quarta-feira, 28 de novembro de 2012

O legado de Marx no Brasil


A PUBLICAÇÃO do sexto volume da História do marxismo no Brasil conclui um monumental projeto editorial coletivo, esboçado em 1988 no grupo de trabalho "Partidos e Movimentos de Esquerda". Propósito que deslanchou efetivamente com a edição, em 1991, do primeiro volume da coleção.

Por Ricardo Musse

Inspirada na História do marxismo, edição coordenada por Eric Hobsbawm (1983-1989) entre 1978-1982 e traduzida no Brasil a partir de 1983, a versão brasileira foi planejada em torno de três eixos temáticos: "a recepção e apropriação teórica do marxismo no Brasil, sua influência na análise e interpretação da sociedade brasileira e a trajetória das organizações que nele se inspiraram" (Quartim de Moraes & Aarão Reis, 2007a, p.7). esses eixos foram desdobrados em blocos distintos, "(1) o influxo das teorias, doutrinas e revoluções internacionais; (2) a formulação do marxismo no Brasil: autores e correntes; (3) a história das organizações marxistas no Brasil: experiências e momentos relevantes" (ibidem).1

Uma vez finda a empreitada, tornam-se mais nítidos tanto os êxitos e acertos como as aporias e limitações inerentes a essa escolha temática, juízo facilitado pela inevitável explicitação da concepção de marxismo subjacente ao projeto. Afinal, apesar do esforço de delimitação, os eixos tendem a se embaralhar, seja pela dificuldade em calibrar a dialética entre o nacional ("o marxismo no Brasil") e o mundial ("o influxo internacional") seja na sobreposição entre organizações e "formulações do marxismo".

O primeiro volume delineia uma apresentação geral da trajetória do marxismo no país a partir do influxo externo (Quartim de Moraes & Aarão Reis, 1991; 2007b). Seu subtítulo, "O impacto das revoluções", descreve apenas parte do conteúdo. O livro contempla a influência direta da Revolução Russa de 1917 na formação do Partido Comunista Brasileiro (em um escopo menos amplo que o do livro clássico de Moniz Bandeira) (Moniz Vianna, 1967, 1980), e da revolução cubana (em 1959) na sua desagregação em inúmeras facções que levaram adiante a luta armada (a partir e em reação ao golpe militar de 1964). Mas contém também artigos sobre a presença e o peso no comunismo brasileiro da institucionalização revolucionária na rotina burocrática de Estados socialistas na China e na URSS, sob a capa doutrinária do maoísmo e do stalinismo (e de sua denúncia, em 1956, por Nikita Khrushchov no XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética). Por fim, discute-se "a proto-história do marxismo no Brasil", um processo inexplicável sem a consideração do influxo externo.2

Os critérios de organização do primeiro volume mostram-se bastante refratários à contestação. O mesmo não pode ser dito, no entanto, do segundo livro, seja por conta das dificuldades inerentes ao tema "influxos teóricos", explicitado no subtítulo, seja pelas escolhas realizadas pelo editor (Quartim de Moraes, 1995).

Os dois artigos iniciais versam sobre a incorporação e a difusão do marxismo entre militantes e organizações políticas no Brasil, provas de fôlego num arco amplo que se desdobra em dois momentos: da passagem do século até a fundação do PCB, e de 1922 até o presente. O desequilíbrio advém com a inclusão de ensaios que tentam demonstrar a influência do marxismo na economia e na filosofia brasileiras. O primeiro, além de passar ao largo dos poucos economistas marxistas do país (com a exceção de Caio Prado Jr.), detecta equivocadamente a presença do marxismo em autores e teorias de perfil reconhecidamente keynesiano, weberiano ou estruturalista. O segundo aborda apenas um filósofo, José Arthur Giannotti, de escassa ascendência sobre a doutrina, a militância e as organizações marxistas (a não ser que se conceda esse epíteto ao PSDB) e pioneiro apenas no que tange ao "marxismo uspiano". Porém, ao lado dessas considerações acerca do conteúdo ou da execução, impõe-se a seguinte indagação: se o propósito era estabelecer um balanço do influxo do marxismo sobre as ciências humanas no Brasil, como ignorar áreas em que seu impacto mostrou-se bastante profícuo como a historiografia e a sociologia?

Os artigos restantes delineiam um subconjunto dedicado ao exame da influência na intelectualidade e na militância das obras de Leon Trotsky e dos "marxistas ocidentais" com maior impacto no país: Georg Lukács, Antonio Gramsci e Louis Althusser. Destaque-se a imperdoável ausência de Herbert Marcuse.3

O terceiro e o quarto volumes dedicam-se às análises e interpretações da sociedade brasileira formuladas na linhagem do marxismo. Substituindo a pretensão inicial de mapear autores e correntes, prevaleceu a opção, mais sensata e exeqüível, de organizar as concepções e teorias dos marxistas brasileiros por temas (Quartim de Moraes, 1998; Quartim de Moraes & del Roio, 2000).4

Assim, os artigos do terceiro livro versam sobre tópicos gerais: a questão da democracia, tendo como foco o PCB no período 1944-1954; a questão do desenvolvimento nacional, a partir do embate entre as diversas interpretações presentes no interior do Instituto superior de estudos Brasileiros (Iseb); e a questão cultural, priorizando o aparato de divulgação do PCB (jornais, revistas e editoras) e sua política cultural no pós-1964.5 Contém ainda um importante ensaio acerca de um dos pontos mais controvertidos do debate marxista no país, a especificidade do capitalismo brasileiro.6

O quarto volume, com o subtítulo "Visões do Brasil", trata da questão da colonização e de conceitos que lhe estão conectados como escravismo e capital mercantil; da peculiaridade da "revolução burguesa" no país; da questão nacional; da questão agrária, nas décadas de 1950 e 1960; e da nossa "questão meridional", o atraso secular do Nordeste. O livro inclui ainda dois artigos que indicam que o projeto de apresentar "autores e correntes" não foi inteiramente descartado: um sobre as análises de conjuntura de Caio Prado Jr. e outro acerca dos principais teóricos dos anos 1920, Astrojildo Pereira, Octavio Brandão e Mário Pedrosa.7

A decisão de priorizar temas clássicos do marxismo foi, entretanto, prejudicada pelo recorte dos artigos, excessivamente pormenorizados no que tange ao arco do tempo ou à linha partidária. Ressalte-se também a ausência de uma maior concatenação entre os blocos, patente no tom demasiado "local" da reconstituição das interpretações da sociedade brasileira, muitas vezes tendendo a desconsiderar o impacto - tão bem sopesado nos primeiros volumes - das teorias, doutrinas e revoluções internacionais.8 Apesar da abertura demonstrada pelos organizadores no planejamento geral da coleção, e nesse bloco em particular, a maioria dos colaboradores restringiu suas análises à órbita do PCB, seja por vínculos partidários, afetivos, seja por conta de conhecimentos acumulados em pesquisas anteriores, numa concentração que subestima a diversidade do marxismo no Brasil.

