terça-feira, 29 de setembro de 2015

A crise Grega demonstra que a alternativa ao sistema capitalista passa pela Revolução


Por Miguel Urbano Rodrigues


A evolução da crise grega manifesta traços do poder do imperialismo que talvez em nenhuma situação anterior se evidenciassem de forma tão flagrante. O Syriza, força social-democrata, nada põe em causa do capitalismo. Mas a enorme distância entre as suas promessas eleitorais e as imposições da troika obrigaram-no a tentar obter alguma margem de negociação. Acontece que, nos dias de hoje é suficiente que um político no poder ouse contestar mesmo timidamente a ditadura do capital para ser encarado como inimigo do sistema. O imperialismo não negoceia, exige capitulação total. A alternativa dos povos só existe com a perspectiva do socialismo.


A evolução da crise grega encerra lições muito importantes para as forças progressistas que em dezenas de países lutam em contextos muito diferentes contra o imperialismo.

A principal delas confirmou a impossibilidade daquilo que sectores da social-democracia chamam «a reforma humanizada do capitalismo».

A vitória do Syriza nas eleições gregas semeou ilusões. Os discursos de Tsipras durante a campanha, recheados de promessas, contribuíram para que os partidos social-democratas, na Europa e na América Latina, definissem o Syriza como um partido de «esquerda radical», vocacionado para introduzir grandes transformações na sociedade helénica. O governo Syriza-Anel recebeu inclusive o apoio de alguns partidos comunistas europeus.

Mas logo após iniciar negociações com as instituições europeias (nova designação para a troika) ficou transparente que Tsipras concordava com a maioria das exigências de Bruxelas.

Durante uma visita de duas semanas à Grécia apercebi-me de que o seu governo se propunha a dar continuidade à política de submissão ao imperialismo desenvolvida pela coligação da Nova Democracia com o Pasok, introduzindo-lhe apenas mudanças cosméticas.

As suas continuas cedências às propostas dos parceiros de Bruxelas não impediram que estes adiassem sucessivamente o acordo que permitiria ao governo de Atenas receber 7200 mil milhões de euros (a ultima tranche do segundo plano de «ajuda»), evitando o default iminente.

Dias antes do final do prazo para pagamento ao FMI de 1,5 mil milhões de euros, Tsipras, numa pirueta, anunciou a convocação de um referendo. O povo tinha que responder se concordava ou rejeitava as ultima propostas apresentadas pelo Eurogrupo. E num discurso dramático no Parlamento pediu aos eleitores que votassem NÃO!

O eleitorado atendeu ao seu apelo. O NÃO obteve 61% dos votos emitidos. O governo interpretou-o como uma aprovação do Memorando do Syriza.

O referendo, repudiado pelo Partido Comunista, foi uma manobra teatral de Tsipras. É significativo que no dia seguinte ao referendo o Syriza, o Pasok e o Potami publicaram um comunicado conjunto, num consenso expressivo da política de classe do governo.

Ao retomar as negociações em Bruxelas, o primeiro-ministro grego traiu a confiança dos eleitores, pediu um novo resgate de 53 000 milhões de euros e apresentou ao Eurogrupo propostas piores do que as ultimas que havia recusado.

Recusaram a austeridade, mas dias depois propuseram uma austeridade reforçada.

Ao contrário do que muitos esperavam, a assinatura do Acordo esbarrou com a oposição tenaz da Alemanha, da Holanda, da Finlândia e outros países. Não é já o conteúdo das propostas de Atenas que está em causa. O governo de Tsipras capitulou totalmente, confirmando as previsões do KKE (ver odiario.info de 30.06.15).

O impasse pantanoso das negociações de Bruxelas resulta das contradições que separam os membros do Eurogrupo, nomeadamente a Alemanha e a França. O governo de Merkel pretende excluir a Grécia do Euro.

CHILE, VENEZUELA, GRÉCIA

A consciência de que o capitalismo não encontra soluções para a crise estrutural que o atinge contribuiu para um aumento da agressividade imperialista (J.P.Gascão, odiario.3.7.15)

Essa opção é transparente na estratégia dos EUA, dispostos a recorrer à violência contra os povos cujos governos não se submetem incondicionalmente ao seu projeto de dominação planetária.

O bloqueio a Cuba, as guerras de agressão contra o Iraque, o Afeganistão e a Líbia, a ajuda militar e politica às organizações terroristas sírias, o apoio às agressões do estado fascista de Israel e as ameaças ao Irão expressam com muita clareza essa política.

Nunca a solidariedade das grandes potências imperialistas em defesa da Ordem do Capital foi tão transparente.

A evolução da crise grega confere atualidade às lições do Chile. A resposta à opção socialista da Unidade Popular de Allende quando no poder participavam um partido socialista então marxista e o partido comunista foi um sanguinário golpe militar.

Transcorridos mais de 40 anos, desaparecida a URSS, o mundo, hegemonizado pelo capitalismo, é muito diferente.

Hoje é suficiente que um político no poder ouse contestar mesmo timidamente a ditadura do capital para ser encarado como inimigo do sistema.

Nas Honduras, Manuel Zelaya, o presidente constitucional, foi afastado por um golpe militar organizado na embaixada EUA. No Paraguai foi deposto um presidente que defendia tímidas reformas que desagradaram a Washington.

No Equador, Obama desejaria substituir Rafael Correa, um reformista neokeynesiano, por um oligarca neoliberal, submisso à Casa Branca. Os EUA aliás têm apoiado as tentativas golpistas contra o presidente Correa.

