sexta-feira, 23 de julho de 2021

Sobre os Centros Socialistas

"Humildade dos propósitos, grandeza do projeto. Somente assim a grande história material se fará: passando por cima das ilusões politicistas que esperam que o povo se levante por conta própria", escreve o filósofo e professor da Faculdade de Direito da USP Alysson Mascaro

   

 


 Por Alysson Leandro Mascaro 

 (Publicado originalmente no Blog da Boitempo)

 

Ao Deputado Federal Glauber Braga.

Há alguns anos tenho propagado a necessidade de intensificar o trabalho de luta ideológica de base dos setores progressistas e socialistas brasileiros. Com a crise político-econômica e social atual deflagrada, ao que se somaram os danosos males da pandemia, avancei na fala pública urgente a respeito da necessidade de fundar o que denominei “Centros Socialistas” pelas comunidades de todo o país. Na alegria do profícuo diálogo mantido com o Deputado Federal Glauber Braga por uma ocasião de uma entrevista ao final do ano de 2020, transmitida ao vivo pelas redes de internet, e que redundou no pronto entusiasmo desse destacado líder político fluminense e brasileiro a ser o pioneiro na implantação de tal ideia, ofereço esta carta, “Sobre os Centros Socialistas”, para que sirva de marco referencial e contributo às companheiras e companheiros que venham a se somar a tal projeto.

A luta e sua possibilidade em nosso tempo

As lutas socialistas têm enfrentado, nas últimas décadas, um domínio do capital ainda maior no plano mundial. A marcha da mercadoria e da acumulação se amplia. Ainda que as crises se propaguem e o tecido social se esgarce, mesmo assim, a ideologia capitalista cada vez mais interpela, constitui e orienta as subjetividades. Os Estados, a política e o direito deixam às claras aquilo a que se prestam; suas formas são a do domínio burguês. Golpes, movimentos de extrema-direita e regressões sociais campeiam por muitas sociedades. O espectro das contradições insanáveis do capitalismo atual ecoa aquele do começo do século XX: duas crises distintas de acumulação, mas ambas estruturais. Numa, a extrema-direita desaguou no fascismo; na de agora, ainda está em processo de consolidação de seus contornos últimos. Naquele momento, as experiências revolucionárias socialistas despontavam; no atual, apresenta-se o socialismo como tabu e o capitalismo e suas instituições como corolários inexoráveis.

No Brasil, o momento presente soma, ao quadro da crise do capitalismo mundial, suas próprias mazelas. Vive-se sob golpe. As condições sociais regridem. A luta está bloqueada pelo capital, pelos meios de comunicação de massa, pelo Estado, pelo direito, pelas forças armadas, pelos aparelhos constituintes da sociabilidade quotidiana – família, religião, costumes, intelectualidade, formadores de opinião. Aumenta o combate ao socialismo, às esquerdas e às lutas de classes, grupos e movimentos sociais. Tal marcha brasileira do extremismo de direita e da repressão às lutas está em processo de ascensão e crescerá ainda mais. Todo esse quadro se apresenta, a princípio, como um molde das impossibilidades. Em face dele, mesmo assim, é preciso fundar a luta e a possibilidade.

Saber sobre a sociabilidade capitalista para agir pelo socialismo: ciência e revolução. O que fazer, no quadro das impossibilidades, é vislumbrar o elo mais frágil da corrente e nele investir, para que a correlação de forças se altere e a dinâmica permita novas situações e ações. Quando tudo parece estar bloqueado, é preciso agir nas bases últimas, tensionando a reprodução. Os Centros Socialistas são a alocação das energias não apenas para a disputa institucional – cujos limites são dados pela própria natureza das formas das instituições, derivadas do capital –, mas para o processo de preparação das massas para a transformação social. Poderá resultar em pouco, quase nada; mas, sendo formação para o socialismo e para a tomada do poder pelas massas, poderá também ser exatamente tudo o necessário para o alvorecer da luta estrutural.

A luta ideológica no capitalismo atual

O quadro da ação ideológica na sociedade capitalista contemporânea é este:

1) ideologia estrutural advinda das relações do sujeito na produção (mercadoria, acumulação, propriedade privada, contrato, direito, Estado).

2) ideologia sustentada por aparelhos ideológicos:

2.1. aparelhos ideológicos comunicacionais (meios de comunicação de massa).

2.2. aparelhos ideológicos de práticas reiteradas:

2.2.1. práticas ideológicas reiteradas do local de trabalho (sindicatos).

2.2.2. práticas ideológicas reiteradas da vida quotidiana (família, escola, igreja, comunidade).

É preciso saber como funciona tal quadro da reprodução social capitalista para estabelecer as formas de luta pela sua superação.

A sociedade capitalista se reproduz mediante formas sociais que a todos e a tudo determinam: mercadoria, valor, dinheiro, propriedade privada, contrato, Estado, direito etc. Todos os indivíduos e todas as classes se submetem, materialmente, a essa coerção das formas sociais burguesas. O pobre e o rico sabem que sua vida é medida por dinheiro; a diferença é que um tem – e pelo dinheiro explora –, enquanto o outro não tem – e pelo dinheiro é explorado. As condições do capitalismo não dependem da vontade de cada indivíduo; são, antes, estruturais. Não se é capitalista ou assalariado porque se quer, mas porque a sociedade assim produz suas relações sociais.

Essa base material pela qual as relações se mantêm faz com que todos, no capitalismo, tenham de viver submetidos às determinações do modo de produção. Mas contra isso, em geral, os indivíduos não se opõem: todo esse processo se faz pela vontade dos submetidos. Todos contratam, compram e vendem, negociam sua força de trabalho, desejam maiores lucros, melhores salários, oportunidades de negócio, segurança ao seu patrimônio etc. A ideologia capitalista é o que forma, na prática constituinte, os sujeitos que vivem em sociedades capitalistas.

