terça-feira, 7 de dezembro de 2021

Angélica Lovatto e a originalidade do pensamento marxista



Oriunda de Diadema, no ABCD paulista, a intelectual orgânica Angélica Lovatto vem há três décadas desenvolvendo um pensamento radical sobre o momento em que vivemos a partir da tradição marxista

   

 Por Luiza Coppieters 

 

Em meu artigo anterior, eu procurei demonstrar como o pensamento pós-moderno é contrarrevolucionário. Os fundamentos para tal exposição vêm de dois autores que venho estudando. O livro de Carlos Nelson Coutinho, O Estruturalismo e A Miséria da Razão, e exposições da professora e militante Angélica Lovatto.

Oriunda de Diadema, no ABCD paulista, a intelectual orgânica Angélica Lovatto vem há três décadas desenvolvendo um pensamento radical sobre o momento em que vivemos a partir da tradição marxista. De Marx a Lúkacs, passando por pensadores brasileiros como Vânia Bambirra e Carlos Nelson Coutinho, Lovatto está elaborando uma interpretação sobre o que chama de “as quatro contrarrevoluções” e “o pensamento pós-moderno e transgressão resignada”.

De acordo com ela, o pensamento burguês teria elaborado quatro ideologias, em momentos distintos, ao pensamento marxiano para barrar a luta da classe trabalhadora. São ideologias que se colocam como de esquerda mas que serviriam aos interesses da burguesia. Como ela costuma dizer, “a ideologia mais difícil de se combater, é a ideologia que se apresenta como de esquerda”.

Em um primeiro momento, o positivismo nas ciências sociais, em especial Max Weber e Émile Durkheim, se apresentariam como ideologias que visariam o estudo da sociedade fora da compreensão da luta de classes, fariam análises de fatos sociais independentes de processos históricos e que tomariam o real como não contraditório em si.

O existencialismo seria a segunda onda contrarrevolucionária na medida em que negaria o humanismo, negando o sujeito histórico – a classe trabalhadora – para centrar em um indivíduo lançado num mundo cruel e, portanto, sem história também.

O terceiro momento é o do estruturalismo, como o de Lévi-Strauss, em que a linguagem anterior a toda historicidade e, ao mesmo tempo, estruturante de uma realidade incapaz de ser perscrutável nas suas contradições levaria ao agnosticismo, isto é, a um pseudo-conhecimento do real, já que nega as contradições do real.

O quarto momento, este em que vivemos, é o da pós-modernidade. Como expliquei em artigo anterior, como tudo é fragmentário e não há centralidade da classe trabalhadora, mas subjetividades e atores, cabe elaborar epistemes para traçar narrativas. Não há espaço para o pensamento totalizante e tampouco espaço para a ação transformadora do real e, assim, saída do capitalismo.

Lovatto irá chamar o discurso pós-moderno de “transgressão resignada”, na medida em que esses indivíduos, esses atores de si mesmos, por meio de suas narrativas, sempre fragmentárias, irão transgredir as normas estabelecidas mas que nada produzirão de transformação concreta. Narram suas dores e vivências para se resignarem em suas condições ou, no máximo, ocuparem um espaço dentro da lógica capitalista e usufruir de benesses em posição de destaque.

Trata-se, pois, de uma elaboração original do pensamento marxista e aponta para a superação desses discursos que engessam e colocam a classe trabalhadora em conflito entre si.

Estudiosa do ISEB, Instituto Superior de Estudos Brasileiros, e de grandes pensadores que foram apagados pela geração pós 68, Angélica Lovatto vem elaborando uma crítica ao pensamento uspiano, especialmente no que tange às ideias de populismo, autoritarismo e democracia como valor universal.

Para além de resgatar um passado, Lovatto enfrenta um presente que nega a possibilidade da Revolução Brasileira e a centralidade do trabalho e tenta a todo custo colocar o debate político nos marcos liberais.

Vale a pena acompanhar esta intelectual orgânica, seja nas redes sociais, seja em sua trincheira de luta na Unesp de Marília.

 ___

FONTE: Brasil 247


 

segunda-feira, 22 de novembro de 2021

Um exercício de livre-pensar sobre a China

 

Boitempo Editorial lança “China – o socialismo do século XXI”, de Elias Jabbour e Antonio Gabriele, e eleva o debate em torno da ascensão do gigante asiático


Por Ricardo Gozzi, especial para a Rede Brasil Atual


                                             Alana Harris / CC / Unsplash

Conhecimento e compreensão da complexidade da sociedade
e da economia. Desafdio aceito pelo brasileiro
Elias Jabbour e o italiano Alberto Gabriele

São Paulo – Foi durante um intenso exercício de livre-pensar – tão raro e temido nos tempos atuais – que o brasileiro Elias Jabbour e o italiano Alberto Gabriele conceberam um desafio à altura de suas ambições intelectuais: analisar e compreender a complexidade da China para além dos preconceitos ideológicos.

Tarefa inglória se levarmos em consideração a exorbitância de lugares-comuns, simplificações, leviandades e mistificações tão presentes na produção nacional sobre o que vem do estrangeiro, e em especial do Oriente.

Em relação aos chineses, especificamente, os ditos especialistas revezam há décadas o bastão da previsão mais furada da geopolítica contemporânea: ‘é agora que a China quebra!’. Com o descompromisso de quem sabe que não será cobrado.

De certo modo, isso se explica em parte pela incompreensão dos estudiosos ocidentais quanto ao que Jabbour enxerga como uma revolução copernicana em andamento na China. Outra parte poderia ser explicada pela ausência de bases de comparação e referências teóricas que auxiliem na compreensão do fenômeno. Até agora.

