sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Considerações sobre o Poder Popular



A seguir, apresentamos uma síntese do pensador marxista uruguaio Raúl Zibechi sobre o tema do Poder Popular. Tradução e adaptação de Ivan Barbosa Hermine, integrante do Comitê Central do PCB.



Sobre o Poder Popular, os debates, as discussões, os escritos em torno deste tema têm uma longa história, quer no movimento socialista ou nos movimentos revolucionários do mundo. Diria mesmo que antecede os escritos de Marx, porque na própria revolução francesa houve forma de organização popular. Embora eu não vá considerá-la, seria interessante que levem em consideração como antecedentes aos debates sobre como exercer o poder de uma forma que não seja uma réplica, um decalque, uma cópia, como disse Mariátegui, do poder burguês, com base no que seja o Estado.

O próprio Marx pouco considerou este tema na maior parte de seus escritos. É sabido que Marx abordou, de forma muito intensa, a análise econômica, mas não abordou o tema do Estado, do poder, com a mesma intensidade. No Manifesto Comunista, tendeu a deixar o terreno numa situação dúbia, com pouca definição. Marx falava da classe erigida em classe como tal ou classe para si, ou falava da democracia, mas nunca sobre o poder exercido pela classe trabalhadora, a classe operária.

Foi a partir da “Comuna de Paris”, do que foi a experiência da “Comuna de Paris”, a partir do momento no qual os trabalhadores se erigem no poder, na Comuna, é quando Marx começa a refletir e basicamente o texto dele que reflete sobre isto é a guerra civil na França, uma declaração da Associação Internacional dos Trabalhadores, da AIT. É a partir deste momento que ele elabora a ideia da ditadura do proletariado, basicamente o poder dos trabalhadores, que se fundamenta no que seria a destruição do Estado burguês. Marx diz neste texto: os trabalhadores não podem assumir a máquina do Estado e colocá-la em funcionamento como antes, mas sim destruir a maquinaria do Estado burguês e começar a gerir um poder que, em seu nascimento, vá em direção à extinção do Estado. Essa ideia da extinção do Estado é muito importante, muito recorrente em Marx. É aí que trabalha a ideia da ditadura do proletariado e, sobretudo, de um tipo de poder no qual os cargos eleitos, as pessoas nomeadas para exercer o poder são permanentemente removíveis, não ficam de uma maneira fixa neste lugar. 

Para Marx, a ideia de burocracia civil ou militar é uma ideia a erradicar no futuro poder dos trabalhadores e, nesse sentido, a “Comuna de Paris” lhe dá uma série de ideias e experiências muito ricas para sua reflexão. Em que sentido? No sentido de que lhe permite pensar o poder como algo não separado das pessoas, como algo controlado pelas pessoas, como algo que pode e seria bom que fosse rotativo, que não houvesse um grupo de pessoas especializadas em exercer o poder, separadas das pessoas, e além disso, que tivessem as remunerações similares às de um operário qualificado, que não tivessem um salário privilegiado. A partir daí, da ideia da ditadura do proletariado, a ideia deste tipo de poder já é desenvolvida a quase meio século depois pelos revolucionários russos, basicamente por Lênin e pelos bolcheviques. È interessante constatar como, até 1905, os bolcheviques não tinham uma proposta acabada de como seria o Poder Popular, o poder operário na revolução russa.

São as massas populares que, em 1905, criam os Soviets, voltando a criá-los depois da revolução de fevereiro. Derrubam a monarquia em 1917, instalam novamente os soviets e Lênin, dessa maneira, diz que as massas operárias, camponeses, soldados, ou seja, operários e camponeses em armas criam uma forma que são os soviets, ou seja, são parlamentos de delegados operários, camponeses e soldados. Lênin toma essa forma, essa fórmula, erigindo o mecanismo de poder. Em determinado momento, em junho e julho de 1917, diz: ”todo poder aos soviets”.

Que analogia poderíamos estabelecer entre este momento de 1917 e a “Comuna de Paris”, 40 anos antes?

Não é que os revolucionários já tinham em seus estudos, em seus escritos, uma teoria acabada de como seria o Poder Popular. Não é que os revolucionários elaboraram intelectualmente, teoricamente, uma ideia do Poder Popular. É a experiência viva dos setores populares da classe operária que leva os dirigentes revolucionários, no primeiro caso Marx na AIT, e depois Lênin e os bolcheviques, a teorizar a importância de um poder.

No primeiro caso, a ditadura do proletariado, o poder dos operários na “Comuna de Paris”, dos operários e do povo parisiense, e no segundo caso os Soviets.

Hoje, quando precisamos aprofundar as reflexões, são dois momentos muito interessantes, não para copiar, não para imitar, mas sim para se ter um impulso político e teórico na mesma direção.

A experiência das massas, a luta de classes é fundamental. É o elemento central de nossas reflexões como socialistas, como revolucionários. A experiência somente não é tudo, evidentemente, mas sim é necessária tê-la como elemento fundamental.

Numa segunda instância, Marx e Lênin tratam de sistematizar esta experiência, a era comuna e a era dos soviets. Extrair dali os elementos que consideram os mais importantes e, a partir dessa elaboração teórica, devolver aos organismos de poder o que eles consideram que são as bases sobre as quais podem melhorar uma criação, naturalmente uma criação espontânea dos setores populares que tem aspectos notáveis e problemas. A reflexão teórica seria regatar a criação e lhe devolver aqueles elementos que permitam que essa criação seja melhorada e não caia numa questão de inércia, de burocracia ou de deformações.

Este jogo, que não é um jogo, é uma séria política revolucionária: estar com as massas, resgatar sua experiência ou o mais avançado de sua experiência, decantar aqueles elementos mais anticapitalistas ou mais revolucionários, devolver esses elementos de forma que possam aprofundar sua experiência. Precisamos refletir, reviver e, sobretudo, se me permitem exagerar um pouco, reproduzir, imitar.

Na América Latina, dando um salto das experiências europeias para a América latina, temos tido, desde a revolução cubana até hoje, uma enorme quantidade de experiências de luta de classes, de luta de massas, de lutas operárias, camponesas, estudantis e de novos sujeitos que emergem nas últimas décadas, indígenas, mulheres e outras experiências muito ricas. Em alguns casos, essas experiências deram lugar a criações que não foram necessariamente de Poder Popular, mas que estiveram muito próximo de criar órgãos de Poder Popular. Não vou deter muito na Revolução cubana, como todos sabem criou os CDR [Comités de Defensa de la Revolución], mas sim em outras experiências mais recentes, como a equatoriana, que no ano 2000 criaram os Parlamentos populares, provinciais. Duraram poucos meses, mas foram órgãos importantes de Poder Popular ou no caso da Bolívia, quando as revoltas, principalmente a de 2003, criaram, na zona do altiplano, os quartéis indígenas que, de alguma maneira, foram órgãos de Poder Popular.

