terça-feira, 23 de julho de 2013

A desmontagem da "Democracia Representativa"

 Por Miguel Urbano Rodrigues

Jean Salem, com o seu livro "Élections, piège à cons? Que reste-t-il de la démocratie?" [1] dá um contributo valioso para a desmontagem do mito da chamada democracia representativa. Em apenas 104 páginas, o autor consegue imprimir força de evidência a um conjunto de questões que condicionam o futuro da humanidade. Ilumina as engrenagens da falsa democracia, desmonta os mecanismos do circo eleitoral e alerta para o papel que a manipulação mediática representa hoje na estratégia de poder do grande capital.



Capa de "Eleições, armadilhas para
tolos"
Élection piège à cons? Que reste-t-il de la démocratie? [1] de Jean Salem, é uma contribuição valiosa para a desmontagem do mito da chamada democracia representativa. Em apenas 104 páginas, o autor consegue imprimir força de evidência a um conjunto de questões que condicionam o futuro da humanidade. 

Salem, professor de História da Filosofia na Sorbonne, conhecedor profundo do pensamento dos materialistas gregos, consegue numa linguagem muito acessível encaminhar os leitores para a reflexão sobre problemas inseparáveis da crise global que está encaminhando a humanidade para o abismo. 

No seu livro Lénine et la Révolution [2] , recorrendo a seis teses do grande revolucionário russo, demonstrou que elas não perderam actualidade na luta contra a barbárie capitalista. Neste ensaio ilumina as engrenagens da falsa democracia, desmonta os mecanismos do circo eleitoral e alerta para o papel que a manipulação mediática representa hoje na estratégia de poder do grande capital. 

AS DINASTIAS REPUBLICANAS 

Filho de Henri Alleg, Jean Salem herdou do pai o talento de usar a ironia com eficácia na denúncia de facetas pouco lembradas do drama e da comédia politica. Comentando a proliferação das "dinastias electivas" chama a atenção num dos primeiros capítulos para o estranho fenómeno da tendência dinástica em regimes formalmente republicanos. Nos EUA, George Bush pai preparou George Bush filho para chegar à Casa Branca após o intermezzo de Clinton. No Haiti Papa Doc Duvalier teve como sucessor Baby Doc Duvalier. Na Nicarágua foi necessária uma revolução para dar fim à dinastia dos Somoza. No Paquistão Benazir Butto sucedeu a seu pai Ali Butho e o marido, Asif Zardari tornou-se presidente quando a assassinaram. O filho, Bilwal, é o herdeiro provável. Na Índia de Indira Gandhi, filha de Jawaharlal Nehru, o sucessor foi o filho, Rajiv, também assassinado e Sonia, a viúva, uma italiana, somente não foi primeira-ministra porque recusou. Na Coreia do Norte, Kim il Jong herdou a Presidência do pai, Kim Il Sung e o neto deste, Kim Jong Un governa agora o país. Na Colômbia, duas famílias, os Gomez e os Lopez têm vocação dinástica e o actual presidente, Juan Manuel Santos, orgulha-se do fundador da estirpe presidencial, Eduardo Santos. No Togo, Fauce Gnassingbé Éyadmé recebeu o poder do pai Gnassigbé Eyedema. No Gabão, Ali Ben Bongo governa com escassa contestação após o pai, Gongo Omar. Na República Popular do Congo, quando Laurent Desiré Kabila faleceu, o poder foi atribuído ao filho, Joseph Kabila. No Egipto a insurreição popular impediu que Osni Mubarak colocasse no poder o filho Gamal. 

Todos definiram nos seus países a forma de governo como democrática. 

O SUFRÁGIO UNIVERSAL 

O sufrágio universal foi instituído por Napoleão III depois de ter liquidado a República. Não para entregar o poder ao povo, mas como sublinhou Lénine em O Estado e a Revolução – para "o utilizar como instrumento de dominação da burguesia". 

