terça-feira, 29 de junho de 2021

Notas sobre capitalismo e socialismo (3)

 Por Wladimir Pomar

 



Apesar de haver per­du­rado por um pe­ríodo tão longo quanto o es­cra­vismo, a agre­gação ainda hoje é sim­ples­mente ig­no­rada. Ou, na me­lhor das hi­pó­teses, torna-se razão para ba­ta­lhas teó­ricas sobre sua con­cei­tu­ação como se­mi­feudal ou pré-ca­pi­ta­lista. Seu papel, como freio ou o que quer que seja no de­sen­vol­vi­mento ca­pi­ta­lista bra­si­leiro não é con­si­de­rado, em­bora tenha su­bor­di­nado, por mais de meio sé­culo, cerca de 70% da po­pu­lação ativa bra­si­leira.

Em ou­tras pa­la­vras, a agre­gação, uma re­lação de pro­dução não-ca­pi­ta­lista, ou pré-ca­pi­ta­lista, se tornou pre­do­mi­nante desde o final da es­cra­vidão, re­pre­sando a maior parte da força de tra­balho na­ci­onal apenas para a pro­dução de renda fun­diária. Mesmo assim há quem acre­dite que seu es­va­zi­a­mento, nos anos 1960 e 1970, ocorreu porque a bur­guesia queria criar um mer­cado de fa­bri­cação e im­por­tação de má­quinas agrí­colas para dis­putar o mer­cado mun­dial de com­mo­di­ties agrí­colas. Todo o pro­cesso po­lí­tico e econô­mico di­ta­to­rial-mi­litar de trans­for­mação ou mo­der­ni­zação dos la­ti­fún­dios em agroin­dús­trias ca­pi­ta­listas teria se re­su­mido a tal ob­je­tivo.

Quem pensa assim não en­tendeu, por um lado, o apro­fun­da­mento das mu­danças es­tru­tu­rais nos ca­pi­ta­lismos avan­çados es­ta­du­ni­dense, eu­ropeu e ja­ponês, que os levou a ace­lerar a ex­por­tação de ca­pi­tais, ou seus in­ves­ti­mentos no ex­te­rior. Suas em­presas mul­ti­na­ci­o­nais in­ten­si­fi­caram tais in­ves­ti­mentos na cons­trução e ope­ração de plantas in­dus­triais em países como o Brasil. Porém, para efe­tivar tais in­ves­ti­mentos era pre­ciso contar com oferta abun­dante e ba­rata de força de tra­balho que, no Brasil, en­con­trava-se su­bor­di­nada às re­la­ções de pro­dução de agre­gação na agri­cul­tura. Os cam­po­neses, par­ceiros ou ren­deiros, es­tavam amar­rados aos la­ti­fún­dios, sem li­ber­dade para vender sua força de tra­balho no mer­cado.

Em tais con­di­ções, as bur­gue­sias es­tran­geira e na­ci­onal-su­bor­di­nada ne­ces­si­tavam de um Es­tado forte o su­fi­ci­ente para impor à classe la­ti­fun­diária uma re­forma que li­be­rasse a força de tra­balho agre­gada aos la­ti­fún­dios, sem li­quidar o mo­no­pólio da pro­pri­e­dade do solo. O golpe de 1964, que re­sultou na im­plan­tação da di­ta­dura mi­litar, vindo apa­ren­te­mente para im­pedir a co­mu­ni­zação do Brasil, mos­trou ime­di­a­ta­mente a que veio. De­cretou o Es­ta­tuto da Terra e “obrigou” os la­ti­fun­diá­rios a uma mo­der­ni­zação agrí­cola fi­nan­ciada pelo Es­tado.

Mi­lhões de agre­gados ru­rais foram subs­ti­tuídos por má­quinas e ou­tros in­sumos agrí­colas, cri­ando uma das mais in­tensas mi­gra­ções po­pu­la­ci­o­nais dos campos para as ci­dades que o Brasil co­nhece. Uma enorme força de tra­balho ba­rata inundou as ci­dades in­dus­triais ou em pro­cesso de in­dus­tri­a­li­zação. Com isso, in­verteu to­tal­mente a pro­porção entre as po­pu­la­ções rural e ur­bana bra­si­leiras num prazo in­fe­rior a 20 anos. E in­ten­si­ficou a ur­ba­ni­zação caó­tica que hoje ca­rac­te­riza as grandes e mé­dias ci­dades do país, con­tendo cerca de 80% da po­pu­lação.

Ou seja, para pro­mover o “mi­lagre econô­mico” que pro­cu­rava jus­ti­ficar sua di­ta­dura e con­so­lidar o de­sen­vol­vi­mento do modo ca­pi­ta­lista de pro­dução, su­bor­di­nado, de­pen­dente e des­na­ci­o­na­li­zado, que havia sido in­ten­si­fi­cado desde os anos 1950, os go­vernos mi­li­tares “obri­garam” os la­ti­fun­diá­rios bra­si­leiros a um pro­cesso de mo­der­ni­zação agrí­cola di­fe­rente tanto do pro­cesso su­lista es­ta­du­ni­dense no sé­culo 19 quanto do pro­cesso in­glês do sé­culo 14.

Os feu­dais in­gleses trans­for­maram-se em ca­pi­ta­listas pres­si­o­nados pelas de­mandas de lã das ma­nu­fa­turas ho­lan­desas. O que os levou a ex­pulsar mi­lhões de cam­po­neses das terras de cul­tivo feu­dais e co­mu­nais e criar a imensa massa des­pro­vida da pro­pri­e­dade de meios de pro­dução e de sub­sis­tência apta a vender sua força de tra­balho por sa­lário. Foi isso, aliado à in­ten­si­fi­cação mer­cantil global, que for­neceu a prin­cipal base para a dis­se­mi­nação das re­la­ções de pro­dução que ca­rac­te­ri­zaram o ca­pi­ta­lismo em subs­ti­tuição às re­la­ções feu­dais. Já os es­ta­du­ni­denses es­cra­vistas su­listas foram trans­for­mados em agri­cul­tores ca­pi­ta­listas pela Guerra de Se­cessão que eli­minou re­vo­lu­ci­o­na­ri­a­mente as re­la­ções es­cra­vistas e impôs as re­la­ções as­sa­la­ri­adas a todos os Es­tados da União norte-ame­ri­cana.

Os la­ti­fun­diá­rios bra­si­leiros, porém, foram “for­çados” a obter fi­nan­ci­a­mentos do Banco do Brasil para ex­pulsar os tra­ba­lha­dores agre­gados e subs­tituí-los por má­quinas, fer­ti­li­zantes quí­micos e tra­balho as­sa­la­riado. As áreas ru­rais foram, em geral, es­va­zi­adas de tra­ba­lha­dores agre­gados, li­ber­tados para se tor­narem mão-de-obra ba­rata para as in­dús­trias es­tran­geiras e na­ci­o­nais em pro­cesso de im­plan­tação. A maior parte dos la­ti­fun­diá­rios tornou-se uma fração agrí­cola da bur­guesia, em­bora man­tendo, como os su­listas norte-ame­ri­canos, a ide­o­logia es­cra­vo­crata e ra­cista que acha a in­dús­tria um setor se­cun­dário da eco­nomia e a de­mo­cracia, mesmo a li­beral, um sis­tema sub­ver­sivo.
 
Nessas con­di­ções, o de­sen­vol­vi­mento do ca­pi­ta­lismo bra­si­leiro di­fe­rencia-se bru­tal­mente do de­sen­vol­vi­mento do ca­pi­ta­lismo norte-ame­ri­cano. Pri­meiro porque este criou uma po­de­rosa in­dús­tria na­ci­onal de bens de pro­dução e de bens in­ter­me­diá­rios, cons­truindo uma base se­gura para o de­sen­vol­vi­mento tec­no­ló­gico e a pro­dução com­pe­ti­tiva dos bens de con­sumo em termos in­ter­na­ci­o­nais. Se­gundo, porque tal de­sen­vol­vi­mento na­ci­onal per­mitiu, já no final do sé­culo 19 e início do sé­culo 20, que o ca­pi­ta­lismo norte-ame­ri­cano apro­vei­tasse o ana­cro­nismo co­lo­nial es­pa­nhol para ini­ciar a pro­lon­gada dis­puta que viria a travar contra a he­ge­monia co­lo­nial e se­mi­co­lo­nial bri­tâ­nica na Amé­rica La­tina.
 