Os dois últimos livros da coleção debruçam-se sobre as trajetórias dos partidos (ou organizações) e dos movimentos influenciados pelo marxismo no Brasil. O quinto volume abrange o arco dos anos 1920 aos anos 1960 (Ridenti & Aarão Reis, 2002). A história do PCB foi separada em ensaios que abordam, respectivamente, os períodos 1920-1940 e 1943-1964. Outro partido estudado foi o Partido Socialista Brasileiro (PSB), em seu flerte com o marxismo. os demais artigos tratam das ligas trotskistas e de duas organizações muito influentes na primeira metade da década de 1960, a Política Operária (Polop) e a Ação Popular (AP).9

O sexto volume, compreendendo o período que se estende dos anos 1960 aos nossos dias, desdobra-se em duas partes: uma dedicada a partidos e organizações, outra aos movimentos (Ridenti & Aarão Reis, 2007). O primeiro bloco aborda o Partido Comunista (PCB) até sua extinção em 1991; sua dissidência a partir de 1962, o PC do B; o Partido dos trabalhadores (PT); as trajetórias das diversas organizações trotskistas surgidas após 1966 e sua consolidação em partidos; e a miríade de organizações que brotaram no pós-1964 visando à luta armada. A seção consagrada aos movimentos contém ensaios sobre sindicalismo, feminismo, a ação política dos cristãos e sobre a discussão, nos anos 1970, entre os marxistas no exílio, um elo importante na transição das facções armadas às organizações de massas. Fecha o livro um ensaio sintético acerca das relações entre os partidos atuais e o marxismo.10

A delimitação do marxismo sempre foi objeto de controvérsias, mesmo quando Marx e Engels ainda estavam vivos (cf. Haupt, 1983). O confronto com a obra, a ação política e os programas partidários elaborados por eles, em geral, buscam apenas ressaltar incongruências, revisões e desvios. Nessa chave, por exemplo, nem mesmo as grandes revoluções do século XX, como lembram muitos autores, poderiam ser consideradas marxistas, já que teriam sido, sobretudo, sublevações camponesas que desembocaram em variantes do capitalismo de estado ou do socialismo estatal.

Para escapar dos riscos de uma determinação doutrinária ou mesmo dogmática, os historiadores tendem a considerar como pertinentes ao campo do marxismo teorias, programas, partidos e acontecimentos que reivindicam explicitamente ou tenham sido nitidamente marcados pelos legados de Marx e Engels. Nesse sentido, não é muito difícil circunscrever o território do marxismo no âmbito da teoria, posto que ele demanda, em alguma medida, o esforço de interpretar, sistematizar, complementar e atualizar a obra de Marx.11 A dificuldade é bem maior, no entanto, quando se trata das práticas políticas, como fica patente no exame dos últimos volumes dessa coleção.

Os partidos e as organizações estudados no período que se estende dos anos 1920 aos anos 1960 reivindicam em seus programas a inserção em alguma das diversas linhagens do marxismo que vicejaram ao longo do século XX. O último volume, no entanto, aborda partidos, organizações e movimentos que não mais avocam o marxismo como diretriz ou instância norteadora. Trata-se, evidentemente, de um sintoma da crise atual dessa tradição política.

O baralhamento de posições intensifica-se quando se considera o paradoxo apontado, com perspicácia, no artigo de Marco Aurélio Santana e Ricardo Antunes. A partir do final da década de 1970 e durante os anos 1980, na disputa pela hegemonia da esquerda brasileira, o PCB, que reivindica o marxismo, privilegia a política institucional em detrimento das ações de classe, tentando subordinar o movimento operário aos ditames da "frente democrática". Já os sindicalistas do ABC paulista, apesar de avessos a filiações doutrinárias, seguem passo a passo a descrição que Marx apresentou, no Manifesto do Partido Comunista, das etapas de organização autônoma dos proletários em classe, e com isso em partido político (Marx & Engels, 1998).

Os organizadores mostraram-se atentos às complicações inerentes às tentativas de demarcar com nitidez o marxismo contemporâneo. A seção final do sexto volume, consagrada aos movimentos políticos após os anos 1960, adota por fio precisamente a intersecção entre o marxismo e a ação política seja a assentada no sindicalismo, no feminismo ou no cristianismo. A leitura desses artigos não deixa de ampliar a sensação de que a aplicação desse mesmo fio ao PT (e até mesmo aos partidos que se reivindicam marxistas) teria enriquecido esse bloco da coleção.12

Para concluir, o mínimo que pode ser dito acerca desse empreendimento, com seus erros e acertos (num balanço em que preponderam os êxitos), é que constitui um marco, uma referência incontornável tanto para historiadores do marxismo brasileiro como para indivíduos e organizações do presente e do porvir, interessados em levar adiante a linhagem e o legado de Karl Marx.

Notas

1 Destacando o "marxismo no Brasil", a coleção diferencia-se de propostas mais abrangentes como a recente obra organizada por Ferreira & Aarão Reis (2007) ou o livro de Koval (1982).

2 O volume contém os seguintes artigos: (1) "A proto-história do marxismo no Brasil", por Evaristo de Moraes Filho; (2) "O impacto da revolução russa e da Internacional Comunista no Brasil", por Marcos del Roio; (3) "A influência do leninismo de Stalin no comunismo brasileiro", por João Quartim de Moraes; (4) "O maoísmo e a trajetória dos marxistas brasileiros", por Daniel Aarão Reis; (5) "Crise e pensamento moderno no PCB dos anos 1950", por Raimundo Santos; (6) "A influência da revolução cubana sobre a esquerda brasileira nos anos 60", por Carlos Alberto Barão.

