domingo, 22 de março de 2020

Socialismo de mercado, uma nova formação econômico-social


A partir de uma exposição sobre a dinâmica do desenvolvimento da China atual, o professor de Teoria e Política de Planejamento da UERJ, Elias Jabbour, defendeu que o socialismo de mercado já se constitui como uma nova formação econômico-social.


Foto: Cezar Xavier/FMG
Em apresentação durante o V Seminário de Estudos Avançados, organizado pela Escola Nacional João Amazonas do PCdoB no dia 29 de julho, ele analisou a questão nacional como algo central no processo chinês.

“O que seria o socialismo do século 20?”, questionou Jabbour no início de sua fala, na mesa “A questão nacional na transição socialista na União Soviética e na China”. O debate também contou com a participação da historiadora Ana Lucia Danilevcz.

“O socialismo no século 20 é uma resposta à negação do desenvolvimento capitalista a grandes parcelas da periferia do sistema. Na China, por exemplo, Chiang Kai-shek [chefe do governo entre 1928 e 1931] não foi capaz de levar seu país ao progresso capitalista. Os partidos comunistas [se constituem] como resposta a uma demanda, que é a demanda do direito ao desenvolvimento e do direito a planejar esse desenvolvimento”, defendeu o professor.

Para ele, em grande medida, o Partido Comunista acabou sendo um substituto da burguesia nos países periféricos e, em particular, na China. “Vou além em dizer que a conformação e as tarefas do Partido Comunista da China (PCCh) hoje o colocam muito próximo ao que foi o Kuomintang [Partido Nacionalista Chinês] de Sun Yat-sen, na década de 1920 – uma força política, com estratégia socializante, mas, de imediato, um partido político claramente de caráter nacionalista”, classificou.

Na sua avaliação, o que ocorre na China, a partir de 1978, quando acontecem as reformas econômicas, é a fusão de dois Estados: “existe o Estado revolucionário fundado por Mao Tsé-Tung em 1949 e existe, a partir de 1978, a internacionalização e a consequente fusão desse Estado revolucionário com o Estado desenvolvimentista tipicamente asiático”.

Tal fusão seria uma resposta chinesa a uma conjuntura muito singular. Entre as condicionantes externas, ele cita a crise do fordismo e do “socialismo real”, o surgimento de um novo paradigma tecnológico no Japão (o toyotismo), a invasão soviética ao Afeganistão, a crise do Consenso Keynesiano, a Ásia como o local onde o capitalismo apresentava maior dinamismo, Taiwan e Hong Kong como “tigres asiáticos”, a financeirização capitaneada pelos EUA e os acordos de Plaza no Japão (1985).

“A década de 1970 mudou completamente o século 20”, disse Jabbour. “Os chineses estavam ficando para trás do Japão, de Taiwan e Hong Kong, o socialismo que eles advogavam estava indo para o buraco e, em português claro, a China ainda era incapaz de dar certas respostas, como as prometidas em 1949”, completou.

Entre os fatores internos que teriam assentado terreno para esta fusão de Estado revolucionário com Estado desenvolvimentista, o professor apontou, por exemplo, uma crise da dinâmica de acumulação dependente da produtividade na agricultura.

“O excedente da agricultura foi o que financiou a industrialização da URSS e mesmo na China. E, num país como a China, essa crise da dinâmica de acumulação centrada na agricultura e de relações desiguais entre campo e cidades, favorecendo as cidades, provocou um óbice político, afinal a base política do PCCh são os camponeses”, destacou.

Ele mencionou, entre essas condicionantes, convulsões políticas - como a Revolução Cultural -, que colocaram em questão a autoridade e a legitimidade do PCCh, e uma crise no pacto que levou o partido ao poder em 1949, já que os camponeses eram os maiores prejudicados com processo de industrialização forçada e isso gerava grandes diferenças entre níveis de consumo entre campo e cidade.

Socialismo de mercado

Ao falar sobre socialismo de mercado, Jabbour citou que “todo capitalismo, desde a pequena produção mercantil até a grande produção em escala, é mercantil, porque é voltado para o mercado. Mas nem tudo que é mercantil é capitalista – uma economia de mercado pode ser feudal, escravista e... socialista”.

De acordo com ele, a esquerda em geral, tem dificuldades de “se resolver” em relação à propriedade privada e ao mercado. “Parece que medimos se é socialista ou não pelo fato de se tem propriedade privada ou não, se tem mercado ou não. Não imaginávamos, há 50 anos que, durante muito tempo, a propriedade privada e o mercado não somente seriam parte da formação econômica e social da qual estamos tratando, como seriam partes essenciais”, afirmou.