Nas três pri­meiras dé­cadas do sé­culo 20, o ca­pi­ta­lismo norte-ame­ri­cano as­sistiu à he­ge­monia de sua fração in­dus­trial, com um in­tenso de­sen­vol­vi­mento de seu de­par­ta­mento de bens de pro­dução (má­quinas e tec­no­lo­gias) e de des­truição (armas pe­sadas), cres­cente for­ta­le­ci­mento de sua fração fi­nan­ceira e pau­la­tino in­gresso em sua fase de ex­pansão im­pe­ri­a­lista, in­cluindo sua par­ti­ci­pação em todos os as­pectos da Pri­meira Guerra Mun­dial. Não por acaso o ca­pi­ta­lismo norte-ame­ri­cano se tornou o epi­centro da crise mun­dial ini­ciada em 1929, que levou à Se­gunda Guerra Mun­dial e se pro­longou até 1945, com imensa des­truição de forças pro­du­tivas, in­cluindo mais de 50 mi­lhões de vidas hu­manas.

O ca­pi­ta­lismo bra­si­leiro, porém, só con­se­guiu dar passos in­dus­triais con­cretos nos anos 1910, como de­cor­rência não de forças in­ternas ino­va­doras, mas dos cortes sig­ni­fi­ca­tivos que a Pri­meira Guerra Mun­dial impôs às im­por­ta­ções de bens de con­sumo fa­bri­cados na Eu­ropa. O pri­meiro so­luço in­dus­tri­a­li­zante re­sultou, assim, não da pers­pec­tiva da fa­bri­cação de bens de pro­dução in­dus­triais como ele­mento es­sen­cial para a so­be­rania na­ci­onal. Re­sultou da sim­ples subs­ti­tuição de im­por­ta­ções de bens de con­sumo. O único fator po­si­tivo desse so­luço con­sistiu na emer­gência de uma pe­quena classe ope­rária in­dus­trial em al­gumas ci­dades do país.

A esse in­gresso torto na in­dus­tri­a­li­zação somou-se um se­gundo so­luço in­dus­tri­a­li­zante nos anos 1930, co­man­dado por fra­ções la­ti­fun­diá­rias que se opu­nham à he­ge­monia da ca­fei­cul­tura pau­lista e a seu há­bito de “so­ci­a­lizar” os pre­juízos cau­sados pelas crises no mer­cado mun­dial de com­mo­di­ties agrí­colas. A crise mun­dial ca­pi­ta­lista, ini­ciada em 1929, agravou tal con­tra­dição ao ponto de levar a cho­ques ar­mados, ma­te­ri­a­li­zados na vi­to­riosa “re­vo­lução li­beral” e na fra­cas­sada e opo­si­tora “re­vo­lução cons­ti­tu­ci­o­na­lista pau­lista”.
 
As re­formas “li­be­rais” le­varam o Es­tado as­sumir papel ativo na in­dus­tri­a­li­zação, seja cri­ando em­presas es­ta­tais, seja fi­nan­ci­ando em­pre­en­de­dores bur­gueses, e em não mais con­si­derar as de­mandas econô­micas e so­ciais da li­mi­tada força de tra­balho as­sa­la­riada como as­sunto po­li­cial (o que se ma­te­ri­a­lizou na for­ma­li­zação de leis tra­ba­lhistas). Mas a de­manda de uma re­forma agrária que li­qui­dasse ou li­mi­tasse o do­mínio la­ti­fun­diário e li­be­rasse grandes con­tin­gentes da força de tra­balho agre­gada ja­mais foi con­si­de­rada.      
 
Apesar dessas li­mi­ta­ções, o ca­pi­ta­lismo “li­beral” bra­si­leiro so­freu cons­tantes ata­ques do agra­rismo la­ti­fun­diário e dos países ca­pi­ta­listas de­sen­vol­vidos. Os pri­meiros con­ti­nu­avam con­si­de­rando que o des­tino do Brasil era se tornar a la­voura do mundo, en­quanto os se­gundos se opu­nham ao cres­ci­mento de con­cor­rentes in­dus­triais. O de­sen­vol­vi­mento in­dus­trial dos anos 1930 e 1940 só contou com a trans­fe­rência de tec­no­lo­gias es­tran­geiras em vir­tude das con­tra­di­ções que le­varam à Se­gunda Guerra Mun­dial. Nesse sen­tido, os de­bates entre agra­ristas e in­dus­tri­a­listas re­tratam me­lhor do que quais­quer ou­tros as bases das grandes de­si­gual­dades de de­sen­vol­vi­mento ca­pi­ta­lista nos Es­tados Unidos e no Brasil.

A Se­gunda Guerra Mun­dial e o pe­ríodo pos­te­rior a ela per­mitiu ao ca­pi­ta­lismo norte-ame­ri­cano dar saltos enormes na in­cor­po­ração das mu­lheres à forca de tra­balho ativa, na con­cen­tração do ca­pital, na re­vo­lução tec­no­ló­gica, na re­es­tru­tu­ração de sua po­lí­tica de ex­por­tação de ca­pi­tais, na cen­tra­li­zação de ca­pi­tais em em­presas mul­ti­na­ci­o­nais e no au­mento da ex­plo­ração de países atra­sados, colô­nias ou se­mi­colô­nias.
 
Essa fase in­cluiu, ainda, o con­fronto de guerra fria com a União So­vié­tica e países de de­mo­cracia po­pular, assim como com os mo­vi­mentos de des­co­lo­ni­zação, per­mi­tindo ao ca­pi­ta­lismo norte-ame­ri­cano se elevar à con­dição de força he­gemô­nica mun­dial ca­pi­ta­lista. Nos anos 1970, porém, a cen­tra­li­zação do ca­pital em grandes cor­po­ra­ções trans­na­ci­o­nais e a ten­dência de queda da taxa média de lucro im­pu­seram re­for­mu­la­ções es­tru­tu­rais nas po­lí­ticas de ex­por­ta­ções de ca­pital dos Es­tados Unidos e dos de­mais países ca­pi­ta­listas cen­trais, in­ten­si­fi­cando o pro­cesso de glo­ba­li­zação do modo de pro­dução ca­pi­ta­lista.

Na so­ci­e­dade bra­si­leira só co­me­çaram a ocorrer mo­di­fi­ca­ções sig­ni­fi­ca­tivas quando ela se con­frontou com os cres­centes in­ves­ti­mentos pro­mo­vidos pelas ex­por­ta­ções de ca­pi­tais do ca­pi­ta­lismo de­sen­vol­vido, a partir dos anos 1950. De lá para cá, todas as re­formas de sen­tido ca­pi­ta­lista pra­ti­cadas no Brasil, in­cluindo a mo­der­ni­zação agrí­cola e a li­be­ração da força de tra­balho agre­gada dos la­ti­fún­dios dos anos 1960-70, foram con­ser­va­doras. Man­ti­veram a eco­nomia bra­si­leira su­bor­di­nada, de­pen­dente e des­na­ci­o­na­li­zada, e to­tal­mente à mercê das cor­po­ra­ções trans­na­ci­o­nais e de suas crises glo­bais.
 
Em ou­tras pa­la­vras, o ca­pi­ta­lismo bra­si­leiro só é na­ci­onal no sen­tido de que está im­plan­tado no seu ter­ri­tório. No mais, as prin­ci­pais de­ci­sões sobre seu de­sen­vol­vi­mento estão lo­ca­li­zadas em Washington, Berlim, Tó­quio, Paris e Lon­dres. Em tais con­di­ções, ao con­frontar-se com as ten­dên­cias reais do ca­pi­ta­lismo, a exemplo da ten­dência de pau­pe­ri­zação re­la­tiva e ab­so­luta da força de tra­balho, o ca­pi­ta­lismo no Brasil não só man­teve, mas agravou todas as de­si­gual­dades econô­micas, so­ciais e po­lí­ticas que herdou do es­cra­vismo e da agre­gação.


FONTE: Correio da Cidadania


terça-feira, 15 de junho de 2021

Devemos ter medo da China?