Na Venezuela, Bush e Obama montaram e financiaram, sem êxito, sucessivas conspirações para derrubar Hugo Chávez não obstante as estruturas do capitalismo permanecerem no país quase intactas. Falecido Chávez, uma campanha mediática massacrante satanizou o inofensivo «Socialismo do SeculoXXI» e o presidente Obama afirmou identificar no governo de Maduro uma intolerável «ameaça à segurança dos EUA».

E na Bolívia, os tímidos matizes socializantes do Governo de Evo Morales incomodaram tanto Washington que o embaixador norte-americano organizou uma conspiração falhada cujo desfecho foi a sua expulsão de La Paz.

A ALTERNATIVA É A REVOLUÇÃO

Na confusão ideológica atual, estimulada por um sistema mediático manipulador, a submissão total da Grécia aos sacerdotes do capital veio confirmar insisto – a impossibilidade da transformação profunda de sociedades capitalistas no âmbito do sistema, isto é, pela via institucional.
Mas, porventura se dissiparam as ilusões semeadas pelo Syriza e os demagogos populistas Tsipras e Varoufakis?

Não. Na Europa, forças políticas progressistas e alguns partidos comunistas, nomeadamente os do Partido da Esquerda Europeia, não obstante fixarem o socialismo como objetivo final, atuam no sistema como se algum dia fosse possível chegarem ao governo pela via eleitoral.

Obviamente no atual contexto europeu a conquista do poder através de uma revolução é uma impossibilidade a curto prazo. Existem em alguns países da União Europeia condições objetivas para ruturas revolucionárias. Mas faltam condições subjetivas.

Nem por isso são realistas os programas, por vezes muito ambiciosos, concebidos para uma transição no quadro de uma revolução democrática e nacional.
Em condições muito mais favoráveis do que as hoje vigentes, a revolução democrática e nacional portuguesa, inspirada nos valores de Abril, foi brutalmente interrompida por um golpe militar promovido pela burguesia com o apoio do imperialismo.

Alias, hoje, desaparecida União Soviética, as grandes potências da União Europeia recorreriam à violência se necessário, contra qualquer país membro que ousasse por em causa a ordem capitalista, no âmbito de uma revolução democrática e nacional.

Que fazer então?

As revoluções não são pré-datadas.

Ocorreram quase sempre em situações inesperadas, contra a própria lógica da História. Isso aconteceu com a Francesa de l789,com as Russas de l917, com a Chinesa, com a Cubana.

O Partido Comunista Grego oferece-nos o exemplo de uma organização revolucionaria que embora consciente de que não vai em tempo previsível tomar o poder no seu país, aliado a outras forças progressistas, luta com firmeza e coragem pela destruição do sistema capitalista no seu país. Pode discordar- se pontualmente do seu discurso, mas a sua coerência e tenacidade no combate inspiram em todo o mundo respeito e admiração aos comunistas.

As revoluções – repito - não têm data no calendário.

É minha convicção inabalável de que o capitalismo não tem soluções para a sua crise estrutural. Entrou numa lenta agonia que pode durar muitos anos.
O polo hegemónico do sistema, os EUA, mantem com os seus aliados, uma enorme capacidade de desencadear guerras imperialistas. São manifestações de desespero. São guerras monstruosas que esbarram com uma resistência crescente dos povos vítimas desse terrorismo de estado.

A simultaneidade e a convergência dessas lutas e da luta de massas em muitos países podem ser decisivas para a desagregação do sistema, minado por contradições internas, podem provocar a sua derrota final. Nesse combate vejo como insubstituível a participação dos partidos comunistas revolucionários.
A alternativa será a construção do socialismo apos uma fase de transição dolorosa, prolongada, diferente em cada país.
Uma certeza: a via institucional para o socialismo é uma impossibilidade histórica.


FONTE: ODiario.info

quinta-feira, 17 de setembro de 2015

QUARTA INTERNACIONAL


Por Aluizio Moreira


Há 77 anos, surgia em Paris, sob a liderança de León Trotsky, a IV Internacional



O ano da deflagração da Primeira Guerra Mundial marcou também o fim da II Internacional.

Em Outubro de 1917, acontecia a Revolução Russa e um ano depois (1918), era o fim da Primeira Guerra Mundial. 

Nesses anos (de 1915 a 1919) ainda sob os impactos das mobilizações bélicas, aconteceram tentativas de reorganização do Movimento Comunista Internacional

Na cidade de Zimmerwald na Suiça, de 5 a 8 de setembro de 1915, realizou-se uma Conferencia que congregou 37 delegados representantes socialistas de vários países, na qual se discutiria a possibilidade de se criar uma entidade internacional  socialista. A tendência majoritária da Conferencia de Zimmerwald, defendia a ressureição da Segunda Internacional, o que encontrou oposição dos bolcheviques (sob a liderança de Lenin) e da chamada esquerda internacionalista revolucionária. 

Em 1916 o chamado grupo de esquerda (bolcheviques, internacionalistas revolucionários e socialistas de esquerda), na Conferencia de Kienthal 

Em 1917, na Conferência de Estocolmo, bolcheviques, internacionalistas revolucionários e esquerda radical, acenam mais uma vez para a formação de uma organização internacional, o que não acontece. 

Todas essas mobilizações amadureceram as convicções dos bolcheviques russos da necessidade da criação de uma organização internacional,  cujo passo decisivo foi dado com a realização em janeiro de 1919, de uma reunião em Moscou, preparatória para a formação da Internacional Comunista. Deliberou-se a convocação de uma Conferencia Comunista Internacional para março de 1919, o que de fato aconteceu. Surgia assim a Terceira Internacional, que durante os seus 24 anos de existência promoveu 7 Congressos todos em Moscou: 1919 (o de fundação), 1920, 1921, 1922, 1924, 1928 e 1935.

