quarta-feira, 25 de junho de 2014

A esquerda e a democracia

                                                                                                                                                                  
                                                                                                                                                                                                 

Por Silvio Caccia Bava


Para muitos, a divisão política entre direita e esquerda soa hoje como um anacronismo. Essa divisão não é uma coisa do passado que está superada? Falar de direita e esquerda no século XXI, com a revolução nas tecnologias, as profundas transformações nas classes trabalhadoras e nas relações de poder, com a internet convocando mobilizações, não é saudosismo? A resposta é não. Enquanto o capitalismo produzir e aumentar em nossas sociedades a desigualdade social, ampliar o fosso entre ricos e pobres, colocar na miséria um contingente crescente de trabalhadores, é preciso enfrentar esse modelo de produção e organização social que assume, em sua última forma, o nome de neoliberal. É o que defendem, por exemplo, os movimentos Occupy, nos Estados Unidos, quando contrapõem os interesses dos 99% da população aos do 1% mais rico.

A diferença básica é o que se faz com a riqueza produzida. O neoliberalismo mobiliza a sociedade e seus recursos para aumentar o lucro das empresas, especialmente das transnacionais, não importa o custo social. A esquerda quer que essa riqueza se transforme em bem-estar para toda a sociedade e busca justiça social.

Segundo a pesquisa Datafolha, de dezembro de 2013, sobre o perfil ideológico dos brasileiros, 41% se identificam como sendo de esquerda ou centro-esquerda e 39% se identificam como sendo de direita ou centro-direita. Tanto as perguntas quanto as respostas tornam claro que essa é uma questão viva. Evidentemente, os 39% de direita não são, em sua grande maioria, capitalistas, mas pessoas que se convenceram do discurso da direita e assumem seus valores e expectativas. Sua maior concentração é nas camadas mais pobres e menos escolarizadas da sociedade.

Para não ficarmos nos estereótipos, criados pela ideologia conservadora para desqualificar qualquer possibilidade de transformação social e oposição ao capitalismo, precisamos aprofundar nosso entendimento sobre os significados dessa divisão entre direita e esquerda.

O ponto de partida é histórico. Assim como em outros momentos, a esquerda já foi contra o fascismo, já defendeu o Estado de bem-estar social e o nacionalismo; na atualidade, a esquerda se opõe às políticas neoliberais. Essas políticas querem a eliminação de direitos e benefícios sociais e trabalhistas conquistados e a destruição de políticas públicas garantidoras desses direitos. Sem esses gastos, os capitalistas aumentam sua margem de lucro.

A esquerda, em seus vários matizes, está de acordo sobre questões essenciais: defender direitos, benefícios e garantias sociais e trabalhistas que foram conquistas com muita luta e sacrifício e se veem ameaçadas pelas políticas neoliberais. A esquerda vai muito além disso, propondo políticas públicas universais e de qualidade, lutando para que elas se transformem em bens públicos comuns, isto é, bens disponíveis para todos, gratuitos, custeados pelos impostos de todos, e não pagos pelos usuários. Moradia, luz, gás, água, transportes públicos, educação, saúde, coleta do lixo, equipamentos de esportes são serviços de responsabilidade do Estado que podem se converter em bens públicos comuns.

Ser de esquerda é propor a sustentabilidade ambiental, a diversidade cultural, a igualdade entre raças e gêneros, a segurança alimentar, uma nova política para drogas e aborto. É ser um cidadão ativo pela paz, com liberdade e justiça.

Ser de esquerda é desvendar os mecanismos de exploração e opressão e debatê-los publicamente, enfrentar as políticas geradoras da desigualdade social, como a política tributária ou a fixação da taxa Selic, e propor a inclusão social e política dos mais pobres, garantindo concretamente direitos para todos.

Desde os anos 1970, a esquerda no Brasil vive uma transformação profunda e substitui a ideia de revolução pela defesa de uma democracia com igualdade e a justiça social. A descentralização e o controle social das políticas públicas e a participação cidadã na gestão pública são elementos centrais do novo projeto.

E por que a democracia é essencial? Porque são as pressões e mobilizações sociais que estendem os direitos sociais e políticos para quem não os tinha e ampliam sua cobertura a todos. A democracia serve para tornar universais direitos que antes eram restritos a poucos.



Silvio Caccia Bava é Diretor e editor-chefe do Le Monde Diplomatique 


FONTE: Le Monde Diplomatique Brasil

domingo, 22 de junho de 2014

O mito da “nova classe média” e o que há por trás dele



Livro mais recente de Márcio Pochmann sugere: conceito infeliz revela ou precipitação teórica, ou incapacidade de enxergar que precisamos de novas políticas públicas


Por Marco Weissheimer


Muito se falou, após os protestos de junho de 2013, da emergência de novos setores sociais no país, com uma nova agenda de demandas e de lutas. Esses setores seriam resultado, em larga medida, do sucesso das políticas econômicas e sociais implementadas na última década. E desempenhariam um papel essencial no processo eleitoral deste ano, oferecendo um enigma a ser desvendado pelos projetos políticos em disputa. A Boitempo Editorial está lançando um livro que pode ajudar a reflexão sobre esse debate.

O economista Marcio Pochmann, professor titular do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), é o autor desse livro dedicado a analisar a suposta emergência de uma nova classe média no Brasil, a partir, principalmente, do sucesso das políticas de distribuição de renda implementadas no Brasil desde o governo Lula. Crítico da ideia da emergência de uma nova classe média, o hoje presidente da Fundação Perseu Abramo analisa em O mito da grande classe média: capitalismo e estrutura social (Boitempo Editorial) como, nos últimos anos, vem se difundindo mundo afora a ideia de uma “medianização” das sociedades, com o surgimento de novos setores médios da população.

