Por Tarso Genro*
A social democracia atual e a originária no debate
socialista.
1.
Nos idos de 1989 num debate promovido pela Fundação
Perseu Abramo entre figuras do pensamento crítico de esquerda,[1] fiz algumas afirmativas em diálogo com o
grande Carlos Nelson Coutinho, que lembro neste texto-resumo: “Uma das linhas
mais importantes de reflexão, no Brasil, sobre as relações entre a democracia e
socialismo – com inspiração sobretudo nas teses do PCI e na experiência do
austromarxismo – vem sendo desenvolvida por Carlos Nelson Coutinho (…)”.
Naqueles “idos de 89” já se debatia a inclusão, no debate socialista mundial,
de ecologia, sexualidade, cultura urbana, crítica do irracionalismo, solidão
coletiva e democracia política. As liberdades políticas, o pluralismo
ideológico, as garantias dos direitos individuais na remodelação doutrinaria do
socialismo se aceleravam (através de um debate heterodoxo e revisionista),
tanto sobre as questões da socialdemocracia como a respeito do socialismo real.
O modelo capitalista de desenvolvimento industrial
persistia, mas, ao lado dele (e “por dentro dele”) outro mais dinâmico se
expressava, através de novas formas de exploração e novos padrões de
acumulação, que não só diminuíam o trabalho direto na indústria, mas também
desenvolviam formas alternativas de organização geral do trabalho e formas mais
dinâmicas de controle do processo produtivo.
O surgimento de novas “classes” trabalhadoras e das
novas formas de aquisição pelo capital – da força de trabalho e das novas
tecnologias – impulsionavam uma tendência oposta ao previsto pelo Manifesto Comunista. Não mais ocorria uma crescente simplificação dos
entes da sociedade de classes e o proletariado deixava de se concentrar em
grandes fábricas, dispersando-se, tanto vertical como horizontalmente.
Era o momento histórico em que o apoio “a não
limitação da riqueza dos ricos”[2] começava a ser aceito como moralidade “sadia”
na tragédia da vida real: o imediato e o futuro, assim, se fundiam na vida
cotidiana, de forma muito mais rápida e menos evanescente. O cinismo burguês
começava uma nova etapa de controle das mentes escravizadas, ensinando que
qualquer “transição” a ser experimentada seria dentro do sistema capital, logo,
a partir da disseminação das políticas compensatórias e do estímulo ao
empreendedorismo no individual. A criação de novas formas para produzir, viver
em comunhão, lutar contra a desigualdade e a pobreza, germinando o futuro nas
frestas da dominação sociometabólica do capital, tornava-se mais difícil.
A discussão sobre temas como estes, no interior da
esquerda nunca foi fácil. Já Ernst Bloch entendia que os dois grandes desvios
da filosofia de Marx, depois de sua morte, foram o “desvio socialdemocrata” e o
“desvio stalinista”. Bloch defendera que “o marxismo corria menos riscos por
parte dos seus inimigos declarados do que por parte das ações dos seus amigos”
(…), o que – segundo muitos dos seus discípulos – foi uma constatação lúcida
“confirmada por muitos acontecimentos no âmbito Soviético, após o final da
Segunda Guerra Mundial”.[3]
O capitalismo mudou muito e para pior, a partir dos
anos 1970. Hoje podemos afirmar que a diluição socialdemocrata de esquerda –
que esteve no centro do debate – facilitou “o produto final do neoliberalismo
(que) não é o renascimento da economia liberal, (mas) o incremento do
privatismo sem redução do oligopolismo”.[4] A saída pedida pelo “Consenso de
Washington”, através do rentismo, não poderia mais se apoiar em sujeitos sociais
capazes de negociar um pacto de inclusão, no mesmo patamar socialdemocrata
inspirado em Weimar.
Para dissimular as suas estratégias autoritárias,
os quadros do liberalismo radical moldaram uma ideologia do “caminho único”,
por dentro da democracia liberal, embora Hayek já dissesse que preferia a
ditadura com liberalismo econômico, à democracia foi economia liberal. A
dissimulação neoliberal em relação à democracia foi amparada numa estratégia de
“foco”, em políticas compensatórias destinadas aos descartáveis do sistema. Sua
função seria recuperar uma parte da vida comum solidária, que fora ajustada por
acordo, no mercado dos “valores” históricos do humanismo burguês.