Desses Congressos, V. I. Lênin participou decisivamente dos 4 primeiros, pois em maio de 1922, sofria o primeiro ataque de hemorragia cerebral; em março de 1923 teve um segundo ataque, vindo a falecer  em janeiro de 1924.

O agravamento da situação econômica e politica mundial, marcado pela crise de 1929, pela ascenção e do nazifascismo , seria o prenúncio de uma nova conflagração entre os povos que duraria de 1939 a 1946.  Por outro lado, a ascenção de Stalin  ao poder na URSS,  criou internamente uma desestabilização politica, vitimando com perseguições e assassinatos  um bom número de personalidades que ajudaram a construir  a nova Rússia, entre elas León Trotsky.

Sem condições de continuar sua existência, em 13 de maio de 1943, numa reunião do Presidium do Comitê Executivo da Internacional Comunista,  foi dissolvida a Terceira Internacional.

Antes da dissolução da Terceira Internacional em 1943, os descaminhos tomados pela Revolução Russa entre 1923 e 1928, favoreceram o surgimento da Oposição de Esquerda, que lutou internamente na Rússia por um política revolucionária. Foi completamente destroçada.

No exilio, já em 1930, Trotsky organizou Oposição de Esquerda Internacional na qual se pautava pelo seu  Programa de Transição e pela teoria da Revolução Permanente, chegando à conclusão da necessidade da construção de uma nova Internacional. 
 
Em setembro de 1938, Trotsky funda em Paris, a IV Internacional, com a presença de delegados da URSS, Grã-Bretanha, França, Alemanha, Polônia, Itália, Grécia, Holanda, Bélgica, EUA e um representante da América Latina (o brasileiro Mário Pedrosa chegou a integrar o secretariado). Por motivo de segurança diante da perseguição promovida por Stalin, responsabilizado pelo assassinato de seu secretario pessoal um dia antes da Conferência, Trotsky não participou da reunião de Paris. 

A IV Internacional começou a desintegrar-se em 1952, a partir da criação de dois blocos no seio de sua organização, que sucessivamente provocaria maiores subdivisões, com o surgimento de várias tendências, a maioria delas reivindicando a “reconstrução” ou a ”reorganização” ou a manutenção da IV internacional. Esse processo de formação/reconstrução/fusão se verifica até os nossos dias.

Em 1963, uma tentativa de reunificação da maioria pablista (Michel Pablo) sob a direção de Ernest Mandel constitui-se o Secretariado Unificado da IV Internacional. Por sua vez uma tendência antipablista, em 1971 criará o Comitê de Reorganização da IV Internacional – CORQI

Em 1980, foi formado o Comitê Internacional de Reconstrução da IV Internacional, resultado da fusão da Fração Bolchevique, liderada por Nahuel Moreno, e o Comitê de Reconstrução da Quarta Internacional, sob a liderança de Pierre Lambert.

Apesar dessas constantes subdivisões, as tendências remanescentes da IV Internacional ainda defendem a democracia operária, a unidade do movimento comunista contra o capital, a formação de uma organização a nível internacional.

sábado, 12 de setembro de 2015

O que é consciência de classe?


Por Glauber Ataide


Utilizamos em nosso cotidiano diversos termos, expressões e conceitos que temos certeza saber o que significam, até o momento em que tentamos explicá-los a alguém e nos damos conta, então, de que não os compreendíamos tão claramente quanto parecia. O filósofo Santo Agostinho percebeu isso, por exemplo, quando refletia sobre a natureza do tempo: “O que é, por conseguinte, o tempo? Se ninguém me perguntar, eu sei; se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não o sei.” (Confissões, Agostinho, Livro XI)

Com o termo consciência de classe passa-se algo semelhante. Embora tenhamos uma noção mais ou menos aproximada do que seja consciência de classe, quando nos debruçamos sobre o tema percebemos que ele apresenta mais complexidades do que parecia num primeiro momento. Mas se os revolucionários se propõem a tarefa de desenvolver a consciência de classe dos trabalhadores, então é necessário aprofundar a compreensão deste conceito tão caro à teoria e à práxis marxistas.

O ser do proletariado

Em A sagrada família, Marx afirma que a consciência de classe proletária, ou seja, a consciência do proletário em relação ao seu presente e ao seu destino, não é aquilo “… que este ou aquele proletário, ou até mesmo do que o proletariado inteiro pode imaginar de quando em vez como sua meta. Trata-se do que o proletariado é e do que ele será obrigado a fazer historicamente de acordo com o seu ser. Sua meta e sua ação histórica se acham clara e irrevogavelmente predeterminadas por sua própria situação de vida e por toda a organização da sociedade burguesa atual”.

Marx traça aqui uma distinção importante entre o que o proletariado pode, às vezes, pensar ou imaginar (vorstellen) como seu objetivo e o que de fato ele é. Segundo o filósofo alemão, o que será determinante na ação histórica do proletariado se funda em seu próprio ser social, e não naquilo que ele pensa sobre si. Este ponto toca em uma clássica problemática filosófica: a relação entre o ser e o pensar.