Uma problemática que temos hoje e que nos faz falta, é aprofundar o que entendemos por Poder Popular. Vou colocar algumas questões e posteriormente as irei responder.

Um movimento social é um Poder Popular?

Minha primeira resposta é não. É um elemento fundamental de organização popular, mas não necessariamente é um órgão ou forma do Poder Popular.

As grandes mobilizações sociais, que temos tido nas últimas décadas na América Latina, são formas de poder Popular?

Eu diria que são instâncias capazes de destituir governos, de neutralizar o modelo neoliberal, mas não necessariamente criaram órgão do Poder Popular.

Na América Latina, foram criados órgãos do Poder Popular na Bolívia, durante o governo de Juán José Torres (Asamblea Popular, 1970). Anteriormente, surgiram as milícias operárias e camponesas na Revolução de 1952. Na Argentina, por algum tempo, a classe operária organizou as “Cordinadoras Fabriles” em Buenos Aires, no ano 1975. Era um poder transitório, um poder da classe operária argentina para fazer frente à burocracia sindical que reprimia os próprios trabalhadores, na gestão José López Rega, criador da “Triple A” (Alianza Anticomunista Argentina). Os sindicatos peronistas argentinos abalaram a repressão da Triple A. No Chile, tivemos a experiência dos “Cordones Industriales” em Santiago, no governo Salvador Allende.

Os Partidos de esquerda não se preocuparam com essas experiências, exceto o MIR (Movimiento de Izquierda Revolucionaria) do Chile.

Como trabalhar para impulsionar a criação desses órgãos?

1 - O MST no Brasil: cada assentamento é uma forma de pequeno poder, um órgão de Poder Popular. Nesses assentamentos, funcionam poderes distintos dos estatais, com educação e pedagogia diferenciadas das estatais. Seria um dos vários mecanismos de reconstrução da sociedade brasileira, tanto no plano produtivo, organizativo e de poder, caso formassem um processo de luta de classes e de transição a uma nova sociedade. Há várias experiências deste tipo na América Latina (Bolívia, Equador, México, Venezuela).
São movimentos que conquistaram territórios ou espaços urbanos e a população organizada toma as decisões sobre o que deve ser feito.
2 - Na Venezuela, o governo apoia tais experiências, as “Comunas”, as iniciativas do movimento popular, rural ou urbano. Seria uma base possível para um poder. O governo promove a criação de comunas. Essas experiências nem sempre são iguais.
3 - No México, há duas experiências distintas de Poder Popular. A primeira foi a “Comuna de Oaxaca” em 2006. Parte da população controlou a cidade durante seis meses, utilizando mais de mil barricadas. Chegou a ter cadeia de rádio e televisão sob seu controle. Havia uma Assembleia Popular que foi o órgão de poder nesses seis meses.

Diga-se de passagem, que Poder Popular na cidade é diferente do Poder no campo. Nas áreas rurais, a presença do Estado é mais diluída. É possível tomar um território, defendê-lo e organizá-lo de maneira particular. Na cidade, está o núcleo do poder da burguesia, do Estado burguês. Há grandes dificuldades de se estabelecer formas de Poder Popular. Em Caracas, na Venezuela, há uma exceção: há várias ocupações do “Movimiento Pobladores” com cerca de trezentos edifícios tomados e geridos pelo movimento.

A outra experiência, no México, é o “zapatismo”. Trata-se de uma experiência rural de caráter indígena em regiões remotas. Os indígenas da América Latina estão organizados em comunidades, formas de poder num pequeno território. Um grupo de famílias tomam decisões políticas, econômicas, culturais e sociais. As comunidades são micropoderes.

Os zapatistas possuem três níveis de poder autônomo:
1 - Comunidades (cerca de 1.200);
2 - Municípios autônomos ou comunidades agrupadas (38 municípios);
3 - Regiões autônomas, também denominadas “Caracoles” ou “Junta Del Buen Gobierno” (5 regiões).

A forma de governo é bem parecida com a “Comuna de Paris”. As bases nomeiam representantes que podem ser destituídos a qualquer momento. São mandatários para cumprir uma tarefa concreta, devendo prestar contas à população, às bases ou comunidades. A participação nesses órgãos não é remunerada. É a comunidade que sustenta a família ou pessoa que assumiu o cargo. A participação é igualitária entre homens e mulheres. É um poder subordinado ao coletivo, revogável, sujeito a substituição. Um poder para lutar e transformar a sociedade.

A partir dessas reflexões, podemos levantar algumas questões:

1 - O Poder Popular não é o Estado. É algo distinto e em conflito com ele. É uma auto-organização de sujeitos revolucionários. É um sujeito múltiplo que se dota de formas de poder.

2 - Qual a relação do Poder Popular com o Estado?
Pode haver relações de cooperação e de conflito, de diálogo ou confronto. É difícil que só haja um tipo de relação. O conflito estaria sempre presente, pois são poderes diversos. Se o governo for direitista, sempre haverá tensões, fortes conflitos. Se o governo for de esquerda, progressista, poderia acontecer duas situações: o governo teria uma lógica em relação ao Estado e outra lógica em relação ao Poder Popular. Em que grau este governo progressista estaria apoiando o Poder Popular? Um apoio total ou parcial?
Mesmo sendo um governo progressista, o conflito sempre se manifestaria.

3 - Nos espaços dominados pelo Poder Popular, não poderá ser reproduzida a lógica da burguesia, a lógica do capitalismo. As práticas capitalistas devem ser contidas e potenciadas as práticas comunitárias, socialistas, coletivas, comunistas, enfim, práticas não capitalistas. O Poder Popular não pode ser fotocópia do Estado. Tem de ser um poder diferenciado. É uma ferramenta nas mãos da população.

4 - Sobre a crise do socialismo real, a crise da União Soviética, a crise do campo socialista, gerou uma falta de debates sobre estes temas. Até o final dos anos 80 e início dos 90, os debates sobre o Poder Popular estavam sobre a mesa. Uns optavam pelas comunidades, outros pelos soviets, com uma gama importante de propostas e debates.

5 - Hoje, o debate sobre o Poder Popular está praticamente abandonado. Tomar o poder do Estado e reproduzir o seu funcionamento não é suficiente para avançar por um caminho alternativo. Além disso, o Estado é uma maquinaria muito perversa, reproduzindo estadistas, funcionários e burocratas. É uma máquina afastada da população, por isso, é necessário retomar as discussões, intensamente, sobre o tema Poder Popular.

6 - Isto não quer dizer que, em certos momentos, não seja positivo que forças progressistas assumam o governo do Estado a fim de que a classe inimiga não o use contra as forças populares. Este é outro debate.