3 O segundo volume reúne os seguintes artigos: (1) "A difusão do marxismo e os socialistas brasileiros na virada do século XIX", por Cláudio Batalha; (2) "A evolução da consciência política dos marxistas brasileiros", por João Quartim de Moraes; (3) "Marxismo na economia brasileira", por Guido Mantega; (4) "Origens do marxismo filosófico no Brasil: José Arthur Giannotti", por Paulo Eduardo Arantes; (5) "Presença de Lukács na política cultural do PCB e na Universidade", por Celso Frederico; (6) "Trotsky e o Brasil", por Dainis Karepovs, José Castilho Marques Neto e Michael Löwy.

4 A bibliografia individualizada sobre os principais expoentes do marxismo brasileiro encontra-se em expansão crescente. Na contramão dessa tendência, ressalte-se a quase ausência de reflexão acerca do papel do marxismo na produção intelectual brasileira. Uma exceção são os breves esboços reunidos em Konder (1991).

5 Apresento uma avaliação pormenorizada do conteúdo desse volume em Musse (2001).

6 O terceiro volume congrega ainda dois artigos atinentes ao bloco anterior: "O impacto da teoria althusseriana da história na vida intelectual brasileira", por Décio Saes, e "Gramsci no Brasil: recepção e usos", por Carlos Nelson Coutinho. O subtítulo "Interpretações" encerra os seguintes ensaios: (1) "Concepções comunistas do Brasil democrático: esperanças e crispações (1944-1954), por João Quartim de Moraes; (2) "O dual, o feudal e o etapismo na teoria da revolução brasileira", por Carlos Alberto D ória; (3) "Intelectuais do Iseb, esquerda e marxismo", por Caio Navarro de Toledo; (4) "A política cultural dos comunistas", por Celso Frederico; (5) "Marxismo, cultura e intelectuais no Brasil", por Antônio Albino Canelas Rubim.

7 O quarto volume compreende os seguintes artigos: (1) "Feudalismo, capital mercantil, colonização", por Lígia Osório Silva; (2) "A teoria da revolução brasileira: tentativas de particularização de uma revolução burguesa em processo", por Marcos del Roio; (3) "Tempo de fundadores", por Ângelo José da Silva; (4) "O programa nacional-democrático: Fundamentos e permanência", por João Quartim de Moraes; (5) "Luta por terra e organização dos trabalhadores rurais: a esquerda no campo nos anos 1950/1960", por Leonilde Sevolo de Medeiros; (6) "O nordeste: 'problema nacional' para a esquerda", por Carlos Alberto Dória; (7) "Opinião pública e partidos políticos em algumas análises de conjuntura de Caio Prado Jr.", por Raimundo Santos.

8 Uma versão mais equilibrada entre o marxismo local e as correntes do debate internacional pode ser encontrada em Löwy (1999).

9 O volume reúne os seguintes artigos: (1) "Os comunistas, a luta social e o marxismo (1920-1940)", por Marcos del Roio; (2) "Entre reforma e revolução: a trajetória do Partido Comunista no Brasil entre 1943 e 1964", por Daniel Aarão Reis; (3) "Os trotskistas brasileiros e suas organizações políticas (1930-1966)", por Dainis Karepovs e José Castilho Marques Neto; (4) "O Partido Socialista Brasileiro e o marxismo (1947-1965)", por Margarida Luiza de Matos Vieira; (5) "Em busca da revolução socialista: a trajetória da Polop (1961-1967)", por Marcelo Badaró Mattos; (6) "Ação Popular: cristianismo e marxismo", por Marcelo Ridenti.

10 O volume apresenta os seguintes artigos: (1) "a valorização da política na trajetória pecebista: Dos anos 1950 a 1991", por José Antonio Segatto e Raimundo Santos; (2) "Partido Comunista do Brasil: Definições ideológicas e trajetória política", por Jean Rodrigues Sales; (3) "Esquerdas armadas urbanas: 1964-1974", por Marcelo Ridenti; (4) "Os trotskismos no Brasil: 1966-2000", por Dainis Karepovs e Murilo Leal; (5) "O Partido dos Trabalhadores e a conquista do Estado:1980-2005", por Paulo Henrique Martinez; (6) "Debate no exílio: em busca da renovação", por Denise Rollemberg; (7) "O encontro marxismo-feminismo no Brasil", por Maria Lygia Quartim de Moraes; (8) "O PCB, os trabalhadores e o sindicalismo na história recente do Brasil", por Marco Aurélio Santana e Ricardo Antunes; (9) "Cristianismo da libertação e marxismo", por Michael Löwy; (10) "Marxismo, sociedade e partidos políticos hoje", por Daniel Aarão Reis.

11 Apresento uma distinção entre os textos canônicos do materialismo histórico e os procedimentos e providências que permitiram ao marxismo, após a morte de seus fundadores, se constituir como tradição teórica e prática, em Musse (2000).

12 A intersecção entre o marxismo e o PT, além de presente de forma ocasional na extensa bibliografia sobre a história des-se partido, tornou-se recentemente objeto de estudos monográficos. Cf., por exemplo, Iasi (2006).

