sábado, 26 de janeiro de 2019

Relações Internacionais: um olhar marxista



O brasileiro Theotonio dos Santos, que morreu em fevereiro de 2018: protagonista do
terceiro grande debate sobre Geopolítica e Relações Internacionais, na
tradição marxista



Do “Capital” e dos “Grundisse” a Negri, David Harvey e Theotônio dos Santos. Livro de pesquisador brasileiro sistematiza os três grandes debates que marcaram corrente crítica das RIs



Por Henrique Paiva


O mito fundador das Relações Internacionais como ciência é a aporia diante da questão de como evitar uma nova barbárie da dimensão da I Guerra Mundial. O esforço acadêmico para se responder a esse dilema, particularmente nas universidades britânicas e norte-americanas, resultou em teorias mais interessadas em oferecer soluções convenientes para o projeto de poder das grandes potências no pós-guerra do que refletir sobre as fontes reais da instabilidade sistêmica, como, por exemplo, as desigualdades estruturais e crescentes decorrentes do imperialismo.


“Imperialismo, Estado e Relações Internacionais”: em breve, também na livraria virtual de “Outras Palavras”

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Duas correntes principais surgem desse contexto: o realismo e o institucionalismo. É inegável que ambas apresentam uma relevante construção teórica das dinâmicas do campo internacional, mas não se furtam a propor estratégias de ação. O realismo concentra-se em estratégias de equilíbrio de poder em um sistema internacional anárquico. O institucionalismo enfatiza a necessidade de elaboração de normas e de criação de instituições que mitigassem os efeitos da anarquia internacional. Esses receituários davam conta das necessidades narrativas e estratégicas do jogo de poder das grandes potências; afinal, toda teoria é interessada, toda mesmo. Como aponta Robert Cox: “Teoria é sempre para alguém e para algum propósito”.

Dependendo do contexto geopolítico e do governo da situação, as portas giratórias que unem a alta cúpula estatal e a torre de marfim da academia fizeram com que acadêmicos se tornassem consultores políticos e que estadistas fossem alçados à condição de analistas acadêmicos. Com isso, as teorias obtiveram um viés de confirmação prática expressivo. Por serem teorias portadoras de receituários de ação política, o realismo e o institucionalismo foram elevados à condição de “profecias autorrealizáveis”, para usar o termo de Robert Merton.

Esse condomínio realista-institucionalista dominou amplamente o espectro teórico das Relações Internacionais até o final da Guerra Fria. O que a narrativa anglo-saxã dominante sobre o campo científico das Relações Internacionais não coloca é que o debate a respeito das relações internacionais tem sua cosmogênese nos debates da Segunda Internacional Socialista, com as reflexões de Vladimir Lênin e Karl Kautsky. As contribuições marxistas são fundamentalmente internacionalistas, mas amplamente relegadas nos estudos das Relações Internacionais. A relação entre saber e poder definitivamente não é irrelevante, já alertava Michel Foucault.

O fim da Guerra Fria trouxe, tardiamente, para o campo das Relações Internacionais, reflexões há muito presentes na Filosofia e nas Ciências Sociais: as contribuições da Escola de Frankfurt, a virada linguística, o pós-modernismo, o pós-estruturalismo, o construtivismo, os estudos de gênero, a sociologia histórica e a teoria crítica. Somente a partir do final do século XX, as Relações Internacionais passaram a discutir sua metateoria, a ponderar sobre sua ontologia, sua metodologia e principalmente sua epistemologia.

Luis Felipe Osório, autor de "Imperialismo
Estado e Relações Internacionais"

É verdade que a sociologia histórica resgatou o materialismo, com autores como Charles Tilly, John Hall, Michael Mann e Theda Skocpol, e que a teoria crítica reuniu as ideias neogramscianas, a partir das contribuições de Robert Cox, Stephen Gill, Mark Rupert e Andreas Bieler; contudo, as teorias marxistas stricto sensu continuaram sendo silenciadas nos debates teóricos das Relações Internacionais. Desde a ausência de registro nos manuais de RI acerca dos debates da Segunda Internacional até a virada pós-positivista das RI, o marxismo não recebeu a sistematização necessária, com a notável exceção do excelente trabalho de Fred Halliday.

O livro Imperialismo, Estado e Relações Internacionais, de Luiz Felipe Osório, rompe o silêncio e dá voz aos intelectuais marxistas, trazendo à tona suas contribuições teóricas para o campo das Relações Internacionais, principalmente em torno da teoria do Estado e do Imperialismo, desde suas origens até as discussões mais recentes.

Karl Marx, em O Capital e em os Grundisse, elabora uma profunda análise do funcionamento do sistema e da sociedade capitalista. Marx antecipa a formação do mercado mundial e o perfil cosmopolita de consumo das burguesias nos diferentes Estados. Marx, como analista de conjuntura, também produziu diversos artigos sobre os impérios ultramarinos, a colonização, a imposição de dívida e o protecionismo. Apesar de todas essas contribuições, Marx não sistematizou formalmente uma obra sobre as relações internacionais e o imperialismo. Coube aos pensadores marxistas subsequentes a tarefa de coligir os seus insights sobre a arena interestatal capitalista e, assim, formular teses marxistas sobre as relações internacionais.

A tradição marxista produz, desde o final do século XIX, uma vasta e consistente obra sobre a dinâmica internacional; no entanto, ainda era preciso encontrar os excertos em que realmente se sistematizou uma teoria de Relações Internacionais. Era imperioso para o debate teórico das RI essa tarefa de pesquisa tão hercúlea quanto necessária. No Brasil, importante passo na direção do horizonte de análise internacional marxista foi dado com o trabalho realizado por Luiz Felipe Osório, no livro Imperialismo, Estado e Relações Internacionais.

Luiz Felipe Osório propõe uma divisão dos autores em torno de três grandes debates que obedecem tanto uma ordem cronológica quanto uma linha teórica. Como qualquer segmentação, a classificação proposta por Osório é arbitrária, porém necessária à consecução dessa sistematização de fôlego de um conjunto amplo e heterogêneo de contribuições marxistas sobre as Relações Internacionais que precisava ser organizada há tempos. Este livro já deveria estar sendo adotado em disciplinas de Teoria das Relações Internacionais, ou de Economia Política Internacional, ou de Pensamento Político, em cursos de Ciências Sociais, de Economia, de Direito e de Relações Internacionais.

O primeiro grande debate, que se estende de 1870 a 1945, reúne os intérpretes pioneiros de Marx: Rudolf Hilferding, Rosa Luxemburgo, Karl Kautsky, Nikolai Bukharin e Vladimir Lênin. É importante ressaltar que, se é possível criticar o binômio teórico realismo-institucionalismo como estratégias de ação, também não se pode deixar de reconhecer, conforme Osório o fez, que esses autores precursores carregavam “em uma mão a caneta dos estudos e na outra o rifle da batalha”. Todavia, o sucesso teórico e prático conquistado pelo binômio anglo-saxão só teve equivalência para as teses formuladas por Lênin — ainda assim, por um período curto de tempo.

O segundo debate ocorre durante a Guerra Fria, de 1945 a 1991, e apresenta um grupo amplo de escolas que podem ser chamadas de neomarxistas: a corrente do capital monopolista (Paul Baran e Paul Sweezy), os teóricos da dependência (Andre Gunder Frank, Ruy Mauro Marini, Theotônio dos Santos e Vânia Bambirra), e os pensadores do sistema-mundo e das trocas desiguais (Immanuel Wallerstein, Giovanni Arrighi e Samir Amin). As contribuições teóricas refletem as questões desse período que caracterizou-se pela ascensão hegemônica dos Estados Unidos; pela polarização com a União Soviética; por outras experiências de comunismo real; pela conciliação em torno do Estado de bem-estar social no centro capitalista; e pela industrialização tardia e seletiva na periferia.

Por fim, o terceiro debate começa em meio às decisões unilaterais estadunidenses a partir da década de 1970; passa pela intensificação da globalização financeira nos anos 1990 e pelo colapso do regime soviético; chega até o momento atual de decomposição do acordo social-democrata de bem-estar social. Esse debate contemporâneo foi dividido em três campos: o politicismo, o parcial politicismo e a plena crítica. Na vertente politicista, apresentam-se os autores Michael Hardt, Antonio Negri, Leo Panitch, Sam Gindin e Ellen Wood; na parcial politicista, David Harvey e Alex Callinicos; na plena crítica, Evgeni Pachukanis, Christel Neusüss, Klaus Busch, Claudia von Braunmühl, Joachim Hirsch, Alysson Mascaro e China Miéville.