7 - Meu desejo é centrar sobre a importância do Poder Popular, recuperar as experiências históricas, rediscutir os soviets, rediscutir a “Comuna de Paris”, rediscutir as comunas e as experiências latino-americanas, algumas das quais anteriormente mencionadas. Abrir um espaço para discutir o Poder Popular é uma forma de aprofundar o trabalho por uma sociedade diferente da atual, pela revolução e por uma mudança de longa duração.


FONTE: Portal do PCB

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

1917: a revolução que não terminou…



No Brasil para o lançamento da edição em português de seu livro “Mulher, Estado e Revolução”, a historiadora Wendy Goldman fala sobre como muitos dos ideais dos bolcheviques permanecem atuais


Por Marcelo Hailer e Vinicius Gomes, fotos por Marcelo Hailer


Livro aborda o papel da mulher
durante 1ª fase da Revolução
Russa (Imagem: Reprodução
)
União livre, criação socializada das crianças, eliminação da monogamia compulsória, aborto livre, a não obrigação dos registros civis e, por fim, a destruição do Estado, aparelho que apenas serve para oprimir e controlar os sujeitos. Não estamos falando de grupos anarquistas ou de algum movimento de contracultura dos anos 1960, mas sim da primeira fase da Revolução Vermelha, em 1917, na Rússia, que tinha por objetivo a construção de uma nova moral e, consequentemente, um novo sujeito e uma nova sociedade a partir da revolução continuada.

É a primeira fase da revolução comunista (1917-1933) que se faz presente na obra recém-lançada no Brasil, fruto de uma parceria entre a Edições Iskra e a Editora Boitempo, “Mulher, Estado e Revolução”, de autoria da pesquisadora norte-americana Wendy Goldman, que durante os anos 1980 e 1990 se debruçou sobre a primeira fase da Revolução Vermelha. O livro causou furor quando publicado, em 1994, e foi premiado com o Berkshire Conference of Woman Historians.

Wendy Goldman esteve no Brasil para um ciclo de palestras que marcou o lançamento da sua pesquisa por aqui. Entre um evento e outro, conversou com a reportagem da Fórum, à qual disse estar muito contente com a publicação de seu livro e se revelou surpresa em saber que, depois de 20 anos da primeira edição, seu trabalho ainda desperta interesse nos jovens, ainda mais, nos falantes de português. A autora disse que desde o início este era o seu objetivo: incentivar os jovens e não deixar que as ideias revolucionárias caíssem  no esquecimento.

E revolução foi o que não faltou em mais de uma hora de conversa com Wendy Goldman, que tratou do período revolucionário como o grande influenciador de boa parte dos ideais dos anos 1960, principalmente no que diz respeito ao amor livre, um ideal comunista. Falou-se também da contrarrevolução de Stálin, que, ao ascender ao poder, perseguiu e executou todos os adeptos do movimento e impôs forte retrocesso aos avanços revolucionários: criminalizou o aborto, perseguiu homossexuais, recuou na ideia do núcleo familiar como base da sociedade. Em outras palavras, enterrou a revolução.

E antes que todos se despedissem, Wendy Goldman inverteu os papeis e entrevistou os repórteres: queria informações sobre as manifestações e o sistema político brasileiro. Ficou encantada ao saber que temos uma deputada federal do Partido Comunista do Brasil (Manuela D’Ávila), eleita com grande número de votos. Ainda mais admirada se mostrou em saber que a vice-prefeita da cidade de São Paulo é também uma mulher filiada ao PCdoB e, por fim, declarou: “Vocês têm um sistema político incrível, em meu país não temos nada disso”.

"Eu estava muito interessada
a respeito dos ideais da Revolução
Russa de 1917 e por que sob Stálin
aconteceu um retrocesso delas."


FórumDe onde veio o desejo de pesquisar sobre o papel da mulher durante a Revolução Russa?

Wendy Goldman - Eu estava muito interessada a respeito dos ideais da Revolução Russa de 1917 e por que sob Stálin aconteceu um retrocesso delas. Esse retrocesso, na realidade, aconteceu em diversas áreas – não apenas sobre os direitos das mulheres e as ideais a respeito da família, mas também ideias sobre o Estado, sobre a lei, sobre a cultura, sobre muitas áreas. Então essa foi a primeira razão que me levou a olhar mais a fundo sobre o assunto: eu estava interessada no grande retrocesso do stalinismo.

A segunda razão foi porque eu estava bastante interessada no feminismo, na libertação das mulheres e num conjunto de outros assuntos relacionados à emancipação feminina e, quando comecei a pesquisar sobre essas questões, percebi que muitos dos debates que os revolucionários russos tinham na década de 1920 eram bastante similares às ideias que os jovens nos Estados Unidos estavam discutindo na década de 1970. Agora aqui estamos nós, em 2014, e ainda temos interesse em todas essas questões.

FórumQuando você começou a pesquisar sobre esses assuntos?

Goldman - Eu comecei a trabalhar na minha dissertação em 1983. Isso foi há muitos anos, eu provavelmente tinha mais ou menos a idade de vocês (risos), e então fui para a União Soviética em 1984-85. Esses foram os últimos anos do socialismo, pois [Mikhail] Gorbachev chegou ao poder – em meados de 1985 –, eu estava lá nessa época e foi depois disso que o socialismo começou a se transformar de maneira muito rápida, até que começou a entrar em colapso. E isso aconteceu em um período de tempo muito rápido. Então foi interessante estar lá no último ano do socialismo soviético.

Fórum – Algumas das propostas dos bolcheviques continuam atuais depois de tanto tempo – como o aborto e o amor livre, por exemplo. Em sua opinião, por que esses assuntos continuam causando tanta controvérsia?

Goldman - Bem, eu acredito que a liberdade das mulheres é uma questão que acontece no mundo inteiro. Existem correntes que não querem que as mulheres tenham acesso à educação ou igualdade e isso existe ainda hoje, em todos os lugares. Então a ideia de libertação, igualdade e a possibilidade de as mulheres se tornarem independentes é algo muito ameaçador para muitas religiões, autoridades e configurações econômicas. Acho que essa é uma das coisas muito importantes atualmente.

Em segundo lugar, a ideia do aborto, que foi legalizado pelos soviéticos em 1920. A União Soviética se tornou o primeiro país no mundo a oferecer às mulheres o aborto legal. Essa ideia é ainda muito polêmica e ainda é muito debatida hoje, em todo o mundo. Existem muitos países – e eu acho que o Brasil é um deles – que não possuem aborto legalizado; os EUA oferecem acesso ao aborto legal desde 1972, se não me engano, mas existem muitos grupos – principalmente religiosos – que acreditam que isso é errado. Isso é ainda muito controverso, até mesmo nos EUA, onde o aborto já é legal.

Fórum – E por que você acha que isso ainda acontece?

