segunda-feira, 20 de novembro de 2017

A Revolução Socialista de Outubro iniciou uma nova era para a humanidade




Discurso de José Ramón Machado Ventura, segundo secretário do Comitê Central do Partido e vice-Presidente dos Conselhos de Estado e Ministros, no ato político-cultural pelo ensejo do Centenário da Grande Revolução Socialista de outubro, realizado no Teatro Karl Marx, Havana, em 7 de novembro de 2017:

Companheiro general-de-exército Raúl Castro Ruz, primeiro secretário do Comitê Central do Partido Comunista de Cuba



Companheiras e companheiros:

Somos convocados para comemorar um dos eventos mais transcendentais do século XX: a Grande Revolução Socialista de Outubro, com a qual uma nova era para a humanidade começou.

Atualmente, em alguns meios de comunicação, há uma tendência para diminuir a importância da Revolução que levou à fundação do primeiro estado socialista no mundo e abriu um caminho de esperança, dando lugar a um novo regime social que mostraria que um mundo era possível, sem exploradores ou explorados. Tenta-se diminuir e até mesmo ignorar o papel desempenhado por seu eminente líder, Vladimir Ilyich Lenin.

Quando se referiu a Lenin, o Comandante-em-chefe Fidel Castro Ruz disse: «Ele foi um brilhante estrategista revolucionário que não hesitou em aceitar as ideias de Marx e realizá-las em um país imenso e apenas parcialmente industrializado… Lenin foi um homem verdadeiramente excepcional, um profissional, capaz de interpretar toda a profundidade, essência e valor da teoria marxista», fim da citação.

Teve o mérito de tirar proveito de um momento de crise do imperialismo, provocado por sua própria guerra e o crescimento do movimento trabalhista na Rússia czarista, para realizar a revolução socialista. Lenin era um homem que achava incompreensão em seu próprio ambiente, mas, ao mesmo tempo teve, como ninguém, naquele momento, a maior compreensão dos humildes, dos trabalhadores conscientes de que a tomada do poder político era o único meio de levá-los à sua emancipação .

Foi, precisamente, a liderança brilhante de Lenin a que propiciou aquela grande revolução, depois da qual ocorreram mudanças transcendentes para os oprimidos deste mundo.

Cem anos depois não é possível negar o imenso contributo e legado da Revolução bolchevique, que deu passagem a outras grandes revoluções sociais do século XX, surgidas alguns anos após a vitória contra o fascismo, como a da China, a vietnamita e a cubana.

Os acontecimentos ocorridos em outubro, a implementação da teoria marxista nas condições específicas desse momento, demonstraram a relevância da revolução social mundial, para a qual, segundo Lenin, a russa era apenas o prólogo ou um patamar.

O processo de descolonização não teria sido possível sem a enorme influência da Revolução de Outubro, na medida em que contribuiu decisivamente para o fato de que o direito dos povos à autodeterminação e à independência se tornasse uma realidade em muitos países do mundo.

Um contributo inegável desta grande façanha foi o início do processo de estruturação político-econômica de um novo sistema: o socialismo.

A Revolução propiciou a mudança drástica na correlação de forças global, demonstrou que a eliminação da exploração era possível, que existiam outras formas de governo e democracia e que alternativas existiam além das fórmulas oferecidas pelo capitalismo, gerador de guerras e divisões, opressor de povos e nações.

No campo das relações internacionais, esta Revolução inaugurou uma nova maneira de fazer e agir. No Decreto da Paz e na Declaração dos Direitos dos Povos da Rússia, foram registrados os princípios que devem reger as relações entre os Estados e os povos, que ainda são válidos hoje.

A URSS alcançou, em um período historicamente muito curto, o desenvolvimento tecnológico e industrial. Erradicou o analfabetismo, generalizou a escolaridade, atingiu um alto nível científico, assegurou o emprego e a proteção social, eliminou a discriminação contra as mulheres e aumentou seus direitos, bem como a das crianças e dos jovens.