A ideologia capitalista, no entanto, além de se basear nessas relações econômicas e sociais, reforça-se com uma série de aparelhos ideológicos. Para que não se levante contra a exploração do trabalho, o trabalhador é bombardeado pela ideologia liberal, louvada por entidades patronais e, mesmo, por algumas lideranças sindicais. Televisões, rádios, jornais, revistas, redes sociais, notícias e interpretações operam de acordo com o interesse burguês. Escolas e faculdades têm como conteúdo de seu ensino aquilo que é funcional ao capital. A religião, via de regra, legitima a desigualdade dizendo-a ser resultado de uma vontade divina. A família, organizada como unidade de sustento econômico dos seus, materialmente se protege e se orienta para a sobrevivência nos termos capitalistas, reproduzindo na prática sua ideologia. Os círculos de parentesco, amizade, vizinhança e diversão também sustentam os mesmos valores e prestigiam suas premissas ideológicas: ordeiros, não-criminosos, bem-sucedidos, bem-casados, ortodoxos sexual e afetivamente, trabalhadores, de direita – os chamados cidadãos de bem.

Destaco, assim, que há duas ordens ideológicas, complementares, que organizam o capitalismo: 1) uma estrutural, advinda da própria relação social dos sujeitos na produção; 2) outra sustentada por aparelhos, que é reforçada e manipulada pelos seus controladores. Assim, no estrutural, todos compram e vendem trabalho como mercadoria no capitalismo. No que tange aos aparelhos, as igrejas que sustentam os valores de tal sistema podem ser mais ou menos defensoras da teologia da prosperidade; as escolas, mais progressistas ou conservadoras; os meios de comunicação, mais ou menos golpistas ou reacionários. Os aparelhos ideológicos são materialmente sustentados pela determinação econômica, de tal sorte que a ideologia capitalista tende a dominar de ponta a ponta as relações sociais.

A determinação material pelo capital só se derruba com a tomada dos meios de produção pelas classes trabalhadoras e pela consecução de modos de produção socialistas. Essa determinação material do capital é intimamente conexa dos aparelhos repressivos de Estado – forças armadas, polícias, direito. Já os aparelhos ideológicos, por sua vez, podem ser parcialmente disputados dentro das condições capitalistas. É possível – embora seja difícil e sua conquista seja sempre intermitente – haver instituições ideológicas contrapostas ao capital, como escolas ou imprensa. A ideologia capitalista a tudo domina, mas o controle de alguns aparelhos ideológicos pode buscar tensionar tal domínio. A ideologia do capital na materialidade da produção é mais estrutural (e mais difícil de transformar) que cada ação ideológica sustentada pelos aparelhos. Assim o sendo, então está nos aparelhos ideológicos o elo fraco da corrente da luta de classes no capitalismo presente.

No que tange aos aparelhos ideológicos, eles podem ser compreendidos em dois grandes blocos: 2.1) os meios de comunicação de massa; 2.2) os aparelhos de formação ideológica por reiteração de práticas relacionais quotidianas. Os primeiros guardam, principalmente, a função ideológica de ataque e combate imediato. As pautas, os câmbios políticos e mesmo golpes são instrumentalizados por tais meios. São dinâmicos, buscam mobilização rápida e muitas vezes operam com foco. Os segundos têm a função ideológica de resistência e sustentação. As bases de horizonte de mundo aí se reproduzem. São estáveis, buscam sustentar padrões gerais de sociabilidade. Como são dois conjuntos de aparelhagem relacional relativamente intercambiáveis, aparelhos comunicacionais também têm, incidentalmente, funções de resistência e sustentação; aparelhos de reiteração quotidiana também têm, incidentalmente, funções de ataque e combate imediato.

A luta contra os meios de comunicação pode se fazer de modo econômico e jurídico – possuindo canais e disputando o mercado da informação – e técnico – utilizando tecnologias de modo vanguardista. Já o embate com os aparelhos da reiteração quotidiana se faz num nível comezinho, convivencial, no qual as práticas constantemente reproduzidas. Ter canais de mídia demanda um esforço estratégico dependente de grandes organismos de combate – governos à esquerda, partidos, sindicatos, financiamentos. Dada a histórica ausência de ação das esquerdas nesse nível de luta ideológica, e dada também a reação plena e imediata de capitalistas e meios tradicionais de comunicação de massa a tais empreendimentos, tem restado então, no campo das mídias, o uso vanguardista de tecnologias. A extrema direita assim procedeu, tomando de assalto o campo da direita e combatendo a esquerda via redes sociais e ferramentas de internet. Também nesse setor as esquerdas institucionais padecem. Em face de todo esse quadro de combates não realizados e dificultados, assim sendo, o único espaço factível das possibilidades – e, portanto, o elo no qual se deve investir a luta – é o da formação da ideologia na reiteração das práticas quotidianas.

Sobre o campo do convívio social, e a respeito de suas possibilidades de disputa em favor do socialismo, abrem-se ainda dois possíveis espaços: 2.2.1) aquele da disputa no local de trabalho – e em razão dos seus interesses profissionais imediatos; 2.2.2) aquele outro da mais basilar e imediata quotidianidade. Desde a Revolução Industrial, as lutas das massas trabalhadoras se concentraram em fábricas, indústrias e grandes espaços de produção, de que, no século XX, o fordismo é seu modelo mais exemplar. Com a chegada ao regime de acumulação pós-fordista, no final do século XX e início do século XXI, a produção se descentraliza relativamente no que tange à sua espacialidade. Com maiores incrementos da exploração via tecnológica, terceirizações e trabalho remoto, então a produção capitalista consegue desconectar a massa trabalhadora do encontro presencial em grandes plantas industriais ou mesmo de serviços. O aprendizado político na planta da fábrica ou no espaço físico de prestação de serviços se perde. Como toda sociedade capitalista é uma sociedade da exploração do trabalho sob forma assalariada, a submissão no trabalho continua, sob modos diversos – terceirizações, empreendedorismo individual, prestação de serviços, exército de desempregados à espera de trabalhos temporários –, mas a forja de vínculos sociais pelo local de trabalho é relativamente menor do que o fora no tempo do fordismo.