Goldman - Eu acredito que sempre existiu uma tentativa de controlar a fertilidade das mulheres, e os homens, em certas instituições – tanto Estado, quanto em igrejas –, têm um forte interesse nesse controle, em não permitir que as mulheres tomem decisões por conta própria. Então acho que essa é uma das razões de isso continuar sendo um assunto controverso.

Fórum – A Alexandra Kollontai propôs o “amor-camarada”, o tipo de amor que vai além das fronteiras das obrigações maritais e, como você disse, décadas atrás essa ideia de amor livre foi muito forte. Acha que as ideias dela sobre amor continuam atuais?

Goldman - Talvez ainda mais atuais do que foram nos EUA durante a década de 1970, mas isso depende do país. No entanto, toda vez que temos um movimento forte de libertação, de qualquer tipo, a ideia do amor livre ressurge novamente. E essa ideia data desde a Idade Média e desde os primeiros grupos cristãos, que tinham a ideia de que  amor deveria ser algo livre – livre de restrições econômicas. Então é realmente uma ideia bem antiga que sempre volta quando acontece algum movimento para “refazer” a sociedade.

Fórum – É possível dizer que, nos dias de hoje, o mais próximo que temos das propostas revolucionárias, com a devida proporção, são as ideias do movimento queer, que propõe uma nova organização social e também um novo sujeito? 

Goldman - Sim. Eu acho que existem similaridades. Os bolcheviques não acreditavam na ideia de legalização da homossexualidade. De fato, seus pensamentos a respeito de homossexuais estavam muitos e muitos anos atrasados de onde estamos hoje. Então, os primeiros movimentos para a “libertação” gay surgiram apenas na década de 1970, acho eu. Essas ideias são muito recentes e na Rússia de hoje, assim como em muitos outros países, existe um enorme preconceito e repressão contra a homossexualidade.

Fórum – Mas no início da revolução, com Lênin, Trotsky, Kollontai, não perseguia os homossexuais, apenas com Stálin aconteceu essa reversão.

Goldman - Sabe… No mundo das artes, sempre existiram muitas pessoas que eram homossexuais e eles [os revolucionários] optaram por ignorar isso. Não houve um movimento para trazer a homossexualidade ao entendimento das pessoas. Eu acredito que esse movimento, na História humana, é relativamente recente.

Fórum – Era apenas tolerado então…

Goldman - Era tolerado, mas não era debatido. Não era discutido de uma maneira aberta e pública.

"Houve um enorme retrocesso que
começou no inicio da década de 1930.
Parte desse retrocesso foi um
resultado das condições de vida
do país."
Fórum – O que fica claro ao lermos sobre as propostas da primeira parte da revolução é que, mais do que um projeto de poder, o que se propunha era uma nova sociedade baseada em uma nova moral, em um novo sujeito. Porém, com a ascensão de Stálin, este projeto foi enterrado. Poderia falar um pouco a respeito disso?

Goldman - Houve um enorme retrocesso que começou no início da década de 1930. Parte desse retrocesso foi um resultado das condições de vida no país. A legislação era muito revolucionária, mas frequentemente essa legislação tornava as coisas mais difíceis para as mulheres, ao invés de menos difíceis. E a razão para isso é que para se ter a união livre – em que as pessoas podiam se juntar ou se separar na base do amor, respeito e no que elas sentiam uma pela outra – cada uma das partes deveria ser economicamente independente. Se uma pessoa dependesse do salário da outra, era impossível se separar. Uma das coisas que aconteceram na década de 1920 foi uma alta taxa de desemprego e a maior parte disso recaiu sobre as mulheres. Então, com o “divórcio livre”, os homens se divorciavam, “casavam” com outra pessoa, se divorciavam novamente e assim seguia. Todavia, muitas vezes esses homens tinham  filhos com diversas mulheres e elas é quem acabavam tendo de cuidar deles – além de terem geralmente de cuidar de seus pais idosos, pois a mulher era o centro da família. Então, elas não tinham maneiras de cuidar de tudo sozinhas. Elas não conseguiam um trabalho por conta do alto desemprego e frequentemente acontecia de elas recorrem à prostituição.

Isso definitivamente não era aquilo que todos queriam. Então quando Stálin e seus comissários de justiça passaram a procurar soluções para certos problemas, as próprias mulheres diziam: “vocês têm que fazer alguma coisa sobre essa situação”, e eu acredito que um dos primeiros passos a caminho da repressão foi direcionado aos homens que não pagavam pensão alimentícia. Eles colocaram o NKVD [a polícia secreta] atrás desses homens e forçavam-nos a pagarem a pensão. Essa foi uma repressão legislada. Outra foi tornar o aborto ilegal, em 1936. O Estado ficou muito preocupado com a queda na taxa de natalidade e, como eu já disse, muitas instituições têm interesse em controlar a fertilidade da mulher. Eles acreditaram que, tornando o aborto ilegal, as mulheres seriam forçadas a terem os filhos e a natalidade voltaria a subir – mas eles estavam errados. As mulheres continuaram abortando ilegalmente e isso, obviamente, é algo muito perigoso, pois elas geralmente o faziam em condições não-higiênicas e sofriam enormemente por conta disso. Então essa foi outra parte do retrocesso repressor.

Por fim, os bolcheviques acreditavam que, após a Revolução, a família iria “sumir” – algo como uma desaparição gradual. Assim como a lei iria sumir, o Estado iria sumir e, tudo isso, não imediatamente, mas com o tempo. As pessoas continuariam a se unir, talvez até por toda a vida, mas eles não precisariam se casar legalmente, então qual seria o ponto do casamento? Ele também sumiria. As pessoas iriam ficar juntas ou não. Elas poderiam por toda uma vida ficar juntas ou não, e o Estado não iria se preocupar com isso. As leis civis também sumiriam e, como a lei civil é que regulava a propriedade, não existiriam mais propriedades. As leis criminais também sumiriam, pois as pessoas não teriam necessidade de roubar, ou matar, ou fazer qualquer mal a outra pessoa.

Sob o jugo de Stálin, a ideia de que a família, o Estado e as leis iriam desaparecer foi revertida. Eles perceberam que precisavam de uma família forte, um Estado forte e uma forte repressão como maneira de resolver problemas sociais. As ideias foram revertidas para a solução através da repressão e não através de mudança social.

Alexandra Kollontai, membro da facção
bolchevique e militante ativa durante a
Revolução Russa. (Foto: Wikimedia
Commons)
Fórum – Então é possível dizer que, em certas partes, a Revolução foi uma “vítima dela própria”? Você mencionou isso agora e está também escrito em seu livro, em uma passagem bem engraçada sobre um homem que tinha que pagar três pensões alimentícias para três mulheres diferentes…

Goldman - (Risos).

Fórum – E então as autoridades perguntaram como ele sobrevivia, ao que ele respondeu que sua atual esposa recebia cinco pensões alimentícias de cinco homens diferentes…

Goldman - Sim (risos).

