quarta-feira, 30 de setembro de 2020

Textos escolhidos: KARL KORSCH

O Marxismo e as Tarefas Presentes da Luta de Classe Proletária

Karl Korsch


Deixemos os mortos enterrar os seus mortos. É preciso que a revolução proletária chegue enfim ao seu conteúdo próprio. (Marx)

 

Podemos dizer de Karl Marx o que Geoffroy Saint-Hilaire disse de Darwin: que foi seu destino e sua glória ter tido, antes dele, apenas precursores e, depois dele, apenas discípulos. É certo que Marx pôde contar durante a sua vida com um amigo e colaborador do mesmo estofo, Friedrich Engels. Na geração seguinte houve os corifeus teóricos das correntes "revisionista" e "reformista" do partido marxista alemão e , além destes pseudo-sábios, conhecedores tão avisados do marxismo como António Labriola, o italiano, Geoges Sorel em França e o filósofo russo Plekanov. Por fim veio a restauração aparentemente integral dos elementos revolucionários do pensamento marxista, há muito caídos no esquecimento, por Rosa Luxemburgo na Alemanha e Lenine na Rússia.

Durante este mesmo período, no mundo inteiro, milhões de operários fizeram do marxismo o seu guia para a acção prática. E as organizações sucederam-se, formando uma sequência impressionante: depois da clandestina Liga dos Comunistas de 1848, após a Associação Internacional dos Trabalhadores de 1864, surgiram à escala nacional poderosos partidos sociais-democratas, cujas reduzidas actividades no plano internacional foram finalmente coordenadas pela II Internacional de antes da Guerra, chamada a conhecer, após o seu afundamento, uma ressurreição à escala mundial sob a forma de Partido Comunista militante. 

Ora, durante todo este tempo, a teoria marxiana propriamente dita, longe de se ver enriquecida proporcionalmente no interior, não chegou a ultrapassar as ideias força já presentes no primeiro esquema da nova ciência revolucionária que Marx tinha concebido. 

Até ao fim do século XIX raros foram os marxistas que sequer sonharam que algo não ia bem neste plano. Mesmo quando os primeiros ataques dos "revisionistas" provocaram o que um sociólogo burguês de esquerda, o futuro presidente da República Checoslovaca Th. G. Masaryk, chamava então uma "crise filosófica e científica do marxismo", os marxistas persistiram em considerar que o seu campo servia de palco apenas a um conflito que opunha a fé "ortodoxa" a uma deplorável "heresia" e nada mais. O que tinha de ideológico esta assimilação sumária à luta operária revolucionária de uma doutrina estabelecida aparecia ainda mais claro no facto de os principais representantes da ortodoxia marxista desta época, como Kautsky na Alemanha e Lenine na Rússia, negarem obstinadamente que alguma vez se pudesse gerar uma consciência revolucionária autêntica entre os próprios operários. Seria preciso, segundo eles, que os objectivos políticos revolucionários fossem importados "de fora" para a luta de classe económica dos trabalhadores, graças aos esforços teóricos de pensadores burgueses radicais, "armados de toda a cultura da época", tais como Lassale, Marx e Engels. Termos em que, a identidade de uma doutrina de extracção burguesa e da futura luta distintamente revolucionária do proletariado se apresentava como um verdadeiro milagre. Os marxistas mais à esquerda, aqueles mesmos que se aproximavam mais da ideia de que a luta de classe proletária podia ir espontaneamente muito além dos objectivos restritos prosseguidos pelas burocracias dirigentes dos partidos e dos sindicatos sociais democratas, jamais sonharam pôr em causa a realidade desta harmonia preestabelecida da doutrina marxista com o movimento proletário real. È assim que Rosa Luxemburgo declarava em 1903 e que o bolchevique Riazanov repetia em 1928:

"Cada fase nova e superior da luta proletária consegue tirar do arsenal inesgotável da teoria marxista tantas armas inéditas quantas exige o novo estádio da luta emancipadora da classe operária". 

Este artigo não pretende examinar a fundo os aspectos mais gerais desta teoria dos marxistas quanto à origem e desenvolvimento da sua própria doutrina, teoria que, em última instância, acaba por negar a possibilidade de uma cultura de classe proletária independente. Apenas a referimos, no presente contexto, como uma das múltiplas contradições em que se vêem enleados aqueles que, em contraste flagrante com o princípio materialista e crítico de Marx, fazem do "marxismo" uma doutrina perfeitamente acabada doravante imutável.

Outra dificuldade, inerente a esta atitude quase religiosa para com o marxismo, deriva do facto de que a teoria de Marx nunca foi adoptada no seu conjunto por nenhum grupo ou partido socialista. Com efeito, o marxismo "ortodoxo" não passou da atitude puramente formal com que os meios dirigentes do partido social democrata alemão de antes da guerra escondiam de si mesmos a constante deterioração da sua anterior prática revolucionária. Só esta diferença de procedimento separava a forma de fachada "ortodoxa" da forma confessadamente revisionista, que visava adaptar a doutrina marxiana tradicional às "necessidades" novas do movimento operário saído das condições mudadas, próprias do novo período.

Logo que, no meio das tempestades e tensões do ano de 1917, face a uma "revolução proletária internacional nitidamente em vias de amadurecer", Lenine se propôs enunciar de novo a teoria marxiana do Estado e o papel do proletariado na revolução, não se preocupou em defender como ideólogo uma interpretação ortodoxa supostamente estabelecida da verdadeira teoria marxista. Longe disso, ele iria partir da premissa de que o marxismo revolucionário tinha sido totalmente destruído e abandonado tanto pela minoria oportunista como pela maioria assumidamente social-chauvinista de todos os partidos e sindicatos "marxistas" da defunta II Internacional. Anunciando publicamente que o marxismo estava morto, proclamou a necessidade de uma restauração integral do marxismo revolucionário.

É inegável que este marxismo revolucionário, assim restaurado por Lenine, valeu à classe proletária a sua primeira vitória histórica. É um facto em que é preciso insistir, face aos detractores pseudo-marxistas do comunismo bárbaro dos bolcheviques, como face ao socialismo "distinto" e "culto" do Ocidente. Mas é preciso também fazer outro tanto face aos actuais beneficiários da vitória dos operários russos, esses dirigentes que passaram por etapas do marxismo revolucionário do princípio ao credo, já não comunista mas simplesmente "socialista" e democrático, que dá pelo nome de estalinismo. Similarmente temos visto que uma coligação puramente "antifascista" de frentes únicas, frentes populares e frentes nacionais tem vindo a substituir por etapas a luta de classe revolucionária conduzida pelo proletariado contra todo o regime económico e político da burguesia, e isto à escala internacional, nos Estados "democráticos" e nos Estados fascistas, nos Estados "pró-russos" e nos Estados anti-russos. 

Face a estes prolongamentos da obra de Lenine, não é mais possível admitir que os princípios restaurados do marxismo, de que Lenine e Trotsky se instituiram os defensores durante a guerra e no imediato pós-guerra, conduziram a uma autêntica ressurreição do movimento revolucionário proletário, ao qual, no passado, tinha estado associado o nome de Marx. È verdade que tudo parecia indicar durante algum tempo que o verdadeiro espírito do marxismo revolucionário se tinha implantado a Leste. Considerava-se que as contradições visíveis, que não tardaram a caracterizar as opções económicas e políticas do partido dirigente da União soviética, eram uma simples consequência do triste facto de que a "revolução proletária internacional", tão firmemente esperada por Lenine e Trotsky, não tinha amadurecido. Contudo, à luz do que se seguiu, não se pode duvidar que o marxismo soviético, como teoria e como prática do proletariado, acabou por partilhar a sorte do marxismo "ortodoxo" do Ocidente de que tinha saído e com o qual tinha cindido apenas por causa das condições de excepção da guerra na Rússia e da explosão revolucionária subsequente. Logo que o nacional-socialismo contra-revolucionário triunfou decididamente sem disparar um tiro, em 1933, na praça forte do socialismo internacional, tornou-se manifesto que o julgamento "o marxismo falhou o seu papel" dizia respeito ao comunismo do Leste tanto como à Igreja social-democrata ocidental de rito marxista, e os irmãos separados viram-se enfim reunidos numa derrota comum. 

A fim de tornar inteligível o real significado e os efeitos incalculáveis desta lição, de suprema importância, da história recente do marxismo, vamos deter-nos sobre o carácter dual da ditadura revolucionária do proletariado que os acontecimentos acabam de pôr tão largamente em evidência, tanto no seio da Rússia estalinista, como à escala internacional. Duplo carácter que se encontra na dualidade, desde a origem inerente aos procedimentos de Marx, na sua qualidade tanto de teórico proletário como de líder político do movimento revolucionário do seu tempo. Por um lado, vimo-lo desde 1843 interessar-se atentamente pelas manifestações mais avançadas do socialismo e do comunismo franceses. Em 1847, fundou com Engels a Associação dos Operários Alemães de Bruxelas e começou a pôr de pé uma rede internacional de comités de correspondência proletários. Pouco tempo depois, os dois homens filiaram-se na Liga dos Comunistas e, a pedido dos seus membros, redigiram o célebre Manifesto proclamando o proletariado "única classe revolucionária". 