 

Por Kishore Mahbubani


A ofensiva partiu dos Estados Unidos antes de se estender para a maioria dos países ocidentais: a China, com seus produtos, espiões e ambições militares, estaria tentando desestabilizar a ordem internacional estabelecida após a Segunda Guerra Mundial. Pequim se defende. Xi Jinping montou uma operação de sedução em sua viagem à Europa, entre 21 e 26 de março. Essa ameaça chinesa existe mesmo?

Dentro de quinze anos, a economia chinesa terá ultrapassado a dos Estados Unidos, tornando-se a mais poderosa do mundo. Com a aproximação dessa virada, um consenso domina Washington: a China pode prejudicar muito os interesses e o bem-estar dos norte-americanos. O general Joseph Dunford, chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, afirma sem rodeios: em 2025, a China deverá ser “a maior ameaça” (audiência do Senado, 26 set. 2017). Na estratégia de defesa nacional dos Estados Unidos de 2018, a China e a Rússia são citadas como “potências revisionistas”, que procuram “forjar um mundo compatível com seu modelo autoritário – obtendo direito de veto sobre as decisões econômicas, diplomáticas e de segurança de outras nações”.1 “A ameaça chinesa”, declara o diretor do FBI, Christopher Wray, “não está relacionada apenas às questões estratégicas e do conjunto do governo; ela afeta o conjunto da sociedade, e eu acho que vamos precisar de uma resposta na escala do conjunto da sociedade.” Essa ideia está tão difundida que, quando o presidente Donald Trump iniciou sua guerra comercial contra a China, em janeiro de 2018, ele recebeu o apoio até mesmo de personalidades moderadas, como o senador democrata Chuck Schumer.

Duas preocupações alimentam essa inquietação. A primeira é econômica: a China teria enfraquecido os Estados Unidos por meio de práticas comerciais desleais, exigindo transferências de tecnologia, violando o direito de propriedade intelectual e impondo barreiras não tarifárias que impedem o acesso a seus mercados. A segunda é política: seu desenvolvimento econômico não estaria sendo acompanhado pelas reformas democráticas liberais previstas pelos governos ocidentais, principalmente o dos Estados Unidos. A China estaria se mostrando muito agressiva em suas relações com as outras nações. Convencido de tais análises, o cientista político Graham Allison chega, em um livro intitulado Vers la guerre,2 à deprimente conclusão de que um conflito armado entre os dois países parece mais do que provável.

No entanto, a China não está organizando uma força militar capaz de ameaçar ou invadir a América, não tenta intervir nos assuntos domésticos dos Estados Unidos e não está em campanha para destruir a economia norte-americana. Apesar dos clamores a respeito do perigo chinês, deveria ser possível, portanto, para os Estados Unidos encontrar um meio pacífico de lidar com o país que, dentro de uma década, será a maior potência econômica, talvez até geopolítica, do mundo. E fazer isso defendendo seus próprios interesses, mesmo quando eles são contrários aos de Pequim.

Ainda é preciso começar questionando uma antiga crença sobre o sistema político chinês. Desde o fim da União Soviética, os dirigentes dos Estados Unidos estão convencidos de que o destino do Partido Comunista Chinês (PCC) é ser enterrado junto com o Partido Comunista soviético. De um extremo a outro do espectro político, eles aceitaram, mais ou menos explicitamente, a tese apresentada por Francis Fukuyama em 1992: “Não somos testemunhas apenas do fim da Guerra Fria, […] mas do fim da própria história como tal: a saber, o ponto final da evolução ideológica da humanidade e a universalização da democracia liberal ocidental como uma forma final de governança humana”.3

Quando, em março de 2000, Bill Clinton explicou por que apoiava a adesão da China à Organização Mundial do Comércio (OMC), ele assegurou que a liberalização política seguiria a liberalização econômica, como a cauda de uma serpente segue sua cabeça. E pediu a seus colegas: “Se você acredita em um futuro mais aberto e mais livre para o povo chinês, você deve aprovar este acordo”. Seu sucessor, George W. Bush, tinha as mesmas convicções. Na Estratégia de Defesa Nacional de 2002, ele afirmou que, “com o tempo, a China perceberá que as liberdades sociais e políticas são a única fonte de grandeza de uma nação”. Hillary Clinton foi ainda mais explícita. Estendendo o reinado do PCC, os chineses tentam, segundo ela, “impedir o curso dos acontecimentos; em vão. Eles não serão capazes de fazer isso. Mas tentarão desacelerá-lo o quanto puderem”.


Plutocracia contra meritocracia

Pode-se questionar a confiança dos tomadores de decisão norte-americanos, que se consideram em posição de dar recomendações políticas à China. Ainda que nenhum império tenha acumulado tanto poder econômico, político e militar como os Estados Unidos, a assinatura de sua Declaração de Independência (1776) tem menos de 250 anos. A história da China começou muito antes. Ao longo dos milênios, seu povo aprendeu que os maiores sofrimentos sobrevêm quando seu governo central está fraco e dividido, como no século após a Guerra do Ópio (1842), ao longo do qual a China foi assolada por invasões estrangeiras, guerras civis, fome e muitos outros males. Desde 1978, o país tirou 800 milhões de pessoas da pobreza e criou a maior classe média do mundo. Como escreveu Graham Allison em um editorial para o China Daily, jornal estatal chinês, “é possível afirmar que houve, em quarenta anos de crescimento milagroso, uma melhoria no bem-estar humano mais rápida do que durante os 4 mil anos de história da China”. Tudo isso aconteceu enquanto o PCC estava no poder. E os chineses não deixaram de notar que o fim do Partido Comunista soviético foi acompanhado, na Rússia, por uma redução da expectativa de vida, pelo aumento da mortalidade infantil e pela queda da renda.

Aos olhos dos norte-americanos, a luta entre seu sistema político e o da China se resume ao enfrentamento entre uma democracia, onde as pessoas escolhem livremente o governo, podem falar o que quiserem e praticam a religião de sua escolha, e uma autocracia, onde elas são privadas dessas liberdades. Mas, para observadores menos militantes, a clivagem se apresenta de outra forma: ela opõe uma plutocracia norte-americana – na qual as decisões políticas acabam por favorecer os ricos em detrimento das massas – e uma meritocracia chinesa – na qual as decisões políticas, tomadas por funcionários escolhidos pelo partido com base em suas competências, ajudaram a reduzir a pobreza de maneira espetacular. Nos últimos trinta anos, a renda mediana do trabalhador norte-americano estagnou: entre 1979 e 2013, o salário horário real mediano aumentou apenas 6% – menos de 0,2% ao ano.4

Isso não significa que o sistema político chinês deva persistir em sua forma atual. As violações dos direitos humanos, principalmente a detenção de centenas de milhares de uigures,5 continuam sendo um grande problema. Muitas vozes se elevam na China para exigir reformas. Entre elas, a do professor Xu Jilin,6 que reserva suas críticas mais agudas aos colegas do mundo acadêmico. Ele os acusa de dar excessiva centralidade ao Estado-nação e muito destaque às diferenças culturais e históricas fundamentais com os modelos políticos ocidentais. Xu argumenta que essa insistência nos particularismos marca uma ruptura com a cultura chinesa tradicional, que, como ilustra a noção histórica de tianxia, era um sistema universal e aberto. Criticando a rejeição radical, por alguns de seus pares “nacionalistas extremistas”, de “tudo o que foi criado pelos ocidentais”, ele afirma, ao contrário, que a China sempre teve sucesso porque sempre esteve aberta.

No entanto, mesmo um progressista como Xu não gostaria que seu país reproduzisse o sistema político norte-americano. Pelo contrário, o professor acha que a China deveria “explorar suas próprias tradições culturais” a fim de promover uma “nova tianxia”. Na frente interna, “os hans e as numerosas minorias nacionais devem gozar de plena igualdade no plano jurídico e em termos de sua situação social; as especificidades culturais das diversas nacionalidades devem ser respeitadas e protegidas”. No nível diplomático, as relações com os outros países “devem ser definidas pelos princípios do respeito pela independência soberana do outro, da igualdade de tratamento e da convivência pacífica”.