Fórum – Então é realmente possível dizer que a Revolução se tornou “vítima dela própria”, certo? Pois até mesmo as mulheres tiveram que olhar para o Estado e dizer: “Ei, isso aqui não está funcionando!”, e exigiram mudanças.

Goldman - Sim. Houve um elemento de apoio social para a repressão. E eu acho que isso é verdade em todos os lugares, e uma das lições que podemos aprender é que a repressão geralmente conta como o apoio das massas, e nós precisamos descobrir como criar mudança social sem que seja acompanhada de um retrocesso. Uma maneira em que a mudança realmente funcione, em vez de apenas criar outra situação pior.

Fórum – Voltando um pouco para Alexandra Kollontai, quando ela apoiou as decisões de Stálin, você acredita que isso foi causado pelo medo dela de ter o mesmo destino de seus outros camaradas – ou seja, sendo perseguida ou morta?

Goldman - Kollontai foi enviada como embaixadora da Noruega – eu acho que era Noruega – durante a era de repressão do Stálin, então ela estava fora do país. Eu acho que, se ela estivesse na União Soviética, provavelmente teria sido presa, porque seu parceiro e amante, Alexander Shliapnikov, era o líder de um grupo chamado “Oposição dos Trabalhadores”. Ele era um bolchevique, mas dentro do partido liderava essa oposição, essa facção. E Shliapnikov foi executado junto de vários e vários outros integrantes ativos da oposição. Todos eles foram presos, enviados para campos de trabalho forçado e executados, no início de 1935.

Fórum – Então você concorda que seu alinhamento a Stálin foi por medo.

Goldman - Eu acho que ela aprendeu a se tornar silenciosa e isso foi verdade para quase todos os outros.

Fórum – As mulheres ainda vivem com o fardo da jornada dupla (trabalho e casa) e desigualdade salarial. O que você pensa a respeito disso naquela época?

Goldman - Eu penso que o que resultou do experimento soviético não foi exatamente aquilo que os revolucionários queriam. Mas ainda havia partes do que eles queriam que de fato ocorreram – então existiu um misto sobre isso. O que tivemos durante a década de 1930 foi um enorme período de industrialização na União Soviética, que se tornou um país líder no mundo todo por conta de seu processo industrial. Foi um enorme sucesso essa industrialização e as mulheres entraram como força de trabalho em grande número. Mais mulheres entraram na força de trabalho industrial no início dos anos 1930 do que em qualquer outro país, em qualquer outro período da História – até mesmo mais do que durante as guerras, quando as mulheres geralmente participam do chamado “esforço de guerra”.

Então as mulheres conquistaram o acesso à independência salarial – o que era uma das condições para autonomia: o acesso ao salário. Elas também eram livres para correr atrás de educação, igualdade no trabalho, de ter uma propriedade. Em outras palavras, todos os direitos de que os homens já desfrutavam. Então essas coisas foram importantes. Quando as mulheres foram trabalhar, o governo de fato criou muitas creches para seus filhos e criou refeitórios onde as pessoas podiam comer no trabalho. Em muitos aspectos, suas visões e ideais ganharam vida. Elas eram reais e muito positivas.

Mas eles nunca conseguiram refazer por completo a relação entre homem e mulher. As mulheres passaram a exercer um novo papel, mas ainda continuavam com o velho papel, e esse é o ainda chamado “fardo duplo”.

Fórum – Você acredita que muitos dos ideais dos revolucionários – a construção de uma nova moralidade, sexualidade, maneiras de viver – ainda podem influenciar as pessoas, até mesmo nos dias de hoje?

Goldman - Eu penso que elas podem influenciar as pessoas hoje e, mais importante: os jovens estão sempre com novas ideias. Pois os jovens têm a imaginação para repensar em como as coisas são, então sim, as pessoas podem ainda ser influenciadas por aqueles ideais, ao mesmo tempo em que os jovens querem eles mesmos pensar sobre todas essas coisas.

Fórum – E falando sobre novos ideais dos jovens, supomos que tudo se resume na natureza humana. Sempre haverá pessoas tentando jogar suas ideais no mundo e tentando “remodelá-lo”; assim como sempre haverá aqueles tentando reprimi-las, mas é impossível esses ganharem, pois as pessoas estão sempre lutando por mais. Você concorda?

Goldman - Pois é, Karl Marx disse exatamente isso o que acabaram de dizer.

Fórum – Oh! Não sabíamos disso.

Goldman - Está no “Manifesto Comunista”. Exatamente o que vocês disseram – que a História de toda sociedade humana é uma história de luta, e isso é verdade. Onde quer que exista repressão, existirá resistência. Sempre. Em qualquer lugar. Então, frequentemente os conservadores vão dizer: “Oh! É da natureza humana ser egoísta, ser repressiva, querer ter muitas posses ou roubar e lucrar dos outros. Isso é a natureza humana”; mas, ao mesmo tempo, é também da natureza humana resistir a essas coisas e é da natureza humana querer construir um mundo melhor, então sim, eu concordo.


domingo, 9 de novembro de 2014

Conceitos que a direita utiliza, mas não entende

    

Com a ascensão do discurso que atenta para o perigo de uma “ditadura vermelha” no Brasil, termos como “bolivarianismo” e “comunismo” tornaram-se senso comum, mas não são bem compreendidos por que os usa


Por Marcelo Hailer


A eleição de 2014 apresenta diversos aspectos que deverão se tornar objeto de estudo de pesquisadores e intelectuais. Um deles, pouco citado, é a questão linguística que este pleito deixa como herança – boa parte dela plantada há vários anos por veículos da imprensa tradicional. O hábito que tem a direita de empregar conceitos para atacar setores da esquerda, muitas vezes, entretanto, sem entender do que se trata, ganhou força no final de 2013 quando o governo federal publicou o decreto que instituía a Política Nacional de Participação Social (PNPS). Jornais tradicionais taxaram: “decreto bolivariano”. A tática deu certo e a moda pegou.

Se para a imprensa conservadora o governo federal, comandado pelo Partido dos Trabalhadores há doze anos, flerta com o bolivarianismo, no âmbito das redes sociais e em certas manifestações, ouve-se que o governo petista quer mesmo é instituir uma “ditadura comunista”. Tais coletivos da direita brasileira se apropriam do termo “comunismo” relacionando-o com regimes que não foram comunistas em sua essência. Pode-se até dizer que, em dado momento, flertaram com os ideais libertários dos revolucionários, mas depois se tornaram burocráticos e muito pouco democráticos.

Em entrevista à Fórum, o deputado federal Ivan Valente (Psol-SP) ironizou o fato da oposição utilizar do termo “bolivariano” para criticar medidas de cunho popular. “Os setores conservadores, os partidos mais à direita, e não só eles, partidos da própria base do governo, fizeram dessa questão [PNPS], antes da eleição e agora, uma queda de braço sobre uma visão de política de participação social no Brasil. E inclusive barbaridades foram faladas em plenário: que era uma visão bolivariana… Deus nos ouça se fosse! (risos). E, mais ainda, de que eram sovietes que estavam sendo implantados via Secretaria Geral da Presidência”, comenta.