É em cima desse debate que ele defende que já existem indícios teóricos e empíricos suficientes para dizer que o socialismo de mercado se constitui como uma formação econômica-social distinta.

“Somos educados na tradição do manual de Estado, do materialismo histórico e dialético, de que existem cinco modos de produção fundamentais: comunismo primitivo, escravismo, feudalismo, capitalismo e socialismo. Eu estou sugerindo, a partir de leitura de outros autores, que o socialismo de mercado já se constitui como outra formação econômica e social. A crise de 2008 e as novas configurações que o Estado chinês passam a ter a partir de então aceleram esse diagnóstico”, opinou.

Elias Jabbour analisou que, nessa nova configuração do socialismo de mercado, o Estado passa a ter papel de “empreendedor-em-chefe”. “Conforme [o economista Hubert] Henderson, o que sugiro é que o Estado deva assumir esse papel, dirigindo o fluxo dos recursos produtivos ao emprego nos locais em que melhores servirem às necessidades humanas. Tento resgatar nesse diagnóstico a noção de Keynes de socialização do investimento, que não quer dizer socialização dos meios de produção”, apontou.

Segundo ele, socialização do investimento são induções estatais que possibilitam o investimento privado. Ou seja, políticas fiscais, monetárias, financeiras, econômicas, que viabilizem os investimentos privados. “Isso estou falando em socialismo; Keynes falava em capitalismo”, disse.

As reformas econômicas na China

Desde 1980, a China tem um crescimento econômico médio de 9%. “Evidente que existe uma queda nos últimos anos. Eu, particularmente vejo que, atualmente, a China passa por uma transição de dinâmica de acumulação e, como toda transição, tem suas dores do parto. Mas o essencial é constatar que a China cresce muito, há muito tempo”, pontuou.

Para Jabbour, o modelo soviético aplicado à China teve, sim, muitos méritos e o país, hoje, “é uma continuidade - e também uma ruptura - com o que aconteceu em 1949”.

As reformas econômicas começam em 1978, com a introdução de contratos de responsabilidade entre a família produtora e o Estado. “As antigas comunas foram dissolvidas. Deng Xiaoping percebe - assim como Mao Tse Tung, que se apoia nos camponeses pobres para fazer revolução - que a capacidade milenar de acumulação e comércio do camponês médio chinês será o motor do processo de modernização da China. E ele se apoia nesses camponeses para fazer as reformas econômicas”, colocou.

Assim, o modelo soviético, que privilegiava a cidade em detrimento do campo, foi revertido. Os camponeses passam então a ter direito de produzir, entregar uma cota de sua produção para o Estado e vender o que sobra no mercado. As relações, que eram desiguais entre campo e cidade, passam a ser favoráveis ao campo em 1978.

Segundo o professor da UERJ, isso explica muita coisa do ponto de vista político. “Porque a China não cai em 1989 [Protestos da Praça da Paz Celestial]? Porque os camponeses estavam ao lado do governo chinês. Evidente que teve o papel do partido comunista, de Deng Xiaoping, de perceber que aquilo era uma contrarrevolução. Mas os camponeses estavam com o governo, nunca tinham ganho tanto dinheiro quanto na década de 80 e foram um fator essencial para a manutenção do poder do PCCh em meio à tempestade de 1989”.

A permissão para que os camponeses pudessem acumular, desencadeou outro processo. “Os camponeses, que antes não podiam sair de suas comunas, passam a buscar mercado fora de suas aldeias. Então, a partir das reformas econômicas, novos esquemas de divisão social do trabalho passam a acontecer na China. E não só isso. Antigas capacidades produtivas comunais são convertidas nas chamadas Townships and Village Enterprises (TVE`s), que precocemente já nascem articuladas ao mercado externo. Daí o processo de industrialização na China pós-1978 ser um processo essencialmente rural”, apontou.

E essas empresas cresceram, saíram de pequenas produções mercantis para se tornarem grandes empresas privadas, por exemplo.

Migração para as cidades

Para falar sobre o papel do planejamento no desenvolvimento do país asiático, Jabbour primeiro mencionou a produção agrícola chinesa, que aumentou, de 1980 a 1984, 30% e continua crescendo. De acordo com ele, a queda que ocorreu no fim dos anos 1990 tem relação com um recuo da demanda na China, que aumentou o peso da proteína animal na composição de sua alimentação, reduzindo o papel dos cereais.

