Há exatos 15 anos, o mestre falecido hoje advertia: regime que herdamos da Revolução Francesa é incapaz de enfrentar o capital e a desigualdade; esta democracia precisa ser recriada com urgência, antes que se esvaia
Por Antonio Martins
(Publicado originalmente no site “Planeta Porto Alegre”, em junho de 2004)
Passava das oito horas de uma noite gélida em São Paulo, mas o sociólogo Chico de Oliveira encarregou-se de aquecer o ambiente. Ao fazer sua intervenção final, no primeiro dia do seminário Agenda Pós-Neoliberal, em São Paulo, ele indagou, provocador: “Por que motivo deveríamos considerar a democracia representativa como último estágio do desenvolvimento da política? Em nome de quê esse respeito, essa reverência? Acaso não aprendemos que a democracia só sobrevive se for constantemente reinventada?”
A alfinetada era bem-vinda. Promovida sob a liderança do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (IBASE), com apoio da Fundação Rosa Luxemburgo, a Agenda Pós-Neoliberal procura contribuir com o Fórum Social Mundial propondo-lhe novos desafios e oferecendo-lhe, sempre que possível, alternativas. O seminário de São Paulo, terceiro de uma série que desembocará em Porto Alegre, em janeiro de 2005, propõe-se a examinar a crise da política, a relação entre desenvolvimento e garantia de vida digna e a hipótese de um novo comércio internacional, capaz de reduzir as desigualdades.
Mas Chico surpreendeu por sua intervenção radical e incisiva, ao defender duas idéias instigantes e polêmicas: 1. Ao contrário do que parte da esquerda acreditou, ao longo do século passado, a democracia que herdamos da Revolução Francesa pode ser um instrumento para enfrentar a desigualdade e o capital; 2. No entanto, essa democracia precisa ser urgentemente recriada, antes que se esvazie por completo.
Política, como parte dos que não têm parte “A tradição política a que pertenço ressaltou exageradamente o caráter ‘burguês’ da democracia. Esqueceu-se de seu aspecto democrático”, lembrou Chico. Ele frisou que prefere, hoje, outra abordagem. “Como dizia Jacques de la Rozière, ‘a política é a reivindicação por parte dos que não têm parte’, a invenção capaz de reduzir as assimetrias de poder e de riqueza, alimentadas pelo capitalismo”. Chico foi aos exemplos. “Mesmo no centro do sistema, e nas fases de menor desigualdade, os direitos sociais nunca foram assegurados pelos automatismos de mercado, mas conquistados contra eles”, lembrou. E mais: “Em países como o México ou o Brasil, bastaram poucos anos de ‘livre’ ação das forças de mercado para produzir miséria, desigualdade e violência social insuspeitadas”.
Qual é, então, o problema com a democracia? Chico responde: “O ‘novo’ capitalismo, globalizado e financeiro, a está reduzindo a algo irrelevante para os que dominam, e inacessível para os dominados”. A irrelevância é provocada pela desterritorialização e pela supremacia dos mercados financeiros. “Nos Estados fracos, as rédeas da política passaram para as mãos das instituições multilaterais. A desobediência aos superávits primários exigidos pelo FMI é punida, imediatamente, pela fuga de capitais. E bastam algumas horas de reunião de diretoria do Banco Central para anular – por meio da elevação das taxas de juros – um ano de construção do Orçamento no Congresso Nacional.”
Ficção no centro e na periferia Driblada todos os dias pelo capital, a democracia divorciou-se das maiorias. “Se, num país como o Brasil, 60% da força de trabalho mergulharam na economia informal – e, portanto, estão à margem das garantias legais –, como pode essa maioria participar da construção política de seu futuro?”, perguntou Chico. Ele relacionou essa inacessibilidade a pesquisas recentes de opinião pública, que revelam o desprestígio da democracia na América Latina. Foi além. “Bastaria fazer a mesma pergunta de outro modo para que a resposta fosse igual também no centro do sistema, onde a tradição democrática é mais vasta. Experimente indagar a cada cidadão, por exemplo, ‘qual a relevância da política para sua vida quotidiana?’”