Bolivariano!

O termo “bolivariano” ficou famoso na figura do ex-presidente da Venezuela, Hugo Chávez (1954-2013), pois, ao buscar definir as mudanças estruturais realizadas em seu país e as alianças com Estados da América Latina (Equador, Bolívia, Brasil etc), cunhou o termo “socialismo do século XXI”. Este seria um “socialismo bolivariano”, diretamente inspirado na história de Símon Bolívar, líder da luta pela independência da Bolívia, Colômbia, Equador, Panamá, Peru e Venezuela, que sonhava com uma América Latina unida. Mas, se há alguma convergência da imagem de Bolívar com o cenário político atual, é apenas um: a união do bloco latino-americano. De resto, não há nada que aproxime a ideologia contemporânea dos ideais de Bolívar.

Simon Bolívar, líder da independência de cinco
países da América Latina. (Foto: WikiCommons)
“Bolívar foi o artificie da independência de pelo menos cinco países da América do Sul. Não era um proletário, era um homem da classe dominante, da elite criolla”, explica Gilberto Maringoni, professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC (UFABC). “Bolívar era um sujeito com uma personalidade muito complexa. Viaja para a França na primeira década do século XIX, assiste à coroação do Napoleão e é muito influenciado pelas correntes iluministas da Revolução Francesa. Na Europa, era um homem anti-absolutista, e, quando vem para cá, o anti-absolutismo se transforma em anti-colonialismo. E as guerras coloniais são guerras de construção de repúblicas.”

Maringoni também explica que o conceito de bolivarianismo é se um “lastro flexível que foi apropriado tanto pela esquerda quanto pela direita. “Na Venezuela, houve governos da direita que se valiam da imagem de Bolívar para criar um nacionalismo conservador. Em várias cidades da Venezuela, e em outros países também, sua imagem é daquele ser inatingível que tem de ser reverenciado”, argumenta.

A respeito da maneira pejorativa com que se utiliza o termo no Brasil, o professor a atribui à releitura que Hugo Chávez fez do aspecto progressista do libertador. “Chávez, duzentos anos depois, pega o caráter anti-colonialista do Bolívar e faz uma leitura anti-imperialista. O nome da Venezuela virou República Bolivariana da Venezuela. Você pode falar o que quiser do Chávez, mas usar o bolivarianismo como algo negativo da maneira como fizeram Gilmar Mendes [ministro do Supremo Tribunal Federal] e Eduardo Cunha [deputado federal, PMDB-RJ] é uma falsidade e impostura histórica que não para em pé. Quer se criar um tipo de adjetivação como ocorreu com o comunismo, o ‘terrorista’, isso faz parte da política rasteira”, critica.

Maringoni também afirma que falta ao grupos brasileiros que se colocam como anti-bolivarianos explicar o que propõe, afinal, o anti-bolivarianismo. “O que eles não respondem é: o que é o anti-bolivariano? Na Venezuela, o anti-bolivariano são os setores da oposição que há doze anos deram um golpe de Estado e a primeira coisa que fizeram foi tirar o nome ‘república bolivariana’, tirar todos os símbolos ligados a Bolívar. Em três dias eles fizeram isso. O anti-bolivariano é algo extremamente negativo na Venezuela, algo que tem a ver com ditadura e golpe de Estado”, analisa.

Brasil, um país comunista

Com o início do primeiro mandato da presidenta Dilma Rousseff , o discurso da “ascensão comunista no Brasil” começou a ganhar mais força e seguidores. Sua biografia ajudou a alimentar tal sandice, isto porque, em sua juventude, a presidenta participou da luta armada contra a ditadura no Brasil. Soma-se a isso a parceria, firmada pelas administrações petistas, com os governos da Venezuela, Bolívia e Equador, logo, um roteiro pronto para todo tipo de discurso que busque caracterizar o Brasil como um país rumo ao comunismo.

Alexandra Kollontai e os jovens cuidados
pelo Estado soviético. (Foto: WikiCommons)
A palavra comunismo tem origem no latim communis – comum, universal –, que vai caracterizar a construção desta ideologia e proposta de sociedade internacionalista entre os seus principais pensadores do século XIX e começo do século XX, com destaque para Karl Marx e Friedrich Engels, que juntos escreveram O Manifesto do Partido Comunista e outras obras fundamentais na concepção do ideário comunista. No fim do século XIX e início do XX, destacam-se Leon Trotsky, Vladmir Lenin e Alexandra Kollontai.

Com Marx e Engels se estabeleceram os principais critérios ideológicos daquilo que resultaria na tentativa de construir um novo sujeito possuidor de uma nova moral e, claro, de uma ordem social e política não mais restrita a um espaço geográfico em si, mas que valesse para todo o globo – a revolução comunista deveria ser internacional, apátrida e continuada. Sem esta trinca objetiva, ela não daria certo, segundo os seus idealizadores. Tinha de ser internacionalista, pois o capitalismo o era, e a sua divisão internacional do trabalho impunha condições precárias a trabalhadores de todo o mundo. “Trabalhadores, uni-vos” não era apenas um conceito bonito expressado por Marx, mas condição única para levar a transformação social a cabo.

Os princípios dos revolucionários comunistas

Um ano após a chegada dos bolcheviques ao poder na Rússia, em outubro de 1918, uma das primeiras medidas tomadas pelo Comitê Executivo Central do Soviete foi alterar o código da Família e da Tutela, que estabelecia “relações sociais baseadas na igualdade das mulheres e no definhamento da família”. De acordo com Alexander Goikbarg, autor do novo Código da Família, o objetivo era fazer com que “a cada dia vivido sob a nova lei, esta se tornaria obsoleta”. Ou seja, os revolucionários da primeira fase tinham por meta libertar as relações sociais das amarras do Estado, visto que o objetivo final era colocar fim ao Estado enquanto agente controlador.

Alexandra Kollontai, a principal representação feminina da revolução vermelha e única mulher a assumir cargo no Comitê Central, escreveu e elaborou planos para por fim ao trabalho doméstico junto a Lênin. Ambos acreditavam que “a emancipação da mulher” só se daria com o fim deste. Kollontai era ainda mais radical e chegou a propor a remuneração do trabalho do lar realizado pelas mulheres, pois muitas delas acumulavam, ainda, as tarefas de operárias, tendo, na prática, uma dupla jornada. Ainda dentro desta proposta, a líder bolchevique defendia o fim da cozinha e a criação de refeitórios públicos. A questão materna também entrava em jogo. Kollontai e o seu grupo revolucionário foram responsáveis por criar o que hoje se chama de creche, que durante o início da revolução era conhecida como Criação Socializada dos Jovens.