Por outro lado, Marx, redactor chefe da Nova Gazeta Renana durante a explosão revolucionária de 1848, exprimiu antes de mais as reivindicações mais radicais da democracia burguesa. Esforçou-se por manter uma frente única entre o movimento revolucionário burguês da Alemanha e as formas mais avançadas sob as quais, nesta época, se prosseguia uma luta por objectivos imediatamente socialistas nos países industriais mais desenvolvidos do Ocidente. O seu artigo mais brilhante e vigoroso, escreveu-o para exaltar o proletariado parisiense, depois da esmagadora derrota de Junho de 1848. Mas Marx não torna públicas as reivindicações específicas do proletariado alemão senão algumas semanas antes de a contra-revolução vitoriosa de 1849 ter proibido definitivamente o seu jornal. Mesmo nesse momento, colocou a questão operária de forma algo abstracta, reproduzindo na Nova Gazeta Renana os debates sobre o tema Trabalho Assalariado e Capital que tinha promovido dois anos antes na Associação dos Operários de Bruxelas. Similarmente, nos artigos que escreveu durante os anos de 1850 e 1860 para o New York Tribune de Horace Greeley, a New American Cyclopedia publicada por Charles Dana, órgãos cartistas de Inglaterra e diversos Jornais da Alemanha e da Áustria, Marx fez-se intérprete de uma política de esquerda que, esperava ele, acabaria por levar a uma guerra do Ocidente democrático contra a Rússia czarista.

Poderemos encontrar a explicação para este evidente dualismo no modelo jacobino da doutrina revolucionária adoptada por Marx e Engels antes da revolução de Fevereiro de 1848, e ao qual permaneceram globalmente fiéis, mesmo depois de o desfecho desta revolução ter arruinado as suas entusiastas esperanças de há pouco. È certo que não lhes escapava a necessidade de adaptar a táctica às condições mudadas, mas isso não impediu que a sua teoria da revolução, mesmo sob a forma materialista mais acabada que lhe deram depois, conservasse o carácter particular do período transitório, durante o qual o proletariado se via ainda constrangido a prosseguir a luta pela sua própria emancipação social, passando pelo estádio intermediário de uma revolução de dominante política.

È verdade que Marx deveria atribuir de seguida uma importância cada vez maior aos efeitos políticos revolucionários da guerra económica conduzida pelos sindicatos e por outras formas de defesa dos interesses imediatos e específicos dos operários: veja-se o papel de organizador e de dirigente que assumiu nos anos de 1860 no seio da Associação Internacional dos Trabalhadores, e a sua participação, na década seguinte, na elaboração do programa e da táctica de diversos partidos nacionais. Mas também é verdade, e a luta impiedosa que os marxistas travaram no quadro da Internacional contra os discípulos de Proudhon e de Bakunin prova-o eloquentemente, que Marx e Engels nunca abandonaram realmente as suas concepções anteriores sobre a importância da política, considerada a única forma consciente e plenamente desenvolvida da acção de classe revolucionária. Não há senão uma diferença de vocabulário entre o embrulhar circunspecto da política, subordinada como um meio ao objectivo final da "emancipação económica da classe operária", que comportam os estatutos da A.I.T. de 1864, e a proclamação sem equívoco, no Manifesto Comunista de 1848, de que "toda a luta de classes é uma luta política" e que "a constituição dos proletários em classe" pressupõe a sua "constituição em partido político". Assim, duma ponta à outra da sua carreira, Marx definiu o seu conceito de classe em termos fundamentalmente políticos e, de facto senão mesmo em palavras, sempre subordinou as múltiplas actividades exercidas pelas massas na sua luta de classe quotidiana às actividades exercidas em seu nome pelos seus dirigentes políticos.

Esta opção deveria afirmar-se ainda mais distintamente quando das raras e extraordinárias ocasiões em que Marx e Engels, no decurso dos seus últimos anos, se viram chamados a tratar de novo tentativas reais de revolução europeia. Veja-se a reacção de Marx à Comuna revolucionária dos operários parisienses em 1871. Veja-se também a atitude positiva e visivelmente contraditória que Marx e Engels adoptaram face ao projecto perfeitamente idealista da Narodnaia Volia, que visava desencadear com expedientes terroristas "uma revolução política e logo uma revolução social" nas condições atrasadas próprias da Rússia csarista dos anos de 1870 e 1880. Tal como se mostrou detalhadamente em artigo anterior (A Ideologia marxista na Rússia — NT), Marx e Engels não se limitavam a pensar que a explosão revolucionária eminente na Rússia daria o sinal de uma revolução geral na Europa, e duma revolução de tipo jacobino no quadro da qual "se romper o ano de 1789, o ano de 1793 chegará sem dúvida" (como Engels escrevia em 1885 a Vera Zassoulitch). Eles saudavam decididamente na revolução russa e paneuropeia uma revolução operária, ponto de partida dum desenvolvimento comunista.

Por conseguinte nada justifica a tese dos mencheviques e dos adeptos de outras escolas ligadas à ortodoxia marxista ocidental de tipo tradicional, segundo a qual o marxismo de Lenine não seria de facto senão um regresso a uma primeira forma do marxismo de Marx, que este último teria substituído de seguida por uma forma mais madura e mais materialista. É indiscutível que a própria similitude da situação histórica que surgia na Rússia do princípio do século XX, com as condições predominantes na Alemanha, Áustria, etc., na véspera da revolução europeia de 1848, dá conta do facto, de outro modo incompreensível, que tenha sido possível encarar de verdade a fase mais recente do movimento revolucionário do nosso tempo sob a forma paradoxal de um regresso ideológico ao passado. Apesar disso, como expusemos acima, o marxismo revolucionário "restaurado" por Lenine permanecia bem mais conforme, no seu conteúdo puramente teórico, ao verdadeiro espírito de todas as fases históricas da doutrina marxiana do que o marxismo social-democrata do período precedente, o qual, apesar da "ortodoxia" de que se vangloriava com ar de grande professor, nunca passou de uma forma mutilada e desfigurada da teoria marxiana, vulgarizando o real conteúdo desta e adocicando-lhe os princípios. É por esta mesma razão que a experiência de Lenine "restaurando" o marxismo revolucionário deveria demonstrar o mais claramente possível a absoluta vanidade de toda a tentativa de tirar a teoria da acção revolucionária da classe operária, não do seu conteúdo próprio, mas dum "mito". Acima de tudo, esta experiência demonstrou a perversidade ideológica da ideia de suprir as deficiências presentes da acção por um retorno imaginário a um passado mitificado. Ainda que semelhante reactivação de uma ideologia morta tivesse podido, por exemplo, encobrir durante certo tempo aos artífices do "Outubro" revolucionário as limitações históricas dos seus heróicos esforços, ela conduziu infalivelmente no fim de contas não a reencontrar o espírito do movimento precedente, mas apenas a evocar de novo o seu espectro. Nos nossos dias, acabou numa forma nova e "marxista revolucionária" de esmagamento de movimentos revolucionários autênticos na Espanha e em todo o mundo. 

Tudo isto prova claramente que não se pode hoje "restaurar" o marxismo na sua forma originária sem o transformar ao mesmo tempo em ideologia pura, desempenhando um objectivo absolutamente diferente, mesmo toda uma variedade de objectivos políticos diversos. É assim que esta ideologia serve neste preciso momento para camuflar o rebaixamento do papel preponderante até agora reservado ao partido dirigente e o reforço do poder pessoal, de tipo próximo do fascismo, exercido por Estaline e pelos seus subalternos de espinha flexível. Simultaneamente, no plano internacional, a política dita antifascista do Komintern "marxista" acaba por desempenhar, nas actuais lutas entre as diversas coligações de potências capitalistas, exactamente o mesmo papel que o seu contrário, a política estrangeira dos regimes de Hitler, de Mussolini e dos senhores da guerra japoneses. 

Sublinhemos com força que toda a crítica acima expressa diz respeito exclusivamente aos esforços ideológicos desenvolvidos nos últimos cinquenta anos para "preservar" ou "restaurar", com vista a uma aplicação imediata, uma "doutrina marxista revolucionária" completamente mitificada. Nada neste artigo visa os resultados científicos obtidos por Marx e Engels e por alguns dos seus discípulos, nos diversos campos da pesquisa social. Acima de tudo, nada neste artigo visa o que poderíamos chamar, num sentido muito amplo, o movimento marxista, isto é, o movimento revolucionário independente da classe operária. Para descobrir o que resta vivo ou pode ser trazido à vida no presente estádio de ponto morto em que se encontra o movimento operário revolucionário, seria bom voltarmos a esta abertura de espírito — prática e não apenas ideológica — que levou a primeira Associação internacional dos trabalhadores marxista (e ao mesmo tempo proudhoniana, blanquista, bakuniniana, sindicalista, etc.) a admitir nas suas fileiras todos os operários defensores do princípio da luta de classe independente do proletariado. Princípio enunciado nestes termos, na primeira linha dos seus estatutos, elaborados por Marx:

"A emancipação da classe trabalhadora deve ser obra dos próprios trabalhadores"

Agosto de 1938


FONTE: Arquivo Marxista na Intenet

segunda-feira, 21 de setembro de 2020

Difusão e crescimento do marxismo no Brasil

Por Carlos Pompe*

 

Trazido por publicações estrangeiras ou pelos imigrantes, o marxismo passou da intelectualidade para o movimento operário brasileiro, e hoje é um pensamento vivo e fecundo


No dia 14 de março de 1883, há 110 anos, faleceu Karl Marx. Sua vida e sua obra foram dedicadas à luta contra o capitalismo e pela construção de uma nova sociedade, superior, sem exploradores e sem explorados, objetivando um mundo novo – o comunismo. Para tanto, dedicou-se, com rigor, científico, a analisar a sociedade capitalista em que vivia. E atuou para substituí-la pelo socialismo. “Os filósofos não fizeram mais que interpretar o mundo de forma diferente; trata-se, porém, de modificá-lo (…)”, escreveu. E foi consequente com esta idéia até o fim de seus dias. Sua obra tem influenciado, desde então, de forma marcante, os acontecimentos mundiais. Sob sua influência foram feitas revoluções e formaram-se governos socialistas. A pretexto de combater suas idéias, trabalhadores e intelectuais, pessoas simples e personalidades destacadas foram perseguidas, torturadas, assassinadas brutalmente por governos reacionários. Era inevitável que uma concepção de mundo com tal potencial estendesse sua influência por todo o Planeta, rompendo as barreiras continentais da Europa, onde se originou.