Pochmann faz uma historiografia do conceito de classe média e reflete sobre a evolução e as mudanças pelas quais passou a classe assalariada brasileira. Essas mudanças, defende, apontam para o crescimento e o fortalecimento, não da classe média, mas sim da classe trabalhadora brasileira. O mito da grande classe média, uma noção heterogênea e não unívoca, sustenta o autor, está impregnado de ideologia e voluntarismo teórico. Para Pochmann, a ausência de uma análise das classes sociais em sua determinação concreta ou segundo as condições reais de sua base material redunda em “um voluntarismo teórico inconsistente com a realidade, salvo interesses específicos ou projetos políticos de redução do papel do Estado”.

A síntese de mais de dez anos de implantação dessas políticas passaria não pela emergência de uma nova classe média, mas sim pela ascensão e o fortalecimento de setores ligados à classe trabalhadora. Não se trata, para Pochmann, de uma mera diferença de nomenclatura, mas sim de uma visão ideológica a respeito da natureza dessas politicas e de seus resultados em termos de mobilidade social.

Em seu livro anterior Nova classe média? Pochmann analisou as recentes transformações na sociedade brasileira e refutou a ideia de surgimento de uma nova classe no País, muito menos a de uma nova classe média. O resgate da condição de pobreza e o aumento do padrão de consumo, defendeu o autor, não tiram a maioria da população emergente da classe trabalhadora. Para Pochmann, é preciso realizar “a politização classista do fenômeno para aprofundar a transformação da estrutura social, sem a qual a massa popular em emergência ganha um caráter predominantemente mercadológico, individualista e conformista sobre a natureza e a dinâmica das mudanças socioeconômicas no Brasil”.

A melhora dos indicadores na distribuição da renda do trabalho e de seu aumento na participação da riqueza gerada concentra-se, fundamentalmente, na base da pirâmide social, o que revela também os seus limites, observa ainda Pochmann. O economista aponta que no Brasil as ocupações formais cresceram fortemente durante a primeira década de 2000, especialmente nos setores que têm uma remuneração muito próxima ao salário mínimo: 94% das vagas criadas entre 2004 e 2010 foram de até 1,5 salário mínimo. A partir desses dados, ele conclui que, juntamente com as políticas de apoio às rendas na base da pirâmide social brasileira, como elevação do valor real do salário mínimo e massificação da transferência de renda, houve o fortalecimento das classes populares assentadas no trabalho.

“O adicional de ocupados na base da pirâmide social reforçou o contingente da classe trabalhadora, equivocadamente identificada como uma nova classe média. Talvez não seja bem um mero equívoco conceitual, mas expressão da disputa que se instala em torno da concepção e condução das políticas públicas atuais”, escreve Pochmann na apresentação do livro. A perspectiva fundamentalmente mercantil, baseada na ideia de uma nova classe média, aponta, segundo o autor, para o fortalecimento dos planos privados de saúde, educação, assistência e previdência, entre outros. Contra isso, defende, recoloca-se a necessidade de construir serviços públicos de qualidades e de uma efetiva estruturação do mercado de trabalho, com empregos de qualidade e protegidos no Brasil, medidas fundamentais para enfrentar a precariedade no setor.

Pochmann resume assim a sua posição acerca desse fenômeno e dos desafios políticos que ele coloca:

“Mesmo com o contido nível educacional e a limitada experiência profissional, as novas ocupações de serviços, absorvedoras de enormes massas humanas resgatadas da condição de pobreza, permitem inegável ascensão social, embora ainda distante de qualquer configuração que não a da classe trabalhadora. Seja pelo nível de rendimento, seja pelo tipo de ocupação, seja pelo perfil e atributos pessoais, o grosso da população emergente não se encaixa em critérios sérios e objetivos que possam ser claramente identificados como classe média. Associam-se, sim, às características gerais das classes populares, que, por elevar o rendimento, ampliam imediatamente o padrão de consumo”.

“Não há, nesse sentido, qualquer novidade, pois se trata de um fenômeno comum, uma vez que trabalhador não poupa, e sim gasta tudo o que ganha. Em grande medida, o segmento das classes populares em emergência apresenta-se despolitizado, individualista e aparentemente racional à medida que busca estabelecer a sociabilidade capitalista. (…) Percebe-se sinteticamente que a despolitizadora emergência de segmentos novos na base da pirâmide social resulta do despreparo de instituições democráticas atualmente existentes para envolver e canalizar ações de interesses para a classe trabalhadora ampliada. Isto é, o escasso papel estratégico e renovado do sindicalismo, das associações estudantis e de bairros, das comunidades e base, dos partidos políticos, entre outros”.

Reside aí um dos desafios que o processo eleitoral de 2014 oferece: como enfrentar essa despolitização em um cenário marcado crescentemente por um discurso que é criminalizador da política?


FONTE: Outras Palavras

sexta-feira, 20 de junho de 2014

Flaskô, a fábrica brasileira sob controle operário



Quebrada por patrões, recuperada pelos trabalhadores, indústria reduziu jornada, estabeleceu democracia interna e criou centro cultural. Após onze anos, luta entra em nova fase


Por Paloma Rodrigues, na Carta Capital | Imagens: Felipe Damas Silva


Em Sumaré (SP), região metropolitana de Campinas, funciona a única fábrica administrada por trabalhadores do Brasil. Ameaçada de ser fechada em 2003 devido à falência do grupo que a administrava, a Flaskô, que produz tambores plásticos, seguiu sendo tocada por seus antigos funcionários e hoje tenta se manter ativa mesmo com as dívidas herdadas da antiga gestão. A nova batalha é pela estatização da empresa, que tramita no Senado há mais de dois anos.

Até 2003, o controle da fábrica era da Holding Brasil (ou apenas HB), um braço da gigante Tigre. O grupo entrou em uma forte derrocada nos anos 1990, acumulando dívidas e aumentando demissões. “Foram cerca de 40 empresas que quebraram, graças à abertura econômica e também à má gestão”, explica o advogado da Flaskô, Alexandre Mandl. “A Cipla e a Interfribra, em Joinville, e a Flaskô, aqui em Sumaré, retomam a produção e elas vão ser o tripé do movimento das fábricas ocupadas”, explica ele. Nas duas fábricas de Santa Catarina, entretanto, um interventor judicial, Rainoldo Uessler, foi nomeado para assumir o comando das empresas em 2007. A Flaskô também sofreu intervenção, que cortou a energia da fábrica por 42 dias e fez boa parte do seu quadro de funcionários buscar outros empregos, mas retomou as atividades depois do período.

