Por Wladimir Pomar
A atual crise econômica, social e política que o Brasil atravessa, em
grande parte como produto da crise capitalista global, tende a trazer à
tona, cada vez com mais força, a possibilidade e a necessidade do país e
de seu povo evoluírem para o socialismo como condição para sair da crise e
evoluir por um caminho mais seguro. É verdade, por outro lado, que as visões
das diversas forças nacionais de esquerda a respeito da formação econômico-social
socialista são extremamente díspares, em grande parte porque também são díspares
suas interpretações sobre o capitalismo, assim como sobre o processo
histórico de evolução da sociedade brasileira
.Começando
por essa evolução é comum, por exemplo, a suposição de que a principal característica
ou a principal peculiaridade do Brasil seria a desigualdade social extrema.
No entanto, tal desigualdade tem sido peculiar a todos os países capitalistas
e também aos países que não ingressaram nessa formação econômica e social.
Tal desigualdade (uma universalidade) está se tornando extremada inclusive
nos países capitalistas avançados, o que permitiu a Thomas Piketty assegurar
e demonstrar que a tendência de aumento dela se aproxima dos níveis existentes
durante os anos 1910.
Talvez o mais apropriado seja supor que a principal peculiaridade do
Brasil é o modelo específico de sociedade capitalista que resultou
de sua evolução histórica. Caio Prado Jr, por exemplo, assegurava que “na
base e origem da nossa estrutura e organização agrária, não encontramos,
tal como na Europa, uma economia camponesa, e sim a mesma grande exploração
rural que se perpetuou desde o início da colonização brasileira até
nossos dias”. Tal “exploração rural” teria se adaptado “ao sistema capitalista
de produção”, embora de forma não inteiramente completa, sobretudo na
“substituição do trabalho escravo pelo trabalho juridicamente livre”.
Assim,
os fazendeiros ou latifundiários brasileiros teriam constituído,
desde o início, uma burguesia. Tal burguesia brasileira não teria se formado
com a industrialização, no século 20, nem com a cafeicultura fluminense
e paulista do século 19, ou com a pecuária, do século 17, mas com as plantations
de cana e com os engenhos de açúcar do século 16. A colonização portuguesa
do Brasil teria sido motivada por interesses capitalistas, conformando
uma classe dominante luso-brasileira com características burguesas, fazendo
com que a acumulação capitalista tenha precedido a abolição da escravidão.
Ou seja, embora Caio Prado Jr. tenha reconhecido que as relações de trabalho
assalariado tenham sido marginais, frente às relações sociais pré-capitalistas
prevalecentes, isso não modificou em nada sua suposição de que o Brasil
jamais conheceu uma classe dominante que não fosse burguesa, porque o país
teria nascido de uma exploração com objetivos capitalistas comerciais.
Dizendo de outro modo, para ele o comércio seria a característica principal
do capitalismo, independentemente de outras considerações.
Confundiu, portanto, o processo mercantil que levou à acumulação de capital,
realizado principalmente pela Espanha, Portugal, Holanda, Inglaterra
e França, entre os séculos 15 e 17, com o processo capitalista de desenvolvimento
manufatureiro e industrial, com base no capital acumulado e no trabalho
assalariado, realizado pela Inglaterra, França, Estados Unidos, Alemanha
e Japão, do século 18 em diante. Este processo capitalista caracterizou-se
não só pela acumulação de capital, na forma de propriedade privada dos
meios de produção, incluindo dinheiro (o que também foi comum nas formações
sociais escravistas e feudais), mas principalmente pelas relações sociais
de produção entre os proprietários dos meios de produção (capitalistas
ou burguesia) e os trabalhadores livres (operariado, proletariado),
radicalmente diferentes das relações sociais escravistas e feudais.
Nas
formações históricas escravistas e feudais, a renda dos escravocratas
e dos senhores feudais provinha da renda fundiária gerada pelo trabalho
dos escravos (descontado seu custo de captura e de sustento e o custo das
ferramentas) e do trabalho dos servos (que eram proprietários de seus
meios de produção e pagavam a renda aos feudais na forma de corveia e de
parte da produção).
