O mundo do trabalho atual é, aparentemente, tão complexo, fragmentado e multifacetado, que descrever e analisar suas dinâmicas a partir de uma teoria geral sobre classes sociais pode parecer um exercício infrutífero. Diante disso, alguns teóricos decretaram “a morte das classes”. Para eles, o conceito foi pertinente para a análise das relações de produção no capitalismo industrial, mas, com o desenvolvimento das tecnologias da informação e da economia de serviços, a partir da década de 1970, se tornou obsoleto.
Por João Alexandre Peschanski (*)
Sem chegar ao extremo de rejeitar o próprio conceito, correntes sociológicas depenaram a noção de classe social de muito de seu valor analítico e explicativo, tornando-o uma ferramenta meramente descritiva. Aqui, a classe social reúne atributos individuais salientes em dada sociedade que afetam as oportunidades e escolhas das pessoas numa economia de mercado, como educação, etnia, inteligência, gênero, motivação etc. Nessa corrente, a noção de classe é usada para descrever grupos que têm certos atributos em comum, sem pressupor que esse aspecto tenha valor explicativo e sem que haja uma relação necessária entre as diferentes classes.
Uma segunda corrente agrega à primeira, que põe o foco em atributos, um mecanismo explicativo das desigualdades socioeconômicas: a exclusão de indivíduos e grupos de posições privilegiadas por meio de algum tipo de restrição social. Um exemplo é a proteção de nichos de trabalho com a exigência de alguma qualificação especial ou diploma. Essa perspectiva é relacional, na medida em que os benefícios associados a ter uma posição de classe privilegiada – melhores salários, condições de vida, status – estão vinculados à exclusão de indivíduos e grupos.
Estudos recentes sobre a composição de classe no Brasil oscilam entre a primeira e a segunda corrente. Afirmam que a classe média é, hoje, a maior classe brasileira. Definem-na de acordo com o nível de renda – geralmente, entre R$ 1.064 e R$ 4.591 por mês – e, às vezes, também de acordo com o nível educacional. Portanto, a classe média indica o estrato intermediário numa escala de renda, arbitrariamente delimitada e sem levar em consideração dimensões que determinam as condições materiais da vida, como nível de endividamento e gastos com serviços básicos.
Uma terceira corrente, sob influência direta do marxismo, com mais ou menos ortodoxia, se fundamenta na noção de exploração. Não apenas os ricos são ricos porque excluem os pobres, mas se tornam ricos e mais ricos a partir da apropriação dos frutos do trabalho alheio. Na teoria, a exploração pressupõe relações de produção estruturalmente antagônicas, entre os que exploram e os que são explorados. A estrutura de classe – posições de classe que existem independentemente das pessoas específicas que as ocupam – determina, portanto, interesses materiais objetivos: os capitalistas têm incentivos racionais em maximizar a exploração, enquanto os trabalhadores têm incentivos racionais em limitá-la. Vários mecanismos podem qualificar os interesses objetivos, especialmente dos trabalhadores: se dominam outros trabalhadores, se são funcionários públicos etc. Essas qualificações podem fazer com que os explorados ajam em contradição com seus interesses definidos pela exploração e a reproduzam. A classe média pode ser definida como uma posição contraditória: pessoas que são exploradas – isto é, são trabalhadoras -, mas que detêm algum atributo próprio aos exploradores, como a capacidade de dominar.
O livro de Marcio Pochmann, Nova classe média? O trabalho na base da pirâmide social brasileira (Boitempo, 2012), se propõe a investigar as relações sociais brasileiras, especialmente as dinâmicas do mundo do trabalho e a desigualdade econômica, à luz dessa terceira corrente, fundamentada na noção de exploração. A análise de Pochmann adota, como ponto de partida teórico, a necessidade da consideração da estrutura de classe brasileira, em seu desenvolvimento histórico, nas transformações pelas quais passaram, no geral, o capitalismo e, mais especificamente, as relações de produção. Apresenta um panorama de classe multidimensional, relacional, com ênfase em interesses materiais, onde as posições na estrutura produtiva têm caráter explicativo.
Pochmann rejeita a tese de que o Brasil se tornou um país majoritariamente de classe média, à medida que o estrato social que mais cresceu foi o que ele chama de working poor (ou pobretariado). São trabalhadores, cuja renda até cresceu, mas que são explorados e, até mais dramaticamente do que outros trabalhadores, na medida em que muitos têm relações de trabalho terceirizadas, precárias, temporárias. Os dados com os quais Pochmann trabalha não lhe permitem esmiuçar a fundo as dinâmicas de exploração e suas contradições no Brasil contemporâneo, mas convida a análises teóricas e empíricas sobre a estrutura de classe no Brasil, um convite a empreitadas científicas que levem a sério a tradição da análise de classes.
(*) João Alexandre Peschanski é Sociólogo, coorganizador da coletânea de textos As utopias de Michael Löwy (Boitempo, 2007) e integrante do comitê de redação da revista Margem Esquerda.
FONTE: ControVérsia
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