Por Jean Salem
Chegou-nos a dolorosa notícia do falecimento de Jean Salem. Deixa-nos assim um ser humano excepcional, um dos grandes filósofos marxistas do nosso tempo, um combativo revolucionário cuja penetrante inteligência abarcava todas as expressões do que é humano. Alguém que, reflectindo profundamente acerca da felicidade sabia que ela é, em última análise, inseparável da ideia de revolução. De alguém cuja coerência e inteligência de pensamento e intervenção tinham granjeado admiração e respeito em todo o mundo. Um grande amigo de odiario.info.
No ano em que passa o bicentenário do nascimento de Marx, fica-nos este vazio
do muito que ainda tinha a dizer-nos, mas também o rico património de reflexão
criadora que nos lega. De entre os vários textos seus que publicámos
revisitamos este, de 2013, e recuperamos palavras que acerca dele escrevemos:
“o pensamento de Jean Salem é uma notável confirmação da vitalidade e
actualidade do marxismo. Não de um marxismo académico, mas do marxismo
reflectido por um académico que é também um revolucionário.”
Marx, mais atual que nunca
1. Marx não é apenas um
«clássico» do pensamento filosófico. Estou convencido que Marx é hoje mais
contemporâneo para nós do que era há trinta ou quarenta anos! Tomemos, por
exemplo, o Manifesto do Partido Comunista. Lembro-me de, quando o lia pela
primeira vez, ir perguntar ao meu pai: que significa essa «concorrência» entre
operários que os autores falam em várias ocasiões? A concorrência entre
capitalistas, a concorrência mesmo no seio da burguesia, isso era na verdade
evidente; mas a possibilidade de que existisse uma concorrência entre
trabalhadores não parecia tão evidente, numa época em que os sindicatos eram
fortes, em que a classe operária estava poderosamente organizada, numa época de
pleno emprego (ou quase) e de políticas «keynesianas». Hoje em dia, pelo
contrário, qualquer pessoa remetida para empregos cada vez mais precários e
menos frequentes compreenderia isto desde a primeira leitura: efectivamente, o
sistema repete-lhe constantemente «se não estás contente, e mais ainda se
protestares, há mais dez que estão dispostos a ocupar o teu lugar!». Penso
também naquele trecho em que Marx e Engels falam da prostituição, na altura
muito alargada entre a classe operária inglesa: não era um fenómeno de massas
na década de 1960. Mas, nos nossos dias, depois da grande «libertação» de
1989-1991, há mais de 4 milhões de mulheres que foram – literalmente –
vendidas: e esta atmosfera de mercantilização generalizada dos objectos e dos
seres humanos, a nossa, facilita-nos, mais uma vez a compreensão imediata do
texto do Manifesto. Definitivamente, há muitas coisas que poderemos encontrar
em Marx adaptando-as, claro está, à nossa própria época. Por isso é que
continuo a acreditar que o marxismo se mantém, como filosofia, inultrapassável
do nosso tempo.
Em primeiro lugar não se pode
falar, a não ser por graça, de desaparecimento da classe operária, visto que a
China e a Índia, que têm quase metade da população humana, se converteram nas
duas principais manufactureiras do mundo que alimentam o comércio mundial. Além
disso, subsistem alguns operários ainda noutros lugares, não acham? Isto, sem
contar com todos esses imigrantes que trabalham na Europa ou nos Estados
Unidos, amiúde clandestinamente e, mais amiúde ainda, invisíveis ou quase. Isto
parece-me dificilmente contestável… Na realidade, estas considerações relativas
à pretensa extinção da classe operária parecem-me euro – ou
«ocidental»-centrica. Em grande parte nascem sobre o húmus da antiga exploração
colonial; germinam num mundo em que a classe operária ocidental pôde e pode
continuar (ainda que em menor medida) a beneficiar, embora mais exiguamente, de
migalhas provenientes da pilhagem de países pobres. Noutros tempos esta
realidade contribuiu para prevenir a explosão de uma verdadeira revolução na
Europa, e as estruturas capitalistas puderam assim manter-se, embora muito
contestadas por correntes políticas poderosamente organizadas.
