sexta-feira, 27 de setembro de 2013

Que os excluídos construam um novo poder, que deve ser do povo!


Por Waldemar Rossi (*)




São dezenove anos de ensaios estimulando as novas gerações a ocuparem as ruas e cidades deste imenso país injusto, desigual e excludente. Essa tem sido a trajetória do Grito dos Excluídos no Brasil. Grito que, pelo seu impacto inicial, adquiriu extensão latino-americana.

Como toda semeadura, que espera seu tempo certo para germinar, assim é o movimento social: lançadas as ideias e dados, os primeiros passos rumo aos objetivos traçados, leva tempo para que a semente encontre, além do terreno propício, o momento de seu amadurecimento, vingue e aflore ao rés do chão. Se bem cultivada, crescerá e dará bons frutos, “cem por um”.

O Grito dos Excluídos foi a semente lançada pelos movimentos sociais, em parceria com o setor social da CNBB, no ano de 1955. Teve seus momentos mais fortes nos primeiros anos, com muito boa participação popular em Aparecida, logo depois em São Paulo, Rio, Belo Horizonte, Porto Alegre. Tendo sido cultivado com muito carinho, foi ganhando espaços pelas inúmeras cidades brasileiras, contribuindo para o despertar do senso crítico das novas gerações.

Hoje, caminha lado a lado com os setores da juventude que amadureceram, ganharam conhecimento dos desmandos cometidos pelos governantes e os demais poderes podres deste país, descobriram que o país não é dos políticos e sim do povo, ousaram e ousam assumir seu protagonismo, exigindo mudanças radicais das estruturas políticas, econômicas e sociais deste país.

Nem a violência institucionalizada, e aprofundada a partir da ditadura militar dos anos 1964 a 85, conseguiu criar barreiras à avalanche juvenil que, determinada a dar um “basta!” aos crimes do colarinho branco, ocupou as ruas das grandes cidades do Brasil.

Apesar dos esforços em contrário, a mídia corrompida se viu forçada a reconhecer e divulgar o vigor de uma juventude determinada a dar o seu grito. E o grito, sem os tradicionais microfones e alto-falantes, ecoou pelo Brasil afora e repercutiu no mundo inteiro, sacudiu as estruturas do poder.

Coincidentemente, o lema do grito deste ano, que estava voltado para a Jornada Mundial da Juventude, ocorrida na cidade do Rio, encontrou eco nessas contagiantes manifestações populares: “Juventude que ousa lutar constrói o projeto popular”. Ocupar os espaços é o primeiro passo para mudar radicalmente a realidade e isto as novas gerações estão almejando. É bem este o lema do 19º Grito Nacional e 17º Grito da cidade de São Paulo.

Suas palavras de ordem, suas exigências ressoam e se aliam às inúmeras reivindicações que afloraram durante os vários dias das manifestações das novas gerações: emprego/trabalho para os 3,7 milhões de jovens desempregados; salários que respondam às necessidades vitais das famílias dos trabalhadores; moradia para os milhões que dela carecem; terra para os que pretendem plantar e colher e repassar internamente para combater a fome que invade milhões de lares brasileiros; serviço público de saúde que previna e cure doenças, que invista na pesquisa científica; estrutura de educação pública e requalificação constante de professores, assim como remuneração adequada à dedicação integral na sua nobre tarefa de educar e preparar nossa infância e juventude para revolucionar este país desigual.

Outra importante exigência do nosso povo, e que ressurge com força neste ano de 2013, é a ampliação dos direitos sociais, e não sua criminosa redução, como vêm exigindo os detentores do capital nacional e internacional.

Outro destaque é para a urgente mudança na concepção e estrutura das polícias brasileiras, que foram militarizadas pela ditadura militar e desvirtuadas de sua função de garantir os direitos do povo, direitos de todos, para se colocar a serviço dos interesses do capital espoliador, gerador de miséria e de escravidão.

O lema do Grito dos Excluídos “Juventude que ousa lutar constrói o poder popular” nos remete à importante tarefa de, pelas experiências e práticas de ocupação dos espaços, ir amadurecendo as ideias básicas para a elaboração de um projeto popular. Projeto que, de fato, venha – com o tempo devido – revolucionar o país, construir uma nova forma de governo, sob controle popular, que substitua o Estado burguês apodrecido e excludente, principal gerador do estado de violência reinante, que banaliza e destroi a vida. Que, nesse processo crescente de experiências, gere as bases sólidas para a construção de outra sociedade, onde a justiça, a solidariedade entre todos e a distribuição de renda prevaleçam definitivamente sobre os criminosos interesses do sistema capitalista.


(*) Waldemar Rossi é metalúrgico aposentado e coordenador da Pastoral Operária da Arquidiocese de São Paulo.

FONTE: Correio da Cidadania

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Marx e a política

Se Marx é de fato algum tipo de filósofo, ele se distingue da maioria de tais pensadores por considerar suas reflexões, por mais abstrusas que sejam, em última análise, práticas, estando inteiramente a serviço de forças políticas reais, e na verdade um tipo de força política em si mesma. Esta é a celebrada tese marxista da unidade entre teoria e prática - embora seja possível acrescentar que um objetivo da teoria de Marx é chegar a uma situação social em que o pensamento não precisaria ser simplesmente instrumental, articulado com algum fim particular, podendo em vez disso ser usufruído como um prazer em si mesmo.

Por Terry Eagleton

Karl Marx
A doutrina política de Marx é revolucionária - "revolução" sendo para ele definida menos pela velocidade, pelo caráter repentino ou pela violência do processo (embora ele pareça pensar que a construção do socialismo envolve uma força insurreicional), que pelo fato de que ela passa pela expulsão de uma classe possuidora e sua substituição por outra.  E este é um processo que pode claramente requerer um grande espaço de tempo para ser levado a efeito.  Podemos observar aqui a característica peculiar do socialismo: o fato de que ele envolve a chegada ao poder pela classe trabalhadora, que ao fazer isto cria as condições para a abolição de todas as classes. Uma vez sendo os meios de produção coletivamente possuídos e controlados, as próprias classes finalmente desaparecerão.

"Todas as classes que no passado conquistaram o poder procuraram consolidar o status adquirido sujeitando toda a sociedade às suas condições de apropriação.  Os proletários não podem se apoderar das forças produtivas sociais a não ser abolindo o modo de apropriação a elas correspondentes e, com isso, também todos os modos anteriores de apropriação.  Eles nada têm de seu para salvaguardar e consolidar; sua missão é destruir todas as seguranças e garantias da propriedade privada até agora existentes." [Manifesto Comunista]

Ou como Marx se expressa na linguagem de seus escritos de juventude:

"Deve ser formada uma classe com cadeias radicais, uma classe na sociedade civil que não é uma classe da sociedade civil, uma classe que é a dissolução de todas as classes, uma esfera da sociedade que possui um caráter universal porque seus sofrimentos são universais, e que não reivindica uma compensação particular, porque a injustiça que lhe foi feita não é uma injustiça particular, mas a injustiça em geral.  Deve ser formada uma esfera da sociedade que não reinvidica um status tradicional mas apenas um status humano [...]  Esta dissolução da sociedade, como uma classe particular, é o proletariado."  [Contribuição à Critica da Filosofia do Direito de Hegel]

Se o proletariado é a última classe histórica, é porque sua chegada ao poder no que Marx chama de "ditadura do proletariado" é o prelúdio da construção de uma sociedade na qual todos estarão na mesma relação com os meios de produção, como seus donos coletivos, "trabalhador" não mais significa ser membro de uma classe particular, mas simplesmente todos os homens e mulheres que contribuem para produzir e manter a vida social.  A primeira fase da revolução anticapitalista é conhecida por Marx como o socialismo, e não é uma fase que envolva completa igualdade.  Na verdade, Marx vê a noção de "direitos iguais", herdada da época burguesa, como um tipo de reflexo espiritual da troca de mercadorias abstratamente iguais.  Isto não quer dizer que para ele o conceito seja desprovido de valor, mas que ele reprime inevitavelmente a particularidade de homens e mulheres, os diversos talentos próprios de cada um.  Ele atua assim, entre outras coisas, como uma forma de mistificação, ocultando o verdaeiro conteúdo das desigualdades sociais atrás de uma mera forma legal.  No fim, ao próprio Marx interessa mais a diferença que a igualdade.  No socialismo, continua sendo um fato que