O sistema político chinês deverá evoluir junto com a situação econômica e social. E, em muitos aspectos, já se transformou consideravelmente – abrindo-se. Por exemplo, em 1980, nenhum habitante da China estava autorizado a viajar para o exterior como turista. No ano passado, quase 134 milhões de pessoas foram para o exterior e voltaram para casa por vontade própria. Da mesma forma, milhões de jovens com mentes brilhantes puderam experimentar a liberdade das universidades norte-americanas. Em 2017, oito em cada dez estudantes quiseram voltar para casa.

Nenhum tiro nos últimos trinta anos

No entanto, uma questão permanece: se as coisas vão bem, por que Xi Jinping impõe uma disciplina mais rigorosa aos comunistas e por que acabou com o limite de mandatos presidenciais?7 Podemos dar a seu antecessor, Hu Jintao, o crédito por um crescimento econômico espetacular. Mas seu mandato também foi marcado pelo recrudescimento da corrupção e do divisionismo, particularmente da parte de Bo Xilai, líder de Chongqing (30,5 milhões de habitantes), e Zhou Yongkang, ex-chefe todo-poderoso da segurança interna. Xi está convencido de que essas tendências podem deslegitimar o PCC e atrapalhar a revitalização do país. Para enfrentar esses terríveis desafios, considera necessário restaurar um poder central forte. Apesar disso (ou graças a isso?), ele continua extremamente popular.

No mundo ocidental, muita gente se preocupa com seu enorme poder e vê nisso um sinal premonitório de conflito armado. Mas essa mudança na liderança do país não transformou de maneira fundamental a estratégia geopolítica de longo prazo da China. Esta sempre evitou guerras inúteis. Ao contrário dos Estados Unidos, que têm a sorte de ter dois vizinhos pacíficos – Canadá e México –, ela tem um relacionamento difícil com vários vizinhos poderosos e altamente nacionalistas, entre eles a Índia, o Japão, a Coreia do Sul e o Vietnã. Dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU, a China é o único que não disparou nenhum tiro fora de suas fronteiras nos últimos trinta anos, desde a breve batalha naval com o Vietnã em 1988. Em compensação, mesmo sob o governo do presidente Barack Obama, considerado pacifista, as Forças Armadas dos Estados Unidos lançaram em um único ano, 2016, 26 mil bombas sobre sete países. É bastante evidente que os chineses dominam a arte da contenção estratégica.

Claro que em alguns momentos eles estiveram à beira da guerra.8 Com o Japão, por exemplo, por causa das ilhas Senkaku/Diaoyu. Muito se tem falado também sobre a possibilidade de um conflito no Mar da China Meridional, pelo qual passa, todo ano, cerca de um quinto do transporte marítimo mundial. Em um contexto de soberania contestada em algumas porções dessas águas, a China converteu recifes isolados e baixios nelas localizados em instalações militares. Mas, ao contrário do que levam a crer as análises ocidentais, o país, cuja posição na região é inegavelmente mais afirmada no plano político, não se tornou mais agressivo do ponto de vista militar. Inclusive, ele poderia facilmente expulsar pequenos rivais, como a Malásia, as Filipinas e o Vietnã – mas não fez isso.

Batalha pela supremacia industrial

A rotineira narrativa da “agressão chinesa” nessa área geralmente deixa de mencionar que os Estados Unidos perderam muitas oportunidades de aliviar as tensões na região. Um ex-embaixador na China, J. Stapleton Roy, declarou que, em uma coletiva de imprensa conjunta com o presidente Obama, no dia 25 de setembro de 2015, Xi fez propostas sobre o Mar da China Meridional que incluíam a aprovação de declarações apoiadas pelos dez membros da Associação das Nações do Sudeste Asiático (Anase). Ele acrescentou que não pretendia militarizar as Ilhas Spratley, onde obras gigantescas estavam em curso. A administração Obama não fez nenhum esforço para dar prosseguimento a essa proposta conciliatória; ao contrário, intensificou as patrulhas de sua Marinha. Em resposta, a China acelerou a construção de instalações defensivas nessas ilhas.

Quanto às questões econômicas, elas não requerem menos habilidade que os assuntos militares e diplomáticos. Esse não é o caminho escolhido por Trump. Mesmo com suas justificativas duvidosas, a guerra comercial que ele desencadeou contra a China lhe valeram um amplo apoio do grande público, fenômeno que certamente põe em evidência um erro chinês: não levar em conta as crescentes críticas suscitadas por certas práticas desleais. No entanto, tais práticas explicam, por si só, a atitude de Trump? Na China e em toda parte, cada vez menos se acredita nisso. O que os Estados Unidos desejam é minar a ambição da China de se tornar um líder tecnológico. Como observou Martin Feldstein, ex-presidente do Comitê de Conselheiros Econômicos de Ronald Reagan, os Estados Unidos têm todo o direito de colocar em prática políticas para impedir o roubo de suas tecnologias, mas isso não os autoriza a bloquear o plano estratégico nacional “Made in China 2025” – um projeto concebido para desenvolver indústrias de ponta, como a de carros elétricos, a robótica avançada e a inteligência artificial.

Para manter sua supremacia nas indústrias de alta tecnologia, como a aeroespacial e a robótica, os Estados Unidos não podem se contentar em impor barreiras alfandegárias a seus parceiros. Eles precisam investir em ensino superior, pesquisa e desenvolvimento; em outras palavras, precisam desenvolver sua própria estratégia econômica de longo prazo para responder à da China.

Tanto no plano político como no plano retórico, o governo chinês tem uma visão clara do futuro de sua economia e de sua população. Programas como o “Made in China 2025” ou o “Novas Rotas da Seda” (Belt and Road Initiative, BRI), com seus projetos de infraestrutura, ilustram o desejo de se tornar um ator de primeira linha nas novas indústrias. Aliás, os dirigentes chineses insistem no fato de que seu país não pode prosseguir na busca pelo crescimento ignorando seu custo social: a desigualdade e a poluição ambiental. Xi reconheceu, em 2017, a necessidade de resolver a tensão “entre um desenvolvimento desequilibrado e inadequado e a necessidade cada vez maior de uma vida melhor para os cidadãos”.9 Ninguém sabe se o governo será capaz de responder a isso. Mas pelo menos ele tomou consciência do problema. Nada impede que os Estados Unidos façam o mesmo.

Ocorre que, para desenvolver uma estratégia de longo prazo, os Estados Unidos precisam resolver uma contradição fundamental em seus próprios princípios. Seus maiores economistas acreditam que as políticas industriais conduzidas sob a liderança dos Estados não funcionam e defendem um capitalismo de livre mercado. Se tal crença tem fundamento, então o principal negociador comercial de Trump, Robert Lighthizer, não deveria ficar alarmado por causa dos esforços de Pequim para melhorar suas capacidades tecnológicas. Ele deveria acomodar-se confortavelmente e aguardar até que a iniciativa industrial da China desmorone por si mesma, saboreando o espetáculo de seu fracasso.

No entanto, se Lighthizer acredita que o plano de 2025 pode ter sucesso, cabe a ele pedir que seus concidadãos revejam seus postulados ideológicos. Eles poderiam, então, desenvolver uma estratégia de longo prazo equivalente. A Alemanha, aliás, provavelmente a maior potência industrial do mundo, já conta com um roteiro como esse, chamado Industry 4.0.

Presente estratégico para Pequim

Ironia do destino: a colaboração mais vantajosa para os Estados Unidos seria justamente aquela que eles poderiam estabelecer com a China. Esta quer apenas utilizar suas reservas de US$ 3 trilhões para investir mais nos Estados Unidos, que poderiam considerar uma participação no BRI, para grande satisfação dos países envolvidos no projeto, muito interessados em moderar a preponderância chinesa. Em suma, há muitas oportunidades para serem aproveitadas. Assim como a Boeing e a General Electric tiraram proveito da explosão do mercado de aviação chinês, empresas como a Caterpillar e a Bechtel poderiam se beneficiar das grandes obras realizadas nesses países. Até o momento, porém, a aversão ideológica dos Estados Unidos ao intervencionismo estatal na economia torna esses cenários improváveis.

Fazia sentido que os Estados Unidos tivessem o maior orçamento de defesa do mundo quando seu poder econômico deixava em segundo plano todas as outras nações. Faria sentido que a segunda maior economia do mundo ainda tivesse o maior orçamento de defesa do planeta? Agarrar-se a essa supremacia não seria um presente estratégico para a China? Esta aprendeu uma importante lição com o colapso do bloco soviético: o crescimento econômico deve vir antes das despesas com armamentos. Nessas condições, Pequim só pode se alegrar ao ver Washington desperdiçando seu dinheiro em gastos militares inúteis.

Se os Estados Unidos conseguissem mudar sua visão sobre a China, eles descobririam que é possível desenvolver uma estratégia capaz de freá-la e de fazer avançar seus próprios interesses. Em um discurso pronunciado na Universidade de Yale em 2003, Clinton enunciou a filosofia por trás dessa estratégia, explicando, essencialmente, que a única maneira de conter a próxima superpotência é criando regras multilaterais e parcerias que a limitem.

Sob o reinado de Xi, a China continua favorável ao fortalecimento da arquitetura multilateral mundial criada pelos Estados Unidos, incluindo o FMI, o Banco Mundial, a ONU e a OMC. Ela forneceu mais forças de manutenção da paz do que os outros quatro membros permanentes do Conselho de Segurança. Novas oportunidades de cooperação surgirão, portanto, em fóruns multilaterais. Mas, para aproveitá-las, os dirigentes dos Estados Unidos precisam aceitar uma realidade: a ascensão da China (e da Índia) é inevitável.

 

*Kishore Mahbubani é ex-embaixador de Cingapura nas Nações Unidas, professor de Políticas Públicas da Universidade de Cingapura e autor de L’Occident (s’)est-il perdu? [O Ocidente (se) perdeu?], Fayard, Paris, 2019. Este artigo é parte de um texto publicado na revista Harper’s, em fevereiro de 2019.

 NOTAS

1 “Summary of the National Defense Strategy of the United States 2018” [Resumo da Estratégia Nacional de Defesa dos Estados Unidos 2018], Departamento de Defesa, Washington, DC. Disponível em: <https://dod.defense.gov>.

2 Graham Allison, Vers la guerre. L’Amérique et la Chine dans le piège de Thucydide? [Rumo à guerra. América e China na armadilha de Tucídides?], Odile Jacob, Paris, 2019.

3 Francis Fukuyama, La Fin de l’histoire et le dernier homme [O fim da História e o último homem], Flammarion, Paris, 2009 (1. ed.: 1992).

4 Lawrence Mishel, Elise Gould e Josh Bivens, “Wage stagnation in nine charts” [A estagnação salarial em nove gráficos], Economic Policy Institute, Washington, DC, 6 jan. 2015. Disponível em: <www.epi.org>.

5 Ler Remi Castets, “A repressão contra os uigures no controlado mundo do ‘sonho chinês’”, Le Monde Diplomatique Brasil, mar. 2019.

6 Cf. Xu Jilin, Rethinking China’s Rise: A Liberal Critique [Repensando a ascensão da China: uma crítica liberal], Cambridge University Press, 2018.

7 Até março de 2018, o presidente da República não podia ter mais do que dois mandatos.

8 Cf. Richard McGregor, Asia’s Reckoning: China, Japan, and the Fate of US Power in the Pacific Century [O acerto de contas da Ásia: China, Japão e o destino do poder dos Estados Unidos no Século do Pacífico], Viking, Nova York, 2017.

9 Discurso no XIX Congresso do PCC, Xinhua, 18 out. 2017.

 

*Kishore Mahbubani é ex-embaixador de Cingapura nas Nações Unidas, professor de Políticas Públicas da Universidade de Cingapura e autor de L’Occident (s’)est-il perdu? [O Ocidente (se) perdeu?], Fayard, Paris, 2019. Este artigo é parte de um texto publicado na revista Harper’s, em fevereiro de 2019.

 

FONTE: https://diplomatique.org.br/devemos-ter-medo-da-china/


domingo, 6 de junho de 2021

A atualidade do velho Marx


 UMA ENTREVISTA COM MARCELLO MUSTO

 

Tradução Cauê Seignemartin Ameni

 

Karl Marx nasceu neste dia em 1818. Seus últimos anos de vida são muitas vezes esquecidos e considerado um período de declínio intelectual e físico. Mas seu pensamento permaneceu vibrante até o fim da vida, enquanto ele abordava questões políticas que continuam centrais para a luta socialista hoje em dia.

 

A última foto tirada de Karl Marx, por E. Dutertre em Argel em 28 de abril de 1882.


Entrevista por Nicolas Allen

O trabalho de Karl Marx durante seus últimos anos de vida, entre 1881 e 1883, é uma das áreas menos desenvolvidas nos estudos marxistas. Essa negligência é parcialmente devido ao fato de que as enfermidades de Marx em seus anos finais o impediram de sustentar sua atividade regular de redação – virtualmente não há trabalhos publicados do período.

Ausentes das obras que marcaram o trabalho anterior de Marx, desde seus primeiros escritos filosóficos até seus estudos posteriores de economia política, os biógrafos de Marx há muito consideram seus últimos anos como um capítulo menor, marcado pelo declínio da saúde e diminuição das capacidades intelectuais.

No entanto, há um crescente acumulo de pesquisas que sugere que esta não é a história completa e que os anos finais de Marx podem realmente ser uma mina de ouro cheia de novos insights sobre seu pensamento. Em grande parte contidos em cartas, cadernos e outros “rascunhos”, os últimos escritos de Marx retratam um homem que, longe das histórias de decadência, continuou a lutar com suas próprias ideias contra o capitalismo como um modo de produção global. Como sugerido por sua pesquisa tardia nas chamadas “sociedades primitivas”, a comuna agrária russa do século XIX e a “questão nacional” nas colônias europeias, os escritos de Marx do período na verdade revelam uma mente voltada para as implicações do mundo real e complexidades de seu próprio pensamento, particularmente no que se refere à expansão do capitalismo além das fronteiras europeias.

O pensamento tardio de Marx é o tema da publicação recentemente publicada de Marcello Musto, O velho Marx: uma biografia de seus últimos anos (1881-1883). Lá, Musto tece, magistralmente, ricos detalhes biográficos e um envolvimento sofisticado com a escrita madura, muitas vezes auto-questionadora de Marx.

O editor contribuinte de Jacobin, Nicolas Allen, conversou com Musto sobre as complexidades de estudar os últimos anos de vida de Marx e sobre por que algumas das dúvidas e apreensões tardias de Marx são de fato mais úteis para nós hoje do que algumas de suas primeiras afirmações mais confiantes.

NA

O “falecido Marx” sobre o qual você escreve, cobrindo aproximadamente os três anos finais de sua vida na década de 1880, é frequentemente tratado como uma reflexão tardia por marxistas e estudiosos de Marx. Além do fato de que Marx não publicou nenhuma obra importante em seus últimos anos, por que você acha que o período recebeu consideravelmente menos atenção?

MM

Todas as biografias intelectuais de Marx publicadas até hoje prestaram muito pouca atenção à última década de sua vida, normalmente dedicando não mais do que algumas páginas à sua atividade após a dissolução da International Working Men’s Association em 1872. Não por acaso, esses estudiosos quase sempre usam o título genérico “a última década” para essas partes (muito curtas) de seus livros. Embora esse interesse limitado seja compreensível para estudiosos como Franz Mehring (1846-1919), Karl Vorländer (1860-1928) e David Riazanov (1870-1938), que escreveram biografias de Marx entre duas guerras mundiais e só puderam se concentrar em um número limitado de manuscritos não publicados, para aqueles que vieram depois daquela época turbulenta, o assunto é mais complexo.

Dois dos escritos mais conhecidos de Marx – os Manuscritos Econômicos e Filosóficos de 1844 e A Ideologia Alemã (1845-46), ambos muito longe de estar concluídos – foram publicados em 1932 e começaram a circular apenas na segunda metade da década de 1940. À medida que a Segunda Guerra Mundial dava lugar a um sentimento de profunda angústia decorrente das barbáries do nazismo, em um clima em que filosofias como o existencialismo ganhavam popularidade, o tema da condição do indivíduo na sociedade ganhava grande destaque e criava condições perfeitas para um interesse crescente nas idéias filosóficas de Marx, como a alienação. As biografias de Marx publicadas neste período, assim como a maioria dos volumes acadêmicos, refletiram esse zeitgeist e deram peso indevido a seus escritos juvenis.