Desindustrializai à toa; devastai regiões inteiras fechando os locais de
produção em que antes se concentravam muito visivelmente operários
qualificados. Não apanheis nunca o metro antes das 7H30 da manhã; olhai
fixamente para a televisão, que não vos dá quase nunca a palavra; e sobretudo,
não viajeis: tereis então suficientes razões para não ver a classe operária e
até mesmo para imaginar que está morta…
Para isso, e em muitas ocasiões
como foi o caso de 1981, a social-democracia serviu de «salva-vidas» do sistema
e de amortecedor extremamente eficaz para deitar por terra qualquer tentativa
de alteração social. Mas a crise está aí. Aí mesmo. Rir-se-iam na nossa cara se
na década de 1960 algum de nós tivesse o atrevimento de defender a tese da
pauperização absoluta da classe operária nos países capitalistas desenvolvidos:
então, nos EUA uma família operária podia, sem dificuldades de maior, ter dois
carros… Daí para cá não acabámos de acordar das ilusões de um passado muito recente
(o da época que o pensamento único decidiu baptizar de «Os Trinta Gloriosos
Anos»). Estamos confrontados com um mundo preenchido de insuportáveis
desequilíbrios, um mundo em que o poder aquisitivo dos que trabalham (e dos que
estão impedidos de o fazer) se reduz à sua expressão mais simples.
Em suma, apesar da destruição da
escola pública, da saúde pública, de tudo aquilo que foi conquistado graças à
luta, subsistem ainda, sem margem para dúvidas, possibilidades de
concentrações, de alianças, não só de operários franceses e operários
italianos, europeus, mas também de operários europeus e trabalhadores
«extracomunitários», como acontece no vosso país. Todos têm, fundamentalmente,
interesses convergentes, sejam quais forem as diferenças existentes entre os
seus percursos, as suas crenças privadas, os seus ritos, os seus hábitos
alimentares. Sejam quais forem os mexericos do fascismo vindouro, ou que
poderá, pelo menos, voltar. Toda aquela gente é, com efeito, mercadoria humana.
Uma mercadoria cada dia tratada com menos consideração.
A crise
2. Não é segredo para ninguém: o
sentimento de declínio invadiu a maior parte da Europa. Nos nossos países
evoca-se hoje incessantemente, com uma nostalgia não desprovida de amnésia, os
«30 gloriosos» (que não eram gloriosos para toda a gente!), isto é, os 30 anos
de expansão económica, de pleno emprego e de crescimento industrial que se
seguiram ao fim da segunda guerra mundial. Até ao fim da década de 1970,
inclusive aos olhos de muitos comunistas, a ideia de que nos países da OCDE a
classe operária pudesse um dia empobrecer parecia uma ilusão. O capitalismo
ocidental parecia destinado a puxar indefinidamente para «cima» o conjunto das
rendas.
Com a crise surgida em 1973,
estas utopias começaram a perder todo o crédito. Dezenas de milhares de pessoas
começaram a dormir nas ruas. O desemprego começou a respeitar a mais de 26
milhões de pessoas na Europa: na Grécia, na Irlanda ou em Portugal a história
repete-se e verdadeiros fluxos migratórios começam a formar-se em direcção ao
Canadá ou à Austrália. Por falta de meios, os sectores públicos deterioram-se:
os transportes urbanos, mas também o sector da saúde, o da educação, etc.. Os
salários são cortados, comprimidos, ao ponto de quase um francês em cada seis
viver actualmente sobre a «linha de pobreza». As camadas médias estão
confrontadas com dificuldades que, há 20 anos, pareciam impensáveis. Em resumo,
a afirmação do jovem Engels segundo a qual a sociedade capitalista tende a
dividir o mundo em milionários e pobres (…bis die Welt in Millionäre und
Paupers geteilt ist) [1] não poderá surpreender ninguém.
Do ponto de vista ideológico é
preciso constatar que, como noutras épocas de crise, a mobilização dos
trabalhadores (ou dos não trabalhadores!) em luta pela sua sobrevivência
económica e social depara com redobradas dificuldades. O fim da União Soviética
e a forma como esta foi apresentada pela propaganda oficial formataram muitos
dos que tinham 15 ou 20 anos em 1968 nas suas viagens e na sua adesão, mais ou
menos total, ao sistema vigente. O oportunismo afluiu aos partidos comunistas
oeste-europeus que pareciam considerar como dados intangíveis o estado da muito
relativa «democracia» e da ainda mais relativa prosperidade que prevalecia
ainda na Europa até à década de 80, mesmo quando esta prosperidade começava a
marcar passo, e esta «democracia» estava prestes a ser sistematicamente
destroçada (votações espezinhadas, guerra permanente contra as liberdades
públicas e os direitos sindicais, crescimento exponencial das medidas de
controlo social e da confusão burocrática neoliberal, etc.).