"um homem é superior a outros física e mentalmente, e assim fornece mais trabalho no mesmo tempo, ou pode trabalhar por mais tempo; e, para servir como medida, o trabalho deve ser definido por sua duração ou intensidade, caso contrário deixa de constituir um padrão de medida.  Tal direito igual é um direito desigual para o trabalho desigual.  Não reconhece diferenças de classe, uma vez que cada homem é um trabalhador tanto quanto qualquer outro, mas reconhece tacitamente privilégios desiguais.  É, por conseguinte, um direito de desigualdade em seu conteúdo, como todo direito. Por sua própria natureza, o direito só pode consistir na aplicação de um padrão igual; porém indivíduos desiguais (e eles não seriam indivíduos se não fossem desiguais) são mensuráveis apenas por um padrão igual na medida em que são considerados de um ponto de vista igual, apreendidos por um só aspecto determinado, por exemplo, no caso presente, enquanto forem considerados apenas como trabalhadores e nada mais, sendo tudo o mais ignorado.  Além disso, um trabalhador é casado, outro é solteiro; um tem mais filhos que outro, e assim por diante.  Desta maneira, com um empenho igual no trabalho e, portanto, com uma participação igual no fundo social de consumo, uns receberão efetivamente mais que outros, uns serão mais ricos que outros etc. Para evitar todos estes defeitos, o direito, em vez de igual, teria de ser desigual." [Crítica do Programa de Gotha]

O socialismo, portanto, não propõe nenhum nivelamento absoluto dos indivíduos, mas envolve um respeito por suas diferenças específicas e permite, pela primeira vez, que tais diferenças se realizem.  É desta maneira que Marx resolve o paradoxo do individual e do universal: para ele, o último termo significa não algum estado do ser supra-individual, mas simplesmente o imperativo de que cada um deva estar incluído no processo de desenvolver livremente suas identidades pessoais. Porém, enquanto homens e mulheres ainda precisarem ser recompensados de acordo com seu trabalho, as desigualdades inevitavelmente persistirão.

O estágio mais desenvolvido da sociedade, contudo, chamado por Marx de comunismo, desenvolverá as forças produtivas até um ponto de abundância tal que nem a igualdade nem a desigualdade estarão em questão.  Em lugar disto, homens e mulheres simplesmente retirarão do fundo comum de recursos o que quer que satisfaça suas necessidades:

"Numa fase superior da sociedade comunista, quando tiver desaparecido a escravizante subordinação do indivíduo à divisão do trabalho, e com ela também a antítese entre o trabalho mental e o físico; quando o trabalho houver se tornado não um meio de vida, mas a necessidade fundamental da vida; quando as forças produtivas tiverem crescido com o desenvolvimento geral do indivíduo; quando todas as fontes de riqueza cooperativa fluírem mais abundantemente - só então o horizonte estreito do direito burguês será completamente ultrapassado, podendo a sociedade inscrever em suas bandeiras: 'De cada um de acordo com suas capacidades, a cada um de acordo com suas necessidades!'." [Crítica do Programa de Gotha]

Na sociedade comunista, estaríamos livres da importunidade de classe social e, em vez disso, disporíamos de lazer e energia para cultivar nossas personalidades de qualquer maneira que pudéssemos escolher, desde que respeitado o preceito de que a todos os outros seria permitido fazer o mesmo.  O que distingue este objetivo político mais nitidamente do liberalismo é o fato de que, uma vez que para Marx  uma expressão de nosso ser individual é também uma realização de nosso ser genérico, este processo de explorar e desenvolver a vida indidual seria levado a cabo reciprocamente, por meio de laços mútuos, em vez de em isolamento esplêndido.  O outro é visto por Marx como o meio para minha própria realização, em lugar de, como no melhor dos casos, um mero co-empresário no projeto, ou no pior como um obstáculo ativo para minha realização.  A sociedade comunista também direcionaria as forças produtivas legadas a ela pelo capitalismo para a meta de abolir tanto quanto possível todo trabalho degradante, libertando desta forma homens e mulheres da tirania da labuta e permitindo a eles engajarem-se no controle democrático da vida social como "indivíduos unidos" agora responsáveis por seus próprios destinos.  No comunismo, homens e emulheres podem recuperar seus poderes alienados e reconhecer o mundo que criam como seu, depurado de sua imobilidade espúria.

Mas a revolução socialista requer um agente, e este Marx descobre no proletariado.  Por que o proletariado?  Não porque seja espiritualmente superior às outras classes, e não necessariamente porque seja o mais oprimido dos grupos sociais.  Se fosse assim, os vagabundos, excluídos e indigentes - o que Marx um tanto devastadoramente chamava de "lumpen-proletariat" - seriam melhores.  Pode-se alegar que é o próprio capitalismo, não o socialismo, que "seleciona" a classe operária como o agente da mudança revolucionária.  É a classe que mais pode se beneficiar da abolição do capitalismo, e que é suficientemente habilidosa, organizada e bem situada para desempenhar tal tarefa.  Mas a tarefa da classe operária é levar a cabo uma revolução específica - a revolução contra o capitalismo; e não está assim em sentido algum necessariamente em competição com outros grupos radicais - digamos, feministas, nacionalistas ou militantes étnicos - que precisam completar suas próprias transformações particulares, idealmente em aliança com aqueles mais explorados pelo capitalismo.

Que forma tal sociedade assumiria?  Seguramente não a de uma ordem social dirigida pelo Estado.  O Estado político para Marx pertence à "superestrutura" reguladora da sociedade: é ele próprio um produto da luta de classes em vez de estar sublimemente além deste conflito, ou consistir em alguma resolução ideal dele.  O Estado é em última análise um instrumento da classe dirigente, uma maneira de assegurar sua hegemonia sobre as outras classes; e o Estado burguês em particular cresce a partir da alienação entre o indivíduo e a vida universal:

"a partir da própria contradição entre o interesse do indivíduo e o da comunidade, este assume uma configuração autônoma enquanto Estado, separada dos interesses reais dos indivíduos e da comunidade, e ao mesmo tempo como uma vida coletiva ilusória, porém sempre tendo por base concreta os laços reais existentes em qualquer agregado familial ou tribal - tais como a consaguinidade, a língua, a divisão de trabalho em grande escala, e outros interesses - e especialmente, como veremos em detalhe mais tarde, nas classes, já determinadas pela divisão do trabalho, que se destacam em cada agrupamento humano desse tipo e das quais uma domina todas as outras.  Segue-se disto que todas as lutas dentro do Estado, a luta entre a democracia, a aristocracia e a monarquia, a luta pelo direito de voto etc. etc. são apenas as formas ilusórias nas quais se trava a verdadeira luta entre as diferentes classes." [A Ideologia Alemã]

Marx nem sempre adotou um ponto de vista tão vigorosamente instrumentalista do Estado em suas análises detalhadas de conflitos de classe; mas estava convencido de que sua verdade, por assim dizer, está fora de si mesma, e além do mais o vê por si só uma forma de alienação.  Cada cidadão individual alienou ao Estado parte de seus poderes individuais, que assumem então uma força determinante sobre a existência social e econômica cotidiana, que Marx chama "sociedade civil".  A genuína democracia socialista, em contraste, reuniria estas partes gerais e individuais de nós mesmos, permitindo-nos participar de processos políticos gerais como indivíduos concretamente particulares - no local de trabalho assim como na comunidade local, por exemplo, em vez de cidadãos abstratos da democracia representativa liberal.  A visão final de Marx parece assim algo anarquista: a de uma comunidade cooperativa formada pelo que denomina "associações livres" de trabalhadores, que estenderiam a democracia à esfera econômica enquanto fazem dela uma realidade na esfera política.  Foi a este fim - que não é, afinal de contas, demasiado sinistro ou alarmente - que ele dedicou não apenas seus escritos, mas uma boa parte de sua vida ativa.