Referências bibliográficas

FERREIRA, J.; AARÃO REIS, D. (Org.) As esquerdas no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.
HAUPT, G. Marx e o marxismo. In: HOBSBAWM, E. J. (Org.) História do marxismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. v.1, p.347-75. 
______. (Org.) História do marxismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983-1989. 12v. 
IASI, M. L. As metamorfoses da consciência de classe. O PT entre a negação e o consentimento. São Paulo: Expressão Popular, 2006. 
KONDER, L. Intelectuais brasileiros & marxismo. Belo Horizonte: Oficina de livros, 1991. 
KOVAL, B. História do proletariado brasileiro. São Paulo: alfa-ômega, 1982. 
LÖWY, M. (Org.) O marxismo na América Latina. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1999. 
MARX, K.; ENGELS, F. Manifesto do Partido Comunista. Revista do Instituto de Estudos Avançados, São Paulo, n.34, p.1417, 1998.
MONIZ VIANNA, L. A. O ano vermelho. A Revolução Russa e seus reflexos no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967.
______. O ano vermelho. A Revolução Russa e seus reflexos no Brasil. 2.ed. São Paulo: Brasiliense, 1980. 
MUSSE, R. o primeiro marxista. In: BOITO JUNIOR, A. et al. (Org.) A obra teórica de Marx. São Paulo: Xamã, IFCH-Unicamp, 2000. p.81-9. 
______. Questões do passado e do presente. In: NASCIMENTO, M. M. (Org.) Jornal de Resenhas. São Paulo: Discurso Editorial, 2001. v.II, p.1278-9. 
______. (Org.) História do marxismo no Brasil. Campinas: Editora da Unicamp, 1995. v.2. 
______. (Org.) História do marxismo no Brasil. Campinas: Editora da Unicamp, 1998. v.3. 
QUARTIM DE MORAES, J.; AARÃO REIS, D. (Org.) História do marxismo no Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991. 
______. (Org.) História do marxismo no Brasil. 2.ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2007a. 
QUARTIM DE MORAES, J.; AARÃO REIS, D. Apresentação à segunda edição. In: ___. (Org.) História do marxismo no Brasil. Campinas: Editora da Unicamp, 2007b. v.1, p.7. 
QUARTIM DE MORAES, J.; DEL ROIO, M. (Org.) História do marxismo no Brasil. Campinas: Editora da Unicamp, 2000. v.4. 
RIDENTI, M.; AARÃO REIS, D. (Org.) História do marxismo no Brasil. Campinas: Editora da Unicamp, 2002. v.5. 
______. (Org.) História do marxismo no Brasil. Campinas: Editora da Unicamp, 2007. v.6. 


Ricardo Musse é professor no Departamento de Sociologia da USP.

FONTE: Controversia

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

A Revolução morreu? Viva a Revolução!


Muito já se escreveu sobre a Revolução Russa e a sociedade e o mundo que ela gerou. O balanço de seus erros e acertos está longe de se consolidar, 95 anos passados da tomada do Palácio de Inverno. Mas poucos contrariam uma certeira apreciação do historiador inglês Eric Hobsbawm (1917-2012). Segundo ele, “A Revolução de Outubro teve repercussões muito mais profundas e globais que a Revolução Francesa (1789) e produziu, de longe, o mais formidável movimento revolucionário organizado na história moderna”.

Por Gilberto Maringoni

Nenhum processo histórico gerou tamanho saldo organizativo, tão volumosa teoria e muito menos colocou tantos milhões de homens e mulheres em ação, em inúmeros países, dispostos a dar a até a própria vida pela transformação social. 

A Revolução causou medo entre as classes dominantes, entre os ricos e os abastados de todo o planeta. O pânico gerou uma feroz reação. No plano material, desatou-se, durante décadas, uma ofensiva militar e repressiva contra tudo o que cheirasse a contestação à ordem estabelecida pelo regime do capital. Na esfera da disputa pelos corações e mentes, torrentes de mentiras fizeram brotar a indústria do anticomunismo em praticamente todos os países.

Realizada num país atrasado, em meio a um conflito bélico de largas proporções - a I Guerra Mundial - e num momento de crise do sistema imperialista mundial, a Revolução de 1917 teve repercussões em inúmeras áreas do conhecimento humano.

País agrário

Nas condições objetivas da Rússia de cem anos atrás, um marxista vulgar descartaria a possibilidade da eclosão de uma ruptura socialista. Aquele era, nas últimas décadas do século XIX, um imenso país agrário, com 85% de sua população vivendo no meio rural, em situação de extrema pobreza. Apenas 20% da população era alfabetizada.

A partir dos anos 1890, a indústria conheceu um razoável progresso, principalmente nas áreas de metalurgia, petróleo, tecelagem e carvão, graças a vultosos investimentos estrangeiros.

A atração de camponeses empobrecidos para as cidades deu origem a uma massa crescente de trabalhadores que adquiriam ao mesmo tempo qualificação técnica e consciência política.

Transformação Social

Mesmo assim, a classe operária era largamente minoritária para nuclear um projeto de transformação social. O país que, em tese, reuniria melhores condições para uma ruptura social era a Alemanha. Majoritariamente urbana, dotada de uma indústria moderna e possuidora de uma classe operária numerosa e experiente, a Alemanha vivia também as contradições de ter uma burguesia extremamente reacionária. O quadro foi agravado no curso da I Guerra Mundial (1914-1918).

No entanto, as crises do sistema imperialista, um regime despótico e corrupto e uma década de rebeliões populares acabaram por fazer do país dos czares o "elo débil" do capitalismo mundial.

Mas apenas tais condições não bastariam para deflagrar a Revolução. Nesta situação, adquire relevância um dirigente marxista inovador e criativo, capaz de traçar uma tática original, rumo à transformação social. O dirigente chamava-se Vladimir Lênin (1870-1924). Se alguém pode ser chamado de gênio na era contemporânea, este alguém é Lênin. Nenhum outro intelectual do século XX teve suas idéias tão disseminadas e apropriadas por tanta gente, como aquele russo de estatura mediana e olhar penetrante.

A originalidade de Lênin

Qual a originalidade de suas formulações? Entre muitas, podemos apontar duas principais.

A primeira foi divulgada em março de 1902, no livro "Que fazer?". Desenvolvendo as idéias de Marx e Engels, seu autor demonstra a necessidade da criação de uma teoria revolucionária e de um "partido de novo tipo" para organizar os trabalhadores. Disciplinado, baseado no centralismo democrático e composto por células horizontais e verticais, o partido funcionaria como um "intelectual coletivo" e um exército ágil e maleável para tempos de enfrentamento.

A segunda grande contribuição de Lênin foi a resolução de um intrincado problema tático. Se a classe que formaria a vanguarda revolucionária era a operária, como ela, minoritária na Rússia, daria conta da titânica tarefa de mudar a sociedade?

