Por Viviane Tavares
Movimentos sociais, ONGs, Conselhos: eles ainda representam a população em busca de seus direitos? |
"O movimento social é um conceito relacional. Ele só existe em função do Estado". Com esta afirmação, o professor e cientista social Rudá Ricci abriu sua participação na mesa ‘Os movimentos sociais participam das políticas de saúde?', que também contou com o coordenador-técnico da área de tecnologia social do Observatório Tuberculose Brasil e psicólogo Carlos Basília no evento que integrou a Semana Sergio Arouca que aconteceu do dia 3 a 6 de setembro.
O professor começou a explicar a estrutura de Estado que, para ele, é burocrática e personalista, características herdadas da Corte Portuguesa. "A alta da verticalização na tomada da decisão dificulta os processos. Nas estruturas que temos hoje, quanto mais perto da população, menos poder decisivo temos e vice-versa. Ou seja, a natureza da gestão é a não-sensibilização", explicou e acrescentou: "O Estado. além de favorecer este distanciamento, não reconhece na população a fonte de elaboração de políticas públicas", concluiu.
Tratando especificamente dos governos mais recentes, Rudá destacou, por um lado, o papel extremamente centralizador que o Estado assumiu no governo Lula. "Todo prefeito hoje é gerente do Governo Federal. Os únicos programas e políticas que eles conseguem implementar nos municípios são o Minha Casa, Minha Vida, o Centro de Referência de Assistência Social (CRAS), o Mais Educação etc.", disse. E acrescentou: "O município mal consegue se manter, e muito menos investir em inovação". Ao mesmo tempo, ele chamou atenção para a importância que esse Estado adquiriu no financiamento da iniciativa privada, por exemplo, através do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico Social (BNDES), que, de acordo com o professor, se tornou o terceiro maior banco de fomento do mundo nos governos Lula e Dilma Roussef. "O BNDES é um menu de investimento privado", disse e acrescentou: "[Esses governos] criaram programas como o Bolsa Família, garantiram o aumento real do salário mínimo e o crédito popular para as classes mais pobres. O Estado hoje é clientelista e não populista. Engessou nossa capacidade de pensar o todo".
Concluindo que o Brasil não tem uma política de Estado, e sim de Governo, ele exemplificou. "Nossas escolas têm nome de personagens, nossas ruas, nossas instituições. Seja de direita, seja de esquerda assumimos essa lógica. Quando achamos que estamos fazendo algo revolucionário, tiramos o nome Duque de Caxias e passamos para Che Guevara", exemplifica.
Para Rudá, o problema, no entanto, não está só no Estado, mas também nas instituições da chamada sociedade civil, como os conselhos e os sindicatos, que deveriam ser fortes ferramentas para a participação popular. "Estas estruturas não acompanham a dinâmica social, que é territorial, e não especializada", disse.
Rudá lembrou que nos anos 1980 houve a emergência de movimentos sociais com um fortíssimo caráter comunitário e comunitarista, que define como aquilo que o outro conhece, com respeito a alguém que é próximo. "Não me sinto confortado quando dizem que tivemos uma forte participação da classe média. Tivemos sim, mas não se limitou a isso. Também tivemos uma leitura popular que vinha pela religiosidade, que se aproximava muito da Teologia da Libertação", contou. Para ele, os anos 1980 foram o grande momento de conquistas de direitos. "Aquela era a hora de pedir mais e ficamos só com o SUS. Repetimos a estrutura de Estado de categorizar as lutas. Tínhamos que pensar na universalidade de fato", lembrou.
De acordo com Rudá, a participação popular trouxe conquistas importantes para a Constituição de 1988. "O texto do Artigo I, parágrafo único, que diz que Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, deu margem à criação dos conselhos. Hoje temos 30 mil deles, mas não comandamos o país", lamenta.
O ativista Carlos Basília lembrou ainda que a criminalização dos movimentos sociais e das ONGs dificultou esta participação e afirmou que os conselhos de saúde não são mais espaços que permitam o controle social. "As agendas dos conselhos são ditadas pelo gestor. Precisamos rever esses conselhos. Fora isso, desde os anos 1990, vêm surgindo diversas ONGs com pautas muito específicas e que só têm surrupiado os recursos públicos", disse. Ele informou ainda que recente pesquisa publicada pela Abong mostrou que a maior parte das ONGs tem viés religioso. Ele apontou como crítica também a relação do Estado com as Ongs. "É o mínimo pelo máximo. Cobram ações qualificadas por meio de voluntariado, sem custo e ainda cooptam este espaço, além de, estas ONGs atuarem onde o Estado deveria atuar", aponta.
Manifestações e a classe média
O professor Rudá apresentou uma análise dos comportamentos distintos nas manifestações mais significativas do país, que ele chama das do século 20 e do século 21, traçando paralelos entre os dois fenômenos. Segundo ele, se naquela época a predominância era do coletivo, agora há preservação da individualidade. A militância que antes seguia uma orientação de organização, nos tempos atuais, segue uma adesão por convicção e emoção. E antes o que era vinculado por um programa ou meta, hoje passa por algo pontual. "Um grande exemplo da diferença é quando fui a uma plenária em julho com esse pessoal e perguntei: como vocês tiraram essa mesa? E eles me responderam que tinha sido por sorteio. Isso em nosso tempo era inconcebível. A escolha de mesa era minuciosa porque já ditava o resultado da plenária. Esses jovens hoje vão para as ruas e fazem os seus cartazes pelo caminho, a pauta pode variar. Antes tínhamos assembleia duas semanas antes e produzíamos cartazes com pauta única", exemplificou.
Ele lembrou também que esta classe que está nas ruas foi inserida no contexto social pelo consumo, um fenômeno, que Rudá Ricci chamou de Fordismo Tardio no Brasil e atribuiu aos anos do presidente Lula no poder. "Hoje a classe média é extremamente conservadora e fundamentalista. Não pensa no social e até a religião tem caráter utilitarista", apontou e acrescentou: "Esta classe tem medo de voltar a ser pobre. Se analisarmos, todos têm um histórico de exclusão social da família inteira. Além disso, ao mesmo tempo em que há esta ascensão, não há o debate ideológico. O Lula não quis fazer nenhum tipo de discussão que tivesse esse caráter. Esta aí o resultado: a população não tem noção de direitos coletivos", avaliou.
Carlos fez uma análise da ambiguidade destas manifestações. "Ao mesmo tempo em que essa grande mobilização segue o fenômeno de quase um flash mob -onde pessoas se encontram por meio das mídias sociais para fazer coreografias-, sem pautas políticas, vemos também a saúde como uma demanda. Por que isso apareceu? Todo mundo está vendo o desmantelamento da saúde pública meio inerte e agora chegamos ao limite", concluiu.
FONTE: Adital
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