Desse vácuo ou dessa menor incidência da sociabilização por meio do local de trabalho decorre então uma maior incidência dos dois outros fenômenos de sociabilização mediante aparelhos ideológicos: o primeiro, aquele realizado pelos próprios meios de comunicação de massa, interpelando os indivíduos de modo mais direto e personalizado, com tecnologias e algoritmos cada vez mais sofisticados; o segundo, aquele da nucleação relacional básica, que se estrutura na família, na comunidade e na religião. Segundo as referências do quadro aqui proposto, a fórmula do capitalismo pós-fordista procede à seguinte dinâmica: 2.2.1 < 2.1 + 2.2.2. A sociabilização pelo trabalho se submete à sociabilização mediante o controle da individualidade pelos aparelhos comunicacionais e pelos aparelhos basilares de formação e cuidado familiares/comunitários.

São exatamente tais duas esferas de sociabilidade que sustentam, nas décadas de capitalismo pós-fordista, a marcha de regressão, conservadorismo e reacionarismo de países como o Brasil – mas também dos EUA e de outras sociedades mais. E também, exatamente, são as duas esferas não-trabalhadas pelas esquerdas do mundo que tomaram o poder dos Estados via eleitoral e que renunciaram, em grau variado, a combater frontalmente o capitalismo e a forjar a luta socialista.

Nenhuma dessas esferas ideológicas da sociabilidade é nova. Todas existem desde que as sociedades mundiais conhecem a sociabilidade capitalista, num modo de produção organizado mediante a subsunção real do trabalho ao capital. Em todas as sociedades em que surge, o capitalismo se organiza por famílias mononucleares, vida citadina e em seus respectivos bairros segregados urbanisticamente, religiões da prosperidade, sindicatos e partidos não-revolucionários e meios de comunicação de massa. A novidade do tempo presente é apenas a sua articulação e seus respectivos pesos relativos, que geram algumas modulações próprias dentro da reprodução social capitalista – aquilo que a teoria marxista da regulação chama por termos médios. Assim, tanto o local de trabalho e a vinculação orgânico-sindical de formação do trabalhador continuam subsistindo, ao lado e próximo dos meios de comunicação e das demais instituições de subjetivação de base. A mudança – e o que se trata de apontar para que se possa avançar nas lutas em sentido contrário – é no arranjo das relações conservadoras, que se mudam e se mantêm sob as mesmas formas do capitalismo. Daí, portanto, se o quadro se atualiza, dá-se a imperiosidade também da atualização das lutas transformadoras em face de tal contexto.

Nas condições do surgimento de um capitalismo fordista, massas proletárias estavam trocando vidas sob modos de produção tradicionais por vidas assalariadas e mercantilizadas. Naquele tempo, a resistência orgânica à uniformização mediante a forma mercadoria era maior, o que permitiu que algumas sociedades lutassem já pelo socialismo. Mas agora, nas condições do declínio do capitalismo fordista e de organização de um regime de regulação pós-fordista, as massas proletárias estão constituídas por uma sociabilidade plenamente mercantilizada. Suas vidas operam, então, um enraizamento da subjetividade marcadamente individualizada, cujos liames são sempre mercantis – na política, o cidadão é o consumidor; na família, a formação do filho é para herdar dos pais ou bem habilitar-se para se vender profissionalmente; na religião, o crente é o agraciado pelas vantagens econômicas sustentadas por Deus. O trabalho e suas esferas de ação são desprezados – ser trabalhador é menos desejado que ser celebridade (os aparelhos ideológicos de comunicação de massa ganham proeminência no desejo em face da excelência no ambiente de trabalho); sindicatos, partidos e movimentos de esquerda são objeto de ojeriza. O quotidiano se torna plenamente estruturado pela aparelhagem ideológica capitalista. Como a sociabilidade capitalista tem falhas, mas não há aparelhagem ideológica de denúncia e disputa de tais crises, até agora têm sido os próprios aparelhos ideológicos capitalistas que explicam suas falhas, narrando-as por meio de racionalidades que não são causais: falta de moral, de ética, de religião, de pleno liberalismo, culpa do Estado, dos novos costumes, da esquerda, do comunismo. Se não houver disputa nos aparelhos, o círculo da reprodução da exploração capitalista se fecha plenamente até mesmo quando da explicação de suas crises e falhas estruturais, impedindo que o sofrimento gere a explosão do antagonismo e da contradição.

Se o jornal, o rádio e a televisão são a forma comunicacional de massas do fordismo, as plataformas eletrônicas são a forma comunicacional do pós-fordismo. O sindicato e a política institucionalizada são a forma de arregimentação política do fordismo; mas são os Centros Socialistas a forma organizacional de base no capitalismo pós-fordista. Como as esquerdas, quando ganham poder mediante eleições, via de regra não tensionam ideologicamente a sociedade e não constituem novos aparelhos de comunicação de massa, restam abertas à disputa apenas as massas e sua vida quotidiana de base. Trata-se da única forma possível de luta efetiva na atualidade, preparando o terreno para depois alcançar as demais esferas de luta. O quotidiano não é uma esfera desprezível da sociabilidade atual: antes, é mesmo um de seus polos centrais. Então a luta nesse campo, se organizada, revelará o grande esteio para a ação futuramente revolucionária. O Centro Socialista é a forma da luta ideológica de base no capitalismo pós-fordista.

