terça-feira, 22 de agosto de 2017

Como funcionavam os sovietes?



Por John REED





Até Fevereiro de 1918 não importava quem podia votar para eleger deputados aos Sovietes. Se a burguesia tivesse exigido e organizado a sua representação nos Sovietes, isto ter-lhe-ia sido permitido. Por exemplo, durante o regime do Governo provisório, houve uma representação burguesa no Soviete de Petrogrado: um delegado da União das profissões liberais, que incluía médicos, advogados, professores, etc.

Texto de John Reed, escrito entre 1918 e 1919, tradução portuguesa retirada do site do Centro de media independente  (link is external)


A HISTÓRIA DOS SOVIETES

O Estado dos Sovietes baseou-se nos Sovietes - ou Conselhos - dos operários e camponeses.
Estes conselhos - instituição característica da Revolução russa - fizeram a sua aparição em 1905 quando, durante a primeira greve geral dos operários, as fábricas de Petrogrado e as organizações sindicais enviaram delegados a um comitê central.

Este comitê de greve foi chamado "Conselho dos Deputados Operários". Ele organizou no fim de 1905 a segunda greve geral, enviou emissários através de toda a Rússia e, durante um breve espaço de tempo, foi reconhecido pelo governo imperial como órgão oficial e autorizado da classe operária revolucionária russa.

Quando a Revolução de 1905 fracassa, uma parte dos membros do Conselho puseram-se em fuga enquanto que os outros foram enviados para a Sibéria. Mas este tipo, de organização unitária mostrou-se tão extraordinariamente eficaz, enquanto organismo político, que todos os partidos revolucionários incluíram um Conselho dos Deputados Operários no seu programa para a próxima sublevação.

Em Março de 1917, quando perante toda a Rússia agitada como um mar em fúria, o czar abdicou, o grão-duque Miguel renunciou e a frágil Duma [Parlamento] foi forçada a tomar nas mãos as rédeas do governo, o Conselho dos Deputados Operários surgiu de novo, completamente estruturado. Em poucos dias, ampliou-se de modo a incluir também delegados do exército e passou a chamar-se "Conselho dos Deputados Operários e Soldados". Por outro lado, o Comitê da Duma, era composto - com a exceção de Kerenski - por burgueses, e não tinha qualquer relação com as massas revolucionárias.

Mas era preciso combater, era necessário restabelecer a ordem, era preciso defender a frente. Os membros da Duma não sabiam como cumprir estas múltiplas tarefas; foram obrigados a recorrer aos representantes dos operários e dos soldados, por outras palavras, aos Conselhos. Os Conselhos tomaram parte na ação revolucionária, no trabalho de coordenação dos diferentes sectores de atividade e manutenção da ordem... Em resumo, assumiram a tarefa de defender a Revolução contra a traição burguesa.

A partir do momento em que a Duma foi obrigada a apelar para os Conselhos, começaram a coexistir na Rússia dois organismos governamentais. Eles entraram em competição, e isto até Novembro de 1917, data na qual os Sovietes, sob a direcção dos bolcheviques, derrubaram o governo de coligação.

Como já disse, os Sovietes eram na altura compostos por operários e soldados; pouco depois formaram-se Sovietes de camponeses. Na maior parte das cidades os Sovietes dos operários e dos soldados uniram-se e realizaram em conjunto o seu Congresso Pan-russo. Ao contrário, os Sovietes de camponeses foram mantidos separados pelos elementos reacionários que os dirigiam e só se uniram aos operários e aos soldados depois da Revolução de Outubro e da constituição do governo dos Sovietes.

A constituição dos sovietes

O Soviete baseou-se directamente nos operários das fábricas e nos camponeses do campo.
Os Sovietes dos Deputados Soldados existiram até o princípio do ano de 1918. Foram abolidos depois da desmobilização do antigo exército e do tratado de Brest-Litovsk; os soldados foram então integrados nas fábricas e nas instituições agrícolas.