E é assim que a Europa, em meados
dos anos 1980, pôde contar com 17 governos conduzidos por social-democratas,
com os resultados que se conhecem: financeirização da economia em demasia, crescente
descomprometimento do Estado salvo no que respeita à «vigilância nocturna»
(exército, polícia) perfeita confusão entre da «direita» e «esquerda», que se
revezam desde esta época na imposição aos povos de um plano de austeridade após
outro (lembremos a propósito o que disse um dia Gianni Agnelli, o patrão da
FIAT: «quando as coisas se complicam a tal ponto, a esquerda faz melhor o
trabalho que a direita»). Tal como em França onde no espaço de trinta anos, a
parte da riqueza produzida que passou da remuneração do trabalho, isto é dos
salários, para a remuneração do capital, isto é, sobretudo dividendos,
corresponde a 10 pontos do Produto Interno Bruto (PIB)…
O nosso seminário “Marx no século XXI” (na Sorbonne)
3. Foi neste contexto em que as
actuais lutas operárias são, infelizmente e por enquanto, essencialmente
defensivas, neste clima de anticomunismo generalizado com um perfume de
pré-guerra, que lançámos em 2005 com alguns colegas um seminário semanal
chamado «Marx no século XXI». Na Sorbonne. Para mostrar, ali, a presença do
marxismo que alguns diziam estar «morto» desde há muito tempo. Por vezes este
seminário junta 200 pessoas, nunca menos de 100. Vinde ver! Tomai nota deste
endereço: http://chspm.univ-paris1.fr/spip.php?article271.
Aí vereis que filmámos mais de
150 comunicações feitas por quase outros tantas/os convidadas/os. Dezenas de
milhares de pessoas acompanham semanalmente na internet as nossas conferências
e outras jornadas de estudo.
Guardadas as distâncias (!), a
ideia que presidiu ao lançamento deste seminário foi um pouco análoga à que,
noutros tempos, levou Lenine a fundar o seu jornal Iskra, um jornal destinado,
dizia, a reunir, a federar mil energias até então dispersas na Rússia dos
czares. Para nós, tratava-se de convidar, uma após outra, todas aquelas e todos
aqueles que, até aqui, trabalhavam ou julgavam trabalhar «no seu recanto»,
isoladamente, nas condições actuais de pesquisa em França e fora: pois em França
particularmente as pesquisas marxistas foram marginalizadas desde há muito
tempo, quando não foram mesmo censuradas.
É claro que a vinda de Domenico
Losurdo, Enrique Dussel, David Harvey ou de George Labica, André Tossel, Daniel
Bensaïd, Michael Löwy, Slavoj Zizek, etc., constituíram grandes momentos do
seminário! E é também claro que, do ponto de vista político, sentimo-nos muito
próximos de pessoas como Losurdo ou Labica (este último infelizmente já
desaparecido). Quanto a alguns outros dos nossas/os amigas/os e convidadas/os,
pesar da estima que tenho por eles, tenho vários desacordos com eles,
particularmente no que respeita à sua maneira de abordar a questão do muito
necessário balanço da experiência do «socialismo real».
Dito de outra maneira, vemo-nos
reduzidos neste momento a adaptar-nos ao que Immanuel Wallerstein chamou os
«mil marxismos»: aí está o efeito de uma situação tão apaixonante como
inquietante, de uma situação que é a nossa, e que se caracteriza, como dizem,
por uma cruel falta de organização revolucionária na Europa, no momento em que
o sistema vacila nas suas bases.