O Centro Socialista nomeia e organiza a luta ideológica

Ao assim se nomear, o Centro Socialista expressa o eixo principal de toda a luta ideológica. A nomeação é a única possibilidade de instaurar, de modo material e consequente, o sentido verdadeiro e científico da luta pela superação do capitalismo. Socialismo e comunismo têm sido palavras combatidas virulentamente pelos aparelhos ideológicos da atualidade (como o foram, em variados graus, por toda a história do capitalismo). Buscando se furtar a tal estigma, a estratégia de renunciar à clareza da luta só fez com que as esquerdas fossem capturadas pelo discurso e pelos enredamentos políticos práticos das classes dominantes. Nomear a atividade de formação política por socialista permitirá tensionar imediatamente o tecido social e abrir o espaço à clara formação das massas, sem que se pague tributo à ideologia burguesa, cujo preço depois é cobrado de modo insanável às esquerdas reformistas que, ao se fundarem em nomeações de luta submissas à ordem burguesa (defesa do republicanismo, da legalidade, da democracia eleitoral, da inclusão), não têm recursos ideológicos de mobilização das massas para a resistência e a contestação. Na América Latina das primeiras décadas do século XXI, todos os governos de esquerda que nomearam o socialismo caíram mais tardiamente e/ou resistiram mais a golpes; todos os governos de esquerda que se nomeavam pelo horizonte ideológico burguês caíram.

Assim, a primeira e central luta do Centro Socialista é pela nomeação. Se se chamar Centro da Cidadania, Centro Popular, Centro dos Trabalhadores, estará sob o horizonte burguês e nada representará de contradição à sociabilidade presente. Será caritativo, de prestação de serviços, dócil à reprodução capitalista. Somente se nomeando pelo único nome que é intolerável ao capitalismo poderá começar a forjar novas bases ideológicas. É verdade que o comunismo, etapa superior do socialismo, é também um fantasma à ideologia capitalista. “Comunista” é o único nome parceiro que se pode cambiar com “socialista” para identificar um centro de luta ideológica radical nas bases. Por ser socialista a etapa primeira em busca do comunismo, então por tal nome se identificarão os centros de base enquanto a sociedade tiver que enfrentar tal primeira etapa.

O Centro Socialista, ao se nomear, dá sentido à luta ideológica. Mas, ao ser fundado e começar suas atividades, organiza a luta ideológica. Ao se enraizar na vida quotidiana e comezinha, permitirá desconstituir tabus ideológicos das massas, explicando-lhes a ciência sobre a história, a sociedade e o modo de produção capitalista. Será desenvolvido por meio de atividades de alcance prático, enraizando-se nas lutas comunitárias imediatas por educação, habitação, urbanismo, água, esgoto, energia elétrica, saúde, assistência social, transporte, meio-ambiente, inclusão de minorias e grupos vulneráveis, artes e comunicação. Permitirá a criação de espaços efetivos de ação de movimentos sindicais e da classe trabalhadora. Também permitirá que movimentos sociais progressistas variados se articulem em propósitos ideológicos maiores.

Fincando-se espacialmente na comunidade, o Centro Socialista enfrentará as demandas comunitárias mais imediatas. Fará, de modo melhor, aquilo que religiões, instituições benemerentes e clubes associativos já o fazem com limites. A religião tende a converter o serviço social em proselitismo e a explicar a ação social com base em dinâmicas metafísicas. As instituições benemerentes e os clubes associativos via de regra são gestados e geridos por setores da classe média para os quais a contrapartida da prestação de serviços é o reforço da ideologia de suas frações de classe. Tanto as religiões quanto os clubes associativos bloqueiam a luta quando ela alcança contradições maiores que se insurjam contra os poderes e os poderosos, porque sua ideologia de base não é pela alteração da ordem e da sociabilidade. Somente centros que se nomeiem socialistas – e por tal horizonte se movam – poderão tensionar a sociedade sem que esbarrem com percalços imediatos (de classe, de preconceitos, de lucro, de financiamento), ou de expectativas ideológicas de fundo (teologia, repressão, conservadorismo).

O Centro Socialista tanto funda o campo da luta ideológica mais alta quanto dinamiza e articula as lutas sociais já existentes. Sua natureza maior que aquele de uma luta específica de movimento social faz com que seu propósito seja acolhedor de todas as lutas imediatas ou focadas, mas não apenas enquanto soma-as a si, mas, sim, enquanto lhes dá perspectiva. Por isso, as dinamiza e as articula. No que tange à articulação, permite que lutas variadas convirjam e reagrupem forças, o que centros religiosos e clubes de serviço não o fazem totalmente – como exemplo, alguns, sendo até favoráveis às lutas dos sem-teto, não podem, por seus limites teológicos, apoiar as lutas feministas. No que tange à dinamização, todas as lutas contra dominações e opressões e as lutas por inclusão e sobrevivência ganham maior fôlego quando perspectivadas contra a exploração do modo de produção, alcançando problemas estruturais. O Centro Socialista permitirá, então, articular e dinamizar as lutas de toda uma geração em torno do horizonte socialista.

Humildade do projeto, grandeza do propósito

Chamar-se-ão, por Centros Socialistas, aqueles que assim quiserem se denominar. Não terão vinculação prévia a entidades federativas que os autorizem e os direcionem. Instalar-se-ão onde quiserem e puderem. Terão formatos diferentes, dimensões e modelos de atuação variados, e serão identificados apenas pelo trabalho de base e pela nomeação de socialista – que, sendo custosa e rara na atualidade, não os fará ser multiplicados conforme ímpetos que os levem rapidamente ao senso comum. Por mais voluntária e abertamente entusiasmada seja sua organização e autogestão, e por mais que sejam espaços de futuro poder social, os Centros Socialistas são unidades de trabalho político-ideológico que no começo enfrentarão grandes resistências. Seu surgimento é contrário à inércia ou às dinâmicas organizativas da atualidade. Daí que a primeira unidade de identificação entre os Centros Socialistas será garantida apenas pela raridade do esforço das pessoas que os empreenderem.

