, que é proibida no Brasil. E que pode legitimar-se nesta nova conjuntura de transição.



Bibliografia

Caso você esteja interessado em obter mais informações sobre a esquerda brasileira e começar a aprofundar-se no assunto, pode ler as seguintes publicações:

"PCB: Os Dirigentes e a Organização", de Leôncio Rodrigues, in História Geral da Civilização Brasileira, org. Boris Fausto, DIFEL.         

O Partidão, de Moisés Vinhas, HUCITEC.         

O PCB (Antologia em 3 volumes), de Edgar Carone, DIFEL.         

Prestes, Lutas e Autocríticas, de Dênis de Moraes e Francisco Viana, Ed. Vozes.         

Anarquistas e Comunistas no Brasil, de John Foster Dulles, Ed. Nova Fronteira.         

Política e Trabalho no Brasil, de Paulo Sérgio Pinheiro, Ed. Paz e Terra.         

Anarquistas, Imigrantes e Movimentos Operários Brasileiros, de Sheldon Leslie Maram, Ed. Paz e Terra.         

"Contribuição à História da Esquerda Brasileira", série de artigos de Marco Aurélio Garcia, sobre a esquerda brasileira após a década de 50 até o final dos anos 70, publicada no jornal Em Tempo, a partir do número 77, durante os anos de 1979 e 1980. Essa série foi muito útil para a elaboração deste artigo.         

PCB: conflito e Integração, de Ronald Chilcote, Ed. Graal.         

PCB — 1922-1982. Memória fotográfica, de José Antonio Segatto e outros. Ed. Brasiliense.         [ Links ]


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