Nessas
formações históricas, os trabalhadores não eram livres. Os escravos
eram considerados animais falantes, de propriedade dos escravistas,
destinados a trabalhos físicos, cuja vida e/ou morte também dependiam do
senhor. Os servos pertenciam à gleba, de onde não podiam ser expulsos, mas
também de onde não podiam sair. O mercado existente no escravismo incluía
tanto a compra e a venda de escravos (em geral capturados à força), quanto a
venda daquilo que os escravos produziam (principalmente minerais e produtos
agrícolas). Já no feudalismo, o mercado não incluía a venda de seres humanos.
No
capitalismo, os trabalhadores são formalmente livres para vender no
mercado não a si, mas a sua força de trabalho, por um tempo determinado. A
renda capitalista, conceituada como valor, é oriunda da apropriação,
pelo capitalista, da parcela do valor gerado pelo trabalhador assalariado
durante seu tempo de trabalho no processo produtivo, mas não paga pelo capitalista.
Ou seja, o operário recebe um salário para trabalhar um número determinado
de horas, mas o salário corresponde apenas a uma parcela do tempo contratado,
enquanto o capitalista se apropria da parte não paga, um mais-valor denominado
por Marx de mais-valia.
As
relações de produção são, pois, a base para a conceituação do tipo de sociedade
imperante. É interessante que a maior parte dos pensadores (historiadores,
economistas etc.) aceita e reproduz tranquilamente que o Império Romano
foi escravista e que as sociedades que resultaram da desagregação
desse império na Europa foram feudais. No entanto, quando examinam as sociedades
americanas resultantes do processo mercantil de acumulação do capital
durante a transição do feudalismo para o capitalismo europeu, alguns
se embaralham porque enxergam no comércio com as metrópoles sua aparente
característica principal, deixando de lado o exame das relações de produção
realmente existentes.
No
Brasil do século 16, como admite o próprio Caio Prado Jr., a relação de produção
assalariada era extremamente minoritária. O jesuíta Antonil, em seu
Cultura e Opulência do Brasil, constatou que tal relação era privilégio
de um ou dois mestres de ofício dos engenhos em meio a uma massa enorme de
trabalhadores escravos. Valério Arcary admite que o “Brasil agrário, até
meados do século 20, era uma sociedade muito desigual e rígida”. Em tal
sociedade teria prevalecido “uma inserção social quase hereditária:
os filhos dos sapateiros, ou dos alfaiates, ou dos comerciantes, ou dos
médicos, engenheiros, advogados herdavam o negócio dos pais. A grande
maioria do povo não herdava nada, porque eram os afrodescendentes do trabalho
escravo, predominantemente, agrário”
.Portanto,
“era estamental porque os critérios de classe e raça se cruzavam, forjando
um sistema híbrido de classe e castas que congelava a mobilidade. A ascensão
social era somente individual e estreita. Dependia, essencialmente,
de relações de influência, portanto, de clientela e dependência através
de vínculos pessoais: o pistolão. O critério de seleção era de tipo pré-capitalista:
o parentesco e a confiança pessoal”. Infelizmente, Arcary não esclarece
as relações que subordinavam o povo afrodescendente “predominantemente
agrário”, que constituiu a maioria da população brasileira após o fim do
escravismo, em 1888.
Dizendo
de outro modo, se muitos acham que a chave de interpretação do Brasil deve
ser a desigualdade social, e que a chave dessa desigualdade seria a escravidão,
talvez também seja conveniente examinar a situação do povo afrodescendente
após o final da escravidão, “predominantemente agrário”, e dos descendentes
afros e não afros que, da segunda metade do século 20 em diante, se viram
às voltas com um desenvolvimento industrial e com uma modernização
agrícola totalmente diferentes dos períodos anteriores.
Nesse sentido, vale a pena examinar os processos históricos de evolução e
de revolução do Brasil e dos Estados Unidos que começaram sua história moderna
de forma similar, um como colônia de Portugal, na América do Sul, e o outro
como 13 colônias diversas da Inglaterra, na América do Norte.
FONTE:
Correio da Cidadania
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