FONTE: ControVérsia

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

Socialismo de mercado, alternativa realista ao capitalismo

Por Jordi Corominas
Sant Juliá de Lória, Andorra


Existem muitos movimentos e grupos em todo o mundo, críticos em relação à ordem existente e comprometidos na luta contra a miséria. Inúmeras são as pessoas que, mesmo não participando de grupos ou ações alternativas, reconhecem que o atual sistema econômico nos leva para o abismo. Há, sem dúvida, algo que produz paralisação ou leva simplesmente a posições fatalistas, quando não cínicas: a falta de uma alternativa para a estrutura econômica. Nos socialismos do século XX se viu que o controle centralizado do mercado, ainda que os dirigentes e os trabalhadores tivessem sido anjos, produzia ineficiências maiores que um mercado capitalista regido por demônios. Então, por mais guerras, deslocamentos de população, catástrofes ambientais e aumento da miséria, que cause o capitalismo, este pode absorver sem problemas toda crítica moral e todo barulho, porque sempre conseguiu se apresentar como o mal menor dos modelos econômicos conhecidos até então. Mas até que ponto é certo que há alternativas que melhoram o capitalismo? E sem ir muito longe? Não é reformável o capitalismo de modo que se possa tirar do umbral da miséria toda a humanidade, sem necessidade sequer de procurar alternativas sistêmicas?

Um sistema econômico é capitalista (independentemente se combina com um regime político democrático ou uma ditadura) se conserva três características essenciais: propriedade privada dos meios de produção, mercado regido pela oferta e demanda, e trabalho assalariado; e deixa de o ser quando se altera uma destas três características. Deste modo, controlar por lei certos produtos básicos, nacionalizar algumas empresas, oferecer segurança social, educação e saúde gratuita constituem reformas importantes do sistema, mas não a mudança de regime econômico. De outro lado, o controle estatal do mercado e da propriedade dos meios de produção nos introduz no modelo comunista conhecido no século XX.

Na atualidade, dos quase 7 bilhões de pessoas que vivemos sob o regime capitalista, a maioria é pobre.

Um bilhão de pessoas vivem em uma pobreza extrema, com menos de 1 dólar por dia, um milhão e meio vivem em uma pobreza moderada, com menos de dois dólares por dia, e dois bilhões vivem em pobreza relativa (na Europa o umbral da pobreza está fixado em 752 euros mensais e 80 milhões estão abaixo disto na Comunidade Europeia). Existem cenários muito mais catastróficos: presume-se que nos próximos anos 200 milhões de pessoas podem ser permanentemente deslocadas por causa das inundações, do aumento do nível do mar e por causa das guerras, agora também incentivadas pelas lutas pelos recursos básicos. Se é impossível crescer permanentemente, é possível um ciclo permanente de crescimento e destruição, com base em guerras periódicas. Ainda que se chegue a supor a morte da terça parte da população mundial, restariam 1600 milhões de pessoas, a mesma população que o planeta tinha em 1900.

Felizmente, no mesmo capitalismo verificam-se também cenários de aparência contrária. Ainda que sejam muitos os economistas que defendem que há uma relação essencial entre capitalismo, guerras e aumento da miséria, outros socialdemocratas defendem que uma socialdemocracia mundial poderia humanizar o capitalismo impondo medidas como renda básica universal para todo cidadão do mundo. Sem dúvida, ainda admitindo que um capitalismo de rosto humano seja possível, e que as guerras não são intrínsecas ao sistema, há algo que não tem solução nem no melhor dos capitalismos possíveis, é que a economia no seu conjunto deve crescer para que seja sã. Sem a taxa de no mínimo de 3% de crescimento anual, a social democracia mundial também nos levaria a cenários catastróficos (3% é o que continua crescendo o PIB no mundo, mesmo depois da crise de 2008). Mas o crescimento de 3% anual supõe dobrar o consumo cada 24 anos e, neste ritmo, consumiremos 16 vezes mais em 2100 do que em 2000. Surpreendentemente, são muitos os economistas que parecem crer nesta utopia: a possibilidade de um crescimento infinito diante de recursos limitados.

Se é impossível perpetuar o crescimento, temos que assumir necessariamente um ciclo de recessões, guerras e destruições, para sanar o capitalismo ou a volta a uma economia comunista? O socialismo de mercado pretende ser uma terceira via entre ambos os sistemas que, para a estabilidade, não depende do crescimento, e que continua favorecendo a eficiência e a renovação dos empreendedores. Neste modelo econômico a propriedade privada dos meios de produção é substituída por uma propriedade democrática, mantendo-se no livre mercado e no trabalho assalariado. Os diretores de empresas não respondem diante dos acionistas, mas diante dos trabalhadores, que escolhem a direção e aprovam as diretrizes básicas. Há suficientes experiências que mostram que empresas produtivas podem ser dirigidas democraticamente sem perder eficiência, sempre que haja um certo grau de autonomia na direção e que os trabalhadores entendam e exercitem a cultura cooperativa.

Para conservar o capital inicial toda empresa é obrigada a manter um fundo de amortização. Os lucros obtidos são repartidos segundo o critério dos trabalhadores, que podem optar por pagar mais a um gerente ou por determinados trabalhos. Em caso de a empresa não produzir os rendimentos mínimos, os trabalhadores têm que fechá-la para procurar trabalho em outro lugar e os meios de produção retornam à sociedade. O mercado segue funcionando para conseguir os bens de consumo e bens de capital, conforme as leis de oferta e demanda. Geram-se os fundos de investimento, não oferecendo juros aos que aplicam (mercado de dinheiro), mas investindo bens de capital. Estes fundos são controlados socialmente abrindo diferentes alternativas. Em um extremo estão os parlamentos que planejam o investimento, no outro estão os totalmente livres: os bancos recebem os fundos e os emprestam às empresas que querem expandir a produção ou melhorar a tecnologia, ou aos indivíduos ou organizações que querem investir em novo negócio.

No socialismo de mercado as empresas não precisam crescer compulsoriamente para se manter, o que parece impossível mesmo no melhor dos capitalismos possíveis. A empresa capitalista consegue minimizar o lucro dos investidores, enquanto a empresa democrática procura conseguir lucro para cada trabalhador. Deste modo, os acionistas de uma empresa capitalista podem dobrar o seu lucro, duplicando o tamanho da sua empresa, mas se uma empresa democrática duplica o seu tamanho, duplica também o número dos trabalhadores e o lucro para cada trabalhador não muda demasiadamente. Outra vantagem comparativa a respeito do melhor dos capitalismos possíveis é que, quando uma inovação leva a maior produtividade e ganâncias, os trabalhadores podem optar por tempo livre no lugar de aumentar o consumo.

Nos socialismos do século XX a transição passava necessariamente pela tomada do poder político em um Estado: no socialismo de mercado, a mudança pode ser feita sem alterar profundamente a situação atual: 1, liberando as obrigações das empresas de pagar juros ou dividendos pelas ações; 2, declaração de que a única autoridade legal da empresa são os seus trabalhadores; 3, introdução de um imposto sobre o capital das empresas, cujo montante irá para um fundo social de aplicação; e 4, a nacionalização dos bancos que passaram a administrar os fundos de aplicação.