Muitos dos livros que pretendiam apresentar aos leitores o pensamento de Marx como um todo, nas décadas de 1960 e 1970, concentravam-se principalmente no período de 1843-48, quando Marx, na época da publicação do Manifesto do Partido Comunista (1848), tinha apenas 30 anos.

Nesse contexto, não foi apenas a última década da vida de Marx tratada como uma reflexão tardia, mas o próprio Capital foi relegado a uma posição secundária. O sociólogo liberal Raymond Aron descreveu perfeitamente essa atitude no livro D’une Sainte Famille à l’autre: Essais sur les marxismes imaginaires (1969), onde zombou dos marxistas parisienses que passaram superficialmente pelo Capital, sua obra-prima e fruto de muitos anos de trabalho, publicado em 1867, e permaneceu cativado pela obscuridade e incompletude dos Manuscritos Econômicos e Filosóficos de 1844.

Podemos dizer que o mito do “Jovem Marx” – alimentado também por Louis Althusser e por aqueles que argumentaram que a juventude de Marx não poderia ser considerada parte do marxismo – tem sido um dos principais mal-entendidos na história dos estudos marxistas. Marx não publicou nenhuma obra que considerasse “maior” na primeira metade da década de 1840. Por exemplo, deve-se ler as cartas e resoluções de Marx para a Working Men’s Association, se quisermos entender seu pensamento político, não os artigos de jornais de 1844 que apareceram no German-French Yearbook. E mesmo se analisarmos seus manuscritos incompletos, os Grundrisse (1857-58) ou as Teorias da mais-valia (1862-63), estes foram muito mais significativos para ele do que a crítica do neo-hegelianismo na Alemanha, “abandonado ao crítica mordaz aos ratos” em 1846. A tendência de enfatizar demais seus primeiros escritos não mudou muito desde a queda do Muro de Berlim. As biografias mais recentes – apesar da publicação de novos manuscritos pela Marx-Engels-Gesamtausgabe (MEGA), a edição histórico-crítica das obras completas de Marx e Friedrich Engels (1820-1895) – negligenciam esse período anterior.

Outra razão para esse descaso é a alta complexidade da maioria dos estudos realizados por Marx na fase final de sua vida. Escrever sobre o jovem estudante da esquerda hegeliana é muito mais fácil do que tentar superar o intrincado emaranhado de manuscritos em várias línguas e interesses intelectuais do início da década de 1880, e isso pode ter dificultado uma compreensão mais rigorosa dos importantes acúmulos alcançados por Marx. Pensando erroneamente que havia desistido de continuar seu trabalho e representar os últimos 10 anos de sua vida como “uma lenta agonia”, muitos biógrafos e estudiosos de Marx falharam em olhar mais profundamente para o que ele realmente fez durante aquele período.

NA

No recente filme Miss Marx, há uma cena após o funeral de Marx que mostra Friedrich Engels e Eleanor, a filha mais nova de Marx, vasculhando papéis e manuscritos do pai. Engels examina um artigo e faz uma observação sobre o interesse tardio de Marx em equações diferenciais e matemática. Os últimos anos de Karl Marx parecem dar a impressão de que, em seus últimos anos, o leque de interesses de Marx foi particularmente amplo. Havia algum fio condutor que sustentasse essa preocupação com tópicos tão diversos como antropologia, matemática, história antiga e gênero?

MM

Pouco antes de sua morte, Marx pediu a sua filha Eleanor que lembrasse a Engels de “fazer algo” com seus manuscritos inacabados. Como é bem sabido, durante os 12 anos em que sobreviveu, Engels empreendeu a hercúlea tarefa de enviar para imprimir os volumes II e III do Capital, nos quais seu amigo havia trabalhado continuamente de meados da década de 1860 a 1881, mas não havia concluído. Outros textos escritos pelo próprio Engels após a morte de Marx em 1883 estavam cumprindo indiretamente sua vontade e estavam estritamente relacionados às investigações que havia conduzido durante os últimos anos de sua vida. Por exemplo, Origens da Família, da Propriedade Privada e do Estado (1884) foi denominado por seu autor como “a execução de um legado”, inspirado nas pesquisas de Marx sobre antropologia, em particular nas passagens que copiou, em 1881, da Sociedade Antiga de Lewis Henry Morgan (1877) e pelos comentários que ele adicionou aos resumos deste livro.

Não há apenas um fio condutor nos últimos anos de pesquisa de Marx. Alguns de seus estudos surgiram de descobertas científicas recentes sobre as quais desejava se manter atualizado, ou de acontecimentos políticos que considerava significativos. Marx já havia aprendido antes que o nível geral de emancipação em uma sociedade dependia do nível de emancipação das mulheres, mas os estudos antropológicos realizados na década de 1880 lhe deram a oportunidade de analisar a opressão de gênero em maior profundidade. Marx gastou muito menos tempo com questões ecológicas do que nas duas décadas anteriores, mas, por outro lado, ele mergulhou mais uma vez em temas históricos. Entre o outono de 1879 e o verão de 1880, ele preencheu um caderno intitulado Notes on Indian History (664-1858), e entre o outono de 1881 e o inverno de 1882, ele trabalhou intensamente nos chamados Extratos cronológicos, uma linha do tempo anotada ano a ano de 550 páginas escritas com uma caligrafia ainda menor do que o normal. Estes incluíram resumos de eventos mundiais, desde o primeiro século A.C até a Guerra dos Trinta Anos em 1648, resumindo suas causas e características mais marcantes.

É possível que Marx quisesse testar se suas concepções eram bem fundamentadas à luz dos principais desenvolvimentos políticos, militares, econômicos e tecnológicos do passado. Em todo caso, é preciso ter em mente que, quando Marx empreendeu este trabalho, tinha plena consciência de que seu estado de saúde frágil o impedia de fazer uma última tentativa de concluir o volume II do Capital. Sua esperança era fazer todas as correções necessárias para preparar uma terceira edição revisada em alemão do volume I, mas, no final, ele não teve nem forças para fazer isso.

Eu não diria que a pesquisa que ele conduziu em seus últimos anos de vida foi mais ampla do que o normal. Talvez a amplitude de suas investigações seja mais evidente neste período porque não foram conduzidas em paralelo com a escrita de quaisquer livros ou manuscritos significativos. Mas as milhares de páginas escritas por Marx em oito línguas, desde que ele era um estudante universitário, de obras de filosofia, arte, história, religião, política, direito, literatura, história, economia política, relações internacionais, tecnologia, matemática, fisiologia, geologia, mineralogia, agronomia, antropologia, química e física, atestam sua fome perpétua por conhecimento em uma variedade muito grande de disciplinas. O que pode ser surpreendente é que Marx não foi capaz de abandonar esse hábito, mesmo quando sua força física diminuiu consideravelmente. Sua curiosidade intelectual, junto com seu espírito autocrítico, conquistou uma gestão mais focada e “criteriosa” de seu trabalho.

Mas essas idéias sobre “o que Marx deveria ter feito” são geralmente fruto do desejo distorcido daqueles que gostariam que ele fosse um indivíduo que não fizesse nada além de escrever O Capital – nem mesmo para se defender das controvérsias políticas em que foi envolvido. Mesmo se ele uma vez se definiu como “uma máquina, condenada a devorar livros e depois jogá-los, de forma modificada, no depósito da história”, Marx era um ser humano. Seu interesse pela matemática e pelo cálculo diferencial, por exemplo, começou como um estímulo intelectual em sua busca por um método de análise social, mas se tornou um espaço lúdico, um refúgio em momentos de grande dificuldade pessoal, “uma ocupação para manter a quietude da mente”, como costumava dizer a Engels.

NA

Os estudos dos últimos escritos de Marx mostram um interesse na pesquisa de sociedades não europeias. Ao reconhecer, como ele faz, que existem caminhos para o desenvolvimento diferentes do “modelo ocidental”, é justo dizer, como alguns afirmam, que se tratava de Marx virando uma nova página, ou seja, um Marx “não eurocêntrico”? Ou é mais correto dizer que essa foi a admissão de Marx de que sua obra nunca foi destinada a ser aplicada sem primeiro atender à realidade concreta de diferentes sociedades históricas?