Essas realizações foram obtidas em meio a agressões militares, econômicas e políticas. O Estado socialista nascente tornou realidade os postulados de sua Revolução através do sangue e do fogo e começou a ser construída em um país totalmente arruinado, sangrado e bloqueado, o que exigia esforços não menos duros e heróicos.

Foram muitas as contribuições dos povos que compunham a URSS, mas nenhuma mais significativa do que a derrota do fascismo, que merece uma eterna gratidão.

O influxo da Revolução de Outubro e a batalha pelo desenvolvimento multifacetado que se realizou no que era o país imperial mais atrasado de seu tempo, também chegaram à América Latina, onde as ideias da Revolução foram disseminadas e começaram a surgir os partidos comunistas, incluindo Cuba, no meio das condições de uma república intervida primeiramente e neocolonial mais tarde.

Nestes e em outros grupos revolucionários cubanos que enfrentavam a dominação imperialista e seus cúmplices governos estavam presentes, ao lado das ideias de José Martí, as ideias da Revolução de Outubro, as ideias do marxismo-leninismo.

Em 1970, por ocasião da comemoração do centenário do nascimento de Lenin, o líder histórico da Revolução Cubana disse e eu cito: «…Sem a Revolução de Outubro de 1917, Cuba não poderia ter sido constituída como o primeiro país socialista da América Latina». Mais tarde, em 1972, em uma profunda reflexão sobre as raízes da nossa Revolução socialista, ele especificou: «o processo revolucionário de Cuba é a confirmação da extraordinária força das ideias de Karl Marx, Friedrich Engels e Vladimir Ilicht Lenin», fim da citação.

Durante esses 100 anos, mas principalmente depois do desaparecimento do sistema socialista na Europa, muito tem sido escrito e debatido, desde posições ideológicas muito diferentes, sobre essa Revolução. Lamentavelmente, as posições extremas convergem para apontar que suas ideias falharam, com uma marcante distorção de suas causas e consequências, com a intenção de impor um pensamento único destinado a destacar a supremacia do capitalismo acima do socialismo.

A Revolução de Outubro iniciou um processo extraordinariamente complexo, com realizações e fracassos, mas para julgá-lo, devemos levar em conta, em primeiro lugar, as condições históricas em que se desenvolveu, o contexto internacional e as contradições geradas por qualquer processo revolucionário. Foi também a primeira grande tentativa de transformar o mundo, transformar a utopia em realidade.

O imperialismo hoje busca novas alianças e tenta por todos os meios possíveis para sufocar e destruir qualquer tentativa de mudança social.

Neste contexto histórico, podemos afirmar que as ideias que a inspiraram e o socialismo como sistema mantêm força total. Os princípios da igualdade, da solidariedade, do internacionalismo, da justiça social, do direito dos povos à sua autodeterminação, independência e soberania, que foram o sustento da Revolução de outubro, continuarão a ser nossos também.

Viva a Grande Revolução Socialista de Outubro!

Foto: Granma. José Ramón Machado Ventura, em discurso durante evento comemorativo do centenário da Revolução de Outubro, em Havana

http://pt.granma.cu/cuba/2017-11-09/a-grande-revolucao-socialista-de-outubro-iniciou-uma-nova-era-para-a-humanidade


FONTE: Portal PCB

domingo, 12 de novembro de 2017

Mensagem de Rosa Luxemburgo ao século 21



Uma nova biografia (agora em quadrinhos) destaca a revolucionária que defendeu a liberdade com paixão, criticou a esquerda endurecida, viu potência no feminismo e nos índios e entregou-se ao amor, ao sexo e à arte.

Por Isabel Loureiro * | Tradução: Mauro Lopes


Por que em um momento de derrota da esquerda na América Latina e em todo o mundo ainda falamos de Rosa Luxemburgo? O que fez essa revolucionária judia-polaca-alemã para que, cem anos depois de seu assassinato, em janeiro de 1919, suas ideias ainda nos interpelem?