Varando a madrugada

                                  


Entre setembro e dezembro de 2019, o obstinado Jabbour e o expansivo Gabriele vararam as madrugadas romanas debruçados sobre a experiência chinesa para lançar luz sobre a nova realidade que se impõe ao mundo sem que a maioria esmagadora dos pensadores ocidentais contemporâneos – à esquerda e à direita – se disponha a observá-la a partir de qualquer perspectiva que escape aos dogmas.

O árduo trabalho dessa improvável dupla transatlântica, de gerações e origens tão distintas, resultou em China – o socialismo do século XXI, que acaba de ser lançado pela Boitempo Editorial.

Na primeira quinzena de novembro, Jabbour cedeu duas horas de uma tarde de sexta-feira para uma conversa durante a qual soltou o verbo e abriu o coração sobre o tema que domina sua produção acadêmica já há um quarto de século: a China, sua complexidade, seus desafios e suas contradições.

Capitalismo de Estado, um pleonasmo

Géografo de formação, o autor cai na risada ao abordar um falso dilema: viveria a China sob um socialismo de mercado ou um capitalismo de Estado? “Isso é um pleonasmo. Não existe capitalismo fora do Estado”, descarta Jabbour antes de se debruçar sobre o que considera ser a comprovação do surgimento de uma nova classe de formações econômico-sociais, diferente de qualquer outra experiência, derivada de uma reinvenção do socialismo chinês a partir das instituições de mercado.

Herdeiro direto da obra do economista Ignacio Rangel e um dos mais prolíficos estudiosos da China, Jabbour vê o país asiático e suas instituições rompendo as fronteiras do que se conhecia até então sobre a planificação econômica e a racionalização de um projeto de desenvolvimento para colocar em andamento o que denomina como “a nova economia do projetamento”.

“O socialismo na China ainda está em uma fase embrionária, é um grão de areia na história, mas já traz consigo a transformação da razão em instrumento de governo, elevando o domínio humano sobre a natureza e possibilitando a execução e a elaboração de milhares de projetos ao mesmo tempo, o que seria impossível sob outra formação social”, define Jabbour.

E a formação econômico-social não é o único conceito fundamental do marxismo desafiado por Jabbour e Gabriele. Eles também colocam em xeque as interpretações convencionais sobre modo de produção e lei do valor a partir de uma análise minuciosa dos acontecimentos ocorridos na China desde a Revolução Comunista liderada por Mao Tsé-tung, em 1949, passando pelas reformas implementadas por Deng Xiaoping até chegar ao salto social e tecnológico dos anos Xi Jinping.

China já está sob ataque

Seja como for, não é que o projeto chinês vá ser contestado no futuro. “Já há uma guerra em andamento contra a China”, afirma, referindo-se às sanções estadunidenses. Para Jabbour, trata-se de uma guerra colonial imposta pelo Ocidente, com os EUA à frente, com a intenção de colocar a China de joelhos.

Ainda segundo ele, tanto a direita quanto a esquerda empreendem uma guerra semiótica contra Pequim. A dúvida é se os chineses conseguirão contornar potenciais desdobramentos militares dessas investidas para dar continuidade a seu projeto de desenvolvimento.

Aos mais ortodoxos, o que pode vir a soar como “declaração de guerra” é o exercício de livre-pensamento de Jabbour e Gabriele. Seja como for, os autores de China – o socialismo do século XXI baseiam-se na ciência para propor um novo olhar para a ascensão do gigante asiático. A quem se dispuser a abandonar abordagens dogmáticas ou até mesmo místicas para explorar a nova fronteira do debate sobre a China, o convite está posto.


Sobre os autores


Elias Jabbour é professor dos programas de Pós-Graduação em Ciências Econômicas (PPGCE) e em Relações Internacionais (PPGRI) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Com cerca de 25 anos de dedicação intelectual às temáticas do socialismo e da experiência chinesa é autor dos livros China: socialismo e desenvolvimento – sete décadas depois (Anita Garibaldi, 2019); China hoje: projeto nacional, desenvolvimento e socialismo de mercado (Anita Garibaldi/EDUEPB, 2012); China: infra-estruturas e crescimento econômico (Anita Garibaldi, 2006) e China: desenvolvimento e socialismo de mercado (Departamento de Geociências, CFH-UFSC, 2006).


Alberto Gabriele é consultor e pesquisador baseado em Roma. Trabalhou por mais de 30 anos como economista do desenvolvimento em várias organizações da ONU na Europa, África, Ásia e América Latina. Atua principalmente em políticas e estratégias de desenvolvimento econômico e social, com atenção especial para políticas industriais e de concorrência, reestruturação de empresas estatais, comércio internacional e China. É autor de Enterprises, industry and innovation in the People’s Republic of China – questioning socialism from deng to the trade and tech war (Springer, 2020).


Ficha técnica

Título: China: o socialismo do século XXI

Autor: Elias Jabbour e Alberto Gabriele

Prefácio: Francesco Schettino

Quarta capa: Silvio Almeida e Luiz Gonzaga Belluzzo

Orelha: Carlos Eduardo Martins

Capa: Rodrigo Corrêa

Páginas: 314

Formato: 16 x 23 cm

Apoio: Fundação Maurício Grabois

Encadernação: Brochura

Preço: R$67

Editora: Boitempo

 

FONTE: Rede Brasil Atual


sexta-feira, 29 de outubro de 2021

As lições da China para erradicar a pobreza


Ascensão chinesa tirou 850 milhões da pobreza, urbanizou o país e ampliou acesso a serviços públicos. Apostou no “desenvolvimento”, conceito cada vez mais questionado. Mas subordinou-o a projeto nacional de soberania e bem-estar


Por  Diego Pautasso e Isis Paris Maia



O desenvolvimento é condição – embora não suficiente – para a erradicação da pobreza. Este não é força espontânea, mas depende do projeto nacional e do consequente lugar do país no sistema internacional. Do contrário, a mobilidade social resume-se a intencionalidades. Dessa forma, a compreensão das políticas públicas numa dada formação social relaciona-se à estrutura de poder e de riqueza social que atravessam as instituições de Estado.