No dia seguinte a tudo isto as pessoas continuariam indo para os seus lugares de trabalho e levando vida normal. A única mudança drástica seria para os acionistas. Para evitar conflitos com os proprietários anteriores dos meios de produção, uma compensação poderia lhes ser concedida em forma de generoso honorário que poderiam continuar recebendo durante uma ou duas gerações.

Interessante é que existe já uma ampla base empírica que mostra que este modelo é eficiente, pois são muitas as empresas regidas democraticamente. Atualmente a maior delas, lider do cooperativismo, é a Corporacion Mondragón (País Basco, Espanha). Conta com 83 mil empregados, 9 mil estudantes, tem presença em 20 países e em muitos setores da economia. A Fortuna Magazine a citava em 2003 como uma das melhores companhias para trabalhar na Europa. Esta experiência concreta, competitiva inclusive na área do capitalismo, mostra algo muito importante: que, como aconteceu na transição do feudalismo para o capitalismo, as mudanças podem começar a acontecer muito antes da mudança do poder político no Estado.

Tudo o que, em um contexto capitalista, leva a uma maior democratização de todas as áreas e a uma maior participação dos trabalhadores no campo produtivo já é, sem dúvida, um avanço para uma sociedade diferente. O socialismo de mercado depende também do esforço nas lutas pela democratização e transparência econômica de todas as estruturas, empreendidas pelas universidades, ONGs, igrejas, escolas, grupos e partidos que querem contribuir para uma sociedade diferente, e nisto perdem todo o sentido e autoridade as organizações de caráter vertical ou ditatorial, seja ela uma instituição da ONU, como o Conselho de Segurança, ou uma pequena associação de bairro.

[Sobre o tema, uma das propostas mais interessantes é a de David Schweickart, Beyond Capitalism, Westview Press, Colorado, 1996 (tradução espanhola: Más allá del capitalismo, Sal Terrae 2002. Textos recentes do autor: www.luc.edu/dschwei/articles.htm, com ampla bagagem filosófica, cf. A. Gonzáles, La Transformación posible, socialismo en el siglo XXI, Bubok 2010].


FONTE: Adital

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Governo Dilma abandonou a Reforma Agrária

De acordo com Alexandre Conceição, da Coordenação Nacional do MST do Brasil, o governo de Dilma Rousseff abandonou a Reforma Agrária e absteve-se de cumprir a sua obrigação constitucional. Por Iris Pacheco, da página do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra.

Por Iris Pacheco  (da página do MST)



O governo Dilma apresenta o pior índice de desapropriação de terras dos últimos 20 anos. Em 2012, apenas 28 imóveis rurais foram alvo de decreto. Em 2013, nenhum imóvel foi desapropriado até ao momento.

Durante o primeiro semestre desse ano, movimentos sociais do campo realizaram diversas jornadas de lutas, com pautas conjuntas ou específicas, colocando a necessidade urgente do governo realizar a Reforma Agrária no Brasil. De acordo com Alexandre Conceição, da Coordenação Nacional do MST, o governo abandonou a Reforma Agrária e absteve-se de cumprir a sua obrigação constitucional.

Conceição também afirma que, no próximo período, o MST vai intensificar as jornadas de luta contra a ofensiva do capital estrangeiro e fará ocupações de latifúndios improdutivos. Ao mesmo tempo, diante da necessidade de mudança do modelo agrícola do país, fará alianças para consolidar a construção do projeto da Reforma Agrária Popular.

O governo permanece em silêncio no quesito Reforma Agrária. Qual é sua avaliação sobre essa postura?

O governo Dilma abandonou a Reforma Agrária. Ao fazer isso, não está apenas se acovardando, mas cometendo uma violação constitucional -que perdura desde o estabelecimento da Constituição- e que no último período tem se agravado de maneira muito crítica. Essa postura do governo deixa clara a opção em benefício do latifúndio e sua posição de refém da aliança com o agronegócio.

Por que o governo não desapropria latifúndios para a Reforma Agrária?

Porque o governo aposta no agronegócio como modelo de desenvolvimento para o campo. Temos dialogado com o governo, mas sem resultados concretos. Segundo dados do Incra, atualmente há mais de 180 milhões de hectares classificados como grande propriedade improdutiva no país. O governo não se mexe para promover a democratização da terra. Não conseguimos nada porque o núcleo central do governo não quer saber da Reforma Agrária. Diariamente novos procedimentos e portarias são inventados e emperram ainda mais o processo. A Reforma Agrária depende de desapropriações de grandes propriedades improdutivas, como determina a Constituição.

Quanto de recursos públicos o governo destina para os agricultores familiares e para os latifundiários?

Neste ano, foram disponibilizados 21 mil milhões de reais no Plano Safra 2013/2014 para a agricultura familiar. O valor é 16,6% maior que o destinado ao setor no ano passado, de 18 mil milhões. Para o agronegócio, no entanto, se disponibilizou 136 mil milhões de reais, ou seja, dez vezes mais investimentos do que à agricultura familiar, responsável por produzir 70% dos alimentos e gerar nove empregos por hectare. Além disso, o agronegócio, que está completamente endividado, protela as dívidas com o governo brasileiro, enquanto as dívidas dos agricultores familiares nos bancos demoraram a ser renegociadas.

Os índices de produtividade ainda são um entrave em todo o processo?

O índice de produtividade do Brasil não é atualizado desde 1975 e segue sendo um dos piores da América Latina. Nesses mais de 30 anos, o campo passou por muitas mudanças e se torna inconcebível nivelar a produção agrícola atual com a de 1975. O governo não teve a coragem de rever a questão dos índices. Essa revisão, sem dúvidas, proporcionaria um grande desentrave na Reforma Agrária no país.

Qual o reflexo para o campo com a inoperância da Reforma Agrária?

Reflete-se na violência do campo. Além de inoperante, é um governo de composição inclusive com o latifúndio e, por isso, não enfrenta os ruralistas e não desapropria terras para Reforma Agrária. Sem avanços na democratização da terra, o Movimento intensificará a luta e ocupará latifúndios para enfrentar a ofensiva contra os povos do campo. Nesse aspeto, o Judiciário se converte no principal conivente do latifúndio: é superágil para criminalizar os Sem Terra, mas ao mesmo tempo garante a impunidade dos crimes do latifúndio.

Como você vê o discurso do governo sobre o Judiciário ter emperrado o processo de novas áreas para criação de assentamento em 2013?

Além de garantir a impunidade dos conflitos no campo, o Poder Judiciário segurará os processos de criação de novos decretos para desapropriações de áreas. Dos atuais 523 processos envolvendo Reforma Agrária no país, 234 estão paralisados. Portanto, é dever do governo Dilma trabalhar de forma articulada com o Judiciário para que se resolvam os impasses que deixam as áreas numa situação jurídica indefinida por anos.

Qual é a importância da Reforma Agrária para a sociedade?

Atualmente, 85% das terras agricultáveis no Brasil cultivam soja, enquanto que a agricultura familiar é responsável por 70% da produção de alimentos para consumo interno, mesmo tendo apenas 15% das terras agricultáveis do país. O agronegócio é apenas uma forma de se apropriar do lucro obtido pelo comércio agrícola, mas não resolve os problemas do povo. Ao contrário, apenas piora, principalmente pela incidência do uso de agrotóxicos e transgênicos no país, que têm afetado a saúde do povo brasileiro. Esse modelo não serve para o Brasil. Precisamos de um modelo que garanta a produção de alimentos saudáveis para a sociedade brasileira por um custo de obtenção considerável. Assim, cria empregos e formas de vida saudáveis para a população camponesa não se marginalizar nos grandes centros urbanos.

Permitirá desenvolver técnicas de aumentar a produtividade e a produção sem destruir a biodiversidade do planeta. O viés para efetivar a construção desse modelo é o projeto da Reforma Agrária Popular, que defende a desapropriação massiva de áreas improdutivas, tendo a agroecologia como base para o desenvolvimento do campo.