Adélia, de 23 anos, acompanhou todo esse processo de perto. Filha de funcionários da Flaskô, ela viveu a mudança da gestão dos patrões para a gestão também comandada por seus pais. “Meu pai e minha mãe trabalharam aqui, ainda na época patronal. Com o início dos problemas, minha mãe também foi levada embora na leva de demissões, mas meu pai ficou e já deve fazer 20 anos que ele trabalha aqui.” Hoje, Adélia é uma das mulheres que compõe o quadro de funcionários da fabricante de tambores plásticos no setor de compras e financeiro.



Nos últimos 11 anos, Adélia acompanhou o pai em todos os atos e passeatas pela estatização da Flaskô. “Eu sempre fui junto às passeatas em Brasília, que aconteciam todos os anos”, afirma. Há três anos trabalhando na fábrica, Adélia diz que o trabalho em uma fábrica ocupada é “totalmente diferente”. “Aqui você não está sob pressão, você faz com tranquilidade e consegue resolver seus problemas”, diz ela. Mas o preconceito ainda é grande: “Quando você fala “trabalho em uma fábrica ocupada, sob o controle dos trabalhadores, as pessoas já falam ‘Nossa, mas essa empresa ainda funciona’, ‘Ai é falida’. Quando você explica a situação, elas ficam curiosas e veem que não é bem assim”, conta. “Aqui é como uma empresa normal, só não tem o patrão, o que é a vantagem”, diz a jovem.

Adélia é uma dos 70 trabalhadores da Flaskô. São 60 homens e 10 mulheres, sem que nenhum tenha o cargo ou se reconheça como chefia ou “patrão”. O ritmo de trabalho é definido por assembleias, gerais e de turnos. A jornada de trabalho foi reduzida de 44 para 30 horas semanais, sem redução de salários; também foi realizado um achatamento da diferença salarial – as funções mais bem remuneradas passaram a ganhar menos e as pior remuneradas passaram a ser maiores.

Além dos avanços em relação às leis trabalhistas, os funcionários também acreditavam que a Flaskô deveria se envolver com a comunidade em que está inserida. Isso levou à criação da Fábrica de Cultura e Esportes, que desenvolve diversos eventos e ações culturais: sessões de cinema semanais, aulas de balé, capoeira, oficina de quadrinhos e uma pista de skate (e campeonatos regulares que agitam completamente o dia-a-dia da fábrica). Alunos da Unicamp tocam ainda o Educação para Jovens e Adultos, projeto de extensão para a comunidade.



No espaço da Fábrica de Cultura e Esportes, companhias de teatro também realizam ensaios e apresentações. A iniciativa é importante para manter grupos da região, como pode ser visto no depoimento do vídeo, produzido pela própria Flaskô, do ator da Honesta Companhia de Teatro. “Na região de Campinas e Sumaré, nenhum grupo de teatro, cultura e música tem espaço para sediar suas atividades. E a Flaskô é um dos poucos espaços nessa região toda que se coloca abrindo as portas oferecendo lugar não só para ensaio, mas apoios para apresentação de qualquer tipo”, declara o ator.

Mandl, o advogado da fábrica ocupada, explica que os trabalhos realizados evidenciam o caráter social da Flaskô. “A gente usa dois galpões da fábrica para projetos culturais, em vez de especular esse espaço. E, além disso, três quartos da propriedade da fábrica, que poderia ser utilizada para a geração de lucro, é destinada para uma ocupação de moradia chamada Vila Operária”, afirma ele.

O terreno foi ocupado em 2005, inicialmente por cerca de 300 famílias. No momento, Mandl afirma que a ocupação já atingiu o número de 564 famílias. “Nossa reivindicação parte desse tripé: trabalho, pela Fábrica de Cultura e Esporte e pelo direito à moradia”.

Dívidas

Apesar das vitórias trabalhistas, a vida dos funcionários da não é de todo tranquila: a Flaskô sofre a ameaça de fechar a qualquer momento. Nos últimos 11 anos de ocupação (em 12 de junho a fábrica completa mais um ano sob gestão operária) foram diversos pedidos de leilões de máquinas e penhora de bens. A dívida já ultrapassa os 120 milhões de reais.

O imbróglio é grande: os dirigentes da Flaskô acreditam que a dívida deveria ser cobrada de quem a gerou, ou seja, a antiga gestão da HB. “Nosso entendimento é que quem criou a dívida que pague”, afirma Mandl. “Mas o CNPJ da Flaskô é o mesmo, então seguimos responsáveis pelas dívidas geradas por este CNPJ”, diz. Apesar da gestão operária ser cobrada pelas dívidas, a propriedade da fábrica não está sob poder dos funcionários. “Hoje, temos a gestão operária, mas não temos a propriedade, que continua dos antigos patrões”, afirma.

A situação provoca indignação dos novos administradores da Flaskô. Eles alegam que a gestão patronal ficou 20 anos sem pagar esses tributos e o sistema tributário não conseguiu cumprir a função de reaver o dinheiro. “Agora nós temos oficial de justiça na casa de trabalhadores, querendo penhorar seus bens”, diz. Mandl acredita, entretanto, que a melhor maneira de resolver a questão seria comprometer uma porcentagem dos rendimentos da fábrica para pagar as dívidas. “Seria semelhante ao acordo que temos com o Ministério do Trabalho. Hoje, 1% do nosso faturamento vai pra pagar dívidas dos antigos patrões com os trabalhadores.” O rendimento mensal da Flaskô fica entre 500 e 600 mil reais.