No caso da China, a revolução se entrelaçou a um complexo processo de reconstrução nacional. Trata-se da superação do longo Século de Humilhações, período em que o país foi invadido e repartido entre potências imperialistas, responsáveis por aniquilar o longevo e próspero Império Chinês. Transformado num dos países mais pobres do mundo, o PIB da China era de 60 dólares per capita em 1949, cerca de metade da média dos paupérrimos países asiáticos, enquanto a expectativa de vida era de apenas 35 anos.

A partir da década de 1970, o país enfrentou uma reorientação com a política de Reforma e Abertura liderada por Deng. Assim, o governo chinês conseguiu retomar um ciclo virtuoso de desenvolvimento superando as contradições internas, o isolamento internacional, a supremacia da liberalização em voga dos anos 1980 e o subsequente colapso do socialismo. Ao contrário, a China apostou na condução estatal do desenvolvimento e na manutenção do regime, fazendo o PIB (em dólares correntes) saltar de 191,1 bilhões em 1980 para 14,7 trilhões de dólares em 2020, enquanto a renda per capita foi de 220 para 10,4 mil dólares no mesmo período. Foi este processo de desenvolvimento o responsável pela maior mobilidade social de que se tem notícia. Grande parte deste feito ocorrido entre 1990 e 2010, no contexto da arrancada industrial, cuja proporção de população pobre passou, neste período, de 66,3% para 11,2% – de acordo com o Banco Mundial. Mesmo as desigualdades, típicas de períodos de arrancada industrial, já estão recuando há mais de uma década (segundo o índice de Gini).

A modernização acelerada, repleta de contradições, permitiu ampliar a arrecadação e forjar as políticas públicas voltadas à eliminação da pobreza extrema e na atual extensão de políticas sociais sob a direção de Xi Jinping. Quando se tornou líder em 2013, havia apenas 43 milhões de chineses na pobreza e ao longo da execução de seu programa de políticas sociais direcionadas1 foram investidos US$ 246 bilhões para construir 1,1 milhão de quilômetros de estradas na zona rural, levar acesso à internet para 98% dos povoados pobres do país, reformar a casa de 25,68 milhões de pessoas e construir casas novas para outras 9,6 milhões2.

Analisando em perspectiva histórica, após seu momento mais acentuado do período de take off, a China está transitando de um desenvolvimento quantitativo para outro qualitativo. Nesse sentido, para além de ser um desígnio de revolução, a eliminação da pobreza e a extensão dos direitos sociais respondem a vários determinantes: 1) as demandas crescentes de uma sociedade urbano-industrial, 2) o acúmulo de recursos decorrente da ampliação extrativa (arrecadatória) e 3) a necessidade de forjar fronteiras de desenvolvimento ligados aos novos setores de serviço (saúde, educação, etc.). Em outras palavras, falar em políticas públicas de bem-estar (refletidos no IDH, por exemplo) sem desenvolvimento (produtividade) torna-se inócuo. Não se trata, afinal, de tecnicidade, mas de política; nem de regras formais ou desejos normativos, mas de projeto de país.

Justamente aí residem algumas lacunas. Além da insistência de parte das ciências humanas no Ocidente em prescrever modelos com viés etnocêntrico, são desconsideradas as singularidades civilizacionais e sociopolíticas da China. Afinal, é um governo que se reivindica socialista e, como tal, tem no Estado a responsabilidade primária pelo desenvolvimento da economia, assim como pelo bem-estar social, de maneira indissociável. Aliás, após décadas de promoção do mercado, Xi tensiona o fortalecimento do Estado para enfrentar os desafios domésticos e o quadro internacional disruptivo.

Com efeito, a sub-representação da experiência de construção estatal e de políticas sociais do Terceiro Mundo e em países socialistas, além de um viés demasiado ocidental, reflete o imperativo de desafiar o pensamento eurocêntrico. Este é exatamente o caso da China, cuja relação entre planejamento e mercado, bem como os arranjos institucionais, não cabem em certos quadros analíticos. Ou seja, está em completa assincronia com abordagens dominantes no Ocidente e, por isso, ainda muito descoberta ou enviesada na nossa produção científica.

A questão de fundo, contudo, vai além. Mais do que desenvolvimento e mobilidade social, a ascensão da China está mudando o arranjo global geoeconômico e geopolítico. Ainda escapa a amplos setores científicos e políticos no Ocidente as mudanças profundas nas configurações de poder no mundo que estão em curso. Enquanto, as estruturas hegemônicas de poder erigidas no pós-guerra sob liderança de Washington estão sendo corroídas, partes das elites ocidentais insistem em subestimar tais mudanças, cujo eixo estruturante das transformações globais passa pela reação estadunidense ao desafio chinês. Enfim, não seria ousado dizer que se trata de uma mudança civilizacional no qual as lentes convencionais estão em descompasso com as novas realidades emergentes.