Serão formados por partidos, mandatos, sindicatos, instituições e movimentos sociais os mais variados e, em especial, por quaisquer uniões de pessoas em torno de ideais específicos ou amplos. Onde dois ou mais estiverem irmanados na ação socialista comunitária, ali haverá a chama da transformação social. Dada sua multiplicidade de fontes e pessoas constituintes, os Centros Socialistas serão tão distintos quanto o são as várias organizações sociais de base, podendo alguns centros ser mais destacados por estudos ou ações assistenciais ou movimentações políticas, mais próximos de grupos de interesses homogêneos ou forjados a partir de frentes amplas de propósitos. Terão estatutos próprios e figuras jurídicas adaptadas às suas feições e necessidades, com autogestão. Financiar-se-ão por conta própria, sustentando-se como puderem e no limite do que lograrem forjar e manter.

Reunirão sujeitos distintos que evitarão as idiossincrasias da condição de classe, do linguajar, da formação intelectual, do status, do hermetismo, do personalismo. Não poderão ter perfil exclusivamente de classe média, deverão se engajar nas bases populares, valorizando sua experiência e ampliando sua voz, atendendo anseios da classe trabalhadora e dos desamparados, mas sem concordar com o bloco ideológico conservador-regressista já amalgamado culturalmente entre nossa gente. Deverão se engajar e ser forjados nas lutas feministas, antirracistas e pela libertação das variadas opressões sociais. Os Centros Socialistas serão vanguarda não sobre o povo, mas do povo.

Os Centros socialistas se fundarão em estudo e ação. No que tange aos estudos, beberão diretamente dos textos de Marx e de todas as amplas leituras marxistas produzidas desde então. Buscarão fornecer os conhecimentos científicos basilares do marxismo e, também, aprofundarão as leituras contemporâneas e mais avançadas a respeito. Aprenderão com a história das lutas e das revoluções para poderem criar uma nova história, conforme as condições e reclames de nosso tempo e sociedade. Haverá divergências de estudos, ênfases e mesmo compreensões sobre o que é o marxismo e o socialismo. Conforme seu desenvolvimento, surgirão experiências de educação popular mais bem-sucedidas e mesmo bibliografias mais aptas passarão a se consolidar e a servir de referência. Cada Centro Socialista se educará do modo que considerar mais apropriado. O intercâmbio solidário entre os centros, aprendendo com suas variadas práticas, dará alguma decantação à própria forma dos estudos – o que ler, como ler, como unir teoria e prática. No entanto, não serão os Centros Socialistas unidades de mero estudo acadêmico. Seu propósito não é o de replicar o ambiente universitário. Tanto evitará o academicismo quanto, de outro lado, evitará o praxismo que se compraz com decisões, voluntarismos e meras ações, reféns do senso comum. Os Centros Socialistas serão fundados no estudo científico do capitalismo e do socialismo e, ainda, na ciência da gestação de horizontes revolucionários, contribuindo com o empreendimento de superação do capitalismo.

Para que logrem êxito e ação ideológica de grande resultado prático, os Centros Socialistas serão espaços que passarão por erros de implantação e consolidação. Tendem a ser eventualmente capturados por espectros ideológicos ainda burgueses, por leituras insuficientes ou falsamente científicas, por interesses partidários e eleitorais imediatistas e, mesmo, por idiossincrasias de indivíduos, grupos, espaços. A importância e o valor de luta dessas experiências múltiplas e livres, no entanto, excede sobremaneira os vieses errôneos que brotem em seu seio. Além disso, os Centros Socialistas poderão sofrer perseguições. Sejam aquelas locais, imediatas, sejam aquelas advindas de agentes do Estado, sejam aquelas dos meios de comunicação de massa, sejam ainda as da burguesia. Essa oposição sempre se dá em face de qualquer movimento progressista e transformador. Por isso, os centros deverão forjar uma rede de apoio e solidariedade na resistência. A união permitirá o apoio e o socorro. Mas, para além de se fixar no âmbito nas precauções, é preciso a coragem da luta a fim de iniciar grandes movimentações e processos históricos.

Centros Socialistas são livres e múltiplos como são as vontades de lutadoras e lutadores pela superação do capitalismo. Sendo raras essas figuras, e pouca a energia de que dispõem isoladamente, tendem a se agrupar por vínculos orgânicos partidários, acadêmicos, de interesses sociais concretos ou, mesmo, de agrupamentos afetivos. A partir de tais variados e valiosos plexos, hão de possibilitar que mais pessoas os descubram, se aproximem e por eles se afeiçoem. Eventualmente o trabalho de formação ideológica de base, em razão de suas demandas concretas e imediatas, permitirá, inclusive, estratégias de aproximação entre múltiplas correntes que se reivindicam de esquerda e socialistas hoje, e que não dialogam ou mesmo concorrem entre si. É possível que, futuramente, haja movimentações por unificarem esforços na base comunitária, permitindo então maiores unidades na luta geral. O horizonte dos Centros Socialistas é, inexoravelmente, o de unidade na diversidade.

Trata-se de um projeto de uma necessária humildade constitutiva. Nasce no momento mais criticamente frágil das esquerdas, dos progressistas e dos socialistas no Brasil nas últimas décadas. Não busca vitórias eleitorais nem bruscos câmbios exitosos da formação social brasileira. Antes, busca intervir exatamente nas bases comunitárias nas quais se dá a gestão imediata da vida e nas quais se forma o horizonte cultural, valorativo e prático do viver das massas. Surge dos elementos que disponham de sua vontade de agir para uma aglutinação de atividades, tarefas e horizontes. Arregimentará o máximo número de distintos sujeitos e seus variados interesses e leituras de mundo. Não almeja unidade por dedução. Servirá de contributo à unidade por indução, no futuro, quando os grandes eixos da luta progressista e revolucionária se abrirem e, então, os Centros Socialistas se revelarem seu mais decisivo elemento de base.

Há instituições conservadoras de organização, mobilização e constituição das subjetividades sociais cuja história é antiga e cuja funcionalidade e reprodutibilidade foi se decantando por anos, décadas e séculos: família, vizinhança, religião, escola. A todas essas instituições, suas práticas, poderes e modos relacionais já são conhecidos e se impõem aos sujeitos: o pai, a mãe, o amigo, o líder religioso, o professor. Como o Centro Socialista busca estabelecer a camaradagem socialista ainda dentro do espaço e do âmbito do capitalismo, operará a contrapelo da história. Mas se seu modelo de implantação forjar ações, expectativas e modos relacionais de fácil réplica (modelos identificáveis de práticas, perfis destacados e copiáveis de lideranças), alcançará enfim uma próspera forma de sociabilidade revolucionária, como o foi no século XX o soviet.

Uma ideia e uma ação podem simbolizar um novo influxo da história. Tal como o neoliberalismo encerra as ilusões do bem-estar social capitalista e o golpe de 2016 fecha os ciclos de ilusão democrático-reformista-constitucional brasileira, em sentido contrário os Centros Socialistas simbolizam e marcam a nova etapa da luta transformadora, não mais iludida com os quadrantes liberais burgueses e então, agora sim, à frente de sua luta definitiva, de superação do modo de produção. Humildade dos propósitos, grandeza do projeto. Somente assim a grande história material se fará: passando por cima das ilusões politicistas que esperam que o povo se levante por conta própria, por cima das ilusões economicistas, que esperam que o capitalismo sucumba por si só, e por cima das paralisias dos que, em sabendo de tudo isso, não enfrentam o tempo.

Engenho e arte, sejam hoje ciência e revolução.

 

Alysson Leandro Mascaro, jurista e filósofo do direito brasileiro, nasceu na cidade de Catanduva (SP), em 1976. É doutor e livre-docente em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Universidade de São Paulo (Largo São Francisco/USP), professor da tradicional Faculdade de Direito da USP e da Cátedra de Educação Advocatícia da ESA-OAB/SP”, além de fundador e professor emérito de muitas instituições de ensino superior. Publicou, dentre outros livros, Estado e forma polític(2013), Crise e golpe (2018) e o mais recente Crise e pandemia (2020). É o prefaciador da edição brasileira de Em defesa das causas perdidas, de Slavoj Žižek, da nova edição de Crítica da filosofia do direito de Hegel, de Karl Marx, e de Fascismo, de Evguiéni B. Pachukanis, todos lançados pela Boitempo.

 

FONTE: A Terra é Redonda


quarta-feira, 14 de julho de 2021

A questão do socialismo

 Por Wladimir Pomar


 

O so­ci­a­lismo volta, pau­la­ti­na­mente, a ser um tema pri­o­ri­tário de de­bate, à me­dida que os países ca­pi­ta­listas en­frentam pro­blemas pro­fundos no en­fren­ta­mento da pan­demia, e em que al­guns deles tendem a fazer in­ter­ven­ções es­ta­tais para re­cu­perar a eco­nomia e os em­pregos. Não será sur­presa se Biden for acu­sado de “so­ci­a­lista” por pre­tender taxar as grandes for­tunas e in­vestir em pro­gramas so­ciais que mi­norem as con­di­ções de po­breza dos tra­ba­lha­dores ex­cluídos do mer­cado de tra­balho em vir­tude da cres­cente pro­du­ti­vi­dade in­dus­trial norte-ame­ri­cana.

De qual­quer modo, para início de con­versa sobre o so­ci­a­lismo, não se pode con­si­derá-lo uma in­venção teó­rica, um sonho, ou uma utopia hu­ma­ni­tária. Ela está in­ti­ma­mente as­so­ciada à prá­tica exis­ten­cial do ca­pi­ta­lismo. À me­dida que essa for­mação his­tó­rica eleva a pro­du­ti­vi­dade de suas forças pro­du­tivas, po­dendo atender a todas as ne­ces­si­dades so­ciais, ela gera, ao mesmo tempo, uma con­tra­dição chave: um forte de­sem­prego tec­no­ló­gico, com uma queda brutal na efe­ti­vação da cir­cu­lação das mer­ca­do­rias que produz.

Com uma es­tu­penda ca­pa­ci­dade pro­du­tiva, o ca­pi­ta­lismo torna-se in­capaz de atender às ne­ces­si­dades so­ciais bá­sicas, em vir­tude da ma­nu­tenção da pro­pri­e­dade pri­vada e da busca do lucro. O au­mento da pro­du­ti­vi­dade cria uma massa hu­mana sem con­di­ções de vender sua força de tra­balho e, em con­sequência, sem con­di­ções de con­sumir as mer­ca­do­rias pro­du­zidas pelo ca­pital. Em tais con­di­ções, Marx e En­gels con­cluíram que a su­pe­ração de tal con­tra­dição só pode ocorrer numa nova for­mação econô­mica, so­cial e po­lí­tica que, ex­tin­guindo a pro­pri­e­dade pri­vada dos meios de pro­dução, agi­lize um cres­cente igua­li­ta­rismo na ad­mi­nis­tração das forças pro­du­tivas e na dis­tri­buição dos bens ne­ces­sá­rios à vida hu­mana.

O so­ci­a­lismo, desse modo, con­siste em re­a­lizar o pro­cesso in­ter­me­diário para a su­pe­ração hu­ma­ni­tária da­quela con­tra­dição do ca­pi­ta­lismo de­sen­vol­vido. Por outro lado, um dos pro­blemas desse pro­cesso, des­co­berto pelos dois pen­sa­dores ale­mães, con­siste em que o de­sen­vol­vi­mento ca­pi­ta­lista dos países tem sido his­to­ri­ca­mente muito de­si­gual. Di­ante das na­ções muito de­sen­vol­vidas, a exemplo dos Es­tados Unidos, Ca­nadá, Ale­manha, França e Japão, en­con­tram-se inú­meras na­ções e povos atra­sados em tal de­sen­vol­vi­mento, a exemplo do Brasil, Chile, Gana, Tai­lândia etc. etc.