“Chamo atenção para o fato de que existem cada vez menos terras agricultáveis na China, pelo avanço da infraestrutura e da urbanização, por exemplo. E mesmo por causa da desertificação. Mas a produtividade do trabalho na agricultura não para de aumentar. Isso significa que a agricultura na China está se tornando uma atividade quase industrial. E isso tem suas contradições, é trabalho vivo sendo substituído por trabalho morto”, avaliou.

Ele calculou que, como resultado desse processo, algo entre 100 milhões e 150 milhões de camponeses tem saído do campo para as cidades. “A questão que quero colocar aqui é a capacidade política do PCCh de planificar esse processo de transição de milhões de pessoas. Isso está acontecendo na China e não é qualquer coisa”.

Contradições

O professor mostrou em gráficos que, na década de 1980, basicamente o crescimento chinês foi pautado pelo consumo. Mas, logo em seguida, o investimento e as exportações passaram a ser o componente da renda mais destacados.

“A relação investimento versus PIB, na China, é de 45%. Um dos desafios que a China tem hoje é lidar com as contradições que surgem dessa alta taxa de investimento, um baixo nível de consumo e com o fato de que vai se configurando na China hoje um conflito distributivo”, resumiu.

Isso porque a China de hoje tem capitalistas e tem bilionários. “E se tem bilionário de um lado, do outro lado vai ter o quê? ”, provocou. “Em algum momento - ainda mais em uma situação em que o consumo vai ter que passar o investimento, ou seja, vai ter um processo de transição em que o consumo vai precisar retomar à dianteira do processo de acumulação -, o pau vai comer na China”, previu.

Mas, diferente de outros colegas, o professor considerou que o Partido Comunista é muito capaz de lidar com essas contradições. “Na China, o PCCh tem se colocado diante da tarefa de dirigir esse grande processo político. É um partido comunista que está comandando tudo isso aqui e isso não é um processo menor”, ressaltou.

O Estado planejando os degraus do desenvolvimento

Segundo Jabbour, a partir da década de 1980, o Estado chinês assume a tarefa de se colocar no grande mercado mundial e passa a “admitir que o capitalismo é mais avançado que o socialismo em muitas questões e que é preciso buscar no capitalismo resposta para alguns de nossos problemas. A tecnologia, as grandes técnicas de administração estão no Ocidente, vamos ter que buscar no Ocidente”, indicou.

Sublinhando o papel do Estado no desenvolvimento, ele relatou que a China passou então a planejar a introdução de Zonas Econômicas Especiais (ZEE), áreas especificamente destinadas para o direcionamento da atividade industrial, a partir do oferecimento de vantagens para atrair investimentos estrangeiros.

“As primeiras quatro ZEEs eram voltadas para Taiwan, Hong Kong, Coreia de Sul e chineses ultramarinos. A introdução desses mecanismos institucionais possibilita o retorno de Hong Kong e Macau ao seio da pátria e transformou Taiwan hoje em uma continuação da China continental, em grande medida”, afirmou. Em 1984, mais 14 ZEEs foram instaladas no litoral; em 1987, todo o litoral se transformou em ZEE e, em 1992, 52 cidades chinesas são elevadas à condição de ZEE.

“Quero colocar o papel do Estado no planejamento desses degraus de desenvolvimento. O Estado passa a comandar o grande processo de transformação do desenvolvimento econômico em desenvolvimento territorial. Se me perguntarem quais políticas a China utilizou para responder ao final da URSS, eu cito que, em 1999, lança-se o audacioso Plano de Desenvolvimento do Grande Oeste, e o capital e a tecnologia que se acumulou no litoral é transferida ao interior da China, em troca de matérias primas do Oeste chinês. É o maior processo de desenvolvimento territorial da história humana”, disse.

Na sua intervenção, o professor mencionou que, em 2013, foi lançada a Nova Rota da Seda, um megaprojeto de infraestrutura, que tem o objetivo de ligar os centros industriais chineses aos mercados consumidores na Europa Ocidental.

“Em grande medida, é uma resposta muito previsível do socialismo para enfrentar certas coisas. Lênin já falava que os comunistas russos iam ter que trocar a guerra militar pela guerra econômica e que é nas relações comerciais entre capitalismo e socialismo que se dará a grande luta de classe no mundo. Em grande medida, a China, a seu modo, dá consequência prática às opiniões de Lênin”, disse.

Jabbour argumentou ainda que o gigante asiático poderia ter se contentado em virar em uma espécie de México, em referência à presença das maquiladoras, empresas de montagem e acabamento de produtos para exportação. “Mas a China não quer esse papel e passou a ter ciclos de substituição de importações internos”, colocou.