O trabalho humano e o sistema do dinheiro
4. Como não é possível falar de
tudo, falarei agora do jovem Marx, o que não significa (acaso será útil que o
precise?) que esqueça o Manifesto do Partido Comunista ou o Capital! Começarei
por lembrar um belo texto de Cícero (Dos Deveres, II, IV, 14-15) que me parece,
além dos séculos, susceptível de esclarecer o presente trecho: «Pensa ainda nos
aquedutos, no desvio dos cursos de água, na irrigação dos campos, nos diques
contra as inundações, nos portos construídos pelas nossas mãos; como seria
possível isso tudo sem o trabalho dos homens? Através destes exemplos, entre
muitos outros, fica claro que o benefício e a utilidade que retiramos de coisas
inanimadas não poderiam ser alcançados de nenhum outro modo, a não ser pelos
braços e o trabalho dos homens. Quanto aos benefícios e as vantagens que
obtemos dos animais, como poderíamos obtê-los se os homens não viessem
ajudar-nos? Uma vez que os primeiros que descobriram o jeito de empregar cada
espécie de animais foram certamente os homens; desde essa época, não poderíamos
sem o trabalho dos homens nem apascentar os animais, nem domesticá-los nem
abrigá-los, nem tirar proveito útil, nem especialmente exterminar os animais
daninhos, nem apropriar aqueles que podem servir para nosso uso. […] É só por
isso que a civilização humana se distingue da maneira de viver dos animais».
Então, para o jovem Marx, para o
Marx dos Manuscritos de 1844, a via de acesso ao estudo do trabalho é a análise
dos sintomas da sua perversão. Para Marx trata-se de descrever a alienação nas
suas formas ideológicas para regressar às suas formas concretas, à sua origem:
àquilo que se chama o trabalho alienado.
A alienação económica é
claramente designada, em 1844 como a da vida real. A miséria resulta da
essência do trabalho actual. Do mesmo modo que noutro tempo se opuseram amo e
escravo, mais tarde patrício e plebeu, depois soberano e vassalo, vemos hoje
oporem-se o que não trabalha e o trabalhador, escrevera Gans, um professor
hegeliano a cujos cursos Marx assistira em Berlim (reconhece-se aqui uma frase
que se encontrará no Manifesto). Assim, o que se opõe à emancipação da
humanidade é a desigualdade social que levanta os homens uns contra os outros.
A realidade é esta: se é bem
verdade que o trabalho produz maravilhas para os ricos, ele é a miséria para o
operário. Adam Smith, o fundador da economia política clássica, afirma que, na
origem, «o produto inteiro do trabalho pertence ao operário» [1]. Mas reconhece
ao mesmo tempo que é a parte mais pequena e estritamente indispensável que lhe
cabe. A economia política burguesa explica assim ao mesmo tempo que tudo se
compra com o trabalho, e que os proletários estão obrigados a venderem-se todos
os dias. Por um mesmo movimento do pensamento proporcionaram-se os meios para
não reconhecer a alienação do trabalho. A sua objectividade de fachada
ratifica, consagra a alienação dos homens. Não se preocupa com a vida do homem,
e é essa a sua infâmia.
Quando considera o proletário
somente como um operário, quando vê no homem apenas uma máquina de consumir e
produzir, um «burro de carga», quando considera a vida humana como um capital,
quando abandona o homem no tempo em que o médico não trabalha, o juiz e o
coveiro e o preboste de mendigos, dizem ao operário: se por acaso não tiveres
trabalho, portanto nem salário – como não existes para mim como homem mas
apenas como operário, podes morrer de fome e ser enterrado. A categoria de salário
assume assim para o economista a de mínimo vital para o operário e a sua
família, - mínimo para que a raça dos operários não desapareça. E esta é
indiferença dos teóricos a respeito dos homens encontra uma simbologia perfeita
no modelo da lotaria proposto por Smith: «Numa lotaria perfeitamente igual, os
que tiram os bilhetes premiados devem ganhar tudo o que perdem os que tiram os
bilhetes sem prémio. Numa profissão em que vinte fracassam por cada uma que tem
sucesso, este último tem de ganhar tudo o que poderia ter sido ganho pelos
vinte que fracassaram» (that one ought to gain all that should have been gained
by the unsuccessful twenty) [2]. E o reino do dinheiro manifesta-se,
evidentemente, pela proliferação anárquica das necessidades, sem qualquer
relação com as exigências naturais do homem.
Então, se o trabalho só aparece
no discurso dos economistas sob a forma da actividade que proporciona um ganho,
isso quer dizer que o operário no «estádio da economia» (é assim que Marx chama
então ao capitalismo), já não pode ter mais actividade do que para adquirir os
meios de subsistir. Por isso, o objecto do trabalho é indiferente para o
operário, pois este vê-se espoliado por outro homem, pelo capitalismo que o
domina como deus domina o seu servidor, no preciso momento em que os milagres
dos deuses se tornam supérfluos devido ao trabalho humano. O que conta para o
trabalhador é quase exclusivamente a remuneração em dinheiro que o capitalista
aceitará dar-lhe depois da operação de produção.