Na América Latina, as idéias de Marx chegaram antes mesmo da classe social a que representavam – o proletariado. E, a bem da verdade, só começaram a despertar interesse, mesmo, quando começou a se formar o proletariado nestas terras, na passagem para o século XX.

Imigrantes europeus que buscavam nova vida nas Américas traziam consigo as experiências vividas nas lutas sociais européias. Alguns – ao que tudo indica, muito poucos – tiveram em seus países de origem contatos com as idéias marxistas ou – em número maior – com organizações operárias que pleiteavam o socialismo, como partidos políticos ou a Internacional.

No livro A derrota da dialética, Leandro Konder lista outros três movimentos que aportariam em nossas terras o pensamento marxista: “1- o dos europeus que vinham ao nosso continente e, mesmo sem nele fixarem residência, traziam, eventualmente, conhecimentos a respeito do marxismo e os difundiam aqui, de passagem; 2- o dos cidadãos sul-americanos que iam à Europa e, também, eventualmente ouviam falar das concepções de Marx, entravam em contato com elas e as traziam para cá, quando regressavam da viagem; e 3- o movimento de importação de livros, revistas e jornais do ‘velho mundo’, com informações relativas ao socialismo europeu”.

Quanto às obras escritas por Marx ou Engels – seu mais próximo colaborador e “co-fundador” do marxismo – é interessante lembrar que, à época em que seus autores viviam, havia tiragens que variavam de 1 mil a 2 mil exemplares – excepcionalmente, 3 mil –, conforme levantamento realizado por Edgard Carone em O marxismo no Brasil. É de notar que, mesmo na América Latina, a chegada das idéias de Marx foi diferenciada. Ganha destaque, aqui, a Argentina que, já no século passado, contou com uma tradução castelhana do primeiro volume de O Capital, feita pelo líder do partido Socialista Argentino, Juan Bautista Justo. Mas no geral, as obras de Marx e Engels só foram publicadas no nosso Continente após a morte dos autores, em especial a partir deste século. Estas são dificuldades adicionais ao estudo do pensamento e método marxistas na América Latina no século passado. 

Analisando esse período, escreve José Nilo Tavares em Marx, o socialismo e o Brasil: “Marx vivo esteve presente no Brasil? Sim e não. Sim, através das várias formas do socialismo que muito cedo incorporam-se ao pensamento político brasileiro, e enquanto socialismo e marxismo expressam as mais profundas reivindicações de direito à vida e à justiça partidas da classe operária. Sim, através dos efeitos indiretos, e algumas vezes diretos que o seu pensamento e a sua ação, de teórico e dirigente, exerceram sobre o movimento revolucionário na América Latina. Não, como presença atuante e viva, portanto uma pesada e rica bagagem de instrumental transformador”. 

“Primeira referência no Brasil a Marx data de 1872, em jornal republicano recifense”.

A elaboração do método marxista – a concepção materialista dialética – foi uma contribuição nova para o conhecimento do homem sobre o mundo em que vive e se desenvolve. Um avanço espetacular e inigualável na aproximação entre o saber humano e a realidade objetiva. O próprio Marx escreveu, certa vez, sobre suas idéias, “(…) qualquer que seja o juízo que mereçam, e por muito que se choquem com os preconceitos interessados das classes dominantes, são o fruto de longos anos de conscienciosa investigação” (prefácio à Contribuição à Crítica da Economia Política).

“Todo começo é difícil – isto vale em qualquer ciência (…)”, afirmou o mesmo Marx no prefácio ao O Capital. Assim, não seria fácil para os latino-americanos a compreensão do método dialético, ainda mais que as próprias obras marxistas eram de difícil acesso, e sem que a base que lhes originou – o desenvolvimento capitalista e a formação do proletariado – existisse aqui no Continente.

Como curiosidade, vale citar o caso do belga Raymond Wilmart que, ligado à Associação Internacional dos Trabalhadores (I Internacional), correspondia-se da Argentina, onde morava, com Marx. Numa de suas cartas, pede a Marx informações e livros – inclusive O Capital –, alertando, porém, que dificilmente o livro seria lido, pois os socialistas latino-americanos não faziam esforços para pensar.

Assim, se mesmo hoje, quando a América Latina e o Brasil possuem uma classe operária numericamente expressiva, e inclusive partidos que postulam o marxismo, a assimilação do método dialético materialista é tarefa que exige árduo esforço, estudo e perseverança, quanto mais àquela época.

Segundo Vamireh Chacon, em sua História das Idéias Socialistas no Brasil, a “sombra gigantesca” de Marx apareceu no Brasil, pela primeira vez, nas páginas do jornal republicano recifense O Seis de Março, n. 17, de 25 de março de 1872 – exatos 50 anos antes da fundação da organização política que assumiria abertamente a defesa do marxismo, o Partido Comunista do Brasil, em 25 de março de 1922. Trata-se da reprodução do artigo “O Dr. Carlos Marx”, da revista Ilustração Espanhola, que antes havia sido reproduzido na edição de 29 de fevereiro de 1872 da revista brasileira Echo Americano, publicada na Inglaterra.

Alguns intelectuais brasileiros tomaram conhecimento das idéias de Marx, ainda no século passado ou início deste. Um deles foi Tobias Barreto, que chegou a citá-lo no discurso de colação de grau de bacharéis, em 1883 – ano da morte de Marx: “Karl Marx diz uma bela verdade, quando afirma que cada período tem as suas próprias leis (…). Logo que a vida atravessa um dado período evolutivo, logo que passa de um estágio a outro, ela começa também a ser dirigida por leis diferentes”. Contudo, é bom lembrar que Tobias Barreto nunca foi marxista ou defendeu o marxismo. Em outra oportunidade afirmou: “(…) o instituto da Internacional” (dirigida por Marx e Engels) “é para mim a organização da loucura”.

Outro a tomar contato com as idéias marxistas foi Euclides da Cunha, que assim se referiu a elas: “Nada de idealizações: fatos, e induções inabaláveis resultantes de uma análise rigorosa dos materiais objetivos; e a experiência e a observação, adestradas em lúcido tirocínio através das ciências inferiores; e a lógica inflexível dos acontecimentos; e essa terrível argumentação terra-a-terra, sem tortuosidades de silogismos, sem o idiotismo transcendental da velha dialética, mas toda feita de axiomas, de verdadeiros truísmos, por maneira a não exigir dos espíritos o mínimo esforço para a alcançarem, porque ela é quem os alcança independentemente da vontade, e os domina e os arrasta com a fortaleza da própria simplicidade” (texto contido em Contrastes e Confrontos).

Euclides da Cunha chegou a formar uma associação operária em São José do Rio Pardo, de caráter socialista. Contudo, sua admiração por Marx não levou-o a adotar o método materialista dialético em sua produção literária, antes influenciada pelo pensamento positivista, como se pode ver em seu Os Sertões, onde chega a esposar conceitos racistas ao tratar de índios, negros e mestiços.

Por caminhos diversos, os ecos do marxismo continuavam ressonando no Brasil. Em 1901, o jornal O Trabalho – órgão das classes artísticas e operárias – trazia um medalhão de Marx na primeira página, com os dizeres “Proletários de todos os países, uni-vos”. Outras publicações operárias também referiam-se a Marx, geralmente colocando suas idéias ao lado das de outros teóricos do movimento trabalhista e socialista, como Proudhon, Fourier, Saint-Simon etc.

Mas os estudiosos do assunto consideram que foi o médico sergipano Silvério Fontes, que formou-se no Rio de Janeiro e passou a maior parte de sua vida em Santos – participando inclusive do movimento operário – “(…) o primeiro marxista brasileiro, de militância política (…)”, no dizer de Vamireh Chacon. Silvério Fontes morreu em 1928, e no fim da vida aderiu ao Partido Comunista do Brasil.

“Revolução bolchevique empolgou líderes anarquistas e intelectuais, como Lima Barreto”.

A Revolução de Outubro, na Rússia, em 1917, despertou entusiasmo em todo o mundo. No Brasil, onde os anarquistas predominavam no movimento operário, ela foi saudada e apoiada. As notícias sobre os acontecimentos na Rússia eram confusas. Sabia-se que um partido operário havia tomado o poder. Mas não se tinha notícia clara sobre quem eram suas lideranças e o que postulavam. Muitos acreditavam serem anarquistas os homens que comandavam o novo poder soviético. E fundaram, inclusive, um “Partido Comunista do Brasil”, de orientação anarquista, em 1919. Partido de existência breve.

Com o tempo, ficou claro que Lênin e seus camaradas não eram anarquistas, mas sim marxistas. E muitos ativistas operários continuaram a defender a Revolução Russa, e buscando se inteirar sobre o marxismo e suas propostas.

A revolução bolchevique empolgou, também, intelectuais, como Lima Barreto. O autor de O triste fim de Policarpo Quaresma escreveu um Manifesto Maximalista (a palavra era a tradução de “bolchevista”). Faleceu em 1922, mesmo ano em que é fundado o Partido Comunista do Brasil, com a destacada participação de Astrojildo Pereira – “um intransigente libertário” (anarquista), como ele próprio se definia.

Antes, o ideal socialista estivera presente em várias lutas brasileiras. Ao tempo da colônia e do império, as lutas nacionalistas tinham também seu lado igualitarista na Conspiração dos Alfaiates, em 1798; na Inconfidência Insurrecional de Pernambuco, em 1817 etc. “O pioneiro movimento socialista, laico no Brasil, apareceu em Pernambuco, nos meados do século XIX, como repercussão do socialismo francês pré-marxista, ou ‘utópico’, de Saint-Simon, Cabet, Fourier, Louis Blanc, Proudhon, Leroux, e do cristianismo social de Lammenais e Lacordaire”, escreve Vamireh Chacon.

Foram inúmeras as tentativas de organização da nascente classe operária brasileira, na virada do século, em torno do projeto socialista. Chegou inclusive às mãos de Engels, que lia português, uma publicação brasileira com matéria sobre um partido operário e seu programa, em 1893. O então dirigente da II Internacional fez um comentário pouco elogioso sobre o assunto, em carta de 26 de janeiro de 1893, endereçada a Karl Kautsky: “(…) a importância desses partidos sul-americanos está em relação inversa à retumbância de seus programas”.

A fundação do PCdoB, em 1922, contudo, alterou esse quadro no país. Trata-se hoje do mais antigo partido político existente no país. Todos os autores e estudiosos – mesmo os declaradamente anticomunistas – concordam que, com o Partido Comunista do Brasil, começou a difusão do marxismo no Brasil.

“Mas a classe operária, ao fundar seu partido, é ainda bastante jovem. Somente durante a Primeira Guerra Mundial o capitalismo no Brasil adquire maior impulso. Expande-se a indústria leve, particularmente o ramo têxtil, e se ampliam os meios de transporte marítimo e ferroviário. Junto com a burguesia, se desenvolve o proletariado, que vende sua força de trabalho não só a capitalistas nacionais, como também, a empresas imperialistas. A classe operária se compõe em boa parte de elementos provindos do campo e de trabalhadores de oficinas e pequenas empresas, notadamente padeiros, pedreiros, carpinteiros, marceneiros, gráficos, ferreiros e outros setores profissionais. O movimento sindical, ainda que combativo, apresenta muitas debilidades. O proletariado mal começa a adquirir consciência política. Nele influem imigrantes estrangeiros que, embora tragam experiência de luta e espírito de organização, são, em geral, partidários do anarco-sindicalismo. Até então, o marxismo não é conhecido no Brasil e, mesmo entre a intelectualidade avançada, prevalece o anarquismo”, analisa o documento 50 anos de luta, escrito pela direção do PCdoB em 1972.

Não há dúvida: a divulgação do marxismo no Brasil tem início com a fundação do Partido Comunista, em 1922. Criada como Seção da Internacional Comunista, a organização, cedo, conhece as perseguições, e tem o seu trabalho, tanto como organizador dos proletários, quanto de divulgador de uma política revolucionária e da teoria que embasa essa política, extremamente dificultado. E é através do Partido Comunista que chega às mãos dos brasileiros a primeira edição de uma obra de Marx e Engels: o Manifesto do Partido Comunista, escrito em 1848, com tradução de Octávio Brandão – dirigente comunista brasileiro – também vindo do movimento anarquista. Antes publicado nas páginas do jornal Voz Cosmopolita, em 1923 – edição, por sinal, apreendida –, o texto sai em forma de livro em 1924, com sua tradução feita “nos dias amargos de maio, junho e julho de 1923, como um protesto contra as perseguições ao Partido Comunista do Brasil”, segundo o tradutor (citado por Edgard Carone, no livro Da esquerda à direita).

Cabe destacar a importância fundamental da Internacional Comunista e da União Soviética na divulgação dos materiais marxistas. Se no início os brasileiros tinham poucas possibilidades de acesso à literatura dos fundadores do socialismo científico, a partir da fundação do Instituto Marx-Engels, de Moscou, em 1920, e da ligação orgânica do partido brasileiro com a Internacional, traduções das obras marxistas para o francês e o espanhol, feitas na Rússia – em especial após a Segunda Guerra Mundial – serão a base para versões brasileiras ou para o acesso aos textos em línguas estrangeiras de maior domínio entre os brasileiros, até os anos 1960.

“Positivismo influente no pensamento brasileiro dificultou a acolhida às idéias de Marx”.

Há de se considerar que, se a divulgação de obras marxistas é um primeiro passo fundamental para conhecimento de seu ideário, outra coisa é a assimilação da nova concepção de mundo. Nos primeiros anos deste século, quando o marxismo começa a ter alguma ressonância entre nós, o pensamento brasileiro está dominado pelo cientificismo – em especial, o positivismo que levou inclusive a colocar a legenda “Ordem e Progresso” na bandeira do país. E o cientificismo facilita o ecletismo, a junção de idéias muitas vezes contrárias umas às outras, mas com o selo da “ciência”. Ao par disso, é notório o desprezo pela filosofia – por uma concepção globalizante do conhecimento – dentre os intelectuais da época. E, nas universidades, a bem da verdade até os anos 1960, eram raríssimas as referências ao marxismo – a não ser no sentido de combatê-lo – e praticamente inexistente a adoção de obras marxistas, mesmo que com o intuito de refutá-las.

As dificuldades dos proletários e da esquerda brasileira, de lá para cá, ora aumentam, ora diminuem. Mas sempre existem. E isso se reflete, também, na divulgação da literatura marxista e na própria elaboração teórica com o método materialista dialético no país. As dificuldades, porém, não impediram o esforço contínuo dos comunistas em apreender e divulgar o marxismo.

O papel do Partido Comunista é relevante. Não apenas por sua trajetória política de defesa intransigente da revolução e dos princípios marxistas – chegando o partido a ser reorganizado em 1962 justamente em defesa destes princípios, abandonados pela direção após seu V Congresso, no final da década de 1950. Mas também por seu esforço editorial e pela realização de cursos, palestras, debates, seminários, apresentando a atualidade das idéias de Marx e buscando desenvolvê-las.

Não é fácil – na verdade, é praticamente impossível – realizar um levantamento detalhado das atividades partidárias ao longo da sua existência. Basta lembrar que em junho de 1923 – pouco mais de um ano após ter sido fundado – o Partido Comunista já teve todos os seus arquivos confiscados pela polícia do Rio de Janeiro, na época a capital do país. Em sua longa trajetória, foram inúmeras as perseguições policiais, invasões de sedes e gráficas, prisões, torturas e mortes de seus dirigentes, confisco, inclusive, das bibliotecas pessoais de militantes ou amigos do partido. Os dados sobre publicações são inexatos. Muitos títulos saíram em nome de editoras diversas, que não tinham relações visíveis com o partido. Outros, simplesmente, foram publicados na clandestinidade. O órgão central do partido, A Classe Operária – ainda hoje editado –, é um exemplo. A primeira fase de sua existência foi de maio a julho de 1925, quando foi fechado pela polícia. Depois, alternou sua publicação entre períodos legais e clandestinos. Se atualmente, como o partido, é legal, com sede conhecida e nome registrado, na maior parte de sua existência não foi assim.

Se com o papel impresso isso acontece, o que dizer sobre cursos, seminários, palestras etc? Até hoje são realizados, mas não contabilizados. Em 1954, contudo, foi publicado um balanço desse tipo de trabalho teórico, realizado a partir de 1951. Está na revista Problemas, n. 64. Diz a revista: “(…) passaram pelos cursos elementares do partido, de 4 e menos dias, 1960 alunos; pelos cursos médios, de 6 a 15 dias, 1492; e pelo curso superior do Comitê Central, 554 alunos”. A estes, deveriam ser acrescidos os cursos ministrados a comunistas brasileiros pelo Partido Comunista da União Soviética, na Rússia, que tiveram, também, inegável papel na formação de nossos marxistas.

“Queda dos regimes do Leste europeu coloca novos desafios para o pensamento marxista”.

O primeiro esforço de avaliação da nossa realidade com o instrumental teórico marxista foi o do tradutor do Manifesto do Partido Comunista, Octávio Brandão. Em 1924 ele escreve Agrarismo e Industrialismo – ensaio marxista-leninista sobre a revolta de São Paulo e a guerra de classes no Brasil. 

Sintomaticamente, assina o livro com o pseudônimo de Fritz Mayer e dá como local de impressão Buenos Aires, embora ele tenha ocorrido no próprio Brasil, para burlar a perseguição governamental.