Bismark imitou-o depois de ampliar os privilégios dos latifundiários prussianos. Milhões de eleitores acreditaram ingenuamente que lhes fora atribuído um poder real, quando na realidade o sufrágio universal serviu para reforçar o despotismo. 

Salem recorda que na sua crítica ao parlamentarismo Lénine nunca defendeu o boicote das eleições. Os comunistas, na sua opinião, deviam estar presentes na DUMA (o parlamento do Czar), mas para, vacinados contra o cretinismo parlamentar, defenderem ali os interesses dos trabalhadores. 

Para ele, a democracia capitalista limitava-se a autorizar os oprimidos de três em três ou de seis em seis anos a decidir que elementos da classe dominante os representariam, e calcaria aos pés os seus interesses no Legislativo. Nada mais. Foi igualmente em O Estado e a Revolução – escrito durante a Revolução de Fevereiro de 17 – que Lénine chamou a atenção para a realidade: a verdadeira tarefa do Estado falsamente democrático é executada nos bastidores e não através do Parlamento. Este servia fundamentalmente para enganar o povo e conferir legitimidade à ditadura de classe. 

Transcorrido um século, o mundo mudou muito, mas não a função dos Parlamentos. O seu papel resume-se "a avalisar o que foi decidido sem eles". 

Jean Salem recorda o que se passou com o projecto da Constituição Europeia para desmascarar o conceito de democracia do Estado burguês. 

Quando o povo francês em 2005 votou contra o texto que impunha à União Europeia uma Constituição que institucionalizava o capitalismo, soou o alarme no mundo do capital. E o medo alastrou dois meses depois, quando os eleitores da Holanda num referendo similar rejeitaram também o projecto. 

Porventura a burguesia aceitou o veredicto popular? Não. 

Os governos no poder mudaram o título do Tratado Constitucional, introduziram-lhe alterações cosméticas, mas, em vez de o submeterem novamente à votação do povo, transferiram para os parlamentos a decisão. O desfecho foi o esperado: em França e na Holanda o projecto recauchutado foi facilmente aprovado em 2008. 

Inesperadamente, porém, os irlandeses tinham, em referendo, recusado o mostrengo constitucional. A pressão e a chantagem exercidas sobre aquele povo foram tamanhas que, meses depois, noutro referendo, o Não passou a Sim! 

A partir de então não houve mais referendos em países da União Europeia e os parlamentos aprovaram docilmente o famigerado Tratado. Em Portugal, o governo de Sócrates engavetou para o efeito o compromisso de confiar ao povo a decisão. 

A dualidade de critérios sobre o carácter democrático de "eleições livres" é enfatizada por Jean Salem a propósito do que ocorreu na Palestina em 2006. Ao território afluíram observadores internacionais de dezenas de países. Os EUA os governos da UE tinham como certa a vitoria das forças de Mamoud Abbas e da sua corrupta Autoridade Palestina, submissa às imposições de Washington e de Israel. Mas, contrariando as sondagens, o Hamas obteve uma vitória límpida. A reacção do imperialismo foi imediata. Aplicaram sanções económicas e politicas a Gaza, bastião do Hamas. Não perdoaram aos palestinos terem desafiado o Ocidente. E em 2008 Israel invadiu a Faixa de Gaza, cometendo crimes que indignaram a humanidade. 

O binómio EUA-União Europeia orgulha-se de ser o guardião da democracia, declarando-se sempre disponível para condenar aqueles que a violam. 

Mas admite excepções. Quando Ieltsin ordenou o assalto sangrento ao Parlamento russo em 1993 (150 mortos e 1000 feridos) o Washington Post escreveu: "Aprovação geral para a acção de força de Ieltsin, encarada como vitória da democracia". O secretário de Estado Warren Christopher correu a Moscovo para apoiar o golpe porque se tratava de "circunstâncias excepcionais". 

O PODER REAL 

Comparando a política, tal como é hoje nos países industrializados, a um teatro de sombras, Jean Salem, sempre didáctico, coloca o dedo na ferida. 