“O pior”, destacou Chico, “é que a anulação da democracia pelo capitalismo repercute entre os dominados. Os sindicatos, antigos espaços de socialização para os trabalhadores, perdem eficácia. O individualismo predatório que marca o sistema subjetiva-se, transforma-se em nova forma de pensar e se relacionar com o outro”. Esse retrocesso ocorre, em especial, em setores como a indústria farmacêutica, “onde as fábricas são as mais modernas, e o ambiente é mais clean que o deste hotel, e se estimula, no entanto, a competição mais desapiedada”.
Como enfrentar esse abismo? Chico fala com desenvoltura sobre o que não fazer. Seria ainda mais trágico, ele afirma, se a esquerda descaísse para o chamado “cretinismo parlamentar”, se concentrasse suas energias na ocupação de espaços nos parlamentos – agora que eles se tornaram pífios. Embora mais charmosa e menos incômoda, também se tornou estéril a posição de algumas ONGs, que se contentam em ostentar, orgulhosas, a condição de “membros da sociedade civil” – distantes do Estado, antes de mais nada.
A ditadura das grandes corporações Esta postura as impede de entender que o verdadeiro poder deslocou-se dos governos para as grandes corporações. São, hoje, tão onipresentes que se tornaram capazes – para ficar num caso extremo – de promover uma contra-revolução nas relações de propriedade. “Para os agricultores que se tornam clientes das empresas de biotecnologia e transgênicos, uma semente já não pode ser semente, pois não se pode plantá-la sem autorização do pretenso desenvolvedor da variedade”, diz Chico.
É possível construir outro mundo sem encontrar caminho para confrontar esses novos centros de decisão? Quais as alternativas? Chico não tem fórmulas prontas. Em entrevista recente à Planeta Porto Alegre, lembrou que estamos numa fase em que o capitalismo neoliberal começa a perder corações e mentes – mas conserva enorme força social. Quem espera vitórias importantes rumo a uma nova sociedade, deve estar preparado para um longo esforço, inclusive teórico.
Mas não se avança na política – um terreno em que toda construção requer diálogo e debate – sem a ousadia das propostas concretas. Chico fez referências breves a duas idéias. “Meu amigo Fábio Konder Comparato é uma espécie de santo, um ser acima da maldade humana. Mas, embora idealista, considero positiva sua idéia de uma espécie de confederação geral de entidades populares. Ou quem sabe, como propõe Plínio de Arruda Sampaio, um dia ainda criemos os Clubes Democráticos, uma variação dos Clubes Jacobinos da Revolução Francesa”.
Zombar da democracia para enriquecê-la O velho sociólogo recomendou a arte e o prazer de inventar. “Inventem, mesmo. Política é, permanentemente, invenção. As primeiras ONGs introduziram os temas da mulher e do ambiente na vida social contemporânea. Recomendo ao IBASE, ao ATTAC, e a outras organizações, que criem o Comitê de Cidadãos para Fiscalizar o Banco Central. Deve ser aberto a todos, exceto a banqueiros e narcotraficantes”. Chico explicou: “A medida é necessária porque as sabatinas a que o Congresso submete os diretores do BC tornaram-se uma piada. Perto delas, o Show do Milhão, de Silvio Santos, parece um desafio intelectual complexo”.
Naquele instante, pelo menos um de seus ouvintes lembrou-se de como causaram impacto, nos últimos anos, as ações políticas que desvendaram a nova geografia do poder – e se chocaram contra ela. A aparição pública do movimento zapatista, em 1º de janeiro de 1994, foi um levante contra a Área de “Livre” Comércio da América do Norte (Nafta), que entrava em vigor naquele dia. Em dezembro de 1999, os protestos de Seattle (EUA) desencadearam uma série de gigantescas mobilizações de rua contra organizações como a OMC, o FMI e o G8. No Brasil, os sem-terra transformaram-se no movimento social mais importante ao chamar a atenção para a desigualdade e a concentração de riquezas, duas conseqüências diretas do neoliberalismo. O Fórum Social Mundial, uma espécie de assembléia dos povos, é o contraponto simbólico perfeito ao caráter totalitário da chamada “governança global”.
Neste instante, Chico de Oliveira concluía sua exposição: “Não zombo da democracia representativa para desprezá-la, mas para enriquecê-la. Para construir seu projeto de sociedade, a direita e o capital inventaram suas armas e moldaram a política segundo sua lógica. Por que não inventarmos também as nossas, deixando de lado os falsos respeitos”?
FONTE: Outras Palavras
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