No geral, as iniciativas de uma análise marxista de vários problemas fica ao sabor do esforço individual de militantes ou intelectuais que adotam o materialismo dialético. E leve-se em conta, aqui, o que foi dito anteriormente sobre a influência cientificista, positivista e eclética entre os nossos estudiosos. Na vida orgânica, “(…) o Partido elabora seu programa, aprovado no IV Congresso, realizado em 1954. É o primeiro programa por ele elaborado em toda sua existência. A aprovação deste documento, correto em seus elementos essenciais, constitui grande êxito e já revela certo domínio do marxismo-leninismo e da realidade nacional (…)”, diz o documento 50 anos de Luta, acrescentando, adiante: “Mas a elaboração do Programa não significa mudança de profundidade com relação às concepções estranhas ao proletariado”.

Com os acontecimentos da União Soviética após o XX Congresso do PCUS e a mudança da orientação política e econômica comandada por Nikita Kruschev, o movimento comunista mundial enfrenta grave crise. Entre os comunistas brasileiros trava-se acirrado debate político e ideológico. A orientação kruschevista é adotada pela direção do Partido Comunista, e seus adversários, como João Amazonas e Maurício Grabois, são afastados dos órgãos dirigentes. O partido muda de nome – para “Partido Comunista Brasileiro” – e retira do estatuto a afirmação que se orienta pelo marxismo-leninismo e pelo internacionalismo proletário – preconizado por Marx e Engels no Manifesto de 1848.

Em 1962, Amazonas, Grabois, Pedro Pomar, Elza Monnerat, Carlos Danielli, Ângelo Arroyo, Lincoln Oest, dentre outros, reorganizam o Partido Comunista do Brasil, reafirmando o marxismo-leninismo e o programa revolucionário da organização. O partido participa abertamente do debate internacional em torno da teoria marxista, combatendo as idéias de Kruschev e seus sucessores, ao tempo em que esforça-se por analisar e atuar na realidade brasileira em defesa do socialismo e do marxismo. Boa parte de sua direção é assassinada nos anos da ditadura militar.

Mesmo enfrentando a mais cruel ditadura de nossa história, que mantém o partido na ilegalidade e persegue comunistas, patriotas e democratas, a organização sobrevive e cresce. Com o fim do regime dos generais, o partido recupera a legalidade.

Nova crise atinge o movimento comunista mundial no final dos anos 1980 e início dos 1990. Os países que adotaram o socialismo no Leste Europeu retornam ao capitalismo. A União Soviética deixa de existir.

Em meio a essa crise, o Partido Comunista do Brasil reafirma mais uma vez seu ideal socialista e a validade do manancial teórico legado por Marx e desenvolvido por Lênin. É a fase que vivemos atualmente, após 110 anos de sua morte, Marx e sua obra são vítimas do maior ataque já visto a uma concepção de mundo.

A queda dos regimes do Leste Europeu e o estupendo ataque ao socialismo que a seguiu, colocaram para os marxistas questões profundas para serem respondidas. Em primeiro lugar, nenhum país socialista abandonou o regime por uma invasão capitalista externa. Pelo contrário, ao maior ataque político militar que o socialismo sofreu no século – a agressão nazi-fascista –, ele respondeu com a vitória sobre Hitler e seus aliados, e a formação do campo socialista.

O socialismo foi golpeado por dentro. Kruschev, Brejnev, Gorbachev, Yeltsin – para ficar só em exemplos soviéticos –, eram integrantes do Partido Comunista da União Soviética, que mudaram a orientação do partido e terminaram por liquidá-lo. Assim como Ramiz Alia, na Albânia, foi quem comandou a extinção do Partido do Trabalho, fundado por Enver Hoxha, após uma vida de militância nessa organização.

O assunto carece, e muito, de aprofundamento. Mas vai se tornando consenso a debilidade da própria assimilação e domínio do marxismo como um dos principais – se não o principal – causadores desse retrocesso histórico. Ganha ainda mais intensidade – nesse sentido – a afirmação de Lênin: “Sem teoria revolucionária, não há movimento revolucionário”.

A necessidade premente da atividade revolucionária, da intervenção direta na política cotidiana para fazer frente ao capitalismo e transformar a proposta socialista e seu ideário numa força material assimilada pelas massas, é uma pressão forte no sentido de abandonar o rigor teórico na análise de uma realidade, para sua transformação em palavras de ordem mobilizadoras. Uma submissão da teoria materialista – dialética e da análise do real – que, em especial nas questões sociais, dificilmente é imediatista –, à política. A urgência de resultados imediatos, que possibilitem um aumento da participação dos explorados na luta emancipadora, acaba por rebaixar a análise científica de uma realidade dada, com toda a sua complexidade e possibilidades de ação revolucionária.

Passados 110 anos da morte de Marx, e 75 anos da Revolução de Outubro – que colocou o desafio prático de construção do socialismo –, o capitalismo continua mergulhando o mundo na barbárie. O socialismo, a sociedade sem exploradores e explorados, que ruma para o fim da pré-história da humanidade, para o desenvolvimento pleno do ser humano, é a grande aspiração dos povos. E o método dialético-materialista, resultante das pesquisas e ação de Marx, Engels e seus seguidores, mantém-se como o instrumental apto a possibilitar as ações visando a superar as dificuldades presentes. Marx continua vivo!


FONTE: Fundação Mauricio Grabois


sábado, 12 de setembro de 2020

Há 80 de seu assassinato: Trotsky e seus três biógrafos


Por Mário Maestri  


Leon Trotsky (1879-1940)
                                              

Em 21 de agosto de 1940, em Coyoacán, na periferia da cidade do México, León Trotsky, com 60 anos, era assassinado por um esbirro estalinista, o espanhol Ramon Mercader (1913-1978), tema objeto do magnífico romance, de 2009, de Leonardo Padura, O homem que amava os cachorros. Quando de sua morte, havia décadas que Trotsky era infamado pelo grande capital e pela burocracia da URSS. Após a guerra, a sofrida vitória da população soviética sobre o nazismo serviu para consolidar as ignomínias lançadas pelo stalinismo contra o construtor do Exército Vermelho. O pecado maior de León Trotsky fora que, desde 1923, até sua morte, ele exigira a restauração do poder dos trabalhadores na URSS.

Georg Lukács (1885-1971) propôs que um grande romance histórico nasce do encontro de um grande tema com um grande ficcionista. Podemos dizer o mesmo das obras biográficas realizadas com sucesso, que exigem igualmente que um escritor de talento, no pleno domínio da arte historiográfica, se debruce sobre uma vida referencial. Por melhor que seja o escritor, uma biografia de Jair Bolsonaro apresentaria material apenas para uma triste ficção em prosa burlesca ou macabra.

O “Pai dos Povos” reinara como faraó sobre a URSS, até sua morte em 1953, endeusado mundialmente pelos partidos comunistas burocratizados. Em 1956, ele foi derrubado do seu mega-pedestal por Nikita Khrushchov (1894-1971), membro da casta que o levara à vitória, e seguiria agarrada firmemente ao poder e aos privilégios. Em 1954, um ano após a morte de Stalin, Isaac Deutscher (1907-67) publicava, em inglês, o primeiro tomo de sua biografia monumental Trotsky: o profeta armado, seguida, em 1959, por Trotsky: o profeta desarmado, e, finalmente, em 1963, por Trotsky: o profeta banido.

A trilogia de Isaac Deutscher surgia como a mais poderosa reivindicação político-biográfica do revolucionário caluniado com as mais terríveis e estapafúrdias infâmias, escrita por um autor de dotes estilísticos singulares, investigador insaciável, que vivera na primeira pessoa muitos daqueles sucessos. Tratado político por excelência, os três Profetas envolvem igualmente os apreciadores de romances biográficos e de romances históricos. Quem inicia a leitura, dificilmente a interrompe.

Cortando os cachos

Isaac Deutscher nasceu em 1907, na atual Polônia, no seio de família judaica, sendo destinado ao rabinado. Muito jovem, cortou os cachinhos ortodoxos e aderiu ao Partido Comunista da Polônia (1918-1938), do qual foi expulso, em 1933, por defender a aliança entre socialistas e comunistas contra o nazismo, proposta pela Oposição de Esquerda trotskista. Foi acusado de “exagerar o perigo nazista”. Em 1938, o Partido Comunista Polonês foi dissolvido, momentos antes do Pacto de 23 de agosto de 1939, que dividiu o país entre Stalin e Hitler, abrindo as portas à II Guerra Mundial. Praticamente todo o comitê central e milhares de militantes comunistas poloneses foram executados durante as purgas estalinistas.

Em 1933, Isaac Deutscher aderira à Oposição de Esquerda Internacional, liderada por Trotsky no exílio. Porém, rompeu com ela, em 1938, por divergir da fundação da IV Internacional, já que acreditava na possibilidade de auto-reforma do estalinismo. Em 1939, com 32 anos, no contexto da invasão nazi-estalinista da Polônia, refugiou-se na Inglaterra. Em 1949, publicou, em inglês, Stalin: uma biografia política, em plena era do culto do “Pai dos Povos”, que alguns poetas russos propunham mais refulgente do que o sol. Já nesse trabalho, o marxista polonês registrou sua crença na inevitabilidade da burocratização e da vitória de Stalin, e em uma certa contribuição do mesmo na construção da URSS. Porém, jamais deixou de denunciar os crimes do estalinismo.