Ainda que brevemente é preciso dizer que Rosa militou durante 20 anos na social-democracia da Polônia (SDKPiL) e na social-democracia da Alemanha; polemizou toda a vida com Lênin; participou ativamente da revolução russa de 1905; foi a única mulher a ser professora de Economia Política na Escola do SPD (Partido Social-Democrata Alemão); junto com seus pares da ala esquerda do SPD, fundou a Liga Spartakus –nome em homenagem ao gladiador de origem trácia que liderou uma revolta de massas na Roma antiga; passou toda a guerra na prisão, onde escreveu cartas de tom lírico a seus amigos e amores; saiu da prisão em novembro de 1918 e se converteu em líder da revolução alemã; em fins de dezembro de 1918 tornou-se uma das cofundadoras do KPD (Partido Comunista da Alemanha); foi assassinada em 15 de janeiro de 1919 por tropas paramilitares, os Freikorps, precursores dos nazistas. Seus assassinos tiveram penas leves e viveram tranquilamente na Alemanha nazista.

A recepção a suas ideias no século XX foi muito controvertida. Em vida, Rosa sofreu seguidos ataques machistas de seus companheiros de partido, que tinham medo de sua língua mordaz e de sua liberdade de espírito. Referiam-se a ela como “materialista histérica” ou “cadela venenosa, porém brilhante” (Víctor Adler); quando foi nomeada redatora chefe de um importante jornal social-democrata, enfrentou uma quase rebelião dos colegas jornalistas que duvidavam de sua competência, pelo fato de ser mulher; os conservadores alemães chamavam-na de “porca judia”; na Polônia, sua terra natal, é odiada até hoje; em 2001, quando a prefeitura de esquerda de Berlim propôs a construção de um monumento em sua homenagem, houve uma verdadeira chuva de críticas na imprensa e ataques de cunho machista, embora de maneira mais sutil: ela nunca recebeu uma proposta de casamento de seus amantes e nunca teve filhos, que era um desejo explícito. Quem questionaria um homem dessa maneira, revolvendo sua vida privada?

Além das críticas machistas, existiam aquelas de caráter político, que começaram com Lênin, continuaram no âmbito do KPD – Partido Comunista da Alemanha – e chegaram ao paroxismo com o stalinismo, que procurou extirpar sua memória do campo da esquerda. Um dirigente do KPD, disse em 1932, abertamente: “Em todas as questões nas quais RL tinha uma concepção diferente da de Lênin, ela estava errada.” Porém, a tentativa de matar sua memória foi em vão.

Rosa sobreviveu subterraneamente, até ser redescoberta nos anos 1970 quando suas obras completas começaram a ser publicadas na República Democrática Alemã: escritos políticos, teóricos e cartas.

É um fato: Rosa sempre reaparece em momentos de crise da esquerda. Isso aconteceu no Brasil depois da Segunda Guerra Mundial; na Europa, durante a rebelião de 1968; no movimento Occupy; no Brasil novamente no ano passado, durante o movimento de ocupações das escolas, quando voltamos a viver um “momento Rosa Luxemburgo”. Por que isso acontece?

Vejamos rapidamente algumas de suas ideias políticas para entender: a defesa intransigente das liberdades democráticas em todas as sociedades e em todos os tempos; a crítica incisiva à concepção de um partido de vanguarda formado por um núcleo duro de revolucionários profissionais separados das bases, cuja função seria liderar as massas populares que, por sua vez, limitar-se-iam a obedecer ao comando superior; a defesa incondicional da formação política e intelectual das classes subalternas, que ela via como pré-requisito para sua autonomia política; e, finalmente, uma ideia que está na ordem do dia, a da espontaneidade das massas populares. Ou seja, a ideia de que as camadas subalternas da sociedade entram em movimento independentemente das palavras de ordem dadas por líderes partidários ou sindicais e que a organização se estrutura a partir da própria luta, cotidiana e/ou revolucionária. Mas Rosa também sabia que a espontaneidade sozinha não resolve tudo, que o trabalho organizativo é fundamental para estruturar as explosões de energia que brilham esporadicamente no céu cinzento da vida cotidiana.