Apesar de minoritária, a ela caberia o papel de força motriz no processo. Para Lênin, ela teria de se unir a outros segmentos de oprimidos e explorados. O setor principal seriam as massas camponesas, saídas da servidão décadas antes. Lênin propõe, no livro "Duas táticas da social-democracia na revolução democrática" (1905), a aliança operário-camponesa. Seria uma união entre diferentes, para realizar uma tarefa comum: implodir o sistema que explorava a ambos.

Há sentido atualmente?

Qual o sentido de se debater a Revolução Russa hoje, além de se comemorar uma data redonda?

Aos que julgam anacrônica uma transformação social que teria se esgotado com a queda do muro de Berlim, em 1989, vale fazer um paralelo histórico.

Olhemos para outra Revolução, a Francesa, deflagrada mais de um século antes, em 1789. O impulso social por ela provocado colocou o Antigo Regime no chão e moldou a sociedade nos âmbitos da política, da economia e da cultura até os dias atuais.

Golpe de Estado

Se usássemos uma régua curta, poderíamos dizer que não foi bem assim. O regime construído a partir da queda da Bastilha chegou objetivamente ao fim dez anos depois, em 1799. Nesse ano, Napoleão Bonaparte deu o golpe de estado de 18 de brumário e instaurou uma férrea ditadura. Se nossa régua for mais elástica, veremos que em 1814, com a Restauração Monárquica, pouco restavam dos ideais revolucionários, além do sistema métrico decimal, adotado oficialmente em 1791.

Apesar disso, as conquistas da Revolução Francesa, em termos de liberdade, direitos humanos, separação de poderes etc. estão aí. Dizer que os impulsos da Revolução Socialista esgotaram-se em 1989 equivale a reutilizar aquela régua curta.

O capitalismo continua tão ou mais agressivo que há 95 anos. Seus rastros de destruição, insegurança, aumento da miséria, instabilidade e exploração seguem gerando conflitos sangrentos mundo afora. O imperialismo atual é muito mais danoso à humanidade do que jamais foi. Seu poder é muito maior.

Outubro de 1917 continuará a fazer sentido enquanto a humanidade quiser buscar outro mundo possível. Fará sentido enquanto as palavras de Vladimir Maiakovsky ainda tocarem o coração das pessoas: "Nesta vida/ Morrer não é difícil/ O difícil/ É a vida e seu ofício".
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Gilberto Maringoni é jornalista e cartunista, doutor em História pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de "A Venezuela que se inventa - poder, petróleo e intriga nos tempos de Chávez"

FONTE: Controversia

terça-feira, 13 de novembro de 2012

Os 95 anos da Revolução Soviética


Por Antonio Capistrano*

Neste ano, no dia 7 de novembro, comemoramos os 95 anos da Revolução Soviética de 1917. Fato histórico comparável a outro importante acontecimento da história da humanidade, a Revolução Francesa de 1789. Duas revoluções que transformaram o mundo.

Hoje, mais do que nunca, se faz necessária uma profunda reflexão sobre a importância da Revolução Soviética para o mundo contemporâneo.

Em novembro de 1987, na época eu era reitor da UERN, fui convidado e participei de uma confraternização comemorativa aos 70 anos de Revolução de 1917. Confraternização realizada na embaixada da União Soviética em Brasília. Como historiador, comunista e admirador da Revolução Russa de 1917, estar presente na festa dos seus 70 anos, ainda mais na embaixada Soviética, foi um momento mágico para mim. Naquela época já dava os primeiros passos a “famosa” Perestroika comandada por Mikhail Gorbatchev. Era o início do fim da União das Repúblicas Socialista Soviética, como também, o fim dos regimes socialistas do Leste Europeu, momento de incerteza do movimento comunista internacional.

Durante a década de 1990, no auge do neoliberalismo, houve um massacre midiático contra as ideias marxistas, ideário que fundamentou a Revolução de 1917 e transformou a velha Rússia semifeudal no primeiro Estado Socialista do mundo contemporâneo e em uma das grandes potências econômica e militar do planeta.

Com o fim da Rússia Soviética, os ideólogos do mundo capitalista chegaram a preconizar o fim da história, como se isso fosse possível. Segundo eles era a derrocada do marxismo e o triunfo definitivo do neoliberalismo. Aqui no Brasil, no meio acadêmico e intelectual, falar ou defender o marxismo e a Revolução Soviética passou a ser coisa de dinossauro, de gente ultrapassada. Era o consenso midiático impondo os interesses de uma velha ordem que sempre desejou se eternizar como única via econômica e política para todos os países, tendo o neoliberalismo como teoria vitoriosa para sempre. Ledo engano.

Com o fracasso do neoliberalismo e a crise permanente do sistema capitalista mundial, tendo como consequências o desemprego e a perda de conquistas históricas da classe trabalhadora, inclusive nos países desenvolvidos, o marxismo e a Revolução Soviética voltam a ser uma referência nos debates sobre os rumos que a humanidade deve tomar na busca de um mundo econômico e socialmente justo.

Com o aprofundamento da crise europeia e os sobressaltos do capitalismo norte-americano, como também a nova conjuntura política da América Latina, se faz necessária uma reflexão profunda sobre o mundo contemporâneo e os benefícios do marxismo para a humanidade.

A experiência soviética não pode ser esquecida. As conquistas econômicas e sociais trazidas pela Revolução de 1917 voltam a ser relembradas como modelo de transformações sociais e culturais de interesse da classe operária e campesina, em fim, de toda coletividade.

Portando, é importante que os partidos políticos de esquerda, as universidades, os sindicatos da classe trabalhadora, as organizações populares, enfim todos os que têm compromisso com a coletividade e com a convivência pacífica entre as nações, realizem debates, palestras, conferências com o objetivo de resgatar os pontos positivos da Revolução Soviética de 1917 e do marxismo para a humanidade.

Reproduzo um pequeno comentário que li em uma matéria sobre os preparativos de um ciclo de debates que o Jornal Brasil de Fato realiza sobre os 95 anos da Revolução de 1917, comentário no qual o missivista diz: “Parabéns pela iniciativa! Estamos todos, a cada dia mais necessitados de debates que nos ajudem a compreender algumas das profundas transformações (e esperanças) que foram massacradas na última década do século passado e que precisam ser reapropriadas, reinventadas, refundadas nestes novos tempos de profundas desgraças, mas, também, de largas e belas possibilidades”. O sonho de um mundo socialista não morreu.