O que os trabalhadores esperam conseguir com a estatização é o abatimento dos valores dos bens da Flaskô da dívida da fábrica. Com isso, esperam acabar com o drama representado pelas ameaças de leilões judiciais. De 2003 para cá, afirma Mandl, foram mais de 200. “Em todos os leilões levamos uma faixa ‘se arrematar, não vai levar’, porque existem outras formas de se resolver isso. E, hoje, a Flaskô não tem condições de perder nenhuma de suas máquinas, porque se isso acontecer ela vai a falência.”

No pátio da fábrica, são seis máquinas que realizam a confecção dos tambores plásticos. Na gestão da HB eram mais de 40, que foram sendo retiradas conforme a falência do grupo. No próximo dia 9 de junho, mais uma série de leilões está marcada e os funcionários prometem realizar um ato de protesto a ação.

Campanha

Para pressionar os senadores a discutirem a questão da empresa, a Flaskô busca 10 mil assinaturas, para que uma audiência pública seja convocada para discutir o Projeto de Lei 257/2012. A coleta de assinaturas é feita online. O pedido do PL é para a Declaração de Interesse Social da empresa, um primeiro passo para a estatização, ou seja, torná-la uma propriedade do Estado.

O pedido se baseia em uma lei de 1962, que define os casos de desapropriação por interesse social. O artigo 1º da lei dispõe que “A desapropriação por interesse social será decretada para promover a justa distribuição da propriedade ou condicionar o seu uso ao bem estar social”.

O projeto já foi aprovado pela Comissão de Direitos Humanos do Senado (CDH), em uma audiência pública realizada em 5 de julho de 2011. De lá, seguiu para a Comissão de Constituição e Justiça, onde segue parada. A Flaskô espera que, com a desapropriação, a indenização dos bens móveis e imóveis seja abatida dos impostos devedores, e os trabalhadores administrando a fábrica por uma forma de concessão.


FONTE: Outras Palavras

quarta-feira, 18 de junho de 2014

Cruzar os braços: um direito sob ataque

As greves que têm ocorrido no País desde o começo de 2014 dividem a opinião pública. Embora asseguradas pela Constituição, permanecem alvo de tentativas de repressão e punição


Por Anna Beatriz Anjos, fotos por Mídia NINJA


Para o Brasil, 2014 tem sido movimentado, como já era possível prever antes mesmo do ano começar. Copa do Mundo e corrida eleitoral são os combustíveis que alimentam essa fogueira social. Além das ruas, tomadas por movimentos sociais desde junho de 2013, outro fator colaborou para o ambiente de contestação que se espalhou pelo país: as greves.

Desde o início do ano, diversas categorias têm aderido a paralisações. Dentre as que ganharam mais destaque, estão a dos garis, no Rio de Janeiro, que durou oito dias (de 1º a 8 de março, logo após o Carnaval); a dos policiais militares em Recife – que durou apenas 24 horas (de 14 a 15 de maio), mas terminou com 234 pessoas detidas por furto, roubo, posse ilegal de armas e outros crimes e levou às ruas a Força Nacional de Segurança Pública; a dos motoristas e cobradores de ônibus em São Paulo, que cruzaram os braços entre os dias 20 e 21 de maio; a dos metroviários, também em São Paulo, que não trabalharam por cinco dias (de 5 a 9 de junho); e, agora, a dos motoristas e cobradores de ônibus de Natal, que já entra no segundo dia (se iniciou na última quinta-feira, 12).

A constante de todas estas mobilizações é que elas são iniciativas de funcionários públicos – como é o caso da Companhia do Metropolitano de São Paulo (Metrô) – ou de atividades terceirizadas pelos governos municipais, no caso do transporte de ônibus. Talvez por isso, surge a suposição de que têm motivação política – como se ocorressem simplesmente para atingir às atuais gestões. O governador Geraldo Alckmin (PSDB) fez uma afirmação exatamente nesse sentido: disse que os metroviários pararam suas atividades “nitidamente” por um “motivo político”. Relacionou a suspensão do trabalho, ainda, à proximidade à Copa do Mundo – período que traria maior visibilidade ao movimento.

“A gente tem que perguntar por que os metroviários, por exemplo, estão fazendo greve nesse momento. Será que é por causa da Copa do Mundo? Em parte, sim. Mas isso deve ser explicado também porque é a hora do dissídio, da database. É a época do ano em que os metroviários negociam o reajuste salarial para recompor as perdas do período”, destaca o cientista político Pedro Fassoni Arruda, professor da Pontifícia Universidade de São Paulo (PUC-SP).

Amparados pela lei


Desde 1988, a greve é um direito do trabalhador no Brasil, garantido pelo artigo 9º da Constituição Federal.



A lei mencionada pelo texto foi sancionada um ano depois, em 1989. De número 7.783, ela define os direitos e deveres dos grevistas. Determina, já em seu segundo artigo, que é “legítimo exercício do direito de greve a suspensão coletiva, temporária e pacífica, total ou parcial, de prestação pessoal de serviços a empregador.”

Portanto, as paralisações, por si só, não podem ser condenadas. “A greve é um direito e não pode ser considerada crime. O que pode acontecer é simplesmente ela não seguir as regras previstas na legislação. Isso a torna ilegal”, explica a advogada Fabíola Marques, especialista em direito trabalhista.

“A greve é uma forma de solução de conflitos. Quando um grupo de empregados, representado por um sindicato, não tem mais condições de negociar com o empregador, ele se utiliza da greve exatamente como meio de força para tentar uma negociação, um direito que está sendo violado ou que ele acha que precisa ser melhorado”, explica Marques. É exatamente isso que estipula o artigo 3º da lei, que permite a cessação coletiva do trabalho em caso de esgotamento de recursos por via arbitral.

São também direitos preconizados pelo texto a arrecadação de fundos para o movimento e sua livre divulgação; a persuasão, por meios pacíficos, de outros trabalhadores a aderirem à greve; a blindagem a qualquer tentativa patronal de constrangimento para que os empregados compareçam ao trabalho; a garantia de que os contratos não serão rescindidos, durante a mobilização, e que novas contratações não serão realizadas para substituir as antigas.