E a alienação do objecto do
trabalho (o facto de ter que o ceder a um outro) mais não é do que o resumo da
alienação, do desapossamento na actividade de trabalho própria. O operário, ao
depender cada vez mais de um trabalho penoso unilateral, mecânico, somente
trabalha para manter a sua vida, debilita-se com esse trabalho, que perdeu para
ele a aparência de manifestação de si-próprio. Todo o seu penoso trabalho é
exterior, estranho ao operário, já que não realiza a sua essência, mas pelo
contrário encontra nele a sua negação. Definitivamente, o trabalho deveria ser
gozo da vida, prazer e o operário não se sente bem com ele próprio mais do que
fora do trabalho.
A necessidade social e a
necessidade humana não têm mais nada de comum, o individuo é, em terceiro
lugar, totalmente separado do que Marx, depois de Feuerbach, chama a vida
genérica, o género (die Gattung). Algo assim como a «essência» do homem. Marx
abandonará mais tarde esta categoria, no fim de contas muito abstracta. Mas o
essencial do que afirma ainda é actual: o trabalho lucrativo aliena, destrói a
natureza do homem, isto é, o seu ser-sociável. O trabalho, a vida foram
conduzidos a um mero meio de sobrevivência. A «essência» do homem tornou-se
assim o meio da sua existência.
A indústria constitui o «livro
aberto» das forças humanas essenciais. Quase não encontramos hoje objectos
puramente naturais: a actividade humana é «a base de todo o mundo sensível tal
e como existe nos nossos dias [3]. E no entanto, como se tornou alheio ao
produto do seu trabalho, para a actividade vital e para o ser genérico, o homem
tornou-se estranho para o outro homem. O outro é um poder hostil ou, no máximo,
um objecto que se pode utilizar para satisfazer interesses egoístas. O
capitalismo leva assim até o fim o que Marx chamará mais tarde no Capital a
reificação das relações sociais, isto é, a dominação da matéria inerte sobre os
homens. Leva ao paroxismo o que Georgy Lukács chamará ainda mais claramente, em
História e consciência de classe (1923) a «dominação da economia sobre a
sociedade».
Por isso, depois de indicar desde
1843, as insuficiências do que se chamava o «partido político histórico», Marx
nesses manuscritos redigidos em 1844, parece abraçar a ideia de que «não é a
crítica, mas o proletariado a força motriz da revolução». Esta ideia, o
Manifesto, tal como toda a actividade prática, dar-lhe-ão vida, fá-la-ão passar
aos factos.
Lenine, depois de Marx
5. Como sabeis, Marx declara na
11ª das suas Teses sobre Feuerbach que até àquele momento os filósofos não
fizeram mais do que interpretar o mundo, mas que a partir desse momento
trata-se de o transformar. Na sua própria biografia, podemos ver que colaborou
na Gazeta Renana, proibida em 1843. Viu-se então obrigado a exilar-se em Paris.
Em 1845 foi expulso de França a petição de Humboldt, o embaixador da Prússia, e
vai então para Bruxelas. A seguir, depois do sismo das revoluções de 1848, a
reacção triunfa em toda a Europa. De Junho a Agosto de 1849, Marx tem de se
refugiar de novo em Paris (de onde é de novo expulso), e depois em Londres,
onde ficará quase todo o tempo. Conheceu grandes dificuldades materiais, uma
miséria extrema, a ponto de a sua mulher e ele perderem quatro dos seus sete
filhos. Definitivamente, Marx teve a vida de um militante revolucionário, de um
homem comprometido, assediado, e não a de um filósofo de gabinete. Foi também
em Londres que em 28 de Setembro de 1864 participou na fundação da Associação
Internacional dos Trabalhadores; e é em nome do Conselho Geral desta 1ª Internacional
que redigirá, em 1871, três «discursos» em que exalta a obra dos communards
parisienses e analisa as causas da sua derrota. («sabes, escreve em Junho ao
seu amigo Kugelmann, que durante o tempo todo da última revolução parisiense
fui denunciado como o grande chefe da Internacional pelos papéis de Versalhes e
pela repercussão entre os jornalistas daqui. […] E agora, além disso, o
Discurso […] Provoca um ruído infernal e tenho a honra neste momento, de ser o
homem mais caluniado e mais ameaçado de Londres»).