__________

1 Explico o que são Politicas Públicas Direcionadas nesta entrevista cedida ao Brasil de Fato: 

https://www.brasildefato.com.br/2021/09/27/pesquisadora-revela-china-ignorada-pela-midia-onde-850-milhoes-deixaram-a-pobreza

 2 Dados do estudo nomeado Servir ao povo: a erradicação da pobreza na China, disponivel no site: 

https://thetricontinental.org/pt-pt/estudos-1-socialismo-em-construcao/

 

FONTE: Outras Palavras

domingo, 17 de outubro de 2021

A revolução e o socialismo em Cuba

 


Por DANIEL AARÃO REIS*

Ditadura revolucionária e construção do consenso

Revolução nacional, democracia e ditadura: a construção do consenso (1959-1970)

“Jamais poderemos nos tornar ditadores…Quanto a mim, sou um homem que sabe quando é preciso ir embora” – “Dentro da revolução, tudo; contra a revolução, nada” (Fidel Castro).


Quando a revolução cubana triunfou, nos primeiros dias de 1959, a euforia, como nos dias das grandes vitórias que todos imaginam compartilhar, tomou conta da sociedade.

Uma ampla e heterogêna frente constituíra-se contra a ditadura sanguinária e corrupta de Fulgêncio Batista.[i] . Dela participavam, sob a liderança do Movimento Revolucionário 26 de Julho/MR-26, e da pessoa de Fidel Castro, afirmadas sobretudo a partir de 1957, os estudantes da Universidade de La Habana, agrupados majoritariamente em torno do Directorio Revolucionário dos Estudantes/DRE e da Federação dos Estudantes Universitários/FEU,os liberais de Prio Socarrás[ii], os remanescentes filiados ao Partido Ortodoxo[iii], democratas de todos os bordos, os comunistas do Partido Socialista Popular/PSP e mesmo quadros civis e oficiais das forças armadas vinculados ao regime, mas insatisfeitos com os desmandos da ditadura[iv]. No final, desde 1958, até nos EUA, entre as correntes liberais[v] se fortalecera um movimento de apoio à revolução, o que, de certo, terá contribuído para a suspensão da ajuda militar a Batista, decretada pelo governo dos EUA em meados daquele ano[vi].

A unanimidade dos processos históricos que eliminam inimigos poderosos, comuns, parecendo diluir as diferenças sociais, políticas e culturais. Não fora obra do acaso, mas tecitura difícil e hábil, capaz de articular interesses disparatados em torno de determinados objetivos programáticos comuns[vii].

Quais era eles?

A reafirmação da independência nacional, revogada na prática pelas opções e práticas da ditadura de Batista que havia escancarado as portas do país aos interesses comerciais e financeiros estadonidenses. E mais, o que ofendia os brios cubanos, transformado o país num imenso puteiro, aberto a turistas estrangeiros e a todos os tráficos de drogas que possam ser imaginados. Certo, e desde maio de 1934, havia sido revogada a infame Emenda Platt, incluída na Constituição de 1902, garantindo o direito de intervenção estadonidense, sempre e quando os interesses e a vida de seus cidadãos fossem considerados ameaçados…pelos governos dos EUA.

Entretanto, mesmo no quadro da política de boa vizinhança, de F. Roosevelt, e ainda depois, aprofundara-se a dependência econômica de Cuba, evidenciada, entre outros fatores, pela venda, quase exclusiva, de seu grande produto de exportação, o açúcar, a preços preferenciais, ao mercado americano, e pela compra de terras e bens industriais e imobiliários pelos capitais da mesma origem. Daí porque se tornara notória a importância da figura do embaixador dos EUA em La Habana, chave crucial para toda a sorte de articulações e projetos políticos.

Não se tratava apenas de conseguir a emancipação econômica, mas de recuperar a dignidade, a cubanidad, o orgulho de pertencer a uma sociedade livre para escolher seus destinos. Neste sentido, a gesta épica das lutas pela independência (1868-1878 e 1895-1898), as figuras históricas envolvidas nelas, em particular, a de José Martí, o Apóstolo da Independência, eram acionadas com reverência e unção quase religiosas. Era necessário retomar a luta, frustrada pelas circunstâncias históricas, dos grandes antepassados. A revolução contra Batista o faria. Era seu compromisso essencial[viii].

O outro aspecto básico era o restabelecimento da democracia. Desde a instauração da ditadura, todos, Fidel Castro principalmente, brandiam a necessidade de recolocar em vigor a constituição de 1940, considerada uma referência chave na retomada do caminho da democracia e do revigoramento de instituições democráticas[ix]. Não gratuitamente, assumiram postos de relevância no primeiro governo revolucionário, constituído nos primeiros dias de janeiro de 1959, as figuras de José Miro Cordona e de Manuel Urrutia[x], liberais democratas, comprometidos com as liberdades democráticas.

Reconquistar a independência e a democracia: a força destes dois eixos conferiam à vitória revolucionária de 1959 um claro caráter nacional-democrático. O que não quer dizer que fossem os únicos. Também muito se falava, desde o famoso discurso de Fidel Castro quando de seu julgamento, em 1954, das reformas necessárias ao combate às gritantes injustiças sociais existentes em Cuba[xi]. Durante a luta guerrilheira, em 1957-1958, compromissos neste sentido seriam explicitamente assumidos pelo MR-26 e por Fidel Castro e tiveram, inclusive, em certas áreas, um início de aplicação, como, por exemplo, medidas de reforma agrária, beneficiando camponeses que viviam nas sierras. Entretanto, tais referências e aspirações poderiam ser compreendidas no contexto da constituição de 1940 e seria um evidente anacronismo sustentar que a revolução, sobretudo em seus inícios, conferisse ao programa de reformas sociais a mesma ênfase que atribuía à questão nacional e ao restabelecimento da democracia na Ilha.

Assim, nos primeiros dias de 1959, em torno da reconquista da democracia e da independência nacional constituíra-se uma sólida frente política, aglutinando uma ampla maioria, ou francamente favorável, ou apenas simpática, ou ainda que passara aceitar a situação dominante como algo inevitável, uma espécie de onda contra a qual não valia a pena resistir, por inexistirem os meios ou a vontade, ou ambos.