As obrigações dos grevistas começam com a designação dos serviços considerados essenciais – aqueles cuja interrupção coloca “em perigo iminente a sobrevivência, a saúde ou a segurança da população”. Eles são 11, dentre os quais estão o transporte coletivo, a captação e tratamento de esgoto e lixo, assistência médica e hospitalar e o controle do tráfego aéreo, por exemplo.

No caso dessas atividades, a lei diz que os trabalhadores têm a obrigação de avisar o empregador e os usuários sobre a paralisação 72 horas antes de seu início. Para os demais setores, o prazo cai para 48 horas. Ainda é preciso que estes serviços fundamentais sejam garantidos à comunidade de alguma forma, e em comum acordo entre o patrão e os trabalhadores – se isso não ocorrer, o Poder Público tem de assegurar estes serviços.

Além disso, é necessário que qualquer decisão seja tomada em assembleia realizada entre a categoria, representada ou não por sindicato; que as manifestações dos grevistas não impeçam o acesso ao trabalho, tampouco causem ameaça ou dano à propriedade e à pessoa; e que a greve se encerre após acordo ou determinação da Justiça do Trabalho, quando esta precisar intervir no processo.

Para o jurista Jorge Souto Maior, professor de direito trabalhista da Universidade de São Paulo (USP), a própria lei vai de encontro à Carta Magna de 1988. “Ela vem em um contexto quase desdizendo o que disse a Constituição. Como quem diz: ‘A Constituição foi longe demais, precisamos limitá-la’. Em muitos aspectos, essa lei é inconstitucional, porque limita um direito de tal maneira que a própria Constituição não limitou. E o que vale, do ponto de vista jurídico, é a Constituição, e não a lei”, afirma.

O jurista alega, ainda, que a lei é interpretada e aplicada de maneira equivocada. Um dos exemplos em que isso acontece, de acordo com o advogado, é quando todos os encargos decorrentes da greve são delegados aos trabalhadores.

“A lei diz que, havendo uma greve em atividade essencial, cabe ao empregados e ao empregador deliberarem de comum acordo como serão mantidos os serviços essenciais à população. A obrigação não é só dos trabalhadores, é coletiva – deles e dos empregadores”, esclarece.

“A greve decorre da falta de acordo entre as partes, então é responsabilidade das duas partes, não só dos trabalhadores. Estes não podem ser punidos por estarem exercendo a greve, e não são culpados, sozinhos, pelos efeitos prejudiciais que ela provoca – porque uma greve necessariamente causa prejuízos”, explica Souto Maior.


Metroviários de São Paulo reunidos em assembléia na sede de seu sindicato para decidir sobre os rumos da greve (Foto: Mídia NINJA)
A norma é empregada de forma incorreta, também, quando há a interferência desnecessária do poder Judiciário no processo, que, exceto em casos de ameaça à integridade da população, deve ser conduzido somente entre empregados e empregador. “Quando o Judiciário diz aos trabalhadores [em greve] que precisam cumprir um limite de 100% ou 70% [do serviço, em determinados horários do dia], está inviabilizando o direito e greve e descumprindo o que diz a lei, que não autoriza esse tipo de decisão”, considera. “Essa é uma decisão que passa do ponto, que diz que o direito de greve não existe.”

Falta de unificação e representatividade

Na análise dos especialistas entrevistados para esta reportagem, a greve é um mecanismo expressivo de pressão a que pode recorrer os trabalhadores. “Ela acaba resolvendo em último caso”, indica Marques. “É uma disputa de forças. Bem ou mal, o  trabalhador e o empregador estão em pólos diferentes. É uma luta que não acaba nunca”, avalia.

Embora garantida pela legislação e praticada por diversas categorias no Brasil, a paralisação das atividades poderia surtir efeito ainda maior se os sindicatos que organizam os trabalhadores agissem de maneira mais ordenada entre si. É o que acredita o professor da PUC-SP Pedro Arruda: “Cada categoria de trabalhador – operários da construção civil, metalúrgicos, químicos, metroviários, professores – tem uma database em uma determinada época do ano, nunca coincide. Se isso fosse unificado, se todos os trabalhadores pudessem, por exemplo, fazer uma greve geral e reivindicar coletivamente, teria muito mais força”.

O cientista político lembra as raízes dessa falta de coesão. “Isso é uma herança da nossa estrutura sindical corporativa, que foi outorgada pelo Getúlio Vargas na década de 40, quando foi elaborada a CLT [Consolidação das Leis de Trabalho], em 1943. Até hoje isso não se modificou. Há uma falta de unidade da classe trabalhadora”, aponta Arruda.

Ele menciona, ainda, a questão das centrais sindicais, que atuam separadamente, cada uma com seu posicionamento político. “Há a Força Sindical, que está mais à direita, cujas lideranças são mais identificadas com o PSDB – o Paulinho da Força já disse que apoia o Aécio Neves. Já a CUT [Central Única dos Trabahadores] é mais identificada com o Partido dos Trabalhadores. Há outra central mais à esquerda, que é a CSP-Conlutas. Existem várias centrais sindicais, o que acaba dificultando a ação unificada dos trabalhadores. A gente poderia até perguntar: qual foi a última vez em que foi convocada uma greve geral no Brasil?”, questiona.

Para além de desunião, Arruda destaca a existência de sindicatos que não representam os interesses da base. Foi o que motivou a greve dos garis cariocas. “Ele [o Sindicato de Empregados de Empresas de Asseio e Conservação] não se coloca a favor do trabalhador”, afirma Célio Vianna, um dos porta-vozes do movimento. “Há anos e anos que as discussões salariais são feitas em assembleias. Nessas assembleias, era acordada uma coisa, mas o sindicato assinava um outro acordo que não correspondia ao desejo da categoria”, relata.

Neste ano, a situação foi exatamente essa. Na época do dissídio – fevereiro-, o sindicato fechou com a Companhia Municipal de Limpeza Urbana (Comlurb) um aumento salarial de 9%. Assim, segundo a empresa, um gari em início de carreira receberia R$R$ 874,79, mais 40% de adicional de insalubridade, totalizando R$ 1.224,70 mensais. Mas um segmento da categoria não ficou satisfeito com o acordo – segundo Célio, a reivindicação era por uma base de R$1.200 mais os 40% adicionais.

