Carta Maior
Duas ONGs com sede na França, a Liga de Direitos Humanos (LDH) e a Federação Internacional de Direitos Humanos (FIDH), ingressaram com uma ação junto à Procuradoria da República acusando a Agência Nacional de Segurança dos Estados Unidos (NSA) e várias empresas transnacionais de internet: Google, Yahoo!, Facebook, Microsoft, Paltalk, Skype, Youtube, AOL e Apple. As duas ONGs consideram que essas empresas estão implicadas no esquema de espionagem mundial que Washington organizou por meio do sistema Prisma e cuja metodologia foi revelada pelo ex-agente da CIA e da NSA, Edward Snowden. Até agora é a única ação impetrada na Europa contra os Estados Unidos ou suas empresas. Todo o sistema político do Velho Continente se escondeu como um coelho assustado ante a prepotência tecnológica da Casa Branca.
Cúmulo do ridículo e da servidão, o governo “socialista” do presidente François Hollande impediu, junto com Itália, Espanha e Portugal, o sobrevoo pelo território francês do avião do presidente boliviano Evo Morales: algum serviço secreto inepto fez circular a informação segundo a qual Edward Snowden estava no avião de Evo Morales. Mais vergonhoso é o papel que desempenhou a imprensa diante de uma violação tão colonial do direito internacional. Ironias, títulos como “os latinos estão enojados”, ou boicote de informação marcaram a cobertura deste escândalo. É possível contar nos dedos de uma mão os jornais franceses que mencionaram a última cúpula do Mercosul e a convocação dos embaixadores dos países envolvidos no bloqueio do avião.
Em entrevista à Carta Maior, realizada em Paris, o advogado Patrick Baudouin, presidente de honra da FIDH, explica as bases da ação judicial na França e analisa tanto a prepotência norte-americana como o perfil de lacaio de Washington adotado pela União Europeia.
Carta Maior – Este episódio de espionagem planetária, violação do direito internacional contra um chefe de Estado e submissão da Europa é um caso de concurso. No entanto, apesar de sua amplitude e de suas múltiplas conexões, só vocês recorreram à justiça contra os envolvidos.
Patrick Baudouin – É assombroso, de fato, que a nossa seja a primeira ação apresentada. Decidimos iniciar o processo porque as revelações de Snowden permitiram descobrir a existência de um sistema de vigilância generalizada em escala planetária através da internet. A NSA, a CIA e o FBI podem ingressar nos programas dos gigantes da informática, Como Google, Yahoo!, Facebook, Microsoft e outros e recolher os dados. Isso permite que conheçam o nome do autor, do destinatário e o conteúdo das mensagens. Mas isso não se limita ao território norte-americano. Os Estados Unidos se julgam no direito de colocar em prática esse sistema em todo o mundo, na Europa, na América Latina, na Ásia. Isso é intolerável porque se opõe totalmente às legislações nacionais. O que está em jogo aqui é a liberdade do indivíduo. Nosso processo acusa a Agência Nacional de Segurança, a NSA, a CIA e, por cumplicidade, também os gigantes da informática. Essas empresas não podem ignorar o que se passa. Google, Facebook e os demais grupos dizem hoje que talvez tenha ocorrido espionagem mesmo, mas sem que eles se dessem conta disso. É uma piada! A base legal da ação é constituída pelas revelações de Snowden. O mais incrível está no fato de que os próprios responsáveis por esses abusos não questionam as informações sobre o ocorrido. Os EUA não negaram a veracidade das revelações. Pelo contrário, Washington disse: “senhor Snowden, você é culpado por ter dito a verdade. E nós não queremos que essa verdade seja dita”.
CM – As cifras sobre o volume de dados coletados é digna de ficção científica: são bilhões de informações.