Como vimos, em 1954, Deutscher iniciou a publicação, em inglês, de sua monumental trilogia, de fulgurante sucesso. Ela foi publicada, no Brasil, em plena retomada do movimento oposicionista contra a ditadura militar, em 1968, pela Civilização Brasileira, de Ênio Silveira, fazendo a cabeça de  parte da juventude revolucionária de então. Creio que a melhor parte! Explico. Com 19 e 20 anos, como tantos companheiros, me formei politicamente lendo, primeiro, a insuperável  História da Revolução Russa, de León Trotsky, de 1930, publicada no Brasil, pela Saga, em 1967, e os Profetas, como o chamávamos, em 1968.

O que se lia

Nós líamos a melhor literatura e não poucos companheiros, me perdoem, verdadeira sub-literatura. Os militantes que abraçavam o maoísmo portavam debaixo do braço o Livro vermelho, com os “Pensamentos de Mao-Tsé-Tung”. Os que optavam pelo foquismo, a Revolução na revolução, de Regis Debrey e o Mini-manual do guerrilheiro urbano, de Carlos Marighella, em cópias mimiografadas. Literatura que, hoje, permanece apenas como registro histórico daquela época. E os companheiros que seguiam no PCB, continuavam lendo a Formação Histórica do Brasil, de 1963, do general Werneck Sodré (1911-1999), historiador sério mas que falava maravilhas da “burguesia progressista”, naquele momento, mandando no país através dos militares desenvolvimentistas e de Delfim Netto.

As ilusões na possibilidade de regeneração do estalinismo, já presentes em Stalin, foram retomadas sobretudo nos segundos e terceiro tomos dos Profetas, quando Deutscher não raro briga com os fatos para defender suas posições na época daqueles sucessos. Essas posições conheceram correções, desde a esquerda, sobretudo por seus ex-camaradas trotskistas. Críticas que se mostraram corretas, com o andar da carroça histórica. No seu magnífico trabalho, Deutscher peca não raramente por explicações pós-fatos e, sobretudo, por deduzir de aspectos psicológicos, sobretudo de Trotsky e Stalin, fenômenos nascidos do confronto político e social, no qual um e outro foram apenas protagonistas atuantes, ainda que excelentes.

Nesses momentos, Deutscher abandona epistemologicamente o marxismo para avançar interpretações de viés positivistas. Ele acreditava que, com mais indústria, mais operários, mais educação, mais tecnologia, a reforma do estalinismo se teria imposto como necessidade ineludível. Porém, aqueles fenômenos ensejaram a rejeição pela burocracia das piores excrescências stalinistas, sem jamais abandonar a expropriação política dos trabalhadores. Deutscher realizou importante pesquisa e teve acesso aos arquivos de Trotsky. Sua obra de elevada qualidade literária e impactantes revelações historiográficas, prestou uma imensa contribuição política e cultural ao apresentar um quadro geral da vida e da luta de León Trotsky, soterrado por infâmias verdadeiramente terraplanistas.

Trinta e quatro anos mais tarde

Em 1988, em plena maré mundial contra-revolucionária, que levaria à dissolução da URSS, que tanto temera León Trotsky, o já reconhecido historiador marxista francês Pierre Broué lançou seu Trotsky. Portanto, um trabalho literalmente contra a corrente, em um momento em que no mundo e no Brasil, com as previsões do “fim da história” e a morte do comunismo, as livrarias liquidavam os livros marxistas, que os marxistas espertos compravam a preço de banana podre. Essa obra ainda não foi publicada no Brasil.

Pierre Broué, nasceu em 1926, aderindo ainda adolescente ao marxismo. Participou, quando secundarista, da resistência anti-fascista, recolhendo informações, ajudando no abastecimento da oposição armada, etc. Ainda durante a guerra, ingressou no PCF, do qual foi expulso por idéias trotsquista – em verdade, ele apenas lera, adolescente, a História da revolução russa. Em 1944, aderiu ao Partido Comunista Internacionalista, trotskista, tornando-se, nos quarenta anos seguintes, a principal referência intelectual do chamado “lambertismo”, de Pierre Lambert (1920-2008), que deu origem no Brasil à Libelu – Organização Socialista Internacionalista. Em 1989, quando lançava seu livro, foi expulso daquela organização por Jacque Lambert, salvo engano, por fazer uma conferência em um círculo conservador sobre seu livro.

Formado e pós-graduado em História, Pierre Broué foi professor no ensino secundário e, a seguir, universitário, produzindo trabalhos referenciais sobre o movimento comunista internacional e o marxismo-revolucionário, entre os quais A Revolução e a guerra da Espanha, de 1961; O Partido Bolchevique – história do PC da URSS, de 1963; a monumental Revolução na Alemanha, de 1917-1923, de 1971, e, finalmente, Trotsky, de 1988. Pierre Broué dirigiu o Instituto León Trotsky, que empreendeu a publicação das obras de Léon Trotsky de 1928 a 1940, em mais de 25 volumes. Era o principal animador  dos Cadernos León Trotsky, trimestrais, publicados de 1979 a 2003.

Em 1992, Pierre Broué esteve em Porto Alegre, cidade vista então pela esquerda européia como espécie de Meca socialista, devido à direção petista e o “orçamento participativo”. Naquele então, a Secretaria Municipal de Cultura e sua divisão do Livro, esta última sob o comando do hoje ideólogo liberal Fernando Shuller, se destacavam em convidar pensadores conservadores para mostrar abertura ideológica. Armei um barraco pela imprensa nanica e me concederam, como cala-boca, o direito de convidar um esquerdista. Indiquei Pierre Broué que fez enorme sucesso ao lado do apagado Fukuyama, que levou 16 mil dólares, para passar quatro horas na capital sulina e ler com voz inaudível algumas páginas. Depois não sabem por que deu no que deu! Hoje Porto Alegre é governado por um rapazote direitista que surgiu do nada, apoiado no nome do pai, igualmente conservador, mas com alguns neurônios.

Um indiscutível avanço

A biografia Trotsky, de Pierre Broué, de 1.104 páginas, ainda não traduzida ao português, constituiu a mais acabada e refinada biografia do comunista internacionalista. A obra, escrita com elegância, respeita estritamente as normas da historiografia acadêmica, o que contribui também para que não alcance a densidade literária da trilogia de Deutscher. Como é inevitável, as idiossincrasias ideológicas e políticas do autor contribuíram para a maior ou menor ênfase de questões abordadas, no respeito permanente da documentação. A riqueza e a precisão documental, permitida pela intimidade visceral do autor com as fontes arquivais e outras, completam lacunas e corrigem hiatos historiográficos dos Profetas de Deutscher.

Uma das múltiplas qualidades desse trabalho é lançar luz sobre purgas e massacres promovidos por Stalin, tidos por muito como meros atos de sangue. Broué revela conspirações no âmbito da burocracia, de esquerda e de direita, contra os desmandos de Stalin. Movimentos que tiveram, alguns, Trotsky como referência possível. Broué corrige as visões da inevitabilidade do stalinismo e de seus aspectos positivos. Ressalta a vitória de Stalin como derrota terrível do operariado soviético e mundial que levou à dissolução da URSS, ainda em curso, quando da publicação de seu livro. Restaura a verdade histórica deixada de lado, quando Deutscher defende sua posição contrária à fundação da IV Internacional.

Stalin, Lenin e Trotsky

Ao saber da edição em francês de Trotsky: revolucionário sem fronteira, de Jean-Jacques Marie, de mais de 613 páginas, na versão espanhola, perguntei-me o que aquele historiador teria a dizer de novo, após as duas monumentais obras, ainda mais sendo o autor amigo e camarada de organização do saudoso Pierre Broué, onze anos mais velho do que ele. Jean-Jacques Marie, autor de biografias renomadas sobre Lenin e sobretudo Stalin, segue militando, hoje, no pequeninho Partido dos Trabalhadores, da França, no qual confluiu a Organização Comunista Internacionalista. Foi sempre professor secundário de História, o que, na França, ainda permite ter uma vida intelectual.

Também escritor de recursos, Jean-Jacques Marie nasceu na França, em 1937, tendo empreendido estudos universitários em História, russo e letras clássicas. Militante socialista de esquerda e muito ativo nas organizações sindicais do magistério, aderiu em fins dos anos 1950 ao grupo trotskista dirigido por Lambert, no qual se mantém, após suas diversas metamorfoses, até hoje. Ao aposentar-se, dedicou-se com maior intensidade à produção historiográfica, publicando uma detalhada biografia de Stalin, em 2003, de mais de oitocentas páginas, Stálin no Brasil, em uma tradução verdadeiramente horrível, e de Lenin, em 2004. Traduções pernetas brasileiras da obra de Broué são também comuns, algumas mais, outras menos.