Quanto ao pensar de uma classe sobre si mesma e seus objetivos, Engels afirma que as ações conscientes não são o fator principal das grandes transformações históricas. Em sua exposição sobre o materialismo histórico em Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã, Engels afirma que, para compreender a história, é preciso ir além dos motivos, da intenção consciente que levam os homens a agir, pois esses motivos têm uma importância apenas secundária para o resultado do conjunto, muito embora nada na história aconteça sem uma intenção consciente. Nas palavras de Engels:

  As numerosas vontades individuais que operam na história produzem, na maior parte do tempo, resultados completamente diferentes daqueles desejados – frequentemente até opostos – e, por conseguinte, seus motivos têm igualmente uma importância apenas secundária para o resultado do conjunto. Por outro, restaria saber quais forças motrizes se escondem, por sua vez, atrás desses motivos, quais são as causas históricas que, agindo na mente dos sujeitos agentes, transformam-se em tais motivos.
Estes motivos conscientes de que fala Engels são aqueles que, para cada indivíduo da classe, se lhe apresentam como justificativa ou motivo imediato de sua ação. São análogos ao que a psicanálise denomina racionalização, no sentido de que são justificativas que encobrem algo mais fundamental que ainda permanece oculto, que não emerge à consciência. Engels não nega que os homens atuem na história de forma consciente, mas, para ele, trata-se de uma falsa consciência. Em uma carta a Franz Mehring, de 14 de julho de 1893, ele afirma: “A ideologia é um processo que de fato é levada a cabo com consciência pelos chamados pensadores, mas com uma falsa consciência. As verdadeiras forças motrizes que os movem lhes permanecem ocultas”.

Isso diz respeito também ao proletariado. Como Marx enfatizou, não se trata do que o proletariado pode pensar sobre si mesmo, mas do que ele será obrigado a fazer historicamente de acordo com seu próprio ser. Isso nos mostra que a consciência de classe não é a mesma coisa que a mera consciência psicológica de sua situação de classe. Em um sentido marxista estrito, não se pode dizer, por exemplo, que um operário tenha consciência de classe apenas por saber que é explorado. A consciência psicológica de sua situação de exploração não é ainda consciência de classe. Assim, é o ser do proletariado enquanto classe que define o curso histórico que ele deve seguir, e não o que ele pensa sobre si próprio.

Consciência proletária e consciência burguesa

György Lukács (1885-1971), certamente um dos maiores filósofos marxistas do século 20, legou-nos uma importante obra na qual investigou profundamente a consciência de classe. Em seu artigo Consciência de classe (1920), Lukács afirma que nas sociedades pré-capitalistas nenhuma classe social era capaz de ter consciência de classe (no sentido estrito que o proletariado terá mais tarde), e isso pelo fato de o fundamento econômico dessas sociedades não ser tão evidente como no capitalismo, mas, antes, se confundir com os estamentos e o sistema jurídico. Será apenas no capitalismo que a estratificação da sociedade em classes irá corresponder a uma estratificação baseada no lugar que cada uma delas ocupa no processo de produção, embora essas classes pré-capitalistas não tenham desaparecido completamente com o surgimento do capital, sendo possível, ainda hoje, encontrar vestígios delas.

Na sociedade capitalista apenas a burguesia e o proletariado são “classes puras”, isto é, classes “cuja existência e evolução baseiam-se exclusivamente no desenvolvimento do processo moderno de produção”. As outras classes, pelo fato de sua posição na sociedade não se fundar exclusivamente no seu lugar no processo de produção, são incapazes de perceber a sociedade atual em sua totalidade e, por isso, estão condenadas a desempenhar um papel subordinado, nunca podendo intervir efetivamente na marcha histórica como fator de conservação ou progresso, isto é, como classes exclusivamente reacionárias ou revolucionárias.

Assim, por exemplo, o caráter incerto ou estéril de classes como a pequena-burguesia, que, de certa forma, ainda se relacionam às formações sociais anteriores ao capitalismo, explica-se pelo fato de sua existência não ser fundada exclusivamente sobre sua situação no processo de produção capitalista. Seu interesse de classe manifesta-se em função de manifestações parciais da sociedade, e não da construção da sociedade como um todo. Como afirmou Marx no 18 Brumário de Napoleão Bonaparte, a pequena-burguesia, como classe de transição em que os interesses das duas outras classes se enfraquecem simultaneamente, sentir-se-á sempre “acima da oposição de classes em geral”, e tentará sempre “harmonizar” o conflito entre as classes principais.

Não se pode, portanto, falar propriamente de consciência de classe em relação a classes como a pequena-burguesia ou o campesinato, pois uma plena consciência de sua situação lhes revelaria a ausência de perspectivas de transformação da sociedade como um todo.

A burguesia, embora seja, ao lado do proletariado, a outra única classe pura do capitalismo, é incapaz de desenvolver consciência de classe da mesma forma que o proletariado, possuindo, antes, uma “falsa” consciência. Para que a burguesia tivesse consciência de classe – o que não é o mesmo que a consciência psicológica de seus interesses de dominação –, teria que deixar de considerar os fenômenos da sociedade do ponto de vista dela própria. Assim, a barreira que faz da consciência de classe da burguesia uma “falsa” consciência é objetiva: é a situação de sua própria classe. Embora ela possa refletir com certa clareza sobre todos os problemas inerentes ao capital, quando a solução destes aponta para além do capitalismo sua consciência se obscurece, torna-se turva. Os limites objetivos da produção capitalista são os limites da consciência de classe da burguesia.

Totalidade e projeto

Uma sucinta definição de consciência de classe formulada por Lukács é que ela seria “a reação racional adequada, que deve ser adjudicada (zugerechnet) a uma situação típica determinada no processo de produção”. Parece complexo, mas não tanto. O termo alemão zugerechnet pode também ser traduzido como imputado ou atribuído. Assim, esta curta definição significa que, ao se relacionar a consciência com a totalidade da sociedade, torna-se possível reconhecer os pensamentos e os sentimentos que os homens teriam tido numa determinada situação da sua vida, se tivessem sido capazes de compreender perfeitamente essa situação e os interesses dela decorrentes, tanto em relação à ação imediata quanto em relação à estrutura de toda a sociedade conforme esses interesses.