PB – Desde que o sistema Prisma foi colocado em funcionamento houve 97 bilhões de comunicações controladas em todo o mundo. Entre dezembro de 2012 e janeiro de 2013, na França, foram controladas dois milhões de comunicações. O que nós queremos saber com nossa ação é quantas dessas comunicações foram utilizadas e com que finalidade. O escandaloso não reside em ativar um sistema de vigilância em torno de pessoas ligadas ao terrorismo ou ao crime organizado. Todo Estado democrático deve buscar se proteger e ter sistemas de controle. O escandaloso está em que, em nome dessa luta contra o terrorismo, se violaram todas as regras. Em vez de controlar as pessoas que podem ser perigosas se controlou todo mundo, sem distinção. A liberdade de cada cidadão ficou, assim, questionada. Podemos imaginar o que ocorreria se governos ditatoriais tivessem acesso a esses instrumentos e dados. Nada nos garante que, amanhã, na Espanha ou na França, não haja um governo de extrema direita, autoritário, ditatorial, o qual vai recorrer a essa informação para controlar a todos os indivíduos. Na Líbia vimos que o Coronel Kadafi tinha um sistema assim que permitiu com que prendesse e torturasse opositores. Nós buscamos precisamente limitar a amplitude desses sistemas. Queremos que se tome consciência do risco que esses dispositivos representam para a liberdade individual.
CM – Em meio a este escândalo, o Le Monde revelou que a França também tinha um sistema de vigilância semelhante.
PB – É verdade. Os chamados Estados democráticos reagiram timidamente quando as revelações de Snowden vieram a público. Podemos nos perguntar se essa tímida reação não se deve precisamente ao fato de que os responsáveis dessas democracias não se sentem um pouco responsáveis porque agem da mesma maneira.
CM – A América Latina também foi objeto dessa mesma espionagem. Estamos de novo frente a um império ao qual ninguém pode ser opor e que, com sua potência tecnológica, atropela todo o planeta?
PB – O imperialismo norte-americano é uma prática bem conhecida na América Latina. E justamente o que provocou um choque na Europa Ocidental foi que essa história teve o caráter de um descobrimento. Na América Latina o imperialismo e suas consequências são uma constante. Na Europa, não. Há algo que pode ser vantajoso em tudo isso: que a mobilização e a reação se ativem em todas as partes contra o imperialismo norte-americano. Contra o que alguns acreditam, não há nenhum ocaso do imperialismo norte-americano. Creio, ao contrário, que o poder dos EUA nunca foi tão importante como hoje. Desde os atentados de 11 de setembro, os Estados Unidos passaram por cima de todas as regras e leis. Há vários artigos da Declaração Universal dos Direitos Humanos que foram violados de maneira constante e com total impunidade. É isso que queremos denunciar. E esperamos que em outros países haja outras ONGs ou outras pessoas que entrem na Justiça contra os responsáveis por esse esquema de espionagem.
CM – A Europa, em vez de agir contra os Estados Unidos, terminou por castigar a América Latina quando bloqueou o avião do presidente boliviano. É uma forma de abuso colonial e de servidão diante da Casa Branca.
PB – Sim, absolutamente. Se este episódio fosse um filme seria uma comédia, mas não é. Trata-se de política internacional. Entre os países que impediram o sobrevoo de seu território, a França acabou se expondo ao ridículo. Houve, de fato, um medo imediato de incomodar aos Estados Unidos e provocar medidas de retaliação. Para evitar um problema com os EUA pela possível passagem de Snowden em um avião, decidiu-se proibir o sobrevoo do território. Aqui temos a prova definitiva de que estamos a reboque dos Estados Unidos. Mesmo um governo socialista, de quem esperaríamos uma atitude menos deslumbrada que a de seu predecessor, o conservador Nicolas Sarkozy, repito, mesmo um governo socialista segue a mesma linha. Infelizmente, na França e em muitos países europeus seguimos sendo os servos do que ainda é preciso chamar de imperialismo norte-americano. É uma ilustração desastrosa.
FONTE: Carta Maior
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