Os movimentos sociais de defesa de direitos,
todavia, passaram a ser entendidos como uma espécie de “subversão” do
empreendedorismo mercantil, pois, do seu ângulo, as demandas por direitos
bloqueariam a “evolução” das novas necessidades do mercado. É o contexto que se
desdobra, depois, na tese da infiltração do “marxismo cultural”, que coordenaria
a ação política da direita mais primitiva, para propagar que qualquer tentativa
de reorganização de um pacto socialdemocrata seria uma nova ameaça comunista.
Para entender o que ocorre hoje sustento que
devemos revisar às raízes do debate socialdemocrata que precedeu a Revolução
Russa, revisitando a ruptura que redundou nos dois projetos de esquerda, no
mundo do pós-guerra: a socialdemocracia, como reforma do sistema capitalista
(Bernstein, Kautsky) e o Estado Soviético (Lenin, Tróstky, Stalin) como experiência
de um novo Estado, ora como pretensão da democracia direta proletária, ora como
Capitalismo de Estado, sob o alegado controle do ”partido do proletariado”.
Penso que o debate renovador da esquerda e a
retomada da ideia socialista será possível se concebermos a passagem do tempo
histórico em condições diferentes, opostas àqueles tempos de rupturas bruscas,
tornando-as irrepetíveis. A disseminação das alternativas hoje se dão fora de
um tempo de mudanças ascendentes, que eram impulsionadas pelas crises
sucessivas do capital. Estas crises, hoje, são mais superadas pela evolução
revolucionária nas técnicas produtivas, que ensejam novas formas de controle
ideológico que bloqueiam reformas substanciais. Antes, o tempo permitia
confrontar, no próprio movimento e na ação política, o campo “social-democrata”
e o campo “bolchevique”, como duas possibilidades distintas: hoje, tanto a
reforma como a revolução podem ser impulsionadas pelo mesmo tipo de impasses
radicais na estrutura da ordem: nenhuma reforma social séria, que abra
tendências para mais igualdade social será obtida com luvas de pelica por
dentro de ordem.
Entendo que as ideias reformistas ou
revolucionárias, socialistas e socialdemocratas, que ocorreram no século
passado, então, não podem ser mais avaliadas a partir das bases materiais e
sociais que lhe deram pertinência: no tempo atual as alternativas coexistem de
forma paralela (mais convergentes do que divergentes) e concentram (no mesmo
movimento)as alternativas da revolução e da reforma, diferentemente do que
ocorria no século passado.
O desenvolvimento atual das forças produtivas
unifica revolução e reforma, em cada confronto concreto e em cada alternativa
política aos sistemas políticos do capital. O imposto expropriatório do
excedente nas grandes fortunas, por exemplo, encerra as possibilidades tanto de
um reformismo forte, como de uma transformação social radical. É por dentro
deste tempo – portanto – que podem caminhar os debates e as lutas
emancipatórias, por uma nova ideia socialista, a partir de cuja ideia se possa
diferenciar, tanto as justas, como as injustas críticas à alternativa
socialdemocrata concreta, atual, como forma capitalista contraposta ao Estado
real que resultou da Revolução Russa de 1917.
É no âmbito nos grandes centros urbanos, que se
colocam os elementos mais típicos do novo poder financeiro
(monopolista-midiático) cujos efeitos explodem de maneira mais universal. É
onde a crise se torna mais ameaçadora e, ao mesmo tempo, mais estimulante, do
ponto de vista estratégico, para que se possa pensar e já começar a realizar –
de forma celular – o novo projeto emancipatório. Aceitar esta hipótese de
debate implica em reavaliar alguns conceitos clássicos da “democracia”,
“socialdemocracia” e “socialismo”, retidos na discussão histórica da esquerda,
para melhor caracterizá-los no tempo dos movimentos globais do dinheiro.
É nas cidades, junto à classe operária tradicional,
que se formaram as novas “classes trabalhadoras” compostas por grupos
dispersos, articulados em redes de serviços, trabalhando isoladamente ou em
pequenos grupos. Ali surgem milhões de trabalhadores, “meio-jornadistas”
intermitentes, precários ou autonomizados, em função da própria natureza da
demanda. Eles se originam dos novos processos e instrumentos da produção que
geram, ainda, a massa de prestadores “autônomos” da “sociedade
digital-informática”, sem perspectivas autênticas de vida e mobilizados para
prestações intermitentes.