Além da libertação das mulheres do ofício do lar, a questão da maternidade seria tratada de outra maneira: a sociedade cuidaria dos seus jovens. “(…) Teóricos soviéticos defendiam que a transição para o capitalismo havia transformado a família ao enfraquecer suas funções sociais e econômicas. Sob o socialismo, definharia, e sob o comunismo deixaria completamente de existir. Nas palavras de Kollontai: a família – privada de todas as obrigações econômicas, sem carregar a responsabilidade pela nova geração, sem mais prover às mulheres sua básica de existência – deixa de ser a família. Estreita-se e é transformada em união marital baseada em contrato mútuo”, escreveu a historiadora norte-americana Wendy Goldman no livro Mulher, Estado e Revolução (veja aqui entrevista com ela).

Manifestantes pró União Soviética
(Foto: WikiCommons)
Muitos outros temas que ainda hoje são tabus no mundo inteiro, como a questão da homossexualidade e da utilização de substâncias psicotrópicas, foram tratados pelos revolucionários da primeira fase. Ainda na questão das relações sociais, Kollontai desenvolveu a teoria do Amor Camarada, que serviria de contraponto ao amor burguês. Sua ideia nasceu quando, ao fazer palestras na região rural da Rússia, que naquela época constituía a maioria do país, foi questionada por jovens, que apontavam que ela seria “contra o amor”, ao que respondeu: “Sim, contra este amor baseado em romances (literatura romântica) nós somos contra”. No Amor Camarada, nem o casamento e nem a monogamia eram obrigações.

O que resta do ideário comunista?

Foram justamente as ideias comunistas e revolucionárias de Lenin, Kollontai e Trotsky que os derrubaram. Pois, no pós-revolução, a Rússia enfrentou uma forte crise econômica, durante a qual os tratados sob uma nova ordem social e a construção de uma nova moral começaram a criar rejeição dentro do partido bolchevique e em grande parte da população que não via com bons olhos as teses de fim da família e da criação socializada dos jovens, entre outras propostas. Com a precoce morte de Lenin, o grupo de Trotsky e Kollontai se enfraqueceu e, neste período, Stalin ascendeu no partido. Os grupos revolucionários dele foram expulsos, e milhares de membros, perseguidos e mortos, entre eles Trotsky.

Alexandra Kollontai foi uma das poucas que permaneceu viva, pois, aceitou as condições impostas pelo grupo de Stalin. Para historiadores especialistas, a atitude foi uma ação de sobrevivência, e a ativista se tornou a representante internacional do partido. Com Stalin no poder, todo o ideário revolucionário foi engavetado, e as regras morais e de família se tornaram mais rígidas, algumas mais do que na fase pré-revolução. Logo, a palavra “comunista” perdia quase todo o seu sentido, pois a construção de um sujeito comum, internacional e liberto deu lugar à burocracia, centralização do poder e fortalecimento do Estado enquanto agente controlador e persecutório.

Não à toa, muitos dos líderes de partidos revolucionários não se cansam de dizer que a sociedade comunista nunca existiu, tese com a qual o professor Gilberto Maringoni não concorda por completo. “A gente teve governos comunistas. Apesar de todas as barbaridades do Stálin, era um governo em que havia propriedade social, tinha pleno emprego. Era um socialismo possível nas condições da agressão do outro lado, o lado capitalista. O problema dos regimes socialistas, principalmente na Rússia, é que eles tiveram que fazer a construção do Estado Nacional, o Estado Czarista era um Estado que não era um Estado. Primeiro, que não tinha Assembleia Nacional, não tinha nada como um Parlamento”, pondera o professor.

Maringoni lembra, ainda, a partir de um levantamento histórico, que outros Estados-nações também foram construídos à base de guerra. “Na história, não há nenhum processo de construção de Estado nacional que tenha sido feito em regime de liberdade democrática. Mesmo nos Estados Unidos, a construção do Estado teve o seu ponto de virada no governo Lincoln, com a Guerra de Secessão. A guerra civil americana é quando se unifica o Estado: o norte industrial com o sul agrário. Essa construção foi feita com uma guerra civil, que matou 900 mil pessoas”, coloca.

Todos os exemplos acima deixam claro que os termos “comunista” e “bolivariano” são utilizadas sem qualquer relação com os seus reais significados. Na verdade, como bem colocou Maringoni, estes grupos se escondem atrás de um ideário colonizador, anti-democrático e com forte viés golpista. Por detrás das adjetivações se visa, também, impedir a livre circulação das ideias.

(Crédito da foto de capa: WikiCommons)


FONTE: Revista Fórum Semanal

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Revolucionários sem rosto: uma história da Ação Popular


Por José Benedito Pires Trindade  


O Volume 1: Primeiro Tempo do livro Revolucionários sem rosto: uma história da Ação Popular, do jornalista Otto Filgueiras, estará nas livrarias em setembro.


Com um total de 85 capítulos, divididos em dois volumes, o livro narra a saga dos 18 anos de atuação da Ação Popular, mas não é um livro-reportagem e muito menos de memórias. Otto não é personagem. Além de ser cabotinagem, ele diz que sua breve militância não teve qualquer importância.

O livro é baseado principalmente na história documental da Ação Popular e também, quando comprovado pelo autor, no relato oral de antigos dirigentes, militantes, simpatizantes e familiares dos personagens.

Ele comprovou documentalmente que, ao longo de sua trajetória, a Ação Popular aglutinou mais de 25 mil militantes, simpatizantes e pelo menos um milhar deles deslocados para trabalhar em fábricas e no campo. A organização foi uma das espinhas-dorsais da resistência ao regime militar.

A pesquisa e entrevistas para o livro foram iniciadas há 28 anos, em 1986, mas ele só conseguiu concretizá-las a partir de 2001, quando começou a trabalhar em tempo integral no projeto, viajou uns 100 mil quilômetros pelo Brasil, principalmente de ônibus, entrevistou mais de 200 ex-dirigentes, ex-militantes e ex-simpatizantes da AP, familiares de militantes, advogados e ativistas de outras organizações, resultando em mais de 700 horas de fitas gravadas e todas transcritas.

Embora as entrevistas sejam importantes no resgate da história oral, e particularmente para captar a emoção dos personagens envolvidos com a AP, o jornalista teve o cuidado de checar o que disseram mais de duas centenas de entrevistados sobre vários episódios, e só usa as informações apuradas nos relatos orais quando a pessoa de fato participou dos acontecimentos que narra, mas sempre os subordinando ao contexto da história do pensamento teórico, ideológico, político e prático da organização. E, mesmo assim, depois de confirmados os relatos orais por outras entrevistas e, principalmente, pela história documental, que inclui centenas de documentos da organização e jornais das várias fases da AP.