Após tentativas de diálogo com o próprio sindicato, os garis, por meio de assembleia independente, decretaram greve. A Comlurb informou que cerca de 300 deles cruzaram os braços, mas Célio diz que aproximadamente 6 mil aderiram ao movimento.

Garis do Rio de Janeiro em uma mas manifestações realizadas
durante a greve da categoria, em março deste ano

Durante os dias de paralisação, os garis promoveram também manifestações nas ruas do Rio de Janeiro. Os atos ganharam repercussão nacional e contribuíram para que, no dia 8 de março, o prefeito Eduardo Paes (PMDB) aceitasse, por meio de audiência no Tribunal Regional do Trabalho, conceder à categoria um reajuste de 37%, que determina um piso salarial de R$ 1.100 – ainda menor que os R$1.200 pedidos, mas R$ 225,21 maior que o previsto pelo acordo inicial entre o sindicato e a Prefeitura.

“Foi uma decisão boa [a greve]. Houve a unificação dos trabalhadores, que estavam muitos distantes uns dos outros. Não adiantava ficar de conspiração cada um em seu setor de trabalho se não materializássemos aquilo que pensávamos.  O trabalhador começou a ganhar uma consciência política. Foi importante”, conta Vianna.

Opiniões divididas

Por mais importantes que sejam para os trabalhadores, as greves dividem a opinião pública. Prova disso são as recentes manifestações sobre a paralisação do Metrô de São Paulo: enquanto alguns apoiam, outros pedem que ela acabe.

Um dos argumentos utilizados é que os metroviários já têm um bom salário – referindo-se ao piso de R$1.323,55 da categoria. “A questão não é essa. A questão é que eles são uma categoria e podem exigir um aumento salarial”, destaca Fabíola Marques.

“Toda vez que tem uma greve que acaba, de alguma forma, tendo uma repercussão sobre a população, os sentimentos se dividem. Muitas vezes, a pessoa olha para o trabalhador que está por trás daquele serviço e se solidariza, mas em outras, reclama porque gostaria de ser atendida, mesmo que aquele atendimento já esteja precário no cotidiano, como é o caso do Metrô”, pontua Altino dos Prazeres, presidente do Sindicatos dos Metroviários de São Paulo.

Isso se estende para outros serviços considerados essenciais.  Célio Vianna enfrentou a mesma situação. “A população mais pobre, que é maioria no Brasil, tem consciência do porquê que os trabalhadores estão fazendo greve. Mas a classe alta, que tem acesso à mídia, tem como se manifestar. São eles que procuram colocar a população contra a própria população”, afirma.

Arruda concorda com Vianna em relação ao poder da mídia sobre a questão. Para ele, a imprensa tradicional realiza a cobertura das greves  de acordo com seus posicionamentos políticos e ideológicos. “Existe um forte bloqueio midiático. As grandes empresas de mídia, controladas pelos mesmos barões, são partidárias. Os grandes jornais e emissoras de TV sonegam muitas informações”, declara. Ele ainda ressalta que a polêmica em torno dos movimentos grevistas se deve, um pouco, à falta de consciência política e de classe.

Por vezes, as pessoas colocam seus interesses individuais acima dos coletivos. “Existe um caráter um pouco ambíguo em tudo isso. Ao mesmo tempo em que uma grande parcela da sociedade considera legítima a reivindicação, porque é coletiva, ele vê o seu  direito individual sendo prejudicado”, analisa Arruda.

Mas a luta de classes é apenas um elemento do modelo capitalista. Para Souto Maior,  falta à sociedade brasileira a compreensão do todo. “Dentro de uma lógica democrática, em um país capitalista, o conflito entre trabalho e capital é essencial. Ele se expressa por meio de greve. Greve faz parte da sociedade capitalista, dentro de uma lógica de Estado de direito. Quando ela acontece, significa que a democracia está sendo exercida. A gente precisa ver esses movimentos com menos rejeição”, pondera.


FONTE: Revista Fórum Semanal

sexta-feira, 13 de junho de 2014

Comunismo: um gigantesco processo de emancipação ainda longe de concluído



Por Domenico Losurdo [*]

Aproxima-se o centenário da grande revolução de Outubro. Como acontece muitas vezes com revoluções, aquela principiada há aproximadamente um século seguiu um percurso completamente imprevisto. Estamos em todo caso na presença de um gigantesco processo de emancipação que modificou a face da Terra e que está bem longe de ter chegado à sua conclusão.



Continuo a julgar correcta a visão da “Ideologia alemã”, segundo a qual o comunismo é sobretudo “o movimento real que abole o actual estado de coisas”. Observemos as mutações que se verificaram no mundo a partir da primeira revolução que se reclamou de Marx e Engels. Antes de Outubro de 1917 não havia democracia, mesmo no Ocidente: era o reino das três grandes discriminações para com as mulheres, as classes subalternas, os povos coloniais e de origem colonial.

Com Fevereiro e Outubro de 1917, a Rússia revolucionária reconheceu às mulheres direitos políticos e activos e passivos. A República de Weimar (nascida da revolução que explodiu na Alemanha um ano após a revolução de Outubro) tomou o mesmo caminho, seguido pelos Estados Unidos. É certo que na Itália, Alemanha, Áustria e Inglaterra o sufrágio universal (masculino) estava mais ou menos afirmado, mas ficava neutralizado por uma Câmara alta que permanecia o apanágio da nobreza e da grande burguesia.