A leitura desse trabalho torna-se obrigatória por inúmeras razões. Jean-Jacques Marie escreveu sua biografia em plena etapa contra-revolucionária, com a dissolução da URSS já consolidada e a hecatombe geral dos partidos comunistas estalinistas e pós-estalinistas. Pôde, portanto, aprofundar-se nos arquivos da URSS, o que Deutscher e Broué não tiveram oportunidade de fazer. Isso lhe permitiu fornecer algumas informações novas que, no geral, precisam e enriquecem o já conhecido. Uma maior intimidade com Stalin apoia também sua leitura da vida de Trotsky. O autor empreende igualmente uma apresentação mais equilibrada das relações de Lenin e Trotsky, pois escreve em contexto de refluxo do culto formal do fundador do Partido Bolchevique pelo estalinismo em dissolução. O perfil de Trotsky como indivíduo, sem retoques hagiográficos, é outro destaque na obra. Chama a atenção a apresentação que Jean-Jacques Marie faz da reflexão de Trotsky, nos anos finais do seu exílio, sobre a possibilidade da humanidade ter entrado em um período de decadência, eventualidade rejeitada por aquele revolucionário. Questão hoje candente.

Diríamos para concluir que a história, através da historiografia, fez justiça ao confronto Trotsky e Stalin. Hoje, quando se cumprem oitenta anos do assassinato de León Trotsky, destacam-se indiscutivelmente as três obras referidas entre outros excelentes resgates históricos do revolucionário amaldiçoado. E, sintomaticamente, quem quiser conhecer defesas históricas do “Pai dos Povos”, vai ter que se contentar sobretudo com as obras do italiano Domenico Losurdo (1941-2018) e do belga Ludo Martens (1946-2011), indiscutivelmente as mais citadas e apreciadas pelos estalinistas tardios e neo-estalinistas, entre tantos outros trabalhos. Dois escritores enfadonhos, resenhistas preguiçosos, estranhos à produção historiográfica acadêmica de qualidade, que jamais se preocuparam em colocar um pé em um arquivo ou aprender a ler o russo, para falar daqueles sucessos. Mais que biografias, são elogios áulicos a Stalin, continuação tardia de culto à personalidade já esfacelado pela história. Esses dois biógrafos de certo modo espelham o biografado. Merecem-se.

Mário Maestri, historiador, é autor de Revolução e contra-revolução no Brasil: 1530-2019.

quarta-feira, 2 de setembro de 2020

Textos escolhidos: ERNEST MANDEL



A Atualidade do Marxismo



Por Ernest Mandel

A situação do marxismo no mundo contemporâneo é marcado por um estranho paradoxo. A influência do pensamento de Karl Marx sobre a realidade social atual parece mais forte do que nunca. Nunca se consagrou tantos colóquios, congressos acadêmicos, livros, artigos de revistas e jornais por ocasião do centenário da sua morte (nascido em Treves em 1818, Karl Marx faleceu em Grã-Bretanha no dia 14 de março de 1983). Nunca tantos chefes de Estado e de governo, de partidos de massas por esse mundo fora, pretenderam se inspirar na sua obra. Mas, ao mesmo tempo, nunca se discursou sobre a "crise do marxismo", seja sobre o seu "declínio irreversível" e sobre a sua "morte".

O marxismo sendo a unidade de dois movimento, um teórico, outro prático, é portanto em relação a esses dois aspectos que é necessário se esforçar em precisar sua atualidade. Por um lado, possui um aspecto rigorosamente científico, respeitando todas as leis inerentes a esse tipo de pesquisa. Marx sempre foi um sábio que desprezou aqueles que escondiam ou falsificavam os fatos ou resultados de investigação, sob qualquer pretexto, incluindo o de "não desesperar Billancourt", quer dizer, de não desencorajar a classe operária. Ele perseguiu esta atividade científica, nomeadamente por que ele estava convencido que só a verdade era revolucionária, que nenhuma luta proletária não atingiria seu objetivo – a construção de uma sociedade sem classes à escala mundial – se ela não fosse constantemente esclarecida pelos resultados de uma análise rigorosa da realidade e da sua evolução.

Por um lado, o marxismo tem uma dimensão emancipadora não menos rigorosa e exigente. Até Karl Marx, a filosofia se contentou de interpretar o mundo. Para Marx, se tratava de o transformar, e isso num objetivo preciso: suprimir, pela actividade revolucionária, todas as condições sociais que fazem do ser humano um ser escravo, miserável, mutilado, oprimido, explorado, alienado; criar uma sociedade na qual o livre desenvolvimento de cada indivíduo se torna a condição do desenvolvimento livre de todos. Até ao seu último sopro de vida, Marx sempre foi fiel a esse objetivo.

Esses dois objetivos do marxismo, a explicação científica do futuro social em sua totalidade e a realização do projeto emancipador mais radical que alguma vez foi concebido, são de uma audácia tal que a principal admoestação que foi dirigida a Marx, e que lhe é dirigida ainda nos dias de hoje, é de ter sido o último dos utopistas: um desígnio de tal forma vasto não poderia se realizar. Os que acreditam no céu acrescentam que ele teria cometido o pecado, que ele teria fundado uma "religião do homem" – o que é totalmente falso, visto que o caráter fundamentalmente crítico e em permanência autocrítico da sua doutrina – sem o apoio de uma providência divina, e querendo fazer bem, ele teria finalmente provocado demasiado mal.

Apostemos que a humanidade laboriosa, que sofre e que combate para se libertar das suas correntes, não partilha esse julgamento séptico, resignado e cínico. Aceitar suas correntes sob o pretexto que não se sabe se alguma vez se poderá se desembaraçar completamente, afirmar que vale mais dar um pouco de pomada sob os ferros em vez de limar e de os jogar fora, isso não satisfaz aqueles e aquelas acorrentados que preferem se levantar contra a escravidão. Enquanto houver humanidade, esta categoria de revolucionários nunca desaparecerá. Cem anos após a morte de Marx, qual é o balanço que se pode tirar dos dois aspectos do marxismo?

O Balanço do Aspecto Científico do Marxismo
O primeiro aspecto – o da capacidade de análise e de previsão científico – é particularmente positivo. Se comparar-mos o mundo de 1883, ao de 1983, se nos questionarmos se as transformações principais que se produziram são aquelas previstas por Marx e se elas resultam da natureza da sociedade burguesa e das contradições que a rasgam, tais que ele nos ensinou a conhecer, a resposta só pode ser "sim", sem nenhum "mas" importante.

Marx compreendeu, melhor que qualquer sábio ou moralista do seu tempo, a dinâmica grandiosa e aterradora das revoluções tecnológicas inerentes ao modo de produção capitalista, em função mesmo da propriedade privada, da economia de mercado, da concorrência e da sede insaciável que resulta da extorsão crescente da mais-valia do trabalho vivo afim de poder acumular sempre mais capital. Dinâmica grandiosa, porque ela contém a promessa de libertar o Trabalho de todo o esforço produtivo cansativo, não criador e alienante, graças à automatização. Dinâmica aterradora, por que ela conduz à transformação periódica das forças produtivas em forças destrutivas que sapam o progresso da humanidade, destroem o ambiente e arriscam a destruição de todo o planeta.

Ele compreendeu que da concorrência brotaria o monopólio, por sua vez submetido a uma concorrência cada vez mais feroz. Os pequenos capitais seriam absorvidos sem piedade ou esmagados pelos grandes. A sociedade burguesa evoluiria em direção de uma estrutura de forma piramidal, fundada sobre uma imensa maioria de salariados, mas se concentrando em cada país em algumas dezenas de firmas e grupos financeiros gigantescos e, à escala internacional, em algumas centenas de multinacionais que ditariam suas leis a todos os Estados burgueses e esmagariam trabalhadores e povos numa máquina infernal que subordina tudo ao imperativo do lucro.

Ele compreendeu que esta mesma máquina iria se avariar periodicamente, que o regime capitalista produziria, em intervalos regulares, crises econômicas e guerras, cujo custo humanitário aumentaria a longo termo ao ponto de se tornar insuportável e mesmo mortal. Hoje, esses apóstolos que pretenderam, durante os anos 50 e 60, que o Capital tinha finalmente exorcizado seus demônios, que ele garantiria o pleno emprego, o crescimento, o aumento do nível de vida e a paz eterna. A grande depressão que atingiu o capitalismo internacional é uma clara confirmação da justeza da análise científica de Karl Marx.

Ele compreendeu que contra esta máquina infernal – quaisquer que sejam as vantagens parciais e temporárias que a humanidade possa aliás retirar – os salariados e semi-salariados iriam se erguer em massa. É dessa luta de classe do Trabalho salariado contra o Capital que devia surgir o potencial necessário para transformar o mundo no sentido da emancipação de todos e todas.

Ele compreendeu que esta luta tomaria primeiro a forma de uma revolta espontânea, sem consciência nítida dos objetivos visados e dos meios para aí chegar. Ela passaria em seguida por um gigantesco esforço de organização, de cooperação e de aprendizagem da solidariedade de classe a todos os níveis. Ela terminaria em revoluções conscientes, inspiradas pela experiência vivida, pelas necessidades objetivas e subjetivas ressentidas como tais, e pelo próprio programa marxista. Constatando as imensas tarefas, essas revoluções passariam inevitavelmente por derrotas parciais ou mesmo completas. O proletariado submeteria suas próprias vitórias e derrotas à crítica impiedosa. Ele voltaria continuamente sobre o que parecia já adquirido, até que o vasto movimento histórico do assenso, do declínio e da ascensão da consciência de classe e da revolução proletária tendo por saída a construção de uma sociedade socialista à escala mundial.