Antonio Capistrano – foi reitor da UERN é filiado ao PCdoB

FONTE: Pátria Latina

Outubro ou nada


Por Mauro Luis Iasi*

“Marchemos para frente, tiremos nossa poesia do futuro, basta de anacronias e cópias do passado, mas não nos esqueçamos nunca que tivemos um Outubro, e foi nosso, e foi um grande Outubro vermelho e proletário, e foi tão grande que foi planetário, e foi tão generoso e fraterno que nele se irmanaram todos os trabalhadores do mundo e chegaram a acreditar que tudo podia mudar e, por um momento, mudaram tudo que podiam.”
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Uma família de nobres voltava a São Petersburgo com seus inúmeros filhos e malas volumosas. Havia se retirado em fevereiro para fugir dos acontecimentos trágicos que haviam derrubado o Czar e não havia acompanhado o desenvolvimento político que levara os trabalhadores ao poder em outubro. Pateticamente parada na plataforma e acostumada com um servilhismo milenar, esperava que algum carregador implorasse para levar as bagagens da família em troca de alguns míseros copeques.

Depois de esperar em vão por um bom tempo, um criado (nobres não se dignavam a falar com pobres) vai buscar informações e ouve a seguinte resposta: “agora somos livres, se quiser carregue suas malas”!

Era a grande revolução de Outubro que emergia lá de onde costuma vir as coisas dos explorados, da periferia, das sombras esquecidas sob a ofuscante aparência de riqueza das sociedades opulentas, dos cantos obscuros que o olhar hipócrita quer esquecer ou incorpora como normal. Em meio à tragédia da guerra, a barbárie em sua forma mais didática, a vida resistia e se levantava contra a fome e a morte.

A Revolução Russa marcou de forma definitiva a história do século XX em muitas áreas (ver a coletânea organizada por Milton Pinheiro – Outubro e as experiências socialistas do século XX - Salvador: Quarteto, 2010), como acontecimento político, como experiência histórica de um Estado Proletário, como base de transformações econômicas fundadas na socialização dos meios de produção, nas práticas do planejamento, como influência política direta nos rumos do movimento comunista internacional e a formação de estratégias e táticas do movimento revolucionário mundial.

Não podemos esquecer sua importância no desenvolvimento da cultura (é só pensar em Vladimir Maiakoviski na poesia e Sergei Eisenstein para o cinema), o ulterior desenvolvimento da música (Prokofiev, Stravinski) e dança, das ciências (Luria, Vigotski, Bakthin, e tantos outros), o desenvolvimento técnico e científico (Sakharov, Andréi Kolmogórov, etc.). No entanto, quisera me deter numa outra dimensão.

Certos acontecimentos históricos despertam algo um pouco mais intangível que suas manifestações econômicas, políticas, culturais e técnico-científicas. A revolução russa se espalhou pelo mundo, sem internet e televisão, numa velocidade que precisa ser compreendida. Não apenas se expandiu enquanto processo revolucionário que em menos de seis meses havia saído da Europa oriental e chegado ao mar do Japão, se alastrado como fogo em palha pelo antigo império czarista, como atravessou o oceano e incendiou o coração e as esperanças dos trabalhadores das partes mais distantes do globo.

Em uma foto de grevistas em um porto nos EUA na mesma época pode se ver ao fundo uma faixa na qual se lê: “façamos como nossos irmãos russos”. No Brasil as greves operárias se alastravam até a greve geral de 1917 e a Revolução russa foi saudada pelo movimento anarco-sindicalista como expressão da revolução libertária enquanto emissários eram mandados para lá para colher informações e prestar solidariedade. Poucos anos depois, nos anos vinte, quando o caráter marxista da experiência soviética se torna evidente, distanciando-se, portanto, dos princípios anarquistas, forma-se um movimento comunista que não tem paralelo com nenhum outro por sua escala mundial, sua forma de organização e sua ação.

Partidos Comunistas são formados em toda a América Latina, assim como em quase todos os mais distantes rincões do planeta, dos EUA até a China. Evidente que a formação da União Soviética e da III Internacional Comunista explicam a iniciativa e mais, a necessidade, de uma organização internacional, mas não sua aceitação e rápido desenvolvimento. Há elementos objetivos e subjetivos que precisam ser levados em conta.

Os objetivos são por demais conhecidos e podem ser resumidos na própria internacionalização do modo de produção capitalista e sua transformação em imperialismo, mas não podemos compreender a dimensão desse fenômeno sem entender que a revolução soviética foi um evento catalisador de esperanças de todos os explorados.

Como nos dizia Marx para que se forje uma classe revolucionária é necessário que se manifeste uma classe que se apresente como um entrave de caráter universal, ao mesmo tempo em que outra consiga expressar através de sua particularidade os contornos de uma emancipação universal. Falando da Alemanha, Marx afirmava que faltava: “grandeza de alma, que, por um momento apenas, os identificaria com a alma popular, a genialidade que instiga a força material ao poder político, a audácia revolucionária que arremessa ao adversário a frase provocadora: Nada sou e serei tudo.” (Marx, K. Crítica à filosofia do Direito de Hegel. São Paulo, Boitempo: 2005: 154).

Não se trata de nenhum deslize idealista, mas de exata combinação de fatores que dada certas condições materiais, que sem dúvida a guerra mundial propiciava, cria uma equação na qual uma classe encontra as condições de sua fusão enquanto classe. Imersa na cotidianidade reificadora, submetida às condições da exploração os trabalhadores vivem seu destino como uma condição inescapável. Ainda que submetidos as mesmas condições que seus companheiros, não vivem estas condições como base para uma consciência e ação comuns, mas como uma serialidade, nos termos de Sartre. A vida é assim e é impossível mudá-la.

Em certas condições, no entanto, se produz uma situação na qual a realidade se impõe de tal forma que se torna impossível manter a impossibilidade de mudá-la, nas palavras de Sartre: “A transformação tem, pois, lugar quando a impossibilidade é ela mesma impossível, ou se preferirem, quando um acontecimento sintético revela a impossibilidade de mudar como impossibilidade de viver” (Sartre, J. Crítica de la razón dialéctica. Buenos Aires: Losada, 1979, v. 2, p.14). O pensador francês tem em mente os acontecimentos da crise da monarquia absolta que levou a eclosão da Revolução Francesa, mas vemos claramente esses elementos na crise do czarismo nas condições da guerra.

Interessa-nos, no entanto, outra dimensão desse fenômeno. Da mesma forma que um acontecimento sintético pode levar à fusão da classe e a superação de sua situação de serialidade, encontrando na ação do grupo as condições para abrir a possibilidade de superar o campo prático inerte, devemos supor que uma ação particular da magnitude de um processo revolucionário como o russo, provoca um efeito sobre os trabalhadores, mesmo aqueles que não estavam envolvidos direta e presencialmente nos acontecimentos.

Ernesto Che Guevara denominava isso de “consciência da possibilidade da vitória” e inclui entre as condições objetivas que torna possível uma revolução. Quando os trabalhadores vêem os revolucionários russos varrerem seus tiranos, quebra-se a impressão de naturalização e inevitabilidade com as quais revestiam suas condições de existência. É possível mudar, nada somos, mas podemos ser tudo.

Em um belo poema soviético é descrita a cena na qual uma camponesa que agora tinha acesso aos museus e suas obras de arte se detêm diante de um quadro a admirá-lo. A autora do poema então conclui: “mal sabia que ali era uma obra de arte a admirar outra”. Operários assumem as fábricas, as terras são entregues aos comitês agrários para serem repartidas. Soldados, operários, camponeses, marinheiros, lotam os teatros antes privativos da nobreza russa, para ouvir Maiakóviski recitar os poemas que retira dos bolsos de seu enorme casaco e de seu coração ainda maior.

Suspendemos por um instante as enormes dificuldades que viriam, a guerra civil, o isolamento, a burocratização e a degeneração que culminaria no desfecho histórico de 1989. Naquele momento de maravilhoso caos, a vida fluía não como processo que aprisiona os seres humanos nas cadeias do estranhamento, mas como livre fluir de uma práxis transformadora. Tudo pode ser mudado. Podemos criar as crianças de uma nova forma, e já vemos Makarenko e seu enorme coração abrigando os órfãos da guerra e reinventando a pedagogia, trabalhadores organizando as comissões de fábrica e Alexandra Kollontai olhando o mundo com os olhos de mulheres emancipadas.

Enquanto o mundo capitalista preparava-se para esmagar a experiência revolucionária russa (a república dos trabalhadores seria atacada em 1918 por dez potências estrangeiras), o generoso coração da classe trabalhadora acolhe esta experiência como sua e a defende, sem conhecê-la profundamente, sem que a compreenda de todo, mas por que nela se reconhece.

Paz, terra, pão e sonhos voavam pelo mundo que o capital havia tornado um só e mãos calejadas, duras como a terra que trabalham, os seguram e se alimentam da esperança dos que se levantaram contra seus opressores. Corpos exauridos pela chacina diária das fábricas caminham pelas ruas e olham em frente, levantam seus punhos e cantam a canção que os unia: se nada somos em tal mundo, sejamos tudo, ó produtores!

Em tempos como os nossos, de hipocrisia deliberada, em tempos de humanidade desumanizada, de cotidianidade reificada, a consciência da possibilidade da vitória se reverte em seu contrário e se manifesta novamente como uma consciência da impossibilidade da mudança. Brecht nos alerta: nada deve parecer natural, porque nada deve parecer impossível de mudar e completa em outro poema: até quando o mundo será governado por tiranos? Até quando iremos suportá-los?

Presos à nova serialidade, fragmentados e divididos, submetidos às novas cadeias de impossibilidades, escolhendo a cada quatro anos quem irá comandar sua exploração, nossa classe nem se lembra que teve um outubro e que fizemos a terra tremer e que os poderosos perderam o sono diante da iminência de seu juízo final.

Diante da realidade do capital internacional que ameaça a humanidade, diante da barbárie diária que ameaça minha classe, gestam-se novas impossibilidades de manter os limites do possível, crises didáticas transformam em pó certezas neo e pós liberais arcaicos/modernos e suas irracionalidades racionais. O pólo da negatividade humana se reapresenta arrogante e prepotente. Muitos são os que se levantam ainda sem rumo, não importa, que se levantem e gritem, resistam e lutem. Mas, em sua marcha olhando para o futuro, resistindo contra as mazelas do presente desumano do capital, olhem por um momento para trás, vejam como já marchavam à nossa frente nossos camaradas russos, vejam como iam decididos e corajosos abrindo caminho em direção ao amanhã.

Marchemos para frente, tiremos nossa poesia do futuro, basta de anacronias e cópias do passado, mas não nos esqueçamos nunca que tivemos um Outubro, e foi nosso, e foi um grande Outubro vermelho e proletário, e foi tão grande que foi planetário, e foi tão generoso e fraterno que nele se irmanaram todos os trabalhadores do mundo e chegaram a acreditar que tudo podia mudar e, por um momento, mudaram tudo que podiam.

Viva a revolução Soviética de 1917. Outubro… ou nada!


*Mauro Iasi é professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, presidente da ADUFRJ, pesquisador do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e membro do Comitê Central do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência (Boitempo, 2002). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.

FONTE: ODiário.info

domingo, 4 de novembro de 2012

Desnacionalização e revolução


por Adriano Benayon   

Desde há séculos o Brasil carece de governo autônomo, capaz de promover o progresso econômico e social.  A independência proclamada em 1822 não se traduziu em autonomia real, pois o país atravessou o Império e os primeiros anos da República sob tutela financeira e política da Inglaterra, até o final da Primeira Guerra Mundial, e do império anglo-americano desde então.

2. Os lampejos de autonomia duraram pouco, logo apagados por intervenções da oligarquia mundial. Assim, nos anos 1840, com a tarifa Alves Branco, uma tentativa de viabilizar o surgimento de indústrias nacionais. Também, com os empreendimentos abrangentes do Barão de Mauá, dos anos 1850 aos 1880, e com iniciativas limitadas, como a fábrica de linhas de Delmiro Gouveia em Alagoas, 1912-1917.