No entanto, sob esta aparente unidade, estavam em curso movimentos e tendências que iriam cedo surpreender as gentes. Apontariam, como logo se tornou evidente, para uma afirmação enfática da questão nacional, à custa, ou em detrimento, da organização de instituições democráticas. Um conjunto de circunstâncias e opções contribuiriam neste sentido.

Em primeiro lugar, a dinâmica autoritária, inerente aos movimentos nacionalistas. Pelo fato mesmo de apelar à constituição de uma identidade suprema, por sobre especificidades de toda ordem – étnicas, sociais, corporativas, de gênero, entre outras -, a referência nacional tende a exigir a diluição dos particularismos, considerados egoísticos, em proveito do fortalecimento do todo nacional, figurado como generoso e sublime. Questionar as propostas nacionais, quando elas se avantajam, pode, muito rapidamente, transformar-se numa questão de impatriotismo, desqualificada como ato de traição nacional.

Deve-se ressaltar também o caráter decisivo que assumiu a guerra de guerrilhas. Não se trata de retomar a equivocada leitura da revolução feita por R. Debray e avalizada, nos anos 60, por Fidel Castro e Che Guevara[xii]. Sem dúvida, a revolução cubana tornou-se vitoriosa em virtude de um concurso complexo de movimentos e de formas de luta, mas seria descabido não reconhecer o papel determinante que a ação das colunas guerrilheiras, e de suas vitórias militares, assumiu na desagregação final, política e moral, das forças armadas que defendiam a ditadura. Não gratuitamente, quando se definiu a vitória, nos primeiros dias de 1959, a instituição revolucionária, par excellence, era o Exército Rebelde, reconhecido como tal pela imensa maioria da população e dos líderes políticos, muitas vezes, malgré eux-mêmes.

Ora, por mais que as guerrilhas de caráter popular estimulem o exercício de um certo participacionismo político, sobretudo nas áreas libertadas, ou em certos momentos específicos, quando os guerrilheiros e os simples soldados da revolução são chamados a opinar, a discutir e, mesmo, a decidir a adoção de certas medidas, ou a realização de certas operações, de modo geral, como tendência universal, a guerra, e a instituição do exército, mesmo de exércitos rebeldes ou revolucionários, costumam fortalecer estruturas e procedimentos políticos centralistas, verticais, em suma, autoritários.

Nos momentos seguintes à vitória revolucionária, dissolvidas as instituições da ditadura, inclusive as forças armadas, surgiu, inconteste, a estrutura do Exército Rebelde, comandada por Fidel Castro. Desde então, o país seria galvanizado por uma incontornável tendência militarista, muito presente no vocabulário político. Foi sintomático que a revolução tenha assumido uma cor, e ela já não era vermelha, ou negra (as cores originais do MR-26), mas verde-olivo. E os líderes da revolução tornaram-se jefes, os dirigentes, comandantes. No topo, o comandante máximo, jefe supremo, Fidel Castro.

Nas dobras destes símbolos e títulos, militares, militarizados, já se desenhava a face sombria da ditadura.

Um outro aspecto, não menos importante, reforçou a tendência. É que, embora tendo sido empreendida por uma pluralidade de forças e de formas de luta, no curso mesmo do processo, as formas de luta urbanas (guerrilha urbana, sabotagem, movimentos grevistas etc.) sofreram derrotas catastróficas. O assalto frustrado ao Palácio de Batista (março de 1957); a revolta esmagada da base naval em Cienfuegos (setembro de 1957); a drástica derrota da greve geral contra Batista (abril de 1958), todas estas experiências, embora de grande importância foram, no entanto, literalmente esmagadas.

Debilitaram-se aí as organizações, as lideranças, e os espaços políticos mais envolvidos nestes episódios. E, como conseqüência, perderam-se, afastados e enfraquecidos politicamente, ou assassinados, personalidades políticas de primeiríssima importância, que, eventualmente, poderiam fazer sombra, ou rivalizar, com os jefes das guerrilhas: José Antonio Echeverría e outras importantes lideranças das guerrilhas urbanas de La Habana, vinculadas ao DRE, assassinados depois da ação de março de 1957; Frank País, figura chave do MR-26, em Santiago de Cuba, também assassinado em 1957; Faustino Perez, líder urbano do MR-26, bastante enfraquecido desde a derrota da greve geral de 1958.

Depois, e já em 1959, o afastamento de comandantes do próprio Exército Rebelde descontentes com os rumos da revolução, mas impotentes para reorientá-los (Huber Mattos, Manuel Ray, entre outros) e o desaparecimento trágico de Camilo Cienfuegos, em outubro daquele ano, o mais popular líder guerrilheiro do MR-26, depois de Fidel Castro[xiii].

Entre as grandes lideranças, sobrou apenas Ernesto Che Guevara que, na época, contudo, era um decidido defensor do socialismo soviético, da militarização da revolução e das tendências favoráveis à instauração de uma ditadura revolucionária[xiv].

O processo que se seguiu, até 1970, só fez reforçar estas tendências. As tentativas contra-revolucionárias para desestabilizar o novo governo, da invasão de 1961 à Baía dos Porcos, passando pelas guerrilhas rurais (Escambray), às sabotagens urbanas e aos bombardeios, até 1965, e mais as tentativas de assassinato das lideranças, cometidas, em particular, contra Fidel Castro; a crise dos mísseis, em outubro de 1962; as maciças migrações de descontentes, os chamados gusanos (vermes). Numa atmosfera destas, cada vez mais se tornava difícil defender posições intermediárias, ou debater alternativas às polarizações extremas[xv].