A discriminação racial apresentava-se sob uma forma dupla: considerados como indignos de se constituírem como Estado nacional independente, os povos coloniais eram submetidos à dominação absoluta das grandes potências. Num país como os EUA, os afro-americanos eram excluídos dos direitos políticos (e por vezes mesmo dos direitos cívicos). A ultrapassagem da discriminação racial sob estes dois aspectos não pode ser pensada sem o capítulo da história aberto por Outubro de 1917. O papel desempenhado pelos Partidos Comunistas nas revoluções anticoloniais é notável. E no que se refere aos Estados Unidos? Em Dezembro de 1952, o ministro da Justiça enviava o Tribunal Supremo, ocupada a discutir a questão da integração nas escolas públicas, uma carta eloquente: “A discriminação racial leva a água ao moinho da propaganda comunista”. O desafio comunista desempenhou um papel essencial igualmente na ultrapassagem do regime da supremacia branca.

Os direitos sociais e económicos fazem parte da democracia tal como a esquerda a entende. E foi este patriarca do neoliberalismo, Hayek, que denunciou o facto de que a teorização e a presença no Ocidente destes direitos remetiam à influência, por ele considerada nefasta, da “revolução marxista russa”.

Compreende-se portanto que, à atenuação do desafio comunista, corresponda no Ocidente uma restauração. Não se trata só do desmantelamento do Estado social. O peso da riqueza é tão forte que, mesmo nas colunas do New York Times, podem-se ler denúncias considerando que o regime em vigor nos Estados Unidos assemelha-se mais a uma “plutocracia” do que à democracia. A contra-revolução é evidente igualmente nos casos do colonialismo, reavaliada pelo teórico da “sociedade aberta”, Karl Popper: “Nós libertámos estes Estados (as antigas colónias) muito apressadamente e de modo demasiado simplista”.

Vejamos, em sentido contrário, o que se passa num país continente que ficou sob a direcção do Partido Comunista. Pondo fim à catástrofe provocada pelas guerras do ópio e a agressão colonialista, a China devolveu a centenas de milhões de pessoas o primeiro dos direitos do homem, a saber, o direito à vida. O Estado social começa aqui a dar os seus primeiros passos, ao passo que doravante ele é renegado no Ocidente, inclusive no plano teórico.

Mas isto não é tudo: ao reduzir rapidamente seu atraso tecnológico em relação aos países capitalistas mais avançados, a China põe fim à “era de Colombo”, que havia começado com a descoberta-conquista da América e que viu o Ocidente sujeitar o planeta inteiro. Vêem-se criar as condições para frustrar as tentações colonialistas e democratizar as relações internacionais. O declínio da doutrina Monroe, à qual a revolução cubana infligiu pela primeira vez um golpe severo, está lá para confirmar.

Como acontece muitas vezes com revoluções, aquela principiada há aproximadamente um século seguiu um percurso completamente imprevisto. Estamos em todo caso na presença de um gigantesco processo de emancipação que está bem longe de ter chegado à sua conclusão.


[*] Filósofo, professor da Universidade de Urbino, Itália.

O original encontra-se em www.humanite.fr/…

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/


FONTE: ODiário.info

quarta-feira, 11 de junho de 2014

Greves no Brasil: o despertar de um novo ciclo de lutas?


Por Marcelo Badaró


Um dos mais visíveis indicadores do recuo das lutas coletivas da classe trabalhadora brasileira, a partir dos anos 1990, foi a diminuição do número de greves. Em 1989, no auge do ciclo de lutas que marcou o fim da ditadura empresarial-militar instalada em 1964, ocorreram cerca de 4000 greves no Brasil. Nos anos seguintes, este número foi caindo, até atingir 1228 greves em 1996, 525 em 2000 e 299, em 2005, num dos pontos mais baixos da curva (o menor número foi de 298 em 2002).

Para explicar tal declínio das mobilizações organizadas dos trabalhadores, podemos elencar diversos fatores: o desemprego e a precarização das relações de trabalho decorrentes do processo de reestruturação produtiva que se acelera a partir da década de 1990; o progressivo apassivamento da maioria da direção sindical mais combativa (reunida em torno da Central Única dos Trabalhadores, a CUT), que ao longo dos anos 1990 aderiu progressivamente a uma lógica conciliatória e amoldou-se à ordem do capital e à estrutura sindical oficial; e, já nos anos 2000, a incorporação de dirigentes sindicais aos governos capitaneados pelo Partido dos Trabalhadores, acompanhada da transformação da CUT em braço sindical dos governos petistas e de sua definitiva incorporação à estrutura sindical oficial.

Depois de 446 greves contabilizadas em 2010 e 554 em 2011, no ano de 2012 aconteceram 873 greves no Brasil, segundo os estudos do DIEESE. É o maior número registrado desde 1996 e revela um crescimento significativo nos últimos anos do recurso à paralisação do trabalho, como arma para enfrentar os baixos salários, a perda de direitos dos trabalhadores e as péssimas condições de trabalho, geradoras de uma crescente onda de acidentes de trabalho, especialmente em setores como o da construção civil, que se viu mais aquecido com as grandes obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e dos "megaeventos” (Copa do Mundo de Futebol e Olimpíadas). A relativa estabilidade do nível de emprego (relativa porque os números oficiais contabilizam seis milhões de desempregados, mas também 62 milhões de brasileiros em idade ativa que por alguma razão não buscam empregos) também pode ajudar a explicar por que cresce o número de greves. Ainda não foram divulgados os dados sobre as greves no ano de 2013, mas tudo indica que a tendência ao crescimento se manterá.

Só o passar do tempo poderá confirmar se estamos diante de um novo ciclo de crescimento das lutas organizadas da classe trabalhadora no Brasil. Há, no entanto, algumas características que já nos apontam certas questões centrais. A primeira questão diz respeito à relação estabelecida entre as ”jornadas de junho” de 2013 e as greves. Na época das grandes manifestações de meados de 2013, uma das características mais discutidas de seu perfil foi a rejeição aos partidos políticos e, em alguma medida, às organizações sindicais. Quando as centrais sindicais tentaram aproveitar o embalo das grandes passeatas para impulsionar dois dias nacionais de luta unificada, o que se viu foram manifestações de escala muito reduzida e, em grande medida, restringidas a dirigentes e funcionários dos aparatos sindicais. De que relação se poderia tratar então? Indo um pouco além da aparência dos acontecimentos, podemos perceber que as grandes demandas das manifestações de meados de 2013 – pela redução do preço e melhoria da qualidade do transporte coletivo, contra a violência policial, contra as corporações empresariais de mídia, em defesa da saúde e da educação – estavam longe de ser novidades.