Diante dessa conjuntura, como o Movimento pretende atuar no próximo período?

O MST vai continuar lutando e ocupando os latifúndios improdutivos, combatendo a monocultura e lutando contra a ofensiva do capital estrangeiro na agricultura brasileira. O governo precisa mexer no índice de concentração fundiária do país, em vez de investir em programas compensatórios que não promovem a Reforma Agrária, levando aos assentados e assentadas o endividamento crônico. Ao mesmo tempo, vamos costurar alianças que consolidem a construção do projeto de uma Reforma Agrária Popular para o Brasil, ao representar a necessidade de mudança do modelo agrícola do país. É necessário reorganizar o setor agroindustrial, baseado em cooperativas e não grandes empresas transnacionais. Adotar a matriz tecnológica da agroecologia, preservar o meio ambiente e frear o êxodo rural para as grandes cidades.



FONTE: Adital

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

A autogestão como alternativa para os trabalhadores

As discussões que em tempos estiveram no centro do movimento trabalhista sobre o controlo e a autogestão pelos trabalhadores estão agora novamente a ser retomadas, tanto por ativistas britânicos como a nível internacional. 

Por Chris Kane

As discussões que em tempos estiveram no centro do movimento trabalhista sobre o controlo e a autogestão pelos trabalhadores estão agora novamente a ser retomadas, tanto por ativistas britânicos como a nível internacional. A rede de comunistas que produz o The Commune é das mais determinadas defensoras da auto-gestão entre a esquerda radical na Inglaterra e no País de Gales, e tem encontrado, na maior parte, uma resposta positiva. No entanto, ainda existe muita confusão acerca da autogestão, inclusive um forte antagonismo de muitos que se consideram socialistas ou marxistas. Parte da explicação para estas atitudes pode ser encontrada em conceitos errados tanto sobre aquilo que é o capitalismo como sobre a alternativa comunista.

O método do marxismo crítico

Marx, ao contrário de muitos dos seus seguidores, estava preparado para repensar as suas opiniões tendo em conta os acontecimentos históricos, adotando o ponto alto da última revolução como ponto de partida da seguinte; em contraste com aqueles que advogam o socialismo-vindo-de-cima ele via as massas como as criadoras da história e achava que devíamos aprender com elas. Foram as massas em Paris que criaram a Comuna, não Blanqui ou Marx, da mesma forma que foram os trabalhadores que criaram os sovietes na Rússia, não Lenin ou Trotsky. Por mais de meio século a classe trabalhadora pôs sempre a autogestão na ordem do dia, com especial intensidade nos conflitos no Bloco de Leste, onde vários dissidentes marxistas tentaram conceptualizar um comunismo humanista e emancipatório como alternativa tanto aos regimes de ‘Estado socialista’ como ao capitalismo privado. Desde a “queda do comunismo” tem havido um esforço concertado para arquivar esta experiência no cofre da História, com o capitalismo global a declarar que ‘não existe alternativa’. Se a nossa geração quer ter sucesso em renovar e atualizar o comunismo para o século XXI, então temos que adoptar estes pontos altos anteriores como nossos pontos de partida.

A natureza desumanizante e exploradora da sociedade capitalista não é óbvia para a maioria das pessoas por mais dura que seja na verdade – o capitalismo é, e parece que será sempre, o modo de vida normal. Tal como no filme A Matriz [em Portugal, Matrix] a realidade da sociedade está dissimulada. Marx descreveu o ‘fetichismo das mercadorias’. Chama-se fetiche um objeto ao qual são atribuídos poderes que este não tem, tal como ídolos religiosos criados por humanos que depois permitem ser governados pelas suas próprias criações mitológicas. Vivemos num mundo onde cada vez mais aspectos da nossa vida são mercantilizados; a fabricação das mercadorias com o fim de gerarem lucros é universal. Estas mercadorias assumem características fetichistas ganhando vida própria, separadas dos trabalhadores que as criaram. O mercado passa então a controlar-nos como uma entidade independente cuja liberdade tem de ser garantida.

Estas formas de fetichismo identificadas por Marx não são uma ilusão: no capitalismo as relações entre as pessoas aparentam ser relações entre objetos. Este fetiche até tem levado muitos socialistas a verem o mercado como sendo crucial, prestando relativamente menos atenção às relações sociais de produção. Já experimentámos vários remédios para resolver este problema tais como o planeamento e a regulação mas todos falharam porque acreditámos sempre que o Estado pode controlar o mercado. Ao contrário, em vez de o Estado controlar o capital, é o capital que acaba sempre por dominar o Estado.

O beco sem saída dos conceitos antigos

Lenin na Tribuna de Alexander
Mikhailovich Gerasimov
O antagonismo em relação à auto-gestão por parte daqueles que se dizem socialistas e comunistas revela uma profunda antipatia pelo próprio conceito de revolução social. Apesar do slogan muitas vezes usado de ‘um outro mundo é possível’, o retrocesso no movimento trabalhista é tão grande que estamos presos às políticas do possível – como melhor lutar dentro do capitalismo. Poucos genuinamente consideram de que modo a sua atividade está ligada à criação de uma nova sociedade, ou sequer se o está. Entre as estratégias que existem, a que domina todas as outras é  do caminho parlamentar para o socialismo. Sintomático disto é o programa do Partido Comunista Britânico, que propõe o Caminho Britânico para o Socialismo que consiste na busca da criação de “um novo tipo de governo de esquerda, com fortes bases numa maioria constituída pelo Partido Trabalhista, socialistas e comunistas no parlamento de Westminster, um governo que tem origem nas multifacetadas lutas do movimento de massas fora do parlamento”. Aqui o papel das massas é subsidiário em relação ao aparelho de Estado. Isto é refletido no sistema, “nacionalização democrática de setores estratégicos da economia”, que seria feito “numa nova base que garanta a representação tanto do trabalhador como do consumidor na gestão”. A palavra importante aqui é ‘representação’, significando que não é auto-gestão. Esta mentalidade é reproduzida em várias tendências do socialismo que vêm as hierarquias atuais como sendo imunes à mudança.

A alternativa da esquerda revolucionária tradicional consiste em dois elementos chave: a legitimidade do ‘partido’ para assumir a liderança, e uma oportunidade histórica milenarista. O maior destes partidos é o Socialist Workers Party que até advoga ‘o socialismo vindo de baixo’ e a importância dos concelhos operários. Mas a importância dada a estes princípios é corrompida pelo papel fundamental que é dado ao ‘partido revolucionário’. Estes socialistas de partido acreditam que a conquista do poder pelo partido, soberano sobre todas as outras organizações de trabalhadores, constitui o ‘Estado operário’. Em Caminho Revolucionário para o Socialismo, Alex Callinicos [1] afirma que “todo o futuro do socialismo na Grã-Bretanha depende da criação de um partido revolucionário independente”. Encontramos também incongruências em Chris Harman [2], que vê os primeiros passos para a extinção do capitalismo como sendo a nacionalização de “todo o sistema bancário… Da mesma maneira a resposta para a crise energética global… é a nacionalização das indústrias do petróleo, gás e carvão”. Tal como os especialistas equacionaram a intervenção do Estado como sendo “socialismo e segurança social para os ricos”, também Harman exige “socialismo para os trabalhadores”. Estas estratégias podem parecer antagónicas, mas não são: ambas rejeitam o papel das massas como organizadoras plenamente conscientes da sua própria emancipação, prendendo assim as suas aspirações e iniciativa num enquadramento socialista de Estado.

Um conceito vivo de revolução

Presentemente vários defensores do socialismo de Estado digladiam-se dentro do movimento trabalhista, com a maioria dos socialistas e comunistas ainda partilhando conceitos estadistas. Se no início do século XX a principal linha de separação era entre reforma ou revolução, no início do século XXI os comunistas precisam de tornar a linha de separação entre que sistema é que é pretendido: auto-gestão ou estadismo.