Inicialmente, os delegados dos Sovietes dos operários, dos camponeses e dos soldados eram eleitos segundo regras que variavam com as necessidades e a quantidade da população nos diferentes locais. Em certas aldeias os camponeses elegeram um delegado por cada cinquenta votantes. Os soldados das guarnições enviaram um certo número de delegados por cada regimento em proporção à força deste, mas o exército em campanha estabeleceu um sistema eleitoral diferente.

Do mesmo modo os operários nas grandes cidades aperceberam-se rapidamente que os seus Sovietes tornar-se-iam demasiado grandes se não limitassem o número dos representantes a um por cada quinhentos votantes. Os primeiros Congressos Pan-russos dos Sovietes foram convocados segundo um sistema de um delegado por cada 25.000 votantes; mas, de fato, os delegados representavam massas eleitorais quantitativamente diversas.

Até Fevereiro de 1918 não importava quem podia votar para eleger deputados aos Sovietes. Se a burguesia tivesse exigido e organizado a sua representação nos Sovietes, isto ter-lhe-ia sido permitido. Por exemplo, durante o regime do Governo Provisório, houve uma representação burguesa no Soviete de Petrogrado: um delegado da União das profissões liberais, que incluía médicos, advogados, professores, etc.

Em Março, a constituição dos Sovietes foi elaborada mais profundamente e universalmente aplicada.

O direito de sufrágio foi limitado:

a) aos cidadãos da República Socialista Russa que tivessem 18 anos feitos no dia das eleições;

b) a todos aqueles que ganhavam a sua vida com um trabalho produtivo e útil para a sociedade e fossem membros das organizações sindicais;

Não tinham direito a votar:
a) os que utilizavam o trabalho de outras pessoas para dele tirarem lucro;

b) os que viviam de uma renda não ganha com o seu trabalho;

c) os comerciantes e agentes do comércio privado;

d) os membros das comunidades religiosas;

e) os antigos membros da polícia e da gendarmeria;

f) os membros da antiga família reinante

;g)  os deficientes mentais;

h) os surdos-mudos;

i) os condenados por delitos infamantes;

j) e os agentes de empresas lucrativas;

No que se refere aos camponeses, mil camponeses enviavam um representante ao Soviete do Volost ou aldeia: os Sovietes dos Volostes enviavam delegados ao Soviete do distrito que, por sua vez, os enviava ao Soviete do Oblast ou da província. Para fazer parte deste são igualmente eleitos delegados dos Sovietes operários da cidade.

O Soviete dos Deputados Operários e Soldados de Petrogrado que estava em plena atividade quando me encontrava na Rússia, pode oferecer um exemplo do funcionamento da organização governamental urbana do Estado socialista. Era formado por cerca de 1.200 delegados e, em circunstâncias normais, tinha uma sessão plenária de duas em duas semanas. Ao mesmo tempo, nomeava um "Comitê Executivo Central" de 110 membros eleitos numa base de representação proporcional dos partidos; este Comitê Executivo Central convidava para participar nos seus trabalhos, membros do Comitê Central de todos os partidos, do Comitê Central dos sindicatos profissionais, comissões das empresas e outras organizações democráticas.

Ao lado do grande Soviete da cidade existiam ainda Sovietes de bairros, constituídos por delegados de cada bairro no Soviete da cidade e responsáveis pela administração dos respectivos setores urbanos. Naturalmente, em certos bairros não existiam fábricas e, consequentemente, não tinham governo; e não havia representante destes bairros no Soviete da cidade nem do bairro. Mas o sistema dos sovietes é extremamente maleável, e se os cozinheiros ou criados domésticos ou ainda os cocheiros desse bairro se organizavam e pediam para estar representados, os delegados aceitavam-nos.

A eleição dos delegados é baseada na representação proporcional, o que quer dizer que os partidos políticos são representados proporcionalmente ao número dos votantes da cidade. De tal maