domingo, 8 de março de 2020

A alternativa chinesa e a questão nodal da nossa época



São cada vez mais exigentes e candentes o estudo e a pesquisa empírica do que vem ocorrendo desde a promulgação da República Popular da China há sete décadas

Por Renato Rabelo



O trecho abaixo é o prefácio feito por Renato Rabelo, presidente da Fundação Maurício Grabois, para o livro China - Socialismo e desenvolvimento, de Elias Jabbour (Anita Garibaldi, R$49,00).

Elias Jabbour expõe nesta edição uma agenda de pesquisas, um roteiro de seu trabalho atual referente à questão na qual se empenha, relativa à Nova Formação Econômico-Social na China contemporânea. Nesse sentido, sua atividade exploratória tem origem em duas obras focadas nas reformas introduzidas por Deng Xiaoping, a partir de 1978, que se desenvolve nesses últimos quarenta anos: China hoje: Projeto nacional, desenvolvimento e socialismo de mercado (Anita Garibaldi/EDUEPB, 2012) e China: infraestruturas e crescimento econômico (Anita Garibaldi, 2006).

São cada vez mais exigentes e candentes o estudo e a pesquisa empírica do que vem ocorrendo desde a promulgação da República Popular da China há sete décadas. Uma discussão que se estende e galvaniza atenção crescente de acadêmicos, economistas, cientistas, amantes do progresso social.   

Elias Jabbour vem se dedicando nesses últimos 25 anos ao estudo do que se passa nesse gigantesco país asiático. E, como ele o observa, não se trata de um simples “milagre” ou uma “casualidade”, mas como “parte da história da civilização humana”, como uma rica experiência de transformação econômico-social de nosso tempo, que vai além desse significativo desempenho. Eleva a China ao âmbito de uma grande potência mundial, prevendo tornar-se, em mais uma década, a maior economia do mundo, sendo essa a dimensão do que está em tela no estonteante curso mudancista nesse extenso país e o mais populoso do planeta.

Esse processo de transformação inaudita da China, no contexto global de mudanças de vulto, define um balanço de forças em movimento: tendência de um declínio relativo da hegemonia dos EUA e ascenso de novos polos de poder, primordialmente da China, e crescente multipolarização. Assim se atinge uma nova etapa histórica no sistema internacional marcada por um acirramento da disputa pela hegemonia mundial entre as duas grandes potências, EUA e China. É aparente a intensa guerra comercial em curso, sendo o centro real da disputa a conquista do predomínio tecnológico da nova era.

Elias, em seu estudo, vai adiante, acentua uma dimensão maior do curso histórico em movimento na China, a perspectiva perseguida pelo Partido Comunista da China, tendo como caminho, da sua Revolução Nacional-Popular, iniciada há 70 anos, a construção da sociedade socialista moderna e avançada, prevista em termos de longo prazo – na sequência efetiva dos seus Ciclos Decenais –, para ser alcançada em 2049, após cem anos da proclamação da República Popular da China. Desse modo, trata-se do que é escasso em nossa época: a esperança de uma nova sociedade, uma alternativa concreta que pode estar em andamento na China. “Se observamos o socialismo como o futuro historicamente construído, não se trata de exagero titular a presente experiência chinesa como um marco fundamental da história humana”.  

Acredito que a questão nodal de nossa época, já na segunda década do século XXI, é a refrega por uma alternativa ante a continuidade do capitalismo, que se debate em uma crise estrutural, ao cabo de seus 600 anos na cena da história, ancièn regime de nosso tempo; por outro lado, o mais decisivo, uma definição da alternativa para se superar o capitalismo e o descortinar do avanço civilizacional no curso atual da história, nos marcos de uma nova luta pelo socialismo, sendo concretizada por uma nova formação econômico-social, com seu advento político.