Uma revolução será necessariamente difícil. Desde a derrota do Cartismo [3] a nossa classe tem sido infiltrada por um pacifismo cumpridor da lei, cretinismo parlamentar e mitos de ‘excepcionalismo britânico’. No entanto também temos numerosos exemplos de organização com base na auto-determinação da classe trabalhadora, como os comitês de greve, os grupos de apoio aos mineiros e a revolta anti Poll Tax [4]. O importante para os comunistas atuais é que a ideia de auto-gestão não seja conceptualizada fora da relação entre o capital e o trabalhador. Um método dialético percebe que dentro desta relação conflituosa os trabalhadores não são só escravos do seu salário mas que também estão envolvidos em lutas constantes e criativas. Eles persistem nestas lutas com ou sem as organizações do movimento trabalhista. Uma expressão concreta desta criatividade é que esta não é apenas uma tendência para tentar procurar reformas que melhorem as condições de vida dentro das relações capitalistas: existe uma tentativa de obter mais controlo sobre a vida no trabalho; isto vindo diretamente da resposta às condições de trabalho alienado. Este conceito de revolução flui organicamente da luta de classes em numerosos casos durante o século XX, mesmo que seja bastante mal visto pelo CBI [5], pelo TUC [6], pelo Trotskismo e pelo Estalinismo. Mas esta negação de uma alternativa é apenas concebida externamente, pela intelligentsia da classe média, os gestores socialistas que se querem impor à classe trabalhadora.

Impulsionando a autogestão

A fábrica Grissinopoli recuperada pelos trabalhadores
argentinos. Foto de Dario Doria.
A experiência da luta de classes indicou o caminho a seguir em termos de uma disputa pelo poder na qual os limites do controlo dos trabalhadores é empurrado para a auto-gestão. O controlo dos trabalhadores significa mais influência sobre o processo de trabalho e a erosão das prerrogativas patronais, mas com a auto-gestão os trabalhadores teriam controlo total: os gestores seriam abolidos, e a gestão seria eliminada como uma função separada do trabalho em si. O comunista italiano Antonio Gramsci viu no controlo dos trabalhadores o caminho para a vitória no futuro, no sentido que ensinaria a classe trabalhadora a dominar a organização da produção: dessa maneira a auto-gestão significaria uma revolução cultural.

Os órgãos de auto-gestão dos trabalhadores rapidamente entrariam em forte conflito com as instituições do capital. O objectivo dos comunistas é de desmantelar todas as instituições sociais que reforçam o capital. Um conceito reduzido da auto-gestão que prenderia os trabalhadores ao seu local de trabalho seria inevitavelmente auto-destrutivo, como foi o caso em Itália em 1920 e na Polónia em 1981 onde os trabalhadores tomaram conta das fábricas mas não desafiaram o Estado. Por ignorarem o Estado, os anarcossindicalistas e os socialistas parlamentares são gémeos; apenas através de um ataque total ao capitalismo em todas as esferas onde este exerce poder é que é possível ter sucesso. O objectivo é desenvolver as organizações da auto-gestão numa força alternativa de governação. Tal visão significa quebrar a dicotomia falsa entre propriedade do Estado e propriedade privada que tanto cegou a esquerda como vemos pelas suas respostas à crise atual do capitalismo.

O que é a propriedade social?

A recapitalização dos bancos pelo Estado tem sido utilizada como uma oportunidade para exigir mais nacionalizações. Estas exigências têm sido embelezadas por todos os tipos de retórica socialista com pedidos contraditórios de ‘nacionalização’ pelo Estado capitalista ‘sob controlo dos trabalhadores’. As nacionalizações são agora chamadas de ‘propriedade social’ e é aconselhado aos trabalhadores que resistem à recessão que adotem este objectivo. A desadequação deste método é facilmente visível nas recentes ocupações de fábricas. Os trabalhadores por trás das ocupações fizeram-nas não porque algum grupo lhes disse mas apenas por terem seguido os seus instintos. Na sua atividade autônoma eles puseram em prática as características essenciais da auto-gestão. Os comunistas precisam de compreender o espírito progressivo dessas formas de luta para que possam entender a sua dinâmica e potencial. No Manifesto Comunista, Marx afirmou que aquilo que distingue os comunistas é que “no movimento do presente eles também representam o futuro do movimento.” Mas responder a este movimento vindo de baixo com uma nacionalização disfarçada como propriedade social não é nem um remédio adequado à luta respectiva ou uma perspectiva válida para um futuro para além do capitalismo.

Um exemplo didático é o Partido Comunista dos Trabalhadores da Bósnia e Herzegovínia que, utilizando lições obtidas da sua própria experiência, diz o seguinte: “A nacionalização dos meios de produção não pode trazer liberdade à classe trabalhadora, visto que as empresas na posse do Estado estão sob o controlo do Estado, ou por outras palavras, sob controle do partido no poder. A exploração continua. Apenas a socialização dos meios de produção pode produzir mudanças reais nas condições da classe trabalhadora. A propriedade social está ligada à auto-gestão socialista… por concelhos operários eleitos por todos os trabalhadores.”

Simplificando, o Estado não é a sociedade. A propriedade implica controle e a propriedade social no sentido marxista implica controlo por toda a sociedade. Isto só pode realmente acontecer quando os trabalhadores-produtores gerem de maneira ativa os recursos da sociedade. O próprio Marx foi enfático na sua oposição às cooperativas patrocinadas pelo Estado “que o Estado, não os trabalhadores, criam”; essas iniciativas teriam “apenas valor se fossem criações independentes dos trabalhadores”. (Crítica do Programa de Gotha).

O fim da alienação e as novas relações sociais

Banquete dos trabalhadores de uma Usina ocupada
na França em 1936
Uma das críticas à auto-gestão tecidas pela esquerda é que não passa da gestão pelos trabalhadores da sua própria alienação. Esta crítica baseia-se na premissa que as organizações de auto-gestão apenas conseguem manter-se estáticas dentro da sociedade capitalista. Isto é outro ponto de vista daqueles que só conseguem imaginar a existência da auto-gestão enquanto inserida no contexto duma futura sociedade comunista, não considerando possível a auto-gestão dos trabalhadores como parte do processo revolucionário. Mas existe uma escola de pensamento que advoga a auto-gestão numa forma que de facto recria a auto-alienação dos trabalhadores e a inevitável dissolução da própria auto-gestão. Essa forma pode ser encontrada no revivalismo presente do socialismo de mercado.

Um exemplo disto é Gerry Gold, que argumenta a favor de “cooperativas de trabalhadores” e de “um mercado genuinamente livre e competitivo”. Isto é em parte uma reação às falhas das economias socialistas de Estado, mas é precisamente a conclusão errada que se pode tirar. O mercado não existe separadamente mas é sim uma manifestação direta das relações de produção. Enquanto se produz para o mercado, competindo e tentando aumentar o rendimento obtido, os trabalhadores inevitavelmente vão entrar em conflito com outras cooperativas de trabalhadores e assumirão o papel de exploradores. Ao invés de propriedade social, teríamos cooperativas capitalistas em competição direta. Tal como locais de trabalho locais e atomizados não conseguem afastar a burocracia, também estas cooperativas desapareceriam numa economia de mercado. Tal foi a experiência na Jugoslávia.

A produção de mercadorias gera relações sociais capitalistas: o trabalho continuaria alienado, uma mercadoria se relacionando com outros humanos através da produção de mercadorias para um mercado. O capital (sobre)vive através da obtenção de cada vez mais valor acrescido do trabalhador que o produz. Por esta razão todos os esforços para controlar o capital sem primeiro destruir a base da produção de valor é derrotista e é inevitavelmente o capital que recupera o seu controlo.

Conclusão

Trabalhadores da fábrica ocupada Zanon na Argentina.
Foto por lavaca.org
O comunismo deve ser entendido como um sistema com base na disseminação por toda a sociedade da propriedade social e da auto-gestão. Se reconhecermos isto então temos que ter em consideração implicações profundas na organização e estratégia comunista. Uma sociedade destas apenas pode ser criada por organizações que são baseadas em princípios semelhantes. Isto cria uma linha de demarcação na reconstrução do comunismo atual entre os conceitos de auto-gestão e de socialismo de Estado da mesma forma que existia essa demarcação entre os conceitos de reforma e revolução no início do século XX. A maneira em que os comunistas compreendem isto requer bastante mais debate. É interessante notar que tanto na Jugoslávia como na Alemanha Oriental os dissidentes que defendiam a auto-gestão ambos chegaram à conclusão que uma liga de comunistas unida à volta da ideia da emancipação universal era uma alternativa essencial ao Partido Comunista.

É através do movimento de auto-gestão que a consciência amadurece, reunindo conhecimento e força para uma transformação social mais abrangente. Longe de ser um assunto secundário, a auto-gestão é um elemento chave na transformação da economia. Não queremos reorganizar o capital duma maneira diferente. Por outro lado, a auto-gestão também não oferece uma solução integral ao problema de ultrapassar o capitalismo numa nova sociedade comunista. O que oferece, no entanto, é uma estrutura dentro da qual se pode conseguir o fim da alienação do trabalho e a criação de novas relações de produção. É um eixo do processo revolucionário comunista que abole o sistema de classes, transcende o Estado substituindo-o por auto-gestão comunitária, e abole a produção de mercadorias.

Notas

[1] Membro do comitê central do SWP desde os anos 80 e conhecido intelectual trotskista.

[2] Membro do comitê central do SWP desde os anos 60 recentemente falecido.

[3] Movimento social inglês que se iniciou na década de 30 do século XIX tendo como base a carta escrita pelo radical William Lovett, intitulada Carta do Povo, e enviada ao Parlamento Inglês. Naquele documento percebem-se as seguintes exigências:
• Sufrágio universal masculino (o direito de todos os homens ao voto);
• Voto secreto através da cédula;
• Eleição anual;
• Igualdade entre os direitos eleitorais;
• Participação de representantes da classe operária no parlamento;
• Remuneração aos parlamentares.
Inicialmente as exigências não foram aceitas pelo Parlamento e um movimento rebelde teve início. Gradualmente as propostas da carta foram sendo incorporadas e o movimento foi-se enfraquecendo até sua desintegração.

[4] Imposto criado pelo governo de Margaret Thatcher em 1989 na Escócia, e em 1990 no restante Reino Unido, o qual custearia os governos locais (“councils”, semelhantes a prefeituras) por meio de uma taxa única a ser cobrada por habitante. Ele substituiria o sistema anterior, no qual o imposto era calculado de acordo com o valor dos imóveis, de forma semelhante ao IPTU brasileiro.
A população britânica resistiu fortemente à implantação desse imposto, se recusando a fornecer os dados necessários ao governo, se recusando a pagar, e dificultando a punição dos inadimplentes.
A impossibilidade de implantar este imposto, e a derrota do governo frente à população, foi a principal razão da queda de Thatcher como Primeira-Ministra.

[5] Organização sem fins lucrativos onde estão filiadas mais de 200 mil empresas britânicas e que organiza estudos e tenta influenciar o governo britânico além de manter os seus membros bem informados.

[6] Federação de sindicatos do Reino Unido que conta com cerca de 7 milhões de membros e que existe desde 1860.

Traduzido do inglês por Carlos Ferrão. Publicado originalmente por The Commune

Imagem em Destaque: Lenin e o Mapa de M. Kordonsky

domingo, 8 de setembro de 2013

A relevância da análise de classe no Brasil

O mundo do trabalho atual é, aparentemente, tão complexo, fragmentado e multifacetado, que descrever e analisar suas dinâmicas a partir de uma teoria geral sobre classes sociais pode parecer um exercício infrutífero. Diante disso, alguns teóricos decretaram “a morte das classes”. Para eles, o conceito foi pertinente para a análise das relações de produção no capitalismo industrial, mas, com o desenvolvimento das tecnologias da informação e da economia de serviços, a partir da década de 1970, se tornou obsoleto.

Por João Alexandre Peschanski (*)


Sem chegar ao extremo de rejeitar o próprio conceito, correntes sociológicas depenaram a noção de classe social de muito de seu valor analítico e explicativo, tornando-o uma ferramenta meramente descritiva. Aqui, a classe social reúne atributos individuais salientes em dada sociedade  que afetam as oportunidades e escolhas das pessoas numa economia de mercado, como educação, etnia, inteligência, gênero, motivação etc. Nessa corrente, a noção de classe é usada para descrever grupos que têm certos atributos em comum, sem pressupor que esse aspecto tenha valor explicativo e sem que haja uma relação necessária entre as diferentes classes.

Uma segunda corrente agrega à primeira, que põe o foco em atributos, um mecanismo explicativo das desigualdades socioeconômicas: a exclusão de indivíduos e grupos de posições privilegiadas por meio de algum tipo de restrição social. Um exemplo é a proteção  de nichos de trabalho com a exigência de alguma qualificação especial ou diploma. Essa perspectiva é relacional, na medida em que os benefícios associados a ter uma posição de classe privilegiada – melhores salários, condições de vida, status – estão vinculados à exclusão de indivíduos e grupos.

Estudos recentes sobre a composição de classe no Brasil oscilam entre a primeira e a segunda corrente. Afirmam que a classe média é, hoje, a maior classe brasileira. Definem-na de acordo com o nível de renda – geralmente, entre R$ 1.064 e R$ 4.591 por mês – e, às vezes, também de acordo com o nível educacional. Portanto, a classe média indica o estrato intermediário numa escala de renda, arbitrariamente delimitada e sem levar em consideração dimensões que determinam as condições materiais da vida, como nível de endividamento e gastos com serviços básicos.

Uma terceira corrente, sob influência direta do marxismo, com mais ou menos ortodoxia, se fundamenta na noção de exploração. Não apenas os ricos são ricos porque excluem os pobres, mas se tornam ricos e mais ricos a partir da apropriação dos frutos do trabalho alheio. Na teoria, a exploração pressupõe relações de produção estruturalmente antagônicas, entre os que exploram e os que são explorados. A estrutura de classe – posições de classe que existem independentemente das pessoas específicas que as ocupam – determina, portanto, interesses materiais objetivos: os capitalistas têm incentivos racionais em maximizar a exploração, enquanto os trabalhadores têm incentivos racionais em limitá-la. Vários mecanismos podem qualificar os interesses objetivos, especialmente dos trabalhadores: se dominam outros trabalhadores, se são funcionários públicos etc. Essas qualificações podem fazer com que os explorados ajam em contradição com seus interesses definidos pela exploração e a reproduzam. A classe média pode ser definida como uma posição contraditória: pessoas que são exploradas – isto é, são trabalhadoras -, mas que detêm algum atributo próprio aos exploradores, como a capacidade de dominar.

O livro de Marcio Pochmann, Nova classe média? O trabalho na base da pirâmide social brasileira (Boitempo, 2012), se propõe a investigar as relações sociais brasileiras, especialmente as dinâmicas do mundo do trabalho e a desigualdade econômica, à luz dessa terceira corrente, fundamentada na noção de exploração. A análise de Pochmann adota, como ponto de partida teórico, a necessidade da consideração da estrutura de classe brasileira, em seu desenvolvimento histórico, nas transformações pelas quais passaram, no geral, o capitalismo e, mais especificamente, as relações de produção. Apresenta um panorama de classe multidimensional, relacional, com ênfase em interesses materiais, onde as posições na estrutura produtiva têm caráter explicativo.