Ainda segundo Lukács, “do ponto de vista abstrato e formal, a consciência de classe é, ao mesmo tempo, uma inconsciência, determinada conforme a classe, de sua própria situação econômica, histórica e social”. De maneira que “a vocação de uma classe para dominação significa que é possível, a partir dos seus interesses e da sua consciência de classe, organizar o conjunto da sociedade conforme seus interesses”.

Essa definição contém pelo menos dois aspectos fundamentais que caracterizam a consciência de classe: visão da totalidade da sociedade e ter um projeto para organizá-la conforme seus interesses.

O proletariado se distingue das outras classes por não se ater às particularidades dos acontecimentos históricos, mas se remeter sempre às questões últimas do processo econômico objetivo. Por isso, Marx afirma em Salário, Preço e Lucro que é importante que o proletariado não superestime o efeito das lutas cotidianas contra o capital. Ele não deve se esquecer de que, no plano econômico-sindical, ele “luta contra os efeitos, e não contra a causa desses efeitos”; que nessas lutas ele pode “diminuir a velocidade da marcha do movimento, mas não mudar sua direção”; que essas lutas são apenas paliativos que “não curam a doença”. Desse modo, o proletariado não deve se ocupar exclusivamente dessas inevitáveis guerras de guerrilha e, “ao invés da palavra de ordem conservadora: ‘Um salário diário justo por um dia de trabalho justo!’, ele deveria escrever sobre seu cartaz a solução revolucionária: ‘Abaixo o sistema assalariado!’”. (Karl Marx, Lohn, Preis und Profit, p. 152, tradução nossa)

Também no Manifesto do Partido Comunista Marx e Engels assinalam que uma das diferenças dos comunistas em relação aos outros partidos proletários reside no fato de estes não se limitarem apenas às lutas imediatas dos trabalhadores, mas sempre levarem em conta o futuro do movimento. “O resultado real de suas lutas não é a vitória imediata, mas a união cada vez maior dos trabalhadores.”

Neste mesmo sentido, ao descrever a formação do proletariado em Miséria da filosofia, Marx afirma, expressando-se em termos hegelianos, que a concentração de um grande número de operários nas grandes fábricas das cidades foi o que primeiramente uniu o proletariado nos primórdios do capitalismo. Mas nessa primeira forma de união o proletariado se constituía apenas como uma classe em si, ou seja, era uma classe em relação ao capital. Mas é necessário que o proletariado se torne uma classe para si mesmo, isto é, que eleve a necessidade econômica de sua luta de classe ao nível de uma vontade consciente, de uma consciência de classe ativa.

Consciência de classe e transformação histórica

A consciência de classe, sendo diferente de uma consciência meramente psicológica do proletário quanto à sua situação de miséria, exploração, etc., não tem um caráter meramente contemplativo. Ela é mais que isso, envolvendo os interesses que são decorrentes dessa situação tanto no que diz respeito à ação imediata quanto em relação à estrutura de toda a sociedade. E isso só pode ser pensado quando se tem referência na totalidade.

O proletariado deve agir de acordo com seu ser, mas esse agir não é inconsciente, nem sua consciência é falsa, como no caso das outras classes sociais. Pela primeira vez na história, é possível que uma classe atue de modo consciente como fator de progresso, e aqui sua consciência reflete seu próprio ser social. Nas sociedades anteriores, bastava que as classes revolucionárias agissem tendo em conta seus interesses imediatos e, por isso, sua tarefa foi mais fácil do que a que está colocada hoje ao proletariado.

Na consciência de classe se dá o autoconhecimento do proletariado, o que lhe revela, ao mesmo tempo, toda a estrutura da sociedade capitalista e sua própria missão histórica enquanto classe. Tal consciência se constitui, portanto, como uma unidade dialética indissociável de teoria e prática. É por isso que Lukács afirma que “a combatividade de uma classe é tanto maior quanto melhor for a consciência que ela puder ter na crença de sua própria vocação”, isto é, na sua vocação para dominação, de seu papel e lugar na história.

O desenvolvimento econômico do capitalismo apenas criou a posição do proletariado no processo de produção, e tal posição determinou seu ponto de vista. Este desenvolvimento objetivo apenas colocou diante do proletariado a possibilidade e a necessidade de transformar a sociedade. Esta transformação, por sua vez, só pode ser o ato livre-consciente – do próprio proletariado.



FONTE: A VERDADE

sexta-feira, 4 de setembro de 2015

75 anos depois, Trotsky vive no Brasil


A história agigantou a estatura e celebramos a sua memória com respeito e admiração. Sua vida e obra são uma inspiração insubstituível.


Por Léa Maria Aarão Reis


“Não só Trotsky, mas também o trotskismo,  no Brasil, tem uma tradição e um legado na esquerda que remete ao final dos anos vinte. Foram cinco gerações. A primeira, de Mário Pedrosa, Lívio Xavier e Fúlvio Abramo. A segunda, a do jornalista Hermínio Sachetta, que ajudou na formação do jovem Florestan Fernandes. A terceira  resistiu nos anos cinquenta, nos anos da guerra fria, com os irmãos Fausto, Boris e Ruy, e Leôncio Martins Rodrigues; Michael Löwy foi para o exílio na França. A quarta, no final dos anos sessenta,  é a minha geração e gerou as maiores organizações - foram importantes na fundação da CUT e do PT, a Convergência Socialista, O Trabalho e a Democracia Socialista, e tiveram um papel na organização das lutas dos trabalhadores e da juventude. E a quinta, a que chegou à vida adulta nos anos oitenta e início dos anos noventa, compareceu na formação do PSTU, em 1994, e do PSOL em 2004.”