Para dizer em poucas palavras, penso que o mais atraente para um leitor contemporâneo no pensamento de Rosa Luxemburgo é sua defesa apaixonada da liberdade, tanto pública como individual. Para Rosa, não existe sociedade livre sem indivíduos livres, conscientes, não manipulados, seja por líderes políticos, pelas mídias, pela propaganda, ou, no plano individual, por suas paixões e fantasmas.

Rosa é filha da Aufklärung (iluminismo), como todo o marxismo. Esse era seu mundo e seu limite. Porém, em que pese o fato de hoje sabermos que não bastam declarações racionalizadas, creio que ela tinha razão em acreditar que não existe a possibilidade de virar a página sem a iniciativa e a participação consciente dos debaixo, dos que mais sofrem com a desigualdade econômica, social e política engendrada pelo capitalismo.

Há igualmente outra ideia de Rosa que nos atrai até hoje e que aparece no ensaio A crise da social-democracia (1916). Neste amargo balanço do processo de decomposição da social-democracia alemã – que culminou  com a aprovação dos créditos de guerra pela bancada do SPD em 4 de agosto de 1914 –, Rosa colocou em questão pela primeira vez o ingênuo conceito de progresso, típico da II Internacional. Para os socialistas hegemônicos da época, essa ideia  traduzia-se na crença de que o socialismo resultaria, cedo ou tarde, das contradições imanentes ao modo de produção capitalista. No ensaio, um de seus melhores, Rosa pôs na ordem do dia a famosa consigna socialismo ou barbárie, dando a entender que o socialismo não era mais uma garantia mas uma aposta. E essa aposta só pode ser vencida si houver o compromisso ativo das classes subalternas, aqui e agora, contra a barbárie. Esta é a interpretação Michael Löwy, com que estou totalmente de acordo.

Também é digna de nota sua obra de economia política na qual apresenta elementos de uma visão terceiromundista que é muito frutífera para a América Latina. Segundo Rosa, a acumulação do capital, para além da apropriação da mais valia, só foi e é possível com o intercâmbio entre economias capitalistas e não capitalistas. Tal intercâmbio continua até hoje e é uma descrição válida do processo de desenvolvimento histórico do capitalismo como processo global e, consequentemente, uma boa descrição da destruição violenta das culturas e dos espaços não capitalistas. Tal processo violento de acumulação primitiva permanente (acumulação por expropriação, para Harvey), além dos métodos tradicionais de expropiação territorial, consiste também na conversão de antigos direitos em mercadorias.

Rosa enfatizou a violência com que as culturas primitivas foram e são aniquiladas pelo colonizador e substituídas pela economia de mercado. Isso não significou nem significa progresso em relação ao período anterior, mas tão somente a ruína econômica e cultural dos povos originários. Diferentemente de uma concepção iluminista do progresso, segundo a qual a violência capitalista é vista como um mal “necessário” no caminho até o socialismo, Rosa acreditava que os povos originários poderiam (e podem) ensinar aos “civilizados” formas mais igualitárias de sociabilidade, não predadoras, determinadas pelos interesses da coletividade.

Rosa Luxemburgo, que era polonesa – ou seja, periférica na Europa dos princípio do século XX – teve insights (que não desenvolveu) que apontavam para uma concepção de história distinta do marxismo ortodoxo de seu tempo, caracterizada por una fé ingênua no desenvolvimento das forças produtivas. As populações tradicionais da América Latina, em busca de um modelo de desenvolvimento crítico ao modelo de civilização oriundo da Revolução Industrial, fundado na dicotomia entre pobres e ricos e na destruição da naturaleza, podem ter em Rosa Luxemburgo uma fonte de inspiração.