De todas as análises e projeções de Marx, é sem dúvida esta última que é a mais impressionante. Lembremo-nos que no momento da publicação do Manifesto Comunista, em 1948, não havia no mundo inteiro mais que 100 mil sindicalizados e 10 mil socialistas com, no máximo, algumas centenas de comunistas, e isso, apenas em meia dúzia de países. Hoje, não há um país no mundo, nem a mais pequena ilha do Pacífico nem canto mais recuado da floresta equatoriana onde o capitalismo, propulsado pela sua tendência expansionista irresistível, não pudesse estabelecer uma usina, um porto, um botequim, empregando salariados, sem que não tenha surgido sindicatos que reagrupem, à escala mundial, centenas de milhões de aderentes, e cujo desenvolvimento é acompanhado da formação de partidos que se reclamam do socialismo, que contem dezenas de milhões de simpatizantes e de eleitores. Os comunistas se contam por centenas de milhares, de milhões, que se reivindicam da doutrina de Marx.

Onde está a prática marxista?

Qual é, aliás, o balanço do segundo aspecto do marxismo, o da prática? Não é menos impressionante. Mas é também nitidamente mais contraditório. Graças ao estimulo que Karl Marx, Friedrich Engels e seus discípulos trouxera, a luta e a organização operárias contra a burguesia adquiriram uma lucidez que lhes permitiu transformar parcialmente o mundo em um sentido emancipador. Mencionemos entre as principais conquistas: a luta pelo limite do dia de trabalho, que conduziu a semana de 72 horas e mais ao combate pelas 35 horas, que será ganho se o combate não menos escarnido para estender a solidariedade coletiva aos mais explorados e oprimidos: as mulheres, os jovens, os desempregados, os imigrantes, as minorias nacionais, os doentes, os inválidos, os idosos. O esforço para estender esta solidariedade à escala mundial é difícil mas não irrealista, como testemunham os movimentos de solidariedade com as revoluções cubanas, indo-chinesa, centro-americana, que sucederam aos movimentos que apoiaram as revoluções russa e espanhola.

Disso testemunham também os primeiros triunfos de revoluções socialistas, sobretudo inspiradas por Lênin, desde da revolução de Outubro na Rússia até às revoluções iugoslavas, chinesas, cubana e indo-chinesa. Tudo isso faz parte da realidade mundial, mesmo se não se trata de conquistas definitivamente garantidas enquanto subsistir o capitalismo internacional. Podemos afirmar que sem Marx e Engels, o mundo hoje teria sido bem diferente e muito mais desumano do que ele é.

Mas o projeto emancipador no seu conjunto ainda não se realizou em parte alguma. As duas correntes de massas nas quais o movimento operário real se dividiu, a corrente social democrata reformista e a corrente estalinista (a sub-corrente eurocomunista de massa passando gradualmente do segundo ao primeiro) levaram a uma derrota pungente. A social democracia não avançou um milímetro na via da abolição do capitalismo pelas reformas. A crise capitalista atual, com o seu cortejo de desempregados e de misérias, a fome no "terceiro-mundo", a ameaça de extermínio nuclear suspendida sobre o gênero humano, testemunham suficientemente.

Quanto à burocracia estalinista, se ela usurpou na URSS os frutos do esforço revolucionário gigantesco alguma vez realizado por um povo, ela a conduziu a um impasse total. As sociedades saídas de revoluções vitoriosas não chegaram ao socialismo, mas gelaram a meio caminho entre o capitalismo e o socialismo. Além disso, em todo o lado, salvo em Cuba, se exerce a férula de uma ditadura despótica que bloqueia qualquer novo avanço para o socialismo, que submete os trabalhadores à opressão incontestável e que descredita – esses países à escala mundial – o socialismo, o comunismo e o marxismo mais que qualquer propaganda burguesa não conseguiria alguma vez fazer.

Aí, mais que em qualquer outra parte, se encontra a fonte da "crise do marxismo" sobre a qual se perora nos últimos tempos. Não é de uma crise do marxismo que se trata, mas de uma crise da prática do movimento operário burocratizado, da crise das sociedades pós-capitalistas burocratizadas. Essas crises são aliás acompanhadas de um abandono cada vez mais aberto da doutrina marxista pelos dirigentes desses movimentos, o que confirma à sua maneira que Marx não tem nada a ver com isso. Aplicando à análise dessas crises o método e os critérios marxistas, chegamos a quatro conclusões.

Quatro Conclusões
Primeiro, seria completamente desapropriado procurar as fontes últimas dessas crises nas idéias de Marx. A maior contribuição de Marx para a compreensão da história das sociedades consiste nisto: em última análise, é a existência social que determina a consciência, e não o inverso. Crer que a capitulação da social democracia diante da primeira guerra imperialista (1914-1918), depois sua ajuda à contra-revolução capitalista; que os crimes de Estaline; que as capitulações paralelas da social democracia e do estalinismo diante Hitler (1933) e a ascensão do fascismo, foram causadas por imperfeições nos textos de Marx, isso frisa o ridículo.

As grandes tragédias do século XX foram a proeza do Capital, e não de Marx. Elas não se podem explicar como resultantes de afrontamentos entre centenas de milhões de seres, de conflitos de interesses materiais das grandes classes sociais ou de frações de classe. As idéias – "boas" ou "más" – jogam certamente um papel nesse contexto, mas não um papel principal.

Em segundo lugar, é desapropriado procurar as razões últimas do aparecimento de Estaline e do desvio das revoluções socialistas vitoriosas na alma eslava, a conquista mongol ou no vicioso sádico sedento de poder adormecido em cada um de nós e que só espera pelas circunstâncias propicias para acordar brutalmente. O segredo do triunfo, como o da degenerescência da revolução russa se encontra, em última análise, na contradição entre a maturidade das condições objetivas da revolução mundial – a crise mundial do capitalismo desde 1914 – por um lado, e a imaturidade das condições objetivas para o socialismo na Rússia e em China, assim que a imaturidade das condições subjetivas para a vitória revolucionária à escala mundial por outro lado. Isso deu, durante um longo período, um curso desigual ao processo da revolução mundial, cujas conseqüências negativas estão longe de estarem eliminadas.

Em seguida, o marxismo confirma sua validade de maneira brilhante pelo fato que ele pôde forjar os instrumentos analíticos refinados para explicar o que se passou com a social democracia e o estalinismo. Mais precisamente, é a crítica marxista da burocracia operária, da ditadura burocrática e da sociedade de transição burocrática que é ao mesmo tempo científica, a mais completa e a mais orientada para as saídas históricas reais. A grande surpresa e o não menos grande furor de toda a reação mundial – do Kremlin a Washington, passando pelo Vaticano e os "dissidentes" reacionários –, uma parte crescente desta crítica marxista da sociedade nos chega aliás dos próprios países do Este. Esse acordar histórico cheio de promessas apenas começa.

Finalmente, um movimento de massa real se desencadeou há trinta anos para ultrapassar nos fatos a crise do "marxismo" estalinista (que não tem nada em comum com o marxismo) ou do "socialismo real" (que não tem nada a ver com o socialismo). Esse movimento, que nós chamamos de revolução política anti-burocrática – e cuja ascensão revolucionária na Polônia em 1980-1981 é até aqui o ponto culminante – Leon Trotski e a IVa Internacional guardarão para sempre o mérito histórico de o ter previsto e preparado. Sua vitória não implica de modo nenhum uma restauração do capitalismo. Ela significará, depois das inevitáveis hesitações, o triunfo da autogestão planificada e democraticamente centralizada, da economia, quer dizer o regime dos "produtores associados", para retomar a formula do próprio Marx. Ela significará, no domínio do Estado, a auto-administração dos trabalhadores na base de uma larga democracia socialista pluralista, quer dizer, o poder dos conselhos dos trabalhadores, o poder dos sovietes, com um principio imediato do definhamento do Estado. Serão os conselhos que governarão, o partido revolucionário indispensável ao seu triunfo se contentando de procurar lhes guiar politicamente, sem nunca se substituir a eles.

O movimento real da emancipação dos proletários dos países capitalistas se compromete periodicamente na mesma via, com inevitáveis altos e baixos, desde da Rússia de 1917, a Alemanha de 1918, a Hungria de 1919, e a Itália de 1920, até à Espanha de 1936, a Itália ainda, de 1948 e de 1968 e 1969, a França de Maio 1968 e Portugal de 1974-1975. A luta de emancipação dos povos dominados retoma pouco a pouco a mesma orientação, sob o peso de uma industrialização parcial e da emergência do proletariado como classe majoritária nesses países.

É portanto nesses três setores da revolução mundial que através de um doloroso nascimento, a história faz seu caminho em direção à única solução positiva à crise da humanidade: o poder dos conselhos de trabalhadores, a Federação socialista mundial, na qual homens e mulheres do nosso planeta tomarão definitivamente a sua própria sorte em mãos, expulsarão para sempre a guerra e meterão fim à exploração do Trabalho e à opressão política.

É nesse sentido que trabalha a IVa Internacional. É com esse objetivo que Karl Marx produziu sua obra titânica. Quando esse movimento histórico conhecerá a sua primeira vitória em país industrialmente avançado, a fofoca sobre a "crise do marxismo" terminará uma vez por todas.

Bruxelas, 14 de março de 1983.

 FONTE: MIA