Percorrer essa constelação de autores, sistematizando as contribuições especificamente internacionalistas, deve ter sido uma epopeia. Ainda bem que a trajetória percorrida pelo autor foi materializada nesse livro audacioso. Deve ser destacada a impressionante apresentação do atual estado-da-arte das reflexões marxistas da teoria do Estado, do Imperialismo e das Relações Internacionais. Para muito além de uma luxuosa e instigante revisão bibliográfica, Luiz Felipe Osório oferece um panorama abrangente da teoria marxista, com um recorte metodológico que confere um caráter didático, que facilita a apreensão dos conceitos em debate, provavelmente inacessíveis de outra forma para os não-iniciados.

O livro de Luiz Felipe Osório revela a natureza expansiva do capitalismo e suas contradições, como as disputas entre as burguesias nacionais e suas concorrentes estrangeiras, a tendência à oligopolização, a submissão pela exportação dos capitais, a sujeição da atividade produtiva à lógica financeira e, assim, a concentração de riqueza, o aumento da desigualdade de renda, a eclosão de distúrbios sociais, a intensificação da violência internamente e o recurso à guerra como resultante da crise e como portadora do resultado almejado pelas potências capitalistas que se sagrarem vitoriosas. A crise é parte estrutural e definidora do capitalismo, assim como a guerra é o motor de reprodução da crise.

Osório relembra que o sistema capitalista funciona em um ambiente comum a todos os operadores: o mercado mundial; e que os operadores desse sistema são os Estados com suas economias nacionais. O mercado mundial seria, portanto, uma forma universal e o Estado, a forma política, onde se desenvolvem as relações complexas e contraditórias entre os atores sociais nas condições materiais existentes. A conversão do Estado moderno em Estado nacional se processa em torno da lógica capitalista. E, embora, o modo de produção capitalista se realize dentro dos Estados, é somente no âmbito internacional que se tem a dimensão da hierarquização dos espaços políticos e econômicos em torno dos centros dinâmicos do capitalismo.

O livro de Osório resgata a noção perdida de que o Estado capitalista não é uma experiência de organização política que surge de modo espontâneo e isolado. O Estado capitalista surgiu coletivamente como um sistema de Estados, em um contexto geográfico muito específico de disputas territoriais, de circulação comercial, de imposição de tributos e de incipiente produção industrial em uma Europa dividida, mas que foi capaz de produzir um sistema de acomodação (ao menos temporariamente e sempre com altos e baixos) das disputas intraeuropeias pela expansão dos interesses do capital nos projetos ultramarinos. O sistema interestatal é constituinte do capitalismo.

As reflexões trazidas à tona por Osório destacam que a dominação capitalista se processa por meio das relações entre Estados. A hierarquização do espaço de sociabilidade capitalista obedece ao nexo do imperialismo. O imperialismo é o vínculo que confere liga às relações que de fato existem no campo internacional.

Compreender o imperialismo é conhecer as entranhas que dão organicidade ao capitalismo. Por sua vez, compreender o capitalismo é a chave analítica que revela o jogo geopolítico por trás da acumulação de riqueza e de poder no sistema interestatal. Portanto, para conhecer todas essas estruturas profundas das relações internacionais, a leitura de Imperialismo, Estado e Relações Internacionais, de Luiz Felipe Osório, torna-se obrigatória a todo internacionalista, seja qual for sua matriz de pensamento teórico.

Se toda teoria é interessada, então seria determinante se escolhêssemos nossa matriz teórica a partir de uma perspectiva ética de emancipação intelectual crítica e de promoção de uma sociedade mais justa, democrática, popular, respeitadora da diversidade, e comprometida com a solidariedade entre os povos.


OSÓRIO, Luiz Felipe. Imperialismo, Estado e Relações Internacionais. São Paulo: Ideias & Letras, 2018. 288 p


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