Por fim, Rosa é uma referência para as feministas; basta pensar no funcionamento interno das organizações políticas e dos movimentos, onde imperam a hierarquia, o centralismo, a rigidez, a burocracia, tudo o que Rosa questionava. Além de construir-se como mulher independente, que atuou no espaço público, ela também questionou a sujeição das mulheres ao isolamento da vida privada, à submissão aos homens, ou seja, questionou o patriarcado, que é inseparável do capitalismo.

A Editora Martins Fontes acaba de publicar a tradução do original inglês de una biografia-historieta de Rosa Luxemburgo –Red Rosa/Rosa Vermelha–, que enfatiza a Rosa feminista. De autoria de Kate Evans, esta biografia apresenta-nos uma mulher que, além da dedicação apaixonada à militância e à revolução, entregou-se de corpo e alma aos prazeres da vida, ao amor, ao sexo, à natureza, à pintura, à música, à literatura. A autora apresenta-nos também una professora talentosa, que sabia explicar didaticamente aos estudantes (adultos que frequentavam a Escola do Partido) os conteúdos mais complexos da economia política. Tudo coroado por uma escrita plena de vivacidade, de ironia, palavras espirituosas, um texto pleno de lirismo, como demonstram as cartas da prisão.

Há algo maravilhoso nessa biografia escrita por una mulher jovem e não especializada na obra de Rosa Luxemburgo: revela a proximidade entre essa revolucionária que viveu na virada do século XIX para o XX é nós, no século XXI; uma proximidade que deriva em parte de sua intensa relação com a vida, com todo o vivente. Esse é um traço muito forte de sua personalidade, que a levou a opor-se a tudo o que é rígido, inflexível, mecânico; em uma palavra, burocrático. Quando, por exemplo, criticou Lênin, Rosa disse que sua concepção de partido e de revolução era mecânica. Rosa apreciava a metáfora da vida em contraposição às de fundo mecânico.

Escreveu Rosa: “Só a vida sem obstáculos, efervescente, leva a milhares de novas formas e improvisações, traz à luz a força criadora, corrige os caminhos equivocados. A vida pública em países com liberdade limitada está sempre tão golpeada pela pobreza, é tão miserável, tão rígida, tão estéril, precisamente porque, ao excluir-se a democracia, fecham-se as fontes vivas de toda riqueza e progresso espirituais.” (A revolução russa).

Rosa criticava os bolcheviques porque, ao fechar a Assembleia Constituinte, não permitiram que as camadas populares fizessem suas próprias experiências da vida democrática no âmbito da revolução; é como se Rosa tivesse dito que os companheiros de Lênin intervinham desde fora do processo democrático porque já sabiam o que seria melhor para o povo, porque já tinham uma ideia do que o povo devia fazer. Assim foram (são) substituídas as massas populares que ainda não estariam (estão) prontas para o socialismo. Para Rosa, o socialismo só pode ser obra das próprias massas, não de lideranças intelectuais que pretensamente sabem o que é melhor para o povo. Para isso é necessário tempo de amadurecimento. “Tempo não é dinheiro, tempo é o tecido da vida”, disse o grande crítico literário Antonio Cândido, que também era socialista. A democracia, e ainda mais o socialismo democrático, são uma invenção permanente que necessita vida pública livre, absolutamente necessária para a formação política dos de baixo.

A crença nas virtudes curativas da vida aparece muitas vezes em sua correspondência da prisão como, por exemplo, nesta carta a sua amiga Sonia Liebknecht (dezembro de 1917), onde explicava por que não desesperava depois de viver tanto tempo encarcerada: “Creio que o segredo não é outro que a própria vida (…) Sob os passos lentos e pesados do carcereiro canta uma bela, uma pequena canção da vida: basta apenas saber ouvir.”