3. Os avanços na redução da  dependência econômica foram contidos ou anulados pela dependência política. E esta decorreu da subordinação da economia agrária e exportadora de bens primários aos interesses comerciais e industriais de potências estrangeiras.

4. Quando Getúlio Vargas promoveu maior grau de autonomia nacional -  de 1934 a 1945 e de 1951 a 1953 -,  as potências hegemônicas -  coadjuvadas pelas “classes conservadoras” locais e pela mídia venal – montaram complôs para desestabilizar e derrubar o governo.

5. Como Vargas antes, João Goulart, em 1962-1963, não se  precaveu diante das maquinações imperiais, tarefa difícil em regime “democrático” no qual o poder financeiro determina o processo político.

6. Mesmo sendo  escassa a proteção tarifária e a não-tarifária, e operassem no Brasil vários cartéis e grandes empresas estrangeiras, surgiram numerosas indústrias de capital nacional substituidoras de importações na segunda metade do Século XIX e na primeira do Século XX.

7. Cito quatro livros que o demonstram: Warren Dean, A Industrialização de São Paulo (1880-1945); Edgard Carone, O Centro Industrial do Rio de Janeiro e sua Importante Participação na Economia Nacional (1827-1977), ed. Cátedra, Rio 1978; Delso Renault, 1850-1939 O Desenvolvimento da Indústria Brasileira, SESI; Eli Diniz, Empresário, Estado e Capitalismo no Brasil 1930-1945, ed. Paz e Terra, SP 1978.

8. O próprio Vargas só restringiu investimentos estrangeiros em poucos setores e demorou a notar o volume das remessas de lucros ao exterior, o que está longe de ser único dos prejuízos que eles causam à economia.

9.  As potências imperiais realizaram seus objetivos a partir de Café Filho, fantoche dos entreguistas civis e militares (1954).  JK, eleito em 1955, pelos votos getulistas, ampliou os benefícios ao capital estrangeiro.

10. Daí não terminou mais  a escalada de desnacionalização, não obstante se terem criado estatais na  área produtiva – privatizadas de forma vergonhosa a partir de 1990 -,  tendo o Estado feito também investimentos nas infraestruturas econômica e social.

11. O poder público subsidiou as transnacionais, e esmagou empresas nacionais.

12.  Resultado: em 1971, o capital estrangeiro já controlava setores importantes: mercado de capitais, 40%; comércio externo, 62%; serviços públicos, 28%; transportes marítimos, 82%; transporte aéreo externo, 77%; seguros, 26%; construção, 40%; alimentos e bebidas, 35%; fumo, 93,7%; papel e celulose, 33%; farmacêutica, 86%; química, 48%; siderurgia, 17%; máquinas, 59%; autopeças, 62%; veículos a motor, 100%; mineração, 20%; alumínio, 48%; vidro, 90%.

13.  Em 1971, o estoque de investimentos diretos estrangeiros (IDEs)  não chegava a US$ 3 bilhões. Em 2011, atingiu US$ 669,5 bilhões.

14.  O montante de 2011 é  40 vezes maior  que o de 1971, atualizado para US$ 16, 6 bilhões.  No período, o  PIB, em dólares corrigidos, só se multiplicou por 6.

15. Os IDEs referem-se só às empresas com maioria de capital estrangeiro, não aos “investimentos estrangeiros em carteira” (participações no capital de empresas e aplicações em títulos públicos e privados). Esses  acumularam US$ 597 bilhões até 2011. Os empréstimos, US$ 190 bilhões. A soma dá quase US$ 1,5 trilhão.

16. É fácil emitir dólares do nada e com eles comprar ativos. Mais: grande parte dos IDEs  é  reinvestimento de lucros, e quantia muitíssimo maior que  a dos ingressos foi remetida ao exterior a título de lucros,  dividendos, juros, afora os ganhos camuflados em outras contas do balanço de transações correntes. Disso originou-se a dívida pública, fator de empobrecimento e de dependência.

17. A desnacionalização prossegue galopante. Conforme a “Pesquisa de Fusões e Aquisições” da consultoria KPMG, 247 empresas foram adquiridas por transnacionais de janeiro a setembro de 2012. Em todo o ano de 2011, haviam sido 208. De 2004 para cá, foram 1.247.

18. Em 2012, destacam-se: tecnologia da informação (33); serviços para empresas (20); empresas de internet (19); supermercados, açúcar e álcool (35); publicidade e editoras (10); alimentos, bebidas e fumo (10); mineração (9); óleo e gás (8); educação (7); shopping centers (7); imobiliário (7).

19. Ainda mais estarrecedora que a avassaladora ocupação da economia brasileira é a persistência na mentalidade de que os investimentos estrangeiros beneficiam a economia.

20. Não houve evolução, desde os anos 50 e 60, no entendimento da realidade. Continuam sendo escamoteadas as causas do enorme atraso tecnológico do país e disto tudo: pobreza, insegurança, infraestrutura lastimável, desagregação social, desaparelhamento da defesa e cessão de territórios a pretexto de proteção ao ambiente e a indígenas.

21. O impasse da economia brasileira, prestes a desembocar em dificuldades ainda maiores, sob o impacto da depressão nos países centrais, decorre das percepções errôneas, subjacentes às recomendações da CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina da ONU) e à política “desenvolvimentista” de JK.

22. Estas foram as falsas premissas, ainda não atiradas ao lixo, como deveriam ter sido há muito tempo: 1) a industrialização como meta em si mesma, independente da composição nacional ou estrangeira e do grau de concentração do capital; 2) o capital estrangeiro tido por necessário para suprir pretensa insuficiência local de recursos.

23. As políticas decorrentes dessas ideias redundaram na  desindustrialização e na descapitalização do país. Ignora-se a experiência histórica – sempre confirmada - de nunca ter existido  real desenvolvimento em países nos quais predominem os investimentos estrangeiros.

24. Recorde-se que, de 1890 a 1917,  ano da débâcle na guerra e da revolução, o volume de investimentos estrangeiros na Rússia foi cerca de três vezes superior ao do capital nacional.


(*) Adriano Benayon é doutor em Economia e autor do livro Globalização versus Desenvolvimento, editora Escrituras, SP.

FONTE: Correio da Cidadania