As pompas oratórias confundem, mas não alteram o movimento da história. O Poder real não está na sala oval da Casa Branca nem em Bruxelas. Quem toma as decisões importantes é a Finança, o Capital, mais exactamente aqueles que representam o deus dinheiro: o Banco Mundial, o FMI, a OMC, os instrumentos de um poder "monográfico e tecnocrático", como diz o italiano Sabino Acquaviva, agentes de uma soberania transnacional, incontrolável, desumanizada. 

Os capítulos dedicados por Salem ao funcionamento da farsa democrática permitem ao leitor assistir a espectáculos de teatro de absurdo. 

Não revela coisas que não sejam do domínio público. Mas, ao recordar a rodagem da máquina apodrecida do sistema, aviva a repulsa que a engrenagem do capitalismo inspira hoje a uma grande parte da humanidade. Na Europa é particularmente grotesco o debate entre a direita assumida e a social-democracia. Ambos quando governam praticam políticas neoliberais. Somente se diferenciam porque os social-democratas acreditam administrar melhor o capitalismo. 

O CIRCO ELEITORAL 

Nada ridiculariza mais o discurso sobre a grandeza da democracia americana do que um facto insólito, confirmado pelas estatísticas: todos os presidentes dos EUA são levados à Casa Branca por uma pequena minoria de eleitores: em média 25% dos inscritos. Assim aconteceu com Reagan, Carter, Bush pai, Clinton, Bush filho. Barack Obama, olhado por Mário Soares como esperança da humanidade, recebeu 30%, um recorde. 

O sistema é perverso. Com "grandes eleitores" a representarem os votantes, as primárias são condicionadas pelo dinheiro acumulado pelos candidatos em campanhas milionárias, e as convenções que decidem qual o escolhido transcorrem em atmosfera de circo. 

Em 2000, Bush filho obteve menos votos do que Al Gore, as fraudes na Florida e noutros estados foram transparentes, houve recontagem, mas, após largos dias, Bush foi proclamado presidente após intervenção do Supremo Tribunal. Assim funciona a "grande democracia americana" … 

O modelo é repulsivo, mas contaminou a Europa. 

Em Portugal, o PS e o PSD esforçam-se por o aplicar como bons discípulos. Nos programas prometem obras faraónicas, benefícios sociais, aumentos salariais, centenas de milhares de empregos. O discurso, a postura, os gestos, a voz, o penteado, a roupa dos candidatos a primeiro-ministro são estudados e impostos por especialistas contratados, alguns estrangeiros. 

Uma vez nomeado, o primeiro-ministro do Partido vencedor engaveta todas as promessas e desenvolve uma política reaccionária com elas incompatíveis. 

Os governantes, aplaudidos pelo coro de epígonos, repetem diariamente, monocordicamente, que o regime é democrático, o parlamento a expressão da vontade popular – e os media carimbam a mentira. 

Mentem conscientemente. Sabem que a chamada democracia representativa obedece no seu funcionamento a regras concebidas para promover a desigualdade, beneficiar o grande capital e manter na pobreza a maioria da população. 

O sistema não tem conserto possível. Não pode ser reformado, tem de ser destruído. A burguesia não entrega o poder através de eleições. 

Que fazer, então? 

"O que é preciso mudar, na realidade, é o conjunto" – afirma Jean Salem no final do seu belo e lúcido livro – um sistema no qual o omnipresente modelo do mercado é suficientemente repugnante para que analistas mais ou menos desinteressados tenham transformado o cidadão-eleitor num vulgar consumidor da "escolha tradicional (…) um sistema em cujo cerne estão inscritas a desigualdade, a falta de carácter, a violência, a guerra". 

Jean Salem escreveu um livro muito importante em que arranca a máscara à falsa democracia imposta aos povos pelo capital. 


Notas: 

1- Jean Salem, Élections, Piège À Cons?-Que Reste-T-Il De La Démocratie , Flammarion, Paris, 2012, ISBN: 978-2-08-124879-3 
2- Jean Salem, Lenine e a Revolução, Editorial Avante, Lisboa, 2005 



FONTE: Resistir.info

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