Trata-se de um conjunto de bandeiras assumidas e propagandeadas pelos movimentos sociais que mantiveram uma perspectiva mais mobilizadora e combativa, mesmo em meio à maré vazante de lutas dos anos 1990 e 2000. Em especial, a defesa de mais verbas e melhor qualidade para saúde e educação pública teve nos sindicatos de trabalhadores desses dois setores no serviço público brasileiro seus principais propagadores. Em 2012, por exemplo, uma grande greve dos trabalhadores da educação no serviço público federal atravessou mais de três meses de enfrentamentos com o governo de Dilma Rousseff. Ou seja, lutas sindicais, ainda que fragilizadas e fragmentadas, das duas décadas passadas foram essenciais para manter em pauta a defesa desses direitos fundamentais. Por outro lado, as manifestações de 2013 impulsionaram greves e táticas de lutas dos sindicatos mais combativos. Em vários estados do país, sindicatos de profissionais da educação fizeram greves no segundo semestre de 2013.

No Rio de Janeiro, a greve foi longa, enfrentou a intransigência dos governos estadual e municipal, mas gerou uma nova onda de passeatas multitudinárias em seu apoio, chegando a reunir novamente cerca de 100 mil pessoas nas ruas do Centro da cidade em outubro. Muitos dos manifestantes de junho foram às ruas novamente concretizar a palavra de ordem da defesa da educação, consubstanciando-a em apoio ativo à luta dos trabalhadores do setor. A mesma tática de levar a greve para a rua, na forma de grandes manifestações, foi empregada pelos trabalhadores da limpeza urbana do Rio de Janeiro (os garis), que em pleno carnaval carioca de 2014 paralisaram suas atividades para garantir melhorias salariais e de condições de trabalho. Apesar do incômodo com o acúmulo de lixo nas calçadas e ruas, em plena festa carnavalesca, a maioria da população da cidade apoiou a greve e quando, em 7 de março, os garis fizeram sua maior manifestação pelo Centro da cidade foram fortemente aplaudidos e receberam muitas adesões em seu protesto. Imediatamente após essa demonstração de força, a Prefeitura do Rio de Janeiro, que havia classificado a greve como "motim” e mobilizara escoltas policiais para forçar os garis a trabalharem, chamou os líderes da greve para negociar e a paralisação se encerrou com ganhos substantivos para os trabalhadores.

Uma segunda questão é a da relação entre estas greves e os sindicatos. Embora continue a existir um setor combativo do movimento sindical, que se mobiliza e comanda greves, e apesar de até mesmo a burocracia mais acomodada em alguns momentos ser obrigada a convocar paralisações do trabalho, o que chama a atenção em muitos desses movimentos grevistas recentes é que eles se fazem à margem das, e muitas vezes contra as direções sindicais. Foi o que aconteceu na greve dos garis, em que a direção sindical, encastelada há décadas no sindicato de trabalhadores da limpeza urbana e sempre disposta a colaborar com os governos e a frear mobilizações, não só se posicionou contra a greve, como tentou evitá-la, boicotando a assembleia dos trabalhadores que iria deflagrá-la e anunciando acordos com a municipalidade que nunca foram discutidos pela categoria. Mesmo na greve dos profissionais da educação do segundo semestre de 2013, dirigida pelo Sindicato Estadual dos Profissionais da Educação (SEPE), cuja composição é majoritariamente de militantes da esquerda mais combativa, houve uma nítida tensão entre o posicionamento da direção (mostrando disposição para negociar acordos que pusessem fim à greve, ainda que sem maiores garantias de conquistas) e uma parcela expressiva das bases, mais radicalizada.

Um último exemplo, também muito significativo, é o das greves dos operários da construção civil nos canteiros de obras do Complexo Petroquímico do Estado do Rio de Janeiro (Comperj). Duas delas ocorreram em 2013 e uma terceira, de maiores dimensões, atravessou mais de 40 dias nos meses de fevereiro e março de 2014. Novamente aí a direção do sindicato local colocou-se contrária à greve e buscou "negociar” com as construtoras à revelia dos 28 mil grevistas, que por mais de uma vez mantiveram a paralisação dos trabalhos após anúncios de acordo e fim de greve por parte dos dirigentes sindicais. Os protestos dos trabalhadores em greve envolveram fechamento de estradas e incêndio de ônibus e logo no início do movimento, na madrugada de 6 de fevereiro, dois trabalhadores foram feridos a tiros. Várias declarações de envolvidos no protesto acusaram "seguranças” contratados pelo sindicato como responsáveis pelos disparos.

Enfim, entre outras questões importantes postas por essas greves, parece ser fundamental compreender que uma nova onda de mobilizações grevistas, que possa recolocar a classe trabalhadora organizada no centro do debate político nacional, dependerá: por um lado, da capacidade das bases sindicais e dos dirigentes mais combativos de alargarem as lutas, através de mobilizações de massas, que envolvam os setores mais precarizados e menos organizados da classe trabalhadora, que demonstraram seu potencial de descontentamento em junho de 2013; por outro lado, de uma renovação do panorama sindical brasileiro, com a substituição de burocracias esclerosadas pela colaboração de classes por novas lideranças surgidas das greves que se enfrentam com esses burocratas. Somente com o fortalecimento de um polo sindical combativo, que estabeleça os laços entre as frações mais formalizadas e as mais precarizadas da classe e se disponha a romper com os métodos e as armadilhas da estrutura sindical oficial, poderemos estar à altura do desafio.

Nota: texto publicado antes da greve dos motoristas de ônibus de São Paulo


[Marcelo Badaró é professor e Universidade Federal Fluminense. Originalmente publicado na Tribuna Classista, n. 19. Blog: http://tribunaclassista.blogspot.com.br/]


FONTES: Adital/Correio da Cidadania