Ao longo dos anos, Otto recolheu material documental dos arquivos dos antigos DOPS de São Paulo, Rio de Janeiro, Paraná, Rio Grande do Sul e de outros estados; pesquisou o arquivo de Jair Ferreira de Sá (principal dirigente da AP), depositado no Arquivo Público do Rio de Janei, e recebeu da família dele o arquivo pessoal; examinou o arquivo de Jean Marc, militante da AP e presidente da UNE; estudou 49 processos da ditadura contra militantes da AP e outro tanto disponíveis no acervo Brasil Nunca Mais, depositado no Instituto Edgard Leuenroth, na Universidade de Campinas (UNICAMP). Percorreu ainda o arquivo do ex-dirigente da AP Duarte Brasil Lago Pacheco Pereira, também depositado na UNICAMP, onde resgatou e transcreveu a sua entrevista filmada de sete horas para Armando Boito, professor daquela universidade. E escarafunchou papéis do Arquivo Nacional,  no Rio de Janeiro.

Afinal,  como diz um conto samurai, “o pincel da escrita é um braço que se alonga da sepultura”.

De origem cristã, principalmente com influência de pensadores católicos humanistas Emmanuel Mounier, Teilhard de Chardin, Jacques Maritain, do padre Louis-Joseph Lebret e do padre brasileiro Henrique Lima Vaz, mas também influenciada por pensadores teóricos progressistas da igreja presbiteriana, a exemplo do pastor estadunidense Richard Shaull, a AP começou a ser articulada pela esquerda católica a partir de 1961, em Minas Gerais, quando surgiu o jornal Ação Popular.

Inicialmente, a Ação Popular era considerada apenas um movimento, mas com o tempo seus articuladores realizaram duas reuniões nacionais em 1962, primeiro em Belo Horizonte e depois em São Paulo, quando elaboraram os textos Estatuto Ideológico e Esboço do Estatuto Ideológico. Mas o seu congresso de fundação só aconteceu no carnaval de 1963, em Salvador (BA), na Escola de Veterinária da Universidade Federal da Bahia (UFBA), quando foi aprovado o seu “Documento Base”. Assim, a AP passou a ter um referencial teórico e se constituiu nacionalmente como organização política, embora sem registro legal jurídico.

O livro esmiúça toda a história da Ação Popular, os tantos embates internos que a leva da Igreja ao marxismo-leninismo. Entre as mais de 200 entrevistas que realizou, Otto conseguiu depoimentos de personagens históricos, a exemplo do Padre Henrique Lima Vaz, na época filósofo e principal teórico da esquerda católica, cujas ideias são decisivas para a fundação da organização e para a redação do Documento Base aprovado no primeiro congresso da AP, em 1963.

Com base na documentação encontrada nos arquivos, foi possível esclarecer também os assassinatos dos militantes e dirigentes da AP Jorge Leal Gonçalves, Raimundo Eduardo da Silva, Luiz Hirata, Paulo Stuart Wright, José Carlos da Mata Machado, Gildo Lacerda, Humberto Câmara, Honestino Guimarães, Eduardo Collier e Fernando Santa Cruz. O caso de Paulo Stuart Wright é um dos mais importantes: Paulo foi um dos principais dirigentes da AP,  também tinha origem cristã, a exemplo de vários outros dirigentes, no caso dele presbiteriana, e incorporou no seu pensamento as ideias do marxismo.

Otto narra no livro detalhadamente toda a articulação da repressão, comandada pelo Centro de Informações do Exército, CIE, que levou à prisão mais de 40 pessoas da AP, em agosto, setembro e outubro de 1973, e particularmente à prisão de Paulo Wright, entre os dias 4 e 5 de setembro daquele ano e, posteriormente, o seu assassinato e o assassinato de seis outros militantes da organização. Depois de assassinado no DOI-CODI de São Paulo, Paulo Stuart Wright foi enterrado pela polícia no Cemitério de Perus com o nome de Pedro Tim, mas seu corpo nunca foi encontrado e até hoje ele é dado como “desaparecido”.

O autor recolheu material inédito que ilustra o livro, inclusive fotos de militantes da AP, presos, alguns assassinados, e importantes documentos da repressão policial, entre eles os do Centro Nacional de Informação da Marinha (CENIMAR), do Centro de Informação do Exército (CIE), do Centro de Informação da Aeronáutica (CISA), do DOI-CODI de São Paulo e dos antigos DOPS, que esclarecem como ocorreu o cerco que os órgãos de repressão da ditadura fizeram sobre a AP durante a sua trajetória e sobre várias prisões e assassinatos de militantes da organização.

Para isso, o jornalista mergulhou nas centenas de milhares de páginas de depoimentos de presos políticos, de processos e de relatórios dos órgãos da polícia política do regime militar. Uma leitura que revela a grandeza e a miséria do comportamento dos militantes massacrados pela tortura. O relato disso tudo é, talvez, a mais perturbadora viagem às prisões do governo militar.

Otto não faz concessões, não cede, não capitula, não transige com a verdade ou com os princípios. Dos quantos livros sobre esse riquíssimo período da história, o livro de Otto talvez seja o mais autêntico testemunho da generosidade, da entrega e da bravura de uma geração de brasileiros. Sem espaços para o arrependimento, as lamúrias, a auto-complacência ou demonstrações de heroísmo.  E, notadamente, sem a fatuidade e a ligeireza que impedem uma reconstituição da verdade dos fatos, como, desgraçadamente, é o caso de várias obras sobre os anos 60, 70 e 80.

Mais ainda: ao historiar a trajetória da Ação Popular, Otto faz a crônica da própria esquerda brasileira, seus caminhos e descaminhos, as idas e vindas em um país e em um mundo convulsionados. E, ao iluminar o passado, Otto clareia o presente e mostra que a história de luta de AP não se conclui com sua extinção. Ela está nas ruas do Brasil e do mundo.

O livro conta ainda em detalhes as viagens de várias delegações de militantes e dirigentes da AP à República Popular da China, nas décadas de 1960 e 1970, para participar de cursos na Academia Militar de Nankin. Otto conseguiu, com um dos integrantes das delegações, Euler Ivo Vieira, em 2001, uma foto de militantes e dirigentes da AP com o primeiro-ministro chinês Chou En Lai.

Como base nos documentos encontrados na pesquisa, e também em livros autobiográficos já publicados, ele recuperou a trajetória de pessoas já mortas e que desempenharam papel importante na história da AP, a exemplo do sociólogo Herbert José de Souza, o Betinho.

O volume 1 aborda o período de 1930 a setembro de 1968. E o volume 2 vai até 1986. Cada um dos volumes tem cerca de 400 páginas. A editora é a Caio Prado Júnior, com prefácio do historiador Mário Maestri.

José Benedito Pires Trindade é jornalista.


FONTE: Correio da Cidadania