Os prestadores autônomos da produção do lazer e
cultura, prestadores de serviços para idosos, crianças e deficientes;
assalariados e autônomos da informática, operários cooperativados, entregadores
de mercadorias, empregados em serviços terceirizados; os trabalhadores em Ongs,
em pesquisa e publicidade, bem como um novo “exército de reserva” de milhares
de jovens (portadores de uma nova cultura de trabalho ou atividade) – todos
estes – estão no centro de um novo modo de vida: com novas linguagens, nova
estética, outra ética, que não a criada na civilização industrial que gerou a
“árvore socialdemocrata”, fundada em novas formas de viver e compreender a
“polis”.
A vida baseada em mais salários e mais seguridade
não mais poderá tornar-se garantia ampla no capitalismo atual, bem como a
própria existência do emprego, na forma jurídica clássica não será mais
garantia para a sobrevivência comum. Essa dissolução dos modos tradicionais da
vida industrial e das suas formas políticas obstam as saídas coletivas que
seriam razoáveis dentro do capitalismo tradicional, como as que os
trabalhadores da indústria experimentaram – até ontem – no contrato
socialdemocrata tradicional.
Os trabalhadores “de carteira” do mundo do trabalho
clássico tornaram-se portadores de uma subjetividade coletiva em crise e a
crise de impotência do seu sindicalismo abre, então, um enorme vazio de
estratégias e de formulação política. Sua experiência cotidiana não consegue
mais abranger a múltipla diversidade do novo mundo do trabalho, que, ao mesmo
tempo em que suprime, invade e fraciona a forma e o conteúdo da “velha” fábrica
moderna. A própria estética da política proletária amarga o seu fim.
Reporto-me ao formulado como memória e teoria, por
Boaventura de Souza Santos: “A social-democracia e os direitos econômicos e
sociais significaram momentos de trégua nos conflitos mais agudos entre os dois
princípios (do Estado e do Mercado). Esses conflitos não eram resultado de
meras oposições teóricas, mas, resultavam das lutas sociais das classes
trabalhadoras, que buscavam no Estado o refúgio contra as desigualdades e os
despotismos gerados pelo princípio de mercado”.[5]
A classe operária tradicional, cerne das velhas
lutas, vive então perante um futuro ainda mais incerto num presente de “amos”
invisíveis, com suas novas formas de dominação e de controle da opinião, “(n)um
mundo cujas profundíssimas e aceleradas transformações começaram a deixar para
trás a velha estrutura de classes, sem que, (….) saibamos muito bem (…) quem
são os novos dominadores e quem são os novos dominados”.[6]
Notas
[1] Apolônio de Carvalho, Carlos Nelson Coutinho, Fábio Konder Comparato, Flávio Koutzii, Francisco Correia Weffort, Geraldo Cavagnari Filho, Jacob Gorender, José Arthur Gianotti, José Dirceu, José Genoino, Luiz Inácio Lula da Silva, Márcio Thomaz Bastos, René Dreifuss, Tarso Genro, Wanderlei Guilherme dos Santos e Wladimir Pomar.
[2] Dahrendorf, Ralf. O Conflito Social Moderno – Um Ensaio Sobre a Política da Liberdade, Jorge Zahar Editor, Edusp, SP, 1992, p. 30;
[3] Bloch, Ernst, “Marx, Aufrechter Gang, Konkrete Utopie”, in: Über Karl Marx, Frankfurt, 1968, p.165-166, “in” Munster, Arno, Ernst Bloch: Filosofia da Práxis e Utopia Concreta, Ed. Unesp, 1993, p. 91
[4] Lago, Benjamim Marcos. Dinâmica Social – Como as Sociedades Se Transformam, Ed. Vozes, Petrópolis, 1995, p. 235.
[5] Santos, Boaventura de Souza Santos, “esquerdas do mundo, uni-vos!”, Boitempo, São Paulo, 2018, p. 27.
[6] Morales, Angel Garrorena. Representación Politica y Constitución Democrática, Editorial Civitas, Madri, 1991, p.108.
[Continua]
FONTE: A Terra é Redonda
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