No contexto do confronto aberto entre os EUA e a nação revolucionária que se erguia, desencadeou-se uma dialética exasperante de pressões, avanços, bloqueios e retaliações empreendidas pelos governos de Eisenhower e Kennedy para destroçar o novo regime. Em contraposição, a unidade dos cubanos, humilhados e ofendidos durante décadas, surgia como algo quase imposto pelas circunstâncias.

Surpreendendo o mundo, David enfrentava Golias e, revivendo o combate bíblico, e apesar das perdas, ganhava, ou melhor, sobrevivia. As duas Declarações de Havana[xvi], gritos de guerra contra o capitalismo internacional e o imperialismo e as ondas guerrilheiras nas Américas ao sul do Rio Grande, em determinado momento, pareceram ser capazes de quebrar o isolamento internacional da Cuba revolucionária, um processo épico, de enfrentamento e de guerras, onde as propostas eram ofensivas, não se temendo, se fosse o caso, a hipótese de eventuais catástrofes e apocalipses[xvii].

E assim, uma revolução nacional-democrática, plural em suas origens e desdobramentos, tornou-se única, quase monolítica. A opção pelo socialismo jogou aí também um papel-chave, considerando-se a dinâmica do modelo soviético, baseado na estatização da vida social e econômica, no plano centralizado e na ditadura política[xviii]. Também pesaram, evidentemente, as frágeis tradições das instituições democráticas cubanas, marcadas por jogos oligárquicos, corrupção galopante, eleições fraudadas e desmoralização dos políticos profissionais.

Condicionada por estas circunstâncias, emergiu a ditadura revolucionária, baseada, politicamente, no partido único e na liderança pessoal, incontestável do comandante en jefe[xix]. Bafejado pelo seu imenso talento e também pelo apagamento de rivais potenciais, projetou-se a figura do ditador: Fidel Castro Ruz. Empalmado o poder, ele não mais o deixaria. Mesmo porque, em torno dele, constituiu-se, sustentando-o, um sólido consenso[xx].

Aos primeiros anos verdadeiramente épicos, da vitória revolucionária à crise dos mísseis, entre 1959-1962, seguiu-se, até 1970, um período difícil: Cuba rompera com a dependência histórica em relação aos EUA, mas deslizava, quase inexoravelmente para uma outra dependência, da URSS. Muito rapidamente, as ilusões românticas, algo ingênuas, no internacionalismo proletário decantaram-se. Che Guevara, que embarcara de corpo e alma nestas ilusões, cedo compreendeu os limites e as servidões da aliança com a URSS[xxi]. Fidel e seu irmão Raul tiveram disto uma visão mais realista, pragmática, e tenderam a considerar inevitável um certo grau de dependência. O importante seria preservar margens de autonomia, lutando sempre para alargá-las.

Uma grande chave neste sentido residia num processo de ampliação da revolução em escala mundial, particularmente na América Latina.

Com este propósito, e aí ainda havia acordo entre o Che e Fidel, tratava-se de fazer o possível para criar dois, três e outros Vietnãs, como gostava de dizer o Che. A fundação da Organização de Solidariedade aos Povos da Ásia, África e Améria Latina/OSPAAAL, em Havana, em 1966, constituía, na prática, um esboço de uma verdadeira internacional revolucionária dos povos terceiro-mundistas. Em cada grande região, seria necessário estruturar uma organização específica. No ano seguinte, em 1967, também em Havana, fundou-se a Organização Latino-Americana de Solidariedade/OLAS, reunindo os movimentos revoluconários alternativos da região que já estavam lançados, ou se preparando para lançar guerrilhas populares na área de Nuestra América[xxii].

No entanto, por inadequação das formas de luta, ou porque os governos da região, apoiados agressivamente pelos EUA, já não se deixavam supreender, ou pela dinâmica social não revolucionária, ou pela conjugação de todas estas circunstâncias, os projetos revolucionários não vingaram, foram derrotados, alguns ainda em formas embrionárias, abortados. A derrota da tentativa do próprio Che na Bolívia, em 1967, seguida por seu assassinato, em 9 de outubro daquele ano, foi um dobrar de sinos[xxiii].

Cuba estava isolada. E permaneceria isolada.

Mas a URSS estava consciente da especificidade cubana. E tinha grande interesse em mantê-la no campo socialista, sem transformar a Ilha numa democracia popular nos padrões da Europa Central. Em toda uma primeira fase, ao longo dos anos 60, inclusive, tendeu a suportar com estoicismo os discursos revolucionários e as críticas dos cubanos, inclusive porque, em certa medida, eram percebidos como um tônico revitalizante para a acomodada sociedade soviética. Entretanto, as compras maciças de açúcar cubano, o fornecimento de petróleo e de todo o tipo de insumos e mercadorias, e de armas e munições, a preços baixos ou gratuitamente, haveria que ter contrapartidas.

A formação do Partido Comunista Cubano/PCC, em 1965, já fora um sinal, assim como a crescente importância nos altos postos do aparelho de Estado de ex-dirigentes do PSP, ou de partidários de uma aliança sem reservas com a URSS[xxiv]. Mais tarde, o discurso de apoio à invasão da Tchecoslováquia pela URSS e por seus aliados, em agosto de 1968, feito por Fidel Castro, assinalou para muitos a adesão definitiva à órbita soviética[xxv].

Contudo, ainda haveria uma última tentativa no sentido de manter abertas as chances da autonomia: a Gran Zafra, em 1970, com a qual se comprometeu o próprio Fidel Castro, quase de forma obsessiva, no seu voluntarismo habitual. Em sua visão, a meta das 10 milhões de toneladas, uma vez alcançada, permitiria ao país ganhar divisas suficientes para, no mínimo, estabelecer termos razoáveis de incorporação à aliança soviética.

A aposta foi perdida novamente.

Nada mais restava, senão a integração no campo socialista nos termos e segundo as condições propostos pela URSS.


Notas


[i] A figura de Fulgêncio Batista merece um registro específico. Liderança de raízes populares, sargento do exército, mestiço, emergiu na revolução de 1933 que derrubou uma outra ditadura, de Gerardo Machado (1927-1933). Ascendeu de modo fulminante, política e militarmente. Figura carismática, dominaria a vida política cubana até 1959, ora como homem forte, “fazedor de presidentes” (1934-1940), ora como presidente eleito democraticamente (1940-1944), quando fez aprovar uma constituição liberal que reconhecia os direitos sociais dos trabalhadores, governando, em certo momento, com dois ministros comunistas; ora como eminência parda e principal chefe militar (1944-1952). Voltou ao poder através de um golpe, uma quartelada, tipicamente latino-americana, em 1952. Suas promessas de restauração democrática (eleições de 1954 e 1958) nunca passaram de um simulacro repudiado por todas as forças políticas, deslizando o governo, assim, e progressivamente, para uma ditadura sem disfarces. Para a visão construída pelos revoluconários sobre a ditadura de Batista, antes da vitória, a melhor fonte é C. Franqui, 1976

[ii] Prio Socarrás foi presidente eleito entre 1948-1952. Seu governo, imerso em escândalos de corrupção, contribuiria fortemente para desmoralizar as referências democráticas, ensejando pretextos para o golpe de Batista, em 1952. Consta que veio do esquema de Socarrás o financiamento para a compra do pequeno iate Granma (diminutivo carinhoso de Grand Mother, vovó), que levou os revolucionários, sob liderança de Fidel Castro, ao desembarque de dezembro de 1956, quando teve início a saga das guerrilhas da Sierra Maestra.

[iii] Formado a partir de uma dissidência do Partido Autêntico, o Partido Ortodoxo, liderado por Eduardo Chibás (que se suicidou em 1951), constituiu importante força de oposição a Batista. Das fileiras da Juventude dos ortodoxos, emergeria a figura de Fidel Castro, que era candidato a deputado pela legenda às eleições de 1952, revogadas com o golpe de Batista, e muitos dos filiados ao MR-26.

[iv] Umas das muitas expressões do descontentamento com a ditadura, entre os oficiais das forças armadas cubanas, evidenciou-se na revolta da base naval de Cienfuegos, esmagada pela força da ditadura, em 5 de setembro de 1957.

[v] O termo liberal, no contexto político estadonidense, refere-se às correntes democráticas, não necessariamente filiadas ao Partido Democrata, que hostilizam as ditaduras e simpatizam, inclusive, eventualmente, com apoio financeiro, com os movimentos anti-ditatoriais, em particular na América ao sul do Rio Grande.

[vi] Reportagens simpáticas, de impacto, porque publicadas em jornais e revistas de grande circulação nos EUA, desempenhariam um papel importante na mobilização de uma opinião pública favorável aos revolucionários cubanos nos EUA. Cf. A.Palma, 2006.

[vii] As articulações no sentido da constituição de frentes políticas amplas podem ser registradas desde setembro de 1956, quando o MR-26 e o DRE firmaram um pacto de Unidade e Ação. Posteriormente, em novembro de 1957, houve o chamado Pacto de Miami que seria repudiado pelo MR-26 por ter sido feito sem autorização expressa da direção da organização. Finalmente, em 20 de julho de 1958, houve o Pacto de Caracas, incluindo desde os liberais até os comunistas do PSP. Um novo pacto de unidade e ação seria firmado pelo Che Guevara com representantes do PSP e do DRE em dezembro de 1958. Cf. K.S. Karol, 1970 e C. Franqui, 1976

[viii] L.A.M. Bandeira, 1998, entre muitos outros, enfatizou bem o peso fundamental da questão nacional no processo da revolução cubana. Como veremos, a questão voltará a ser acionada com grande força, e eficácia, depois da desagregação da URSS. Cf. também C.A.Barão, 2005 e J. Habel, 1989

[ix] Tornou-se conhecido o recurso jurídico, interposto por Fidel Castro, à Corte Suprema cubana no sentido de que o golpe de Batista fosse considerado ilegal, à luz dos preceitos da Constituição de 1940. O recurso foi denegado, mas a ação, uma cause célèbre, obteve ampla repercussão e consolidou, entre os que lutavam contra a ditadura, a proposta do respeito à legalidade constitucional democrática.

[x] Urrutia era juiz, e ganhou notoriedade ao decidir pela liberdade de militantes do MR-26, considerando que sua luta contra a ditadura era “legal”. Desde março de 1958, o MR-26 anunciara que, após a vitória, ele seria o presidente de um futuro governo provisório. Renunciou em julho de 1959, contrariado com a radicalização da revolução. Cf. K. S. Karol, 1970

[xi] Cf. Fidel Castro, 2005

[xii] Cf. R. Debray, 1974 e s/d. e E. Guevara, 1973. Nesta leitura, houve uma glorificação desmedida das guerrilhas instaladas na Sierra Maestra, como se delas tivesse dependido, quase que exclusivamente, a vitória da revolução. A famosa metáfora empregada por R. Debray, da mancha de óleo, espalhando-se pela Ilha a partir do foco guerrilheiro da Sierra Maestra, tornou-se emblemática e desempenhou um papel importante na derrota catastrófica das tentativas guerrilheiras empreendidas em Nuestra América nos anos 60 e 70. Cf. D. Rollemberg, 2001

[xiii] Cf. C. Franqui, 2006, que insiste, quase obsessivamente, no desaparecimento das lideranças potencialmente rivais como circunstância favorável à ditadura pessoal de Fidel Castro.

[xiv] Mencione-se também a figura de Raul Castro. Entretanto, sublinhe-se que, embora tenha havido, desde a guerrilha na Sierra, um grande investimento em fazer dele um grande jefe, tornando-se mesmo, já há alguns anos, o sucessor designado de Fidel Castro, Raul nunca passou do irmão do seu irmão.

[xv] Toda uma literatura de apoio e de defesa da revolução cubana, e de suas características centralistas e ditatoriais, consideradas inevitáveis, insistirá no argumento de que o bloqueio e as ações desferidas pelos sucessivos governos estadonidenses foram condições decisivas para que a revolução assumisse estas configurações. Cf. C.A.Barão, 2005; Emir Sader, 1992; Eder Sader, 1986; L.F. Ayerbe, 2004. Debate interessante, e controvertido, a respeito destas questões está em C.E. Carvalho, 1988.

[xvi] A I Declaração de Havana foi aprovada em 2 de setembro de 1960, e condenava a exploração do homem pelo homem e a exploração dos povos pelo capital financeiro. A II Declaração de Havana foi aprovada em 4 de fevereiro de 1962 e prescrevia que o dever de todo o revolucionário é fazer a revolução. Pela sua importância e contundência foi por alguns chamada de O Manifesto Comunista do século XX. Cf. M. Lowy, 2006.

[xvii] F. Castro, ao comentar a crise dos mísseis, e criticar a atitude dos soviéticos de recuar ante as pressões e o ultimatum do Presidente Kenneky, admitiu que estava disposto a ir às últimas conseqüências em 1962, mesmo que para isto Cuba precisasse desaparecer do mapa. Cf. I. Ramonet, 2006 e A.Palma, 2006. A denúncia oficial, e abalizada, de variadas e múltiplas ações contra-revolucionárias, está em Comissión de Historia de los Organos de la Seguridad del Estado, 1989

[xviii] A influência de Ernesto Guevara, secundado por Raul Castro, e pelos comunistas do PSP, muito ativos na formação do Partido Comunista Cubano, foi notável neste momento.

[xix] Em processo lento, pelo alto, por etapas, fundiram-se as principais organizações revolucionárias nas Organizações Revolucionárias Integradas/ORI, depois, no Partido Unificado da Revolução Socialista Cubana/PURSC, e, finalmente, no Partido Comunista de Cuba/PCC, em 1965.

[xx] O conceito de consenso, na acepção com que o emprego para compreender as relações complexas entre sociedades e regimes autoritários ou ditatoriais, designa a formação de um acordo de aceitação do regime existente pela sociedade, explícito ou implícito, compreendendo o apoio ativo, a simpatia acolhedora, a neutralidade benévola, a indiferença ou, no limite, a sensação de absoluta impotência. São matizes bem diferenciados e, segundo as circunstâncias, podem evoluir em direções distintas, mas concorrem todos, em dado momento, para a sustentação de um regime político, ou para o enfraquecimento de uma eventual luta contra o mesmo. A repressão, e a ação da polícia política em particular, podem induzir ao, ou fortalecer o, consenso, mas nunca devem ser compreendidas como decisivas para a sua formação. Para o uso e a discussão do conceito, com distintos ângulos e acepções, cf., nesta obra coletiva os textos de D. Musiedlak: Le fascisme italien : entre consentement et consensus; M. Ferro: “Y a-t-il “trop de démocratie” en URSS?”; e P. Dogiliani: Consenso e organizzazione Del consenso nell’Italia fascista.

[xxi] O discurso pronunciado em Argel, em 1965, muito crítico à URSS e às relações estabelecidas entre os países socialistas foi simbólico, quase uma ruptura, e desagradou profundamente Fidel Castro. Cf. para a apreciação diversa deste pronunciamento chave as melhores biografias do Che: J.L. Anderson, 1997, J. Castañeda, 1997 e P.I. Taibo II, 2001

[xxii] Na Ásia, os governos socialistas da República Democrática do Vietnã/RDV, a Frente de Libertação Nacional/FLN no Vietnã do Sul e a República Democrática da Coréia, que seriam os bastiões de uma organização regional não levaram o projeto à frente, provavelmente receando reações negativas da URSS e da China, poderosos vizinhos e aliados. Na África, e apesar da presença do Che no Congo, também não chegaram a se estruturar formas organizativas regionais revolucionárias.

[xxiii] Cf. E.Che Guevara, 1997 e as biografias citadas na nota 21, supra. Para a saga guerrilheira, cf. também A.Guillermoprieto, 2001

[xxiv] Em paralelo, foram declinando, tolhidos, ou silenciados, os partidários de uma alternativa cubana. Deste ponto de vista, foi simbólica a interdição da revista Pensamiento Crítico, reduto do pensamento revolucionário cubano alternativo, em 1970.

[xxv] Entre muitos outros, é a opinião defendida por R. Gott, 2006, capítulo 7, pp 266-268. Em 1968, o governo cubano decretaria uma estatização generalizada de pequenos serviços e comércios, um passo importante no sentido do modelo soviético de organização econômica. Cf. idem, p. 267. Já em 1970, de um total de 2.408.800 pessoas ocupadas, um pouco menos de 350 mil trabalhavam em atividades privadas. Cf Comissión Econômica para América Latina y Caribe/CEPAL, 2000, quadro A.48.

_________

 *Daniel Aarão Reis é professor titular de História Contemporânea na Universidade Federal Fluminense (UFF). Autor, entre outros livros, de A Revolução que mudou o mundo – Rússia, 1917 (Companhia das Letras).


FONTE: A Terra é Redonda

(Continua)