                             São cada vez mais exigentes e candentes os estudos e pesquisa empírica que vem ocorrendo desde
                                   a promulgação da República Popular da China


Quanto ao capitalismo contemporâneo, o fato é que, nos marcos do sistema, ele não conseguiu superar a grande crise iniciada em 2007-2008. O problema de fundo é que esse sistema vive uma crise estrutural, porquanto falta uma solução estrutural para resolvê-la que, por sua vez, aumenta a crise social que acirra a disputa política, projetando saídas imediatas para soluções autoritárias, neofascistas, resultando num aprofundamento do impasse de caráter sistêmico. Em tais situações, exemplificadas pela história, as saídas de fato aconteceram pela via transformadora, revolucionária.

A luta pelo socialismo e sua construção irrompe desde o início do século XX em sociedades capitalistas relativamente atrasadas. Este é o caso da China que contava inclusive com regiões onde prevaleciam uma relação de produção pré-capitalista. Na atualidade, sua experiência se distancia do “modelo soviético” de um período excepcional, abrindo o caminho na transição socialista, incorporando formas contemporâneas.

Elias Jabbour salienta no exemplo chinês, quando o processo se acelera a partir das reformas de 1978, a adoção de uma combinação do desenvolvimentismo de tipo asiático em fusão com o Estado revolucionário fundado em 1949.    

No desbravar do que seja a alternativa chinesa – a experiência socialista recente e as dinâmicas do Estado desenvolvimentista –, Elias soube reunir talentosos parceiros – dentro e fora do país, economistas marxistas e keynesianos – e buscar nos “clássicos do desenvolvimento” destrinchar o peculiar “socialismo de mercado” como uma Nova Formação Econômico-Social (NFES); “tema de fronteira” que está no centro de grande parte de seus artigos exploratórios. Essa nova formação econômico-social, no desenvolvimento do seu estudo, tem na sua complexidade o principal atributo, “pois se ocupa de uma formação marcada pela convivência de diferentes estruturas/formações sociais”.

Fora disso o processo chinês incorre em formulações que podem ser vistas de forma estática, instantânea, modelar, como uma simples “restauração capitalista” ou um “capitalismo de Estado”. Desse modo não dá conta da distinta formação econômico-social em evolução, da abordagem dos fenômenos com suas singularidades e da sua relação com o processo histórico do capitalismo financeirizado e do rápido avanço tecnológico.

A China na complexidade de sua formação econômico-social, oriunda do seu nível primário de desenvolvimento, determinou como sua principal tarefa o crescimento das forças produtivas, colocou o socialismo com suas próprias características na vanguarda do processo de desenvolvimento e crescimento na época em que vivemos. O seu Estado é conduzido por forças políticas e sociais que desde a instauração da República Popular mantém a perspectiva socialista e se instrui na base teórica do marxismo.

O trabalho exploratório de Elias e parceiros, nessa relevante empreitada, situa na experiência chinesa o curso dos ciclos decenais em movimento e inovações institucionais necessárias. Dessa dinâmica desponta uma poderosa estrutura estatal constituída por grandes corporações empresariais e financeiras, em lugares-chave da economia e da sociedade; a rápida incorporação de inovações tecnológicas tem permitido o surgimento de novas e superiores formas de planificação econômica, dando nitidez ao rumo estabelecido.

A sua coragem de pensar e perscrutar, como ele afirma, baseada nos clássicos do materialismo histórico e no leito da heterodoxia econômica leva-o a uma ousada agenda de pesquisa sobre a China, quando ele assevera: “O controle crescente, por parte do Estado [chinês] dos fluxos nacionais de renda, desde 2012 dá forma à face da Nova Formação Econômico-Social que surge e que poderá conceber o próximo modo de produção dominante na esfera mundial”.

Hoje Elias Jabbour é um estudioso persistente, dedicado a um trabalho meritório, que tem um papel relevante na linha de pesquisa da Fundação Maurício Grabois para os dois grandes temas de nossa época: 1) as tendências do capitalismo contemporâneo; e 2) a conformação do socialismo contemporâneo nas experiências revolucionárias remanescentes do século passado, sobretudo o exemplo mais avançado que vem sendo desenvolvido na República Popular da China.  


FONTE: Opera Mundi

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