Em suma, a biografia de Rosa Luxemburgo escrita por Kate Evans não é como outras anteriores, a de mártir assexuada e cheia de pudor, que sacrificou a vida no altar da Revolução – como se fora uma santa comunista – , mas uma mulher de carne e osso, divertida, ousada, à frente de seu tempo, que rechaçava o espartilho, controlava seu corpo para não ficar grávida — em uma palavra, uma mulher que conquistou sua liberdade com muita luta e sacrifício. Ela sabia que liberdade outorgada não é verdadeiramente liberdade. Essa é a mensagem que Rosa deixa para as mulheres do século XXI que ainda lutam por sua emancipação.

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*Isabel Loureiro falou no Seminário sobre a vida, obra e pensamento de Rosa Luxemburgo que aconteceu em 2 e 3 de setembro de 2017 em Assunção (Paraguai). O texto acima é o roteiro original de sua palestra.


FONTE:  Outras Palavras

domingo, 5 de novembro de 2017

Anarquistas e comunistas: a cooperação brasileira


Por Michel Löwy e Olivier Besancenot


Mauricio Tragtenberg, precursor do marxismo libertário no Brasil
Será interessante se, algum dia, historiadores brasileiros estudarem a trajetória do movimento operário no Brasil do ponto de vista das convergências, no pensamento e na ação, entre anarquistas e marxistas. Obviamente, este breve prefácio não se propõe a isso; nos limitaremos a citar um episódio importante, que merece ser mais bem conhecido e tem certo caráter exemplar.

Inspirada pelo fascismo italiano, a Aliança Integralista Brasileira (AIB) foi fundada por Plínio Salgado em 1932. Os “camisas verdes” se transformaram rapidamente num movimento fascista ameaçador, com milícias armadas e uniformizadas. Em janeiro de 1933, a Liga Comunista Internacionalista (LCI), organização trotskista dirigida por Mário Pedrosa, Lívio Xavier, Aristides Lobo, Fúlvio e Lívio Abramo, lança a proposta de uma Frente Única Antifascista (FUA), reunindo todas as forças do movimento operário e do antifascismo. Depois de vários encontros e acaloradas discussões, a frente é fundada em São Paulo no dia 25 de junho de 1933, com a participação da LCI, do Partido Socialista Brasileiro, criado por João Cabanas e Miguel Costa (militares que haviam participado da Coluna Prestes), da Federação Operária de São Paulo, de orientação anarcossindicalista, da União dos Trabalhadores Gráficos, além de várias organizações de exilados antifascistas italianos, alemães e húngaros. Pouco depois, aderem à FUA, participando de um meeting público em 14 de julho de 1933, o Partido Comunista Brasileiro (PCB), a União da Juventude Comunista e o Socorro Vermelho. Essa decisão, bastante contraditória com a orientação sectária do stalinismo, se deve à Juventude Comunista e ao principal dirigente comunista de São Paulo, Hermínio Sachetta1. Entre os anarquistas, representados por seus sindicatos e pelos jornais A Plebe e A Lanterna, encontram-se Edgard Leuenroth, dirigente da greve geral de 1917, Pedro Catalo, do Centro de Cultura Social, o revolucionário russo Simon Radowiztky e vários outros.

Em 1934, os integralistas anunciam sua intenção de realizar uma grande passeata e um comício na praça da Sé em 7 de outubro: uma verdadeira demonstração de força e uma provocação contra o “bolchevismo”. A Frente Única Antifascista reúne-se e decide receber os fascistas como merecem: a bala… A praça da Sé é dividida em três setores: um de responsabilidade dos militantes socialistas, outro dos comunistas e um terceiro dos trotskistas e anarquistas. Mas muitos militantes sindicalistas ou simplesmente antifascistas se juntaram na praça, sem seguir nenhuma dessas direções. Quando os integralistas chegam no local e ocupam a escadaria da Catedral com suas tropas, inicia-se um enfrentamento, com troca de tiros, deixando mortos e feridos dos dois lados. Mario Pedrosa é levado a um hospital. Edgard Leuenroth se encontra, como sempre, na primeira fila do combate. Depois de duas horas de combate, os integralistas fogem e se dispersam, muitos abandonando no caminho sua camisa verde. Não voltarão tão cedo a São Paulo…