Te­o­ri­ca­mente, os povos eco­no­mi­ca­mente mais de­sen­vol­vidos de­ve­riam chegar ao ponto má­ximo da­quela con­tra­dição antes dos mais atra­sados. No en­tanto, do ponto de vista prá­tico, para em­ba­ra­lhar tal pro­cesso, a his­tória real apre­sentou si­tu­a­ções de crises pro­fundas, com ten­ta­tivas de tran­sição so­ci­a­lista, em países de pe­queno de­sen­vol­vi­mento ca­pi­ta­lista. Neles, as con­tra­di­ções bá­sicas ainda es­tavam atadas à pre­do­mi­nância de re­la­ções feu­dais, como foram os casos em­ble­má­ticos da Rússia e da China, ou da su­bor­di­nação co­lo­nial, nos casos da China, Vi­etnã e Co­réia, ou ainda a de­sen­vol­vi­mentos ca­pi­ta­listas mais lentos, como no leste eu­ropeu.

Na Rússia e na China, o feu­da­lismo ainda es­tava for­te­mente pre­sente na agri­cul­tura e na or­ga­ni­zação po­lí­tica, e a in­dús­tria ca­pi­ta­lista era se­cun­dária. No caso chinês, havia o agra­vante de que áreas im­por­tantes do país se en­con­travam sob ju­ris­dição de po­tên­cias co­lo­ni­za­doras, além de sua in­dús­tria ser fraca e sob forte do­mínio es­tran­geiro. Nessas con­di­ções, as con­tra­di­ções bá­sicas das so­ci­e­dades russa e chi­nesa ainda não eram as con­tra­di­ções ca­pi­ta­listas, mas as con­tra­di­ções feu­dais e co­lo­niais, em­bora os tra­ba­lha­dores as­sa­la­ri­ados, mesmo mi­no­ri­tá­rios, fossem uma das prin­ci­pais bases so­ciais e po­lí­ticas para a luta pela su­pe­ração do feu­da­lismo e do do­mínio co­lo­nial.

Por outro lado, ambos os países foram as­so­lados pelas guerras im­pe­ri­a­listas fo­men­tadas pelo ca­pi­ta­lismo de­sen­vol­vido, seja pela re­par­tição dos países co­lo­niais, ou pela trans­for­mação de países in­de­pen­dentes em colô­nias. Tanto na Rússia quanto na China foram as guerras desse tipo que cri­aram as con­di­ções para a eclosão de re­vo­lu­ções so­ci­a­listas e de­mo­crá­tico-po­pu­lares.

Di­zendo de outro modo, as forças re­vo­lu­ci­o­ná­rias desses países atro­pe­laram a his­tória, em­bora em mo­mentos muito di­fe­rentes (Rússia, em 1917; China, em 1949), ime­di­a­ta­mente após guerras im­pe­ri­a­listas mun­diais. Ou seja, a questão do so­ci­a­lismo eclodiu antes que as con­di­ções ma­te­riais para tal tran­sição hou­vessem ama­du­re­cido. Em ambos os países, o modo de pro­dução ca­pi­ta­lista ainda não havia de­sen­vol­vido sua con­tra­dição de trans­for­mação.

Lênin teve a pers­pi­cácia de re­co­nhecer isso ime­di­a­ta­mente após a re­vo­lução russa de 1917, pro­pondo a cri­ação da NEP (Nova Po­lí­tica Econô­mica), que com­bi­nava o de­sen­vol­vi­mento do mer­cado com a ori­en­tação es­tatal. Ex­pe­ri­ência que findou em 1928, em grande parte em vir­tude da pre­pa­ração de uma nova guerra mun­dial, tendo o im­pe­ri­a­lismo alemão como carro chefe. Em­bora pa­re­cesse vol­tada para des­truir a ex­pe­ri­ência so­vié­tica, na ver­dade a nova guerra de ex­pansão do na­zismo pre­tendia, acima disso, uma nova di­visão co­lo­nial do mundo.

De qual­quer modo, no caso so­vié­tico, o Es­tado se viu com­pe­lido a as­sumir ple­na­mente a pre­pa­ração in­dus­trial para tal en­fren­ta­mento, le­vando-o a es­ta­tizar todo o pro­cesso econô­mico. Es­ta­ti­zação que, com o su­cesso bé­lico contra o na­zismo, con­ti­nuou no pós-guerra, na su­po­sição de que o pla­ne­ja­mento econô­mico cen­tra­li­zado seria capaz de re­solver todos os pro­blemas da tran­sição so­ci­a­lista.

A ex­pe­ri­ência his­tó­rica mos­trou que tal su­po­sição era er­rônea. A União So­vié­tica e os países de­mo­crá­tico-po­pu­lares do leste eu­ropeu nau­fra­garam, como países de tran­sição so­ci­a­lista, muito mais por sua in­ca­pa­ci­dade de atender às de­mandas co­muns da vida de seus ha­bi­tantes do que por ou­tros mo­tivos.

No caso chinês, houve ini­ci­al­mente a pers­pi­cácia de su­gerir um ca­minho “de­mo­crá­tico po­pular”, pré-so­ci­a­lista, le­vando em conta que parte da bur­guesia na­ci­onal chi­nesa apoiava tanto a guerra de li­ber­tação contra o im­pe­ri­a­lismo ja­ponês quanto a guerra civil re­vo­lu­ci­o­nária contra o do­mínio feudal na agri­cul­tura. Porém, em­bora a re­forma agrária tenha sido a prin­cipal marca da pri­meira fase da Re­pú­blica Po­pular da China, logo de­pois a bur­guesia na­ci­onal chi­nesa tentou impor seu pró­prio ca­minho, le­vando a uma dis­puta acir­rada em torno da in­dus­tri­a­li­zação, do con­trole dos preços e de di­versos ou­tros itens do pro­cesso econô­mico e so­cial.