Quem fala a Carta Maior é o historiador marxista Valério Arcary(*),  escritor e professor do CEFET/SP – Centro Federal de Educação Tecnológica - e um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores. Conversamos com Arcary, hoje filiado ao PSTU, relembrando a data de 21 de agosto de 1940 quando Lev Davidovitch Bronstein morreu, num hospital, aos 60 anos, depois de sobreviver, durante um dia, aos golpes de picareta do agente de Stalin, o basco Ramón Mercader, desfechados na sua nuca, no escritório da casa em Coyoacán, no México - hoje um museu e em cujo jardim se encontra o seu modesto túmulo. Para o prof. Arcary, o idealizador e comandante do Exercito Vermelho, agora, com sua memória celebrada, representa um fio de continuidade com a tradição marxista.  “A primeira  geração de brasileiros trotskistas fez a melhor análise marxista sobre a revolução de 30,” ele lembra, “e esteve à frente da organização da Batalha da Praça da Sé, conhecida, também, como a Revoada dos Galinhas Verdes, um combate antifascista.”

Nesta entrevista para Carta Maior, 75 anos depois do fatídico 21 de agosto, ele fala sobre a herança que permanece entre nós do pensamento de Trotsky: “A história agigantou a estatura e celebramos a sua memória com respeito e admiração. Sua vida e obra são uma inspiração insubstituível. Mas não alimentamos cultos. As experiências bárbaras de culto à personalidade que se disseminaram a partir do processo pioneiro na ex-URSS, onde Stalin, ainda vivo, se fez glorificar por uma indústria de propaganda tão poderosa quanto a força do aparelho policial – militar, que instituiu o terror como política de Estado, alimentam grande prudência, senão pudor, em relação ao tema do lugar do indivíduo na história. O ainda hoje presente regime ditatorial na Coréia do Norte que, ao garantir a transição do poder de pai para filho, instituiu a primeira monarquia que se reivindica “socialista”, convida tanto ao desprezo, quanto inspira o sarcasmo.

CM- O que é a teoria da revolução permanente de Trotsky?

Trotsky elaborou a teoria do desenvolvimento desigual e combinado, e desenvolveu uma teoria-programa para as revoluções contemporâneas. Esta elaboração foi chave para a vitória da primeira revolução anticapitalista da história, a revolução de outubro de 1917. Aos 26 anos, inspirado pela experiência derrotada da revolução de 1905, formulou a teoria da revolução permanente. Antecipou que, em países historicamente retardatários, como era o Império Czarista, com uma burguesia economicamente poderosa, porém, social e politicamente frágil, a revolução democrática contra o czarismo teria como sujeito social decisivo a classe trabalhadora urbana aliada à maioria camponesa. Este bloco social operário e popular não se contentaria com a conquista da república democrática e, em mobilização ininterrupta, em permanência, poderia realizar a reforma agrária, libertaria as nações oprimidas por Moscou dentro do Império, e desafiaria a propriedade privada, abrindo o caminho para a revolução europeia e a luta pelo socialismo internacional.

CM- Em qual livro Trotsky trata dos desvios da época stalinista?

No livro A Revolução Traída, de 1936, ele analisa o processo de burocratização da URSS e do Partido Bolchevique, e prevê que, ou o proletariado faria uma revolução política democrática ou o capitalismo seria restaurado na Rússia. Infelizmente, foi o que acabou acontecendo.

CM- Cinco gerações depois, como os jovens, na universidade, veem o papel e as teorias de Trotsky? É uma figura datada ou se trata de um clássico?

Trotsky tem uma presença na universidade tanto na dimensão política quanto intelectual. Não se pode, contudo, perder o sentido das proporções. A maioria dos estudantes universitários brasileiros contemporâneos não lê, infelizmente, nem Marx. Lênin, então, nem pensar. São aproximadamente seis milhões, e somente um milhão em universidades públicas. A maioria dos estudantes só se integra no movimento estudantil, onde as ideias de esquerda são mais influentes, em algumas circunstâncias excepcionais.

CM- Qual é a militância dentro da universidade?

Em alguns cursos a presença marxista é, em diferentes proporções, mais expressiva: Serviço Social, Educação, História, Geografia, Ciências Sociais, Filosofia, Letras, Direito, Economia. O trotskismo teve uma intensa presença militante nas universidades  brasileiras nos últimos quarenta anos, tanto entre estudantes quanto entre professores e técnico-administrativos. Muitos milhares de jovens de diferentes gerações uniram-se ao trotskismo, em suas diferentes organizações, e contribuíram, ao longo de décadas, para que fosse possível a existência de um movimento estudantil no Brasil com inclinação por alianças sociais com os trabalhadores, o que não acontece em outros países. Centenas de trotskistas ajudaram, nos últimos trinta anos, a construir o ANDES, o SINASEFE e a FASUBRA como sindicatos dos mais combativos e representativos do movimento sindical.  O auge da influência marxista na academia se deu nos anos oitenta em função do deslocamento da relação social de forças para a esquerda na luta final contra a ditadura. O lugar de Trotsky ao lado das três correntes intelectuais marxistas mais influentes, inspiradas em Gramsci, Lukács, Althusser, permanece, também, significativo, tanto na graduação quanto na pós-graduação. Existem muitas dezenas de trabalhos acadêmicos sobre Trotsky e sobre os trotskistas brasileiros. Trotsky é percebido, portanto, entre aqueles que se interessam pelos temas da transformação social como um clássico.

CM- A revolução permanente e sua teoria devem ser evocadas pelas esquerdas do Brasil?

Sim. A obra de Léon Trotsky é um referencial para elaborar um programa para a revolução brasileira. Tem sido assim. O trotskismo contribuiu para uma compreensão marxista original e instigante da originalidade da formação social brasileira. Sem esta compreensão é impossível um programa. Não é possível lutar, seriamente, pela mudança da sociedade em que vivemos, sem compreender como ela é. Em perspectiva marxista esta análise deve identificar quais são os sujeitos sociais interessados na transformação. O Brasil permanece muito diferente dos seus vizinhos sul-americanos de colonização espanhola, por muitas determinações. Todavia, a escravidão é a principal. Houve escravidão em muitas outras colônias das Américas. No entanto, nenhuma nação contemporânea conheceu em sua história escravidão negra em tão larga proporção, e por tanto tempo como o Brasil. A colonização do Brasil foi motivada por interesses capitalistas. Muito antes da independência, já existia uma classe dominante luso-brasileira com características burguesas embora as relações sociais fossem pré-capitalistas. A acumulação capitalista precedeu, portanto, a abolição da escravidão. Existiam assalariados desde os tempos da América portuguesa, mas esta relação de trabalho era marginal. Por aqui a burguesia começou a se formar no século XVI. Mas o proletariado surge como classe, ainda assim muito embrionariamente, somente no final do século XIX, alguns séculos mais tarde - como alertou,  pioneiramente, nos anos quarenta, Caio Prado Júnior. Se avaliarmos a escala nacional, só podemos considerar uma presença da classe operária em alguns poucos centros urbanos depois dos anos trinta do século XX e, de forma mais expressiva, somente depois dos anos cinquenta, quando ainda quase metade da população vivia no mundo rural. Esta assimetria do processo histórico-social de formação das duas classes mais importantes da atual sociedade brasileira potencializou no marxismo duas posições opostas, que podemos classificar, simplificando, como os produtivistas e os circulacionistas. A primeira e mais influente foi a daqueles que não admitiam a possibilidade da existência de uma colonização capitalista desde a invasão portuguesa. Insistiram durante décadas na defesa esdrúxula de que teria existido feudalismo no Brasil. Defenderam que uma sociedade deve ser caracterizada, historicamente, pelas relações de produção dominantes. Afirmaram que o que caracteriza o capitalismo é o trabalho assalariado. Se o trabalho assalariado não é dominante, a sociedade não é capitalista. A outra posição era igualmente unilateral. Os circulacionistas afirmavam que a colonização tinha sido sumariamente, capitalista, desprezando o fato monumental de que o escravismo criou raízes profundas em quase quatro séculos de existência.

CM – Qual a interpretação da POLOP?

A Organização Revolucionária Marxista-Política Operária, POLOP, por exemplo, assumiu esta segunda interpretação para concluir a necessidade de um programa diretamente socialista ou anticapitalista diminuindo a importância das tarefas democráticas da revolução brasileira. Jacob Gorender tentou solucionar o debate com uma elaboração inspirada, ainda que sob uma forte influência estruturalista, sugerindo que o Brasil conheceu um modo de produção próprio, o escravista colonial.

CM – E o Brasil hoje, é produto deste quadro histórico?

O Brasil é ainda um país muito atrasado do ponto de vista econômico, social, político e cultural. É dramaticamente atrasado em termos educacionais quando comparado com nações em estágio semelhante de desenvolvimento econômico. Atrasado, portanto, em toda a linha. Mas é, ao mesmo tempo, o maior parque industrial do hemisfério sul do planeta, e uma das maiores economias capitalistas do mundo contemporâneo, com doze cidades com um milhão ou mais de habitantes, e 85% da população economicamente ativa em centros urbanos. Só utilizando os recursos marxistas da lei do desenvolvimento desigual e combinado é possível equacionar a principal das peculiaridades brasileiras: o capitalismo usou em escala insólita a mão de obra escrava.

CM- Qual é a força da classe trabalhadora brasileira?

Uma das peculiaridades que distingue o Brasil é que este proletariado tardio é um dos mais poderosos do mundo. A força da classe trabalhadora brasileira repousou e se explica, em grande medida, pelo seu gigantismo, pela concentração e pela sua juventude que, paradoxalmente, foi até hoje, também, a sua fraqueza. A atual classe trabalhadora brasileira se formou, majoritariamente, pelo deslocamento para as cidades, em processo muito intenso e acelerado de migrações internas, da população descendente, em sua maioria, dos afro-brasileiros cujos ancestrais foram escravos.

CM – E qual é o desafio de uma real revolução democrática?

É o desafio de ser uma revolução social anticapitalista, ou seja, a expropriação dos monopólios, porque a classe trabalhadora deverá ser o seu principal sujeito social. Mas só poderá triunfar se tomar como sua as bandeiras democráticas das tarefas inacabadas deixadas para trás pela impotência burguesa. Essa revolução democrática tem muitas e variadas tarefas. Tem tarefas civilizatórias, como a erradicação da corrupção, a demarcação das terras indígenas, o fim das desigualdades regionais. Tem tarefas de libertação nacional na luta contra a ordem imperialista. Tem tarefas agrárias contra o latifúndio. Só poderá triunfar, contudo, se for também uma revolução negra.