Ele lembrou ainda que, desde 2010, o país tem se colocado a tarefa de construir um imenso Sistema Nacional de Inovação Tecnológica. “Isso não é papel da universidade no processo de desenvolvimento, não é esse discurso lúdico que temos aqui no Brasil sobre universidade. Eu estou falando em produção em escala de ciência e tecnologia. Isso significa envolver grandes empresas e grandes bancos. A universidade é só uma parte disso. É na grande empresa que se processam as inovações tecnológicas e as empresas vão se financiar nos bancos ou na bolsa de valores”, defendeu.

Inovações institucionais

Desde a década de 1980, a China tem aberto ciclos de inovações institucionais. “Tenho colocado que o papel do Estado, ao final de cada ciclo, tem aumentado qualitativamente, enquanto que o papel do setor privado tem aumentado quantitativamente. Então se existem privatizações em baixo na China, existem estatizações em cima”, apontou.

Um exemplo de estatização é a introdução do controle sobre os fluxos externos de capitais, a partir de 1994. Paralelamente, há no país um processo de aprofundamento de um imenso sistema estatal de financiamento.

“Socialismo para mim são três coisas: poder político do Partido Comunista; imensos conglomerados empresariais estatais, com efeitos de encadeamento para frente e para trás na economia; e um grande sistema de financiamento estatal. Fora disso, não dá para conversar sobre socialismo”, opinou o professor.

Ainda sobre o papel do Estado, ele lembrou que que a China, em 1994, promove uma maxidesvalorização cambial, que serve aos propósitos de induzir exportações. “Existem reformas que introduzem a legalização do enriquecimento do camponês, e há o surgimento de capitalistas a partir dessas reformas. Mas existe estatização da política monetária, dos instrumentos cruciais do processo de acumulação. Um exemplo é a estatização da taxa de câmbio”, indicou.

O papel dos bancos

O professor da UERJ chamou a atenção para a importância dos bancos no processo de desenvolvimento. “Vou fazer uma provocação. Nós, comunistas, temos que pensar em igualdade social, mas temos que pensar também em escala de produção. Se quiser construir uma sociedade que supere a capitalista, vai ter que ter níveis de produtividade do trabalho maiores que os capitalistas e, para isso, o papel dos bancos é essencial”, colocou.

Ele comparou o crédito doméstico a empresas no Brasil sob o governo de Michel Temer, que está em 48% do PIB, com a situação na China, onde o percentual é de 160% do PIB. Para ele, o crédito é o motor do processo de desenvolvimento econômico. “A economia monetária é uma invenção do capitalismo que deve estar à serviço do socialismo. Nós temos que pensar nesse nível”, propôs.

Conglomerados empresariais estatais

Segundo Jabbour, no fim da década de 90, teve início um importante processo de fusões e aquisições no setor estatal da economia chinesa. Formam-se, a partir de 1999, 149 conglomerados empresariais estatais. “É aqui o indício de que o socialismo de mercado é uma nova formação econômica e social. Porque não existe país capitalista do mundo que tenha como núcleo duro de seu sistema esse número imenso de conglomerados estatais”, pontuou.

O professor ressaltou que, em 2003, surge outra institucionalidade, State?Owned Assets Supervision and Administration Commission, uma comissão estatal que vai gerir os interesses do Estado nesses 149 conglomerados, que estão localizados em setores estratégicos da economia.

“É a partir da formação dessa institucionalidade que, na China, a socialização do investimento e a sua coordenação passam a ter outro patamar. Tanto que a reação chinesa à crise de 2009 é imediata. O Estado coloca 600 bilhões de dólares na economia e coloca essas empresas para executarem esse pacote e são elas que estão capitaneando o papel da China no mundo”, disse.

De acordo com ele, o tamanho da propriedade privada na China, em comparação com Estados Unidos, Inglaterra e Alemanha, é similar. Mas, no país asiático, o setor estatal é muito grande em relação aos outros país.

“Um amplo avanço de setor privado na economia não prescindiu da formação de um novo e poderoso setor estatal, notadamente a partir da década de 1990. Em tese, isso significa que a estrutura de propriedade chinesa ainda é muito diferente de outras partes do mundo. Esse processo reflete-se diretamente em um aumento continuo, desde a segunda metade da década de 1990, do controle governamental sobre os fluxos da renda nacional: de 13,5% do PIB em 1996 a 37,3% em 2015”, encerrou.



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