MM

A primeira e mais importante chave para compreender a ampla variedade de interesses geográficos na pesquisa de Marx, durante a última década de sua vida, está em seu plano para fornecer um relato mais amplo da dinâmica do modo de produção capitalista em escala global. A Inglaterra foi o principal campo de observação do Capital, volume I; após sua publicação, ele queria expandir as investigações socioeconômicas para os dois volumes do Capital que ainda estavam por escrever. Foi por essa razão que decidiu aprender russo em 1870 e, então, exigia constantemente livros e estatísticas sobre a Rússia e os Estados Unidos. Ele acreditava que a análise das transformações econômicas desses países teria sido muito útil para a compreensão das possíveis formas nas quais o capitalismo pode se desenvolver em diferentes períodos e contextos. Este elemento crucial é subestimado na literatura secundária sobre o tema, que está na moda hoje em dia, de “Marx e Eurocentrismo”.

Outra questão chave para a pesquisa de Marx em sociedades não europeias era se o capitalismo era um pré-requisito necessário para o nascimento da sociedade comunista e em que nível ela deveria se desenvolver internacionalmente. A concepção multilinear que Marx assumiu em seus últimos anos o levou a olhar mais atentamente para as especificidades históricas e os desníveis do desenvolvimento econômico e político em diferentes países e contextos sociais.

Marx tornou-se altamente cético quanto à transferência de categorias interpretativas entre contextos históricos e geográficos completamente diferentes e, como ele escreveu, também percebeu que “eventos de notável semelhança, ocorrendo em contextos históricos diferentes, levam a resultados totalmente díspares”. Essa abordagem certamente aumentou as dificuldades que ele enfrentou no curso já acidentado dos volumes inacabados do Capital e contribuiu para a lenta aceitação de que sua obra principal permaneceria incompleta. Mas certamente abriu novas esperanças revolucionárias.

Ao contrário do que alguns autores ingenuamente acreditam, Marx não descobriu repentinamente que tinha sido eurocêntrico e dedicou sua atenção a novos temas de estudo porque sentiu a necessidade de corrigir seus pontos de vista políticos. Ele sempre foi um “cidadão do mundo”, como costumava se chamar, e sempre tentou analisar as mudanças econômicas e sociais em suas implicações globais. Como já foi argumentado, como qualquer outro pensador do seu nível, Marx tinha consciência da superioridade da Europa moderna sobre os demais continentes do mundo, em termos de produção industrial e organização social, mas nunca considerou esse fato como necessário ou fator permanente. E, claro, ele sempre foi um inimigo feroz do colonialismo. Essas considerações são muito óbvias para quem leu Marx.

NA

Um dos capítulos centrais do seu livro trata da relação de Marx com a Rússia. Como você mostra, Marx travou um diálogo muito intenso com diferentes partes da esquerda russa, especificamente em torno da recepção do primeiro volume do Capital. Quais foram os principais pontos desses debates?

MM

Por muitos anos, Marx identificou a Rússia como um dos principais obstáculos à emancipação da classe trabalhadora. Ele enfatizou várias vezes que seu lento desenvolvimento econômico e seu regime político despótico ajudaram a fazer do império czarista o posto avançado da contra-revolução. Mas em seus últimos anos, ele começou a olhar de forma bem diferente para a Rússia.

Ele reconheceu algumas condições possíveis para uma grande transformação social após a abolição da servidão em 1861. A Rússia parecia mais propensa a produzir uma revolução do que a Grã-Bretanha, onde o capitalismo havia criado o número proporcionalmente maior de operários de fábrica no mundo, mas onde o movimento operário, desfrutando de melhores condições de vida em parte baseadas na exploração colonial, enfraqueceu e sofreu a influência negativa do reformismo sindical.

Os diálogos travados por Marx com os revolucionários russos foram com intelectuais e políticos. Na primeira metade da década de 1870, ele adquiriu familiaridade com a principal literatura crítica sobre a sociedade russa e dedicou atenção especial à obra do filósofo socialista Nikolai Chernyshevsky (1828-1889). Ele acreditava que um dado fenômeno social que havia alcançado um alto nível de desenvolvimento nas nações mais avançadas poderia se espalhar muito rapidamente entre os outros povos e subir de um nível inferior direto para outro superior, passando pelos momentos intermediários. Isso deu a Marx muito que pensar ao reconsiderar sua concepção materialista da história.

Por muito tempo, ele sabia que o esquema de progressão linear através dos modos de produção asiáticos, antigos, feudais e modernos da burguesia, que ele havia desenhado no prefácio de Uma contribuição para a crítica da economia política (1859), era completamente inadequado para uma compreensão do movimento da história, e que era realmente aconselhável evitar qualquer filosofia da história. Ele não conseguia mais conceber a sucessão de modos de produção no curso da história como uma sequência fixa de estágios predefinidos.

Marx também aproveitou a oportunidade para discutir com militantes de várias tendências revolucionárias na Rússia. Ele considerava o caráter realista da atividade política do populismo russo – que na época era um movimento da esquerda anticapitalista – porque não recorreu a floreios ultrarevolucionários sem sentido ou a generalizações contraproducentes. Marx avaliou a relevância das organizações socialistas existentes na Rússia por seu caráter pragmático, não por declaração de lealdade às suas próprias teorias. Na verdade, ele observou que muitas vezes aqueles que se diziam “marxistas” são os mais doutrinários. Sua exposição às teorias e à atividade política dos populistas russos – como os comunardos de Paris uma década antes – ajudou-o a ser mais flexível na análise da irrupção dos acontecimentos revolucionários e das forças subjetivas que os moldaram. Isso o aproximou de um verdadeiro internacionalismo em escala global.

O tema central dos diálogos e trocas que Marx teve com muitas figuras da esquerda russa foi a questão muito complexa do desenvolvimento do capitalismo, que teve implicações políticas e teóricas cruciais. A dificuldade dessa discussão também é evidenciada pela escolha final de Marx de não enviar uma carta perspicaz na qual ele havia criticado algumas interpretações errôneas do Capital para o jornal Otechestvennye Zapiski, ou para responder à “questão de vida e morte” de Vera Zasulich sobre o futuro do comuna rural (a obshchina) com apenas uma carta curta e cautelosa, e não com um texto mais longo que ele escreveu e reescreveu em três rascunhos preparatórios.

NA

A correspondência de Marx com a socialista russa Vera Zasulich é o assunto de muito interesse hoje. Lá, Marx sugeriu que a comuna rural russa poderia se apropriar dos últimos avanços da sociedade capitalista – tecnologia, em particular – sem ter que passar pelas convulsões sociais que foram tão destrutivas para o campesinato da Europa Ocidental. Você pode explicar com um pouco mais de detalhes o pensamento que inspirou essas conclusões de Marx?

MM

Por coincidência fortuita, a carta de Zasulich chegou a Marx, assim como seu interesse por formas arcaicas de comunidade, já aprofundado em 1879 pelo estudo da obra do sociólogo Maksim Kovalevsky, o levava a prestar mais atenção às descobertas mais recentes feitas por antropólogos de seu tempo. Teoria e prática o levaram ao mesmo lugar. Com base nas ideias sugeridas pelo antropólogo Morgan, ele escreveu que o capitalismo poderia ser substituído por uma forma superior de produção coletiva arcaica.

Esta declaração ambígua requer pelo menos dois esclarecimentos. Em primeiro lugar, graças ao que aprendera com Chernyshevsky, Marx argumentou que a Rússia não poderia repetir servilmente todos os estágios históricos da Inglaterra e de outros países da Europa Ocidental. Em princípio, a transformação socialista da obshchina poderia acontecer sem uma passagem necessária pelo capitalismo. Mas isso não significa que Marx mudou seu julgamento crítico da comuna rural na Rússia, ou que ele acreditava que os países onde o capitalismo ainda estava subdesenvolvido estavam mais próximos da revolução do que outros com um desenvolvimento produtivo mais avançado. Ele não se convenceu subitamente de que as comunas rurais arcaicas eram um alavanca à emancipação mais avançado para o indivíduo do que as relações sociais existentes no capitalismo.