Foi a primeira – e talvez a única – vez na história do Brasil em que socialistas, comunistas do PCB, trotskistas, anarquistas, exilados italianos, sindicalistas e antifascistas sem afiliação conseguem se unir para enfrentar o inimigo comum: o fascismo brasileiro, as “galinhas verdes” de Plínio Salgado. E alcançam uma vitória espetacular, derrotando, nas ruas, as milícias integralistas. Existem alguns pequenos livros, de circulação limitada, que narram essa história e merecem ser mais conhecidos: Frente Única Antifascista 1934-1984, de Fúlvio Abramo, e A batalha da praça da Sé, Eduardo Maffei. O primeiro é trotskista; o segundo, anarquista; divergem em alguns pontos, mas no fundamental se completam.

Olivier Besancenot e Miahael Lowy
Unesp, 2016
Entre os pensadores brasileiros que tentaram formular um “marxismo libertário” destaca-se a figura de Maurício Tragtenberg (1929-1998). Intelectual autodidata, militante comunista expulso do partido por ler escritos de Trotski, ele foi um dos fundadores, em meados dos anos 1950, com Hermínio Sachetta, de uma pequena organização de orientação “luxemburguista”, a Liga Socialista Independente (LSI). A Liga costumava co-organizar, com os anarquistas Pedro Catalo e Edgard Leuenroth, do Centro de Cultura Social, meetings de Primeiro de Maio, em homenagem à memória dos Mártires de Chicago.

Embora não tivesse completado a escola primária, Tragtenberg foi aceito na Universidade de São Paulo e fez uma brilhante carreira acadêmica. Muito interessado pelo anarquismo, pelo anarcossindicalismo, pela pedagogia libertária e por Enrico Malatesta, não deixava de reclamar as ideias de Marx, que opunha à ideologia de certos pretensos “marxistas”. Podemos considerá-lo um dos mais ilustres marxistas libertários brasileiros.

Será que essa história pertence só ao passado? Não acreditamos nisso. Um exemplo mostra a atualidade dessa discussão no Brasil de hoje: o Movimento Passe Livre. Organizador das grandes manifestações contra o aumento do preço do transporte público nas capitais do pais, o MPL levou centenas de milhares de pessoas às ruas em junho de 2013 – um episódio sem precedentes na história do país.

Pequena rede organizada de forma federativa e horizontal, o MPL inclui anarquistas, marxistas e sobretudo anarco-marxistas punk. Em 2015, voltou a atrapalhar o sono das autoridades de São Paulo, organizando novos protestos contra o aumento das tarifas, sofrendo brutal repressão da polícia do Estado. A luta continua!


P.S. de Michael Löwy: Tive a grande sorte de conhecer Mario Pedrosa, Fúlvio Abramo e Pedro Catalo, assim como de tecer laços de amizade pessoal e companheirismo com Edgard Leuenroth, Hermínio Sachetta e Maurício Tragtenberg. Que as gerações futuras se apoderem de suas ideias!



1 Hermínio Sachetta jornalista, foi o dirigente do PCB de São Paulo até 1937, quando foi expulso, acusado de trotskismo. Preso durante dois anos pelo Estado Novo, participa em 1939 da fundação do Partido Socialista Revolucionário, afiliado à IV Internacional, no qual vão participar, depois de 1945, personalidades como Patrícia Galvão, Alberto Rocha Barros, Florestan Fernandes e Maurício Tragtenberg.