As seis teses que resumem o
essencial daquilo que Lenine disse mais tarde a respeito da ideia de revolução,
e também da acção própria que Lenine conduziu na Rússia no início do século
passado, parecem assim, muito logicamente, prolongar a postura e a inspiração
fundamental de Marx. Para acabar permitam-me referir uma vez mais estas seis
teses:
As seis teses que para mim
resumem o essencial daquilo que Lenine disse, mais tarde, a respeito da ideia
de revolução, e também da própria acção que Lenine leva avante na Rússia no
início do século passado, parecem assim prolongar muito logicamente a postura e
a inspiração fundamental de Marx. Para acabar, permiti-me referir, mais uma
vez, estas seis teses:
1) A revolução é uma guerra.
Lenine compara a política com a arte militar e sublinha a necessidade da
existência de partidos revolucionários organizados disciplinados, pois um
partido não é um clube de reflexão (dirigentes do Partido Socialista: obrigado
pelo espectáculo!).
2) Para Lenine, tal como para
Marx uma revolução política é também, e sobretudo, social, isto é uma mudança
na situação das classes em que a sociedade se divide. Isto significa que é
sempre conveniente perguntar qual a natureza real do Estado, da «República».
Assim, a crise do Outono de 2008 mostrou, com evidência, como nas metrópoles do
capitalismo o Estado e o dinheiro público podem estar ao serviço dos interesses
dos bancos e de um punhado de privilegiados. Dito de outro modo, o Estado não
está, em absoluto, acima das classes.
3) Uma revolução faz-se de uma
série de batalhas, e cabe ao partido de vanguarda, em cada etapa da luta,
escolher a palavra de ordem adaptada à situação e às possibilidades. Sem isso,
o movimento esgota-se e desanimam os que esperaram em vão que se lhes indicasse
a natureza precisa dos objectivos a atingir e o sentido geral da marcha…
4) Os grandes problemas da vida
dos povos sempre se resolveram pela força, também sublinha Lenine. «Força» não
significa, longe disso, violência aberta ou repressão sangrenta contra os outros!
Quando milhões de pessoas decidem convergir num lugar, por exemplo na Praça
Tarr no centro do Cairo, e fazem saber que nada os fará recuar frente a um
poder detestado, estamos já, e em pleno, no registo da força. Segundo Lenine,
trata-se de atacar as ilusões de um certo cretinismo parlamentar ou eleitoral
que conduz, por exemplo, á situação em que estamos agora: uma «esquerda»
concentrada quase exclusivamente nos prazos de que uma imensa massa de cidadãos
não espera, e com razão…, quase nada.
5) Os revolucionários não devem
desprezar a luta pelas reformas. Lenine estava consciente de que em
determinados momentos uma dada reforma pode representar uma concessão
temporária, ou mesmo um rebuçado, concedido pela classe dominante para melhor
adormecer os que resistem. No entanto, considera que uma reforma constitui uma
base nova para a luta revolucionária.
6) Depois do início do século XX,
a política começa onde estão os milhões ou mesmo dezenas de milhões de homens.
Ao formular esta sexta tese Lenine pressente que os lares da revolução tendiam
a deslocar-se cada vez mais para os países dominados, coloniais ou
semicoloniais. De facto, desde revolução chinesa de 1949 até ao período das
independências, na década de 60 do século passado, a História confirmou plenamente
este clarividente prognóstico.
Definitivamente, há que ler
Lenine, depois do dilúvio e do fim do «socialismo real». Lê-lo e relê-lo. Há
que ler Marx. Ou relê-lo. Há que estudar os seus escritos sempre tão actuais.
Para preparar o futuro.
Notas:
[1] SMITH (A.), Recherches sur la nature et les causes de la richesse des
nations [1776], I, VIII ; trad. G. Garnier [revue par A. Blanqui], Paris, GF
Flammarion, 1991, t. I, p. 135.
[2] Ibid., I, X, 1ª secção : “Des inégalités qui procédent de la nature même des
emplois” ; ob. cit., t. I, p. 180.
[3] Marx e Engels escreveram isto em 1845 na Ideologia alemã.
* Jean Salem, amigo e colaborador
de odiario.info, é Professor de Filosofia na Sorbonne, França.
Tradução de José Paulo Gascão, a
partir da versão em galego, distribuída nas Jornadas Independentistas Galegas.
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