Em segundo lugar, sua análise da possível transformação progressiva da obshchina não pretendia ser elevada a um modelo mais geral. Foi uma análise específica de uma determinada produção coletiva em um momento histórico preciso. Em outras palavras, Marx revelou a flexibilidade teórica e a falta de método que muitos marxistas depois dele não conseguiram demonstrar. No final da vida, Marx revelou uma abertura teórica cada vez maior, o que lhe permitiu considerar outros caminhos possíveis para o socialismo que ele nunca havia levado a sério ou antes considerado como inatingíveis.

A dúvida de Marx foi substituída pela convicção de que o capitalismo era um estágio inevitável para o desenvolvimento econômico em todos os países e condições históricas. O novo interesse que ressurge hoje pelas considerações que Marx nunca enviou a Zasulich, e por outras ideias semelhantes expressas mais claramente em seus últimos anos de vida, está em uma concepção de sociedade pós-capitalista que está distantes da equação do socialismo com as forças produtivas – uma concepção envolvendo nuances nacionalistas e simpatia pelo colonialismo, que se afirmou dentro da Segunda Internacional e dos partidos social-democratas. As ideias de Marx também diferem profundamente do suposto “método científico” de análise social preponderante na União Soviética e seus satélites.

NA

Mesmo que a luta pela saúde de Marx sejam bem conhecidas, ainda é doloroso ler o capítulo final de seu livro, onde você faz uma crônica de sua condição deteriorada. As biografias intelectuais de Marx apontam corretamente que uma apreciação completa de Marx precisa conectar sua vida e atividades políticas com seu pensamento; como Marx estava inativo devido a enfermidades? Como alguém que está escrevendo uma biografia intelectual, como você aborda esse período?

MM

Um dos melhores estudiosos de Marx de todos os tempos, Maximilien Rubel (1905-1996), autor do livro Karl Marx: essai de biographie intellectuelle (1957), argumentou que, para escrever sobre Marx, é preciso ser um pouco filósofo, um pouco historiador, um pouco economista e um pouco sociólogo ao mesmo tempo. Eu acrescentaria que, ao escrever a biografia de Marx, também se aprende muito sobre a medicina. Marx lidou durante toda a sua vida madura com uma série de questões de saúde. O mais longo deles foi uma infecção desagradável da pele que o acompanhou durante toda a redação do Capital e se manifestou em furúnculos graves e debilitantes em várias partes do corpo. Foi por essa razão que, quando Marx terminou sua magnum opus, ele escreveu: “Espero que a burguesia se lembre dos meus carbúnculos até o dia da morte!”

Os últimos dois anos de sua vida foram particularmente difíceis. Marx sofreu uma dor terrível pela perda de sua esposa e filha mais velha, e ele teve uma bronquite crônica que frequentemente evoluía para uma pleurisia severa. Lutou, em vão, para encontrar o clima que lhe proporcionasse as melhores condições para melhorar, e viajou, sozinho, pela Inglaterra, França e até Argélia, onde embarcou num longo período de complicado tratamento. O aspecto mais interessante dessa parte da biografia de Marx é a sagacidade, sempre acompanhada de auto-ironia, que ele demonstrou para lidar com a fragilidade de seu corpo. As cartas que escreveu às filhas e a Engels, quando sentiu que estava perto do fim, deixam mais evidente o seu lado mais íntimo. Elas revelam a importância do que ele chamou de “mundo microscópico”, começando com a paixão vital que sentia pelos netos. Elas incluem as considerações de um homem que passou por uma existência longa e intensa e passou a avaliar todos os aspectos da vida.

Os biógrafos devem relatar os sofrimentos da esfera privada, especialmente quando eles são relevantes para melhor compreender as dificuldades subjacentes à escrita de um livro, ou as razões pelas quais um manuscrito permaneceu inacabado. Mas também devem saber onde parar e evitar lançar um olhar indiscreto aos assuntos exclusivamente privados.

NA

Muito do pensamento tardio de Marx está contido em cartas e cadernos. Devemos conceder a esses escritos o mesmo status de seus escritos mais consagrados? Quando você argumenta que a escrita de Marx é “essencialmente incompleta”, você tem algo assim em mente?

MM

Capital permaneceu inacabado por causa da pobreza opressora em que Marx viveu por duas décadas e por causa de seus constantes problemas de saúde ligados às preocupações diárias. Desnecessário dizer que a tarefa que ele se propôs – compreender o modo de produção capitalista em sua média ideal e descrever suas tendências gerais de desenvolvimento – era extraordinariamente difícil de realizar. Mas o Capital não foi o único projeto que permaneceu incompleto. A autocrítica impiedosa de Marx aumentou as dificuldades de mais de um de seus empreendimentos, e a grande quantidade de tempo que ele gastou em muitos projetos que queria publicar se deveu ao extremo rigor a que submeteu todo o seu pensamento.

Quando Marx era jovem, ele era conhecido entre seus amigos da universidade por sua meticulosidade. Há histórias que o retratam como alguém que se recusou a escrever uma frase se não pudesse provar de dez maneiras diferentes. É por isso que o jovem estudioso mais prolífico da esquerda hegeliana ainda publicou menos do que muitos dos outros. A crença de Marx de que suas informações eram insuficientes e seus julgamentos imaturos o impediram de publicar escritos que permaneceram na forma de fragmentos. Mas é também por isso que suas notas são extremamente úteis e devem ser consideradas parte integrante de sua obra. Muitos de seus trabalhos incessantes tiveram consequências teóricas extraordinárias para o futuro.

Isso não significa que seus textos incompletos possam receber o mesmo peso daqueles que foram publicados. Eu distinguiria cinco tipos de escritos: trabalhos publicados, seus manuscritos preparatórios, artigos jornalísticos, cartas e cadernos de trechos. Mas também devem ser feitas distinções dentro dessas categorias. Alguns dos textos publicados de Marx não devem ser considerados sua palavra final sobre algumas questões. Por exemplo, o Manifesto do Partido Comunista foi considerado por Engels e Marx como um documento histórico da juventude e não como o texto definitivo em que suas principais concepções políticas se manifestavam. Ou deve-se ter em mente que escritos de propaganda política e escritos científicos muitas vezes não são combináveis.

Infelizmente, esses tipos de erros são muito frequentes na literatura secundária sobre Marx. Isso sem falar na ausência da dimensão cronológica em muitas reconstruções de seu pensamento. Os textos da década de 1840 não podem ser citados indiscriminadamente ao lado dos das décadas de 1860 e 1870, pois não carregam o mesmo peso de conhecimento científico e experiência política. Alguns manuscritos foram escritos por Marx apenas para ele mesmo, enquanto outros eram materiais preparatórios para livros a serem publicados. Alguns foram revisados ​​e muitas vezes atualizados por Marx, enquanto outros foram abandonados por ele sem a possibilidade de atualizá-los (nesta categoria, há o volume III do Capital). Alguns artigos jornalísticos contêm considerações que podem ser consideradas uma conclusão das obras de Marx. Outros, porém, foram escritos rapidamente a fim de levantar dinheiro para pagar o aluguel. Algumas cartas incluem opiniões autênticas de Marx sobre as questões discutidas. Outros contêm apenas uma versão suavizada, porque se dirigiam a pessoas fora do círculo de Marx, com quem às vezes era necessário se expressar diplomaticamente.

Por todas essas razões, é claro que um bom conhecimento da vida de Marx é indispensável para uma compreensão correta de suas idéias. Finalmente, existem os mais de 200 cadernos contendo resumos (e às vezes comentários) de todos os livros mais importantes lidos por Marx durante o período de 1838 a 1882. Eles são essenciais para uma compreensão da gênese de sua teoria e de elementos que ele não foi capaz de desenvolver como gostaria.

As ideias concebidas por Marx durante os últimos anos de sua vida foram coletadas principalmente nesses cadernos. Certamente são muito difíceis de ler, mas nos dão acesso a um tesouro muito precioso: não apenas a pesquisa que Marx fez antes de sua morte, mas também as perguntas que ele se fez durante a vida. Algumas de suas dúvidas podem ser mais úteis para nós hoje do que algumas de suas certezas.

 

FONTE:  https://jacobin.com.br/2021/05/a-atualidade-do-velho-marx/