CM- Como ler Trotsky neste momento atual, à luz da nova onda de conservadorismo que procura varrer, mais uma vez, a ação progressista de governos da América Latina, e em momento em que o jogo geopolítico volta a apontar o continente como um espaço que, a qualquer custo, deve ser disputado pelos EUA à China?

Não vejo o mundo assim. Vejo que prevalece mais associação que conflito entre os EUA e a China no sistema mundial de Estados. A principal contradição no mundo, que está longe de ser a única, mas permanece a mais importante, e que explica a situação tanto na Grécia quanto no Brasil, é aquela entre Capital e Trabalho. O ano de 2015 tem colocado à prova o  sangue frio da esquerda marxista brasileira. Quando uma batalha está em curso não é claro quem irá vencer. Acontece que nenhum dos dois campos mais fortes em disputa é progressivo. Se Dilma permanecer, e superar a vertigem da crise com o auxílio do PMDB de Temer e os apelos da grande burguesia, os próximos três anos serão anos de longa recessão, sacrifícios e a Agenda Brasil. Se Dilma viesse a ser derrubada por um impeachment no Congresso Nacional, sob a direção Cunha e Aécio, teríamos um governo de transição liderado, provavelmente, por Michel Temer com participação do PSDB. E a Agenda Brasil. Por isso há tanto nervosismo nas fileiras da esquerda. Ficou mais difícil, muito mais difícil do que em 2014, defender qual é o mal menor. Mas, resistir às pressões dos dois campos, em simultâneo, e posicionar-se de forma independente significa, também, neste momento, ficar ainda mais em minoria do que há um ano. Não fosse isso o bastante, cercados por forças muito mais exaltadas. Compreender os limites intransponíveis do governo Dilma remete à compreensão da história do PT. Estudar a história do PT é tema imprescindível para a esquerda brasileira. Porque o perigo de repetir, uma, duas e mais vezes os mesmos erros não é pequeno. Não nos deve preocupar que haja polêmicas na interpretação. O que deve nos assombrar é que não haja uma discussão, até apaixonada, sobre as mutações do petismo em lulismo.

CM – Quais os eventuais riscos desta discussão que se faz tão necessária?

O perigo da mimetização, ou da imitação, muito tentador para a geração mais madura de ativistas que viveram a experiência do PT nos anos oitenta, e não se deixaram abater pela desmoralização. Este impulso consiste em imaginar que com a mesma estratégia, mas com homens e mulheres diferentes, seria possível replicar os êxitos do PT, evitando os seus erros, e obter um desenlace diferente. E existe o perigo oposto que pode ser também, muito atrativo, especialmente, para a geração mais jovem, que despertou para a luta de classes depois da eleição de Lula em 2002: desprezar as lições positivas da experiência do PT, como, por exemplo, a importância de um instrumento de organização dos trabalhadores para a luta política, inclusive quando a luta política se concentra em terreno desfavorável, como nas eleições. E apostar somente no espontaneísmo, ou na militância pela defesa de reivindicações imediatas. Houve algo de admirável, mas, também, perturbador, na verdade, desde o início, na história do PT. Para remeter ao vocabulário cunhado pela literatura, tivemos o momento epopeia, o momento tragédia e até o momento comédia na trajetória em que o petismo se transformou em lulismo.

CM – Como escolher entre o continuísmo e as rupturas?

Tudo o que existe se transforma. Existem continuidades e rupturas. Nem sempre, no entanto, predomina o que era mais progressivo. Muitas vezes, prevalece o que era mais regressivo. O que provocou mudanças sociais e políticas reacionárias nos partidos da classe trabalhadora, a se considerar os incontáveis exemplos históricos, foi o impacto das lutas políticas e sociais, das vitórias e das derrotas, ou seja, da pressão das outras classes. Quando as pressões socialmente hostis, oponentes, contrárias aos interesses dos trabalhadores foram extremamente poderosas, abriram-se crises nos partidos de origem proletária. Os partidos operários são muito mais vulneráveis à pressão das classes inimigas do que os partidos que representam as classes proprietárias. Porque o proletariado é uma classe ao mesmo tempo explorada, oprimida, e dominada. É completamente inusitado quando um filho da burguesia adere à causa do socialismo. Mas está longe de ser surpreendente que líderes da classe trabalhadora passem a defender os interesses dos patrões.

CM - Analise um pouco o livro do Leonardo Padura, O homem que amava os cachorros. Você crê que ele chega a distorcer a realidade dos últimos anos de Trotsky no exílio, ao preencher, com a imaginação riquíssima, alguns episódios biográficos? Ou, ao contrário, é uma obra que serve de estimulo às novas gerações para pesquisá-lo?

O livro de Padura é um romance histórico que já nasceu como um clássico. É um livro, intelectualmente, honesto e, literariamente, brilhante. Não se deve esperar, porém, que um escritor escreva história. O grande valor de Padura é o de nos apresentar um Léon Trotsky honrado, incorruptível, digno e arrebatado pela luta pelo socialismo. Ramón Mercader nos é descrito como uma personalidade maníaca que só pode ser compreendida no contexto de uma família patologicamente enlouquecida, e nas circunstâncias abomináveis do regime stalinista, e das aberrações que promoveu em escala internacional. O melancólico Ivan, finalmente, é um sobrevivente nos marcos do regime cubano burocrático decadente.


* Autor do livro As esquinas perigosas da História - Situações revolucionárias em perspectiva marxista (2004, prefácio de César Benjamin), adaptação do último capítulo de sua tese de doutorado. Autor, também, de O encontro da revolução com a História (2007) e Um reformismo quase sem reformas (2011).


FONTE: Carta Maior