Pochmann rejeita a tese de que o Brasil se tornou um país majoritariamente de classe média, à medida que o estrato social que mais cresceu foi o que ele chama de working poor (ou pobretariado). São trabalhadores, cuja renda até cresceu, mas que são explorados e, até mais dramaticamente do que outros trabalhadores, na medida em que muitos têm relações de trabalho terceirizadas, precárias, temporárias. Os dados com os quais Pochmann trabalha não lhe permitem esmiuçar a fundo as dinâmicas de exploração e suas contradições no Brasil contemporâneo, mas convida a análises teóricas e empíricas sobre a estrutura de classe no Brasil, um convite a empreitadas científicas que levem a sério a tradição da análise de classes.


(*) João Alexandre Peschanski é Sociólogo, coorganizador da coletânea de textos As utopias de Michael Löwy (Boitempo, 2007) e integrante do comitê de redação da revista Margem Esquerda.


FONTE: ControVérsia

sábado, 7 de setembro de 2013

Participação popular

Por Viviane Tavares

Movimentos sociais, ONGs, Conselhos: eles ainda
representam a população em busca de seus direitos?


"O movimento social é um conceito relacional. Ele só existe em função do Estado". Com esta afirmação, o professor e cientista social Rudá Ricci abriu sua participação na mesa ‘Os movimentos sociais participam das políticas de saúde?', que também contou com o coordenador-técnico da área de tecnologia social do Observatório Tuberculose Brasil e psicólogo Carlos Basília no evento que integrou a Semana Sergio Arouca que aconteceu do dia 3 a 6 de setembro.

O professor começou a explicar a estrutura de Estado que, para ele, é burocrática e personalista, características herdadas da Corte Portuguesa. "A alta da verticalização na tomada da decisão dificulta os processos. Nas estruturas que temos hoje, quanto mais perto da população, menos poder decisivo temos e vice-versa. Ou seja, a natureza da gestão é a não-sensibilização", explicou e acrescentou: "O Estado. além de favorecer este distanciamento, não reconhece na população a fonte de elaboração de políticas públicas", concluiu.

Tratando especificamente dos governos mais recentes, Rudá destacou, por um lado, o papel extremamente centralizador que o Estado assumiu no governo Lula. "Todo prefeito hoje é gerente do Governo Federal. Os únicos programas e políticas que eles conseguem implementar nos municípios são o Minha Casa, Minha Vida, o Centro de Referência de Assistência Social (CRAS), o Mais Educação etc.", disse. E acrescentou: "O município mal consegue se manter, e muito menos investir em inovação". Ao mesmo tempo, ele chamou atenção para a importância que esse Estado adquiriu no financiamento da iniciativa privada, por exemplo, através do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico Social (BNDES), que, de acordo com o professor, se tornou o terceiro maior banco de fomento do mundo nos governos Lula e Dilma Roussef. "O BNDES é um menu de investimento privado", disse e acrescentou: "[Esses governos] criaram programas como o Bolsa Família, garantiram o aumento real do salário mínimo e o crédito popular para as classes mais pobres. O Estado hoje é clientelista e não populista. Engessou nossa capacidade de pensar o todo".

Concluindo que o Brasil não tem uma política de Estado, e sim de Governo, ele exemplificou. "Nossas escolas têm nome de personagens, nossas ruas, nossas instituições. Seja de direita, seja de esquerda assumimos essa lógica. Quando achamos que estamos fazendo algo revolucionário, tiramos o nome Duque de Caxias e passamos para Che Guevara", exemplifica.

Para Rudá, o problema, no entanto, não está só no Estado, mas também nas instituições da chamada sociedade civil, como os conselhos e os sindicatos, que deveriam ser fortes ferramentas para a participação popular. "Estas estruturas não acompanham a dinâmica social, que é territorial, e não especializada", disse.

Rudá lembrou que nos anos 1980 houve a emergência de movimentos sociais com um fortíssimo caráter comunitário e comunitarista, que define como aquilo que o outro conhece, com respeito a alguém que é próximo. "Não me sinto confortado quando dizem que tivemos uma forte participação da classe média. Tivemos sim, mas não se limitou a isso. Também tivemos uma leitura popular que vinha pela religiosidade, que se aproximava muito da Teologia da Libertação", contou. Para ele, os anos 1980 foram o grande momento de conquistas de direitos. "Aquela era a hora de pedir mais e ficamos só com o SUS. Repetimos a estrutura de Estado de categorizar as lutas. Tínhamos que pensar na universalidade de fato", lembrou.

De acordo com Rudá, a participação popular trouxe conquistas importantes para a Constituição de 1988. "O texto do Artigo I, parágrafo único, que diz que Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, deu margem à criação dos conselhos. Hoje temos 30 mil deles, mas não comandamos o país", lamenta.

O ativista Carlos Basília lembrou ainda que a criminalização dos movimentos sociais e das ONGs dificultou esta participação e afirmou que os conselhos de saúde não são mais espaços que permitam o controle social. "As agendas dos conselhos são ditadas pelo gestor. Precisamos rever esses conselhos. Fora isso, desde os anos 1990, vêm surgindo diversas ONGs com pautas muito específicas e que só têm surrupiado os recursos públicos", disse. Ele informou ainda que recente pesquisa publicada pela Abong mostrou que a maior parte das ONGs tem viés religioso. Ele apontou como crítica também a relação do Estado com as Ongs. "É o mínimo pelo máximo. Cobram ações qualificadas por meio de voluntariado, sem custo e ainda cooptam este espaço, além de, estas ONGs atuarem onde o Estado deveria atuar", aponta.

Manifestações e a classe média

O professor Rudá apresentou uma análise dos comportamentos distintos nas manifestações mais significativas do país, que ele chama das do século 20 e do século 21, traçando paralelos entre os dois fenômenos. Segundo ele, se naquela época a predominância era do coletivo, agora há preservação da individualidade. A militância que antes seguia uma orientação de organização, nos tempos atuais, segue uma adesão por convicção e emoção. E antes o que era vinculado por um programa ou meta, hoje passa por algo pontual. "Um grande exemplo da diferença é quando fui a uma plenária em julho com esse pessoal e perguntei: como vocês tiraram essa mesa? E eles me responderam que tinha sido por sorteio. Isso em nosso tempo era inconcebível. A escolha de mesa era minuciosa porque já ditava o resultado da plenária. Esses jovens hoje vão para as ruas e fazem os seus cartazes pelo caminho, a pauta pode variar. Antes tínhamos assembleia duas semanas antes e produzíamos cartazes com pauta única", exemplificou.

Ele lembrou também que esta classe que está nas ruas foi inserida no contexto social pelo consumo, um fenômeno, que Rudá Ricci chamou de Fordismo Tardio no Brasil e atribuiu aos anos do presidente Lula no poder. "Hoje a classe média é extremamente conservadora e fundamentalista. Não pensa no social e até a religião tem caráter utilitarista", apontou e acrescentou: "Esta classe tem medo de voltar a ser pobre. Se analisarmos, todos têm um histórico de exclusão social da família inteira. Além disso, ao mesmo tempo em que há esta ascensão, não há o debate ideológico. O Lula não quis fazer nenhum tipo de discussão que tivesse esse caráter. Esta aí o resultado: a população não tem noção de direitos coletivos", avaliou.

Carlos fez uma análise da ambiguidade destas manifestações. "Ao mesmo tempo em que essa grande mobilização segue o fenômeno de quase um flash mob -onde pessoas se encontram por meio das mídias sociais para fazer coreografias-, sem pautas políticas, vemos também a saúde como uma demanda. Por que isso apareceu? Todo mundo está vendo o desmantelamento da saúde pública meio inerte e agora chegamos ao limite", concluiu.


FONTE: Adital