Nessa dis­puta, os so­ci­a­listas chi­neses foram le­vados a adotar vá­rias das ex­pe­ri­ên­cias so­vié­ticas, tanto na agri­cul­tura – fa­zendas co­le­tivas, co­munas po­pu­lares – quanto na in­dús­tria. Para elevar a pro­dução de bens in­dus­triais e re­duzir o de­sem­prego, in­ten­si­fi­caram a es­ta­ti­zação in­dus­trial e cri­aram o sis­tema 3:1 (um tra­balho / 3 em­pregos), e se em­pe­nharam em re­a­lizar grandes mo­vi­mentos so­ciais. Mas es­bar­raram sempre em seu pró­prio atraso tec­no­ló­gico e ci­en­tí­fico, fa­zendo com que tais ex­pe­ri­ên­cias se es­go­tassem com o fra­casso da Re­vo­lução Cul­tural, por volta de 1976.

Nos dois anos de ava­li­ação dessas ex­pe­ri­ên­cias, ten­tadas entre os anos 1949-1976 (27 anos), os chi­neses che­garam à mesma con­clusão de Lênin. Ou seja, num país in­dus­tri­al­mente atra­sado não era pos­sível abolir o mer­cado por de­creto. Seria ne­ces­sário com­binar a ação pri­mária do mer­cado com a ori­en­tação ci­en­tí­fica, econô­mica, so­cial e po­lí­tica do Es­tado, de modo a de­sen­volver as ci­ên­cias, as tec­no­lo­gias e as in­dús­trias como carros chefes do pro­cesso geral de de­sen­vol­vi­mento econô­mico e so­cial.

Ou seja, a ori­en­tação do Es­tado de­veria não só fazer com que a in­dús­tria e a agri­cul­tura fossem mar­cadas pelo de­sen­vol­vi­mento ci­en­tí­fico e tec­no­ló­gico, ele­vando cons­tan­te­mente sua pro­du­ti­vi­dade, mas também ti­vessem como alvo o aten­di­mento das ne­ces­si­dades so­ciais e a cons­tante ele­vação do pa­drão de vida e do nível edu­ca­ci­onal da po­pu­lação tra­ba­lha­dora. Por outro lado, tal ori­en­tação es­tatal não de­veria ser apenas ge­né­rica. De­veria ser mol­dada por planos (anuais, quin­que­nais e de mais longo prazo), e pela par­ti­ci­pação prá­tica e con­cor­ren­cial das em­presas es­ta­tais.

As es­ta­tais, por sua vez, não de­ve­riam ser mo­no­po­listas. Cada setor econô­mico de­veria ter três ou mais em­presas es­ta­tais, con­cor­rendo entre si e com as em­presas pri­vadas, de modo a evitar a bu­ro­cra­ti­zação, elevar o pa­drão tec­no­ló­gico e re­baixar os preços. O mesmo de­veria ocorrer com as em­presas pri­vadas, evi­tando os mo­no­pó­lios e a es­tag­nação tec­no­ló­gica.

Por outro lado, para dar o salto in­dus­trial e tec­no­ló­gico ne­ces­sário, foi pos­sível apro­veitar-se da ten­dência de mun­di­a­li­zação das grandes em­presas ca­pi­ta­listas mul­ti­na­ci­o­nais, ace­le­rada a partir dos anos 1970. Seus in­ves­ti­mentos foram ad­mi­tidos em zonas econô­micas es­pe­ciais, desde que es­ta­be­le­cessem joint ven­tures com em­presas chi­nesas, e trans­fe­rissem a elas novas e/ou altas tec­no­lo­gias.

Além disso, muitos tra­ba­lha­dores e téc­nicos do sis­tema in­dus­trial 3:1 foram in­cen­ti­vados a ela­borar pro­jetos de in­ves­ti­mento a serem fi­nan­ci­ados pelos bancos es­ta­tais, de modo a di­ver­si­ficar a pro­dução in­dus­trial e su­prir as cres­centes ne­ces­si­dades so­ciais. Ou seja, ao mesmo tempo em que ad­mitia a pre­sença do ca­pital es­tran­geiro em áreas de­li­mi­tadas de seu ter­ri­tório, o Es­tado chinês fi­nan­ciou o res­sur­gi­mento de uma bur­guesia na­ci­onal capaz de con­correr não só com esse ca­pital ex­terno, mas também com o ca­pital es­tatal, em­bora su­bor­di­nada aos pro­gramas ou planos de de­sen­vol­vi­mento ori­en­tados pelo Es­tado e pelas ci­ên­cias e tec­no­lo­gias.

O que ex­plica, por um lado, e em grande me­dida, o cres­cente papel do en­sino ci­en­tí­fico e tec­no­ló­gico na am­pli­ação do sis­tema edu­ca­ci­onal chinês e, por outro, a pre­sença cres­cente do co­nhe­ci­mento ci­en­tí­fico e tec­no­ló­gico nos planos es­ta­tais de ori­en­tação das em­presas es­ta­tais e do mer­cado.

É desse modo que o so­ci­a­lismo chinês está se apro­xi­mando do nível ci­en­tí­fico, tec­no­ló­gico e econô­mico das grandes po­tên­cias, e dando con­di­ções de seu povo ter um cres­cente pa­drão de vida. Numa es­cala menor, mas com ca­rac­te­rís­ticas pró­prias, é também o que o so­ci­a­lismo vi­et­na­mita está fa­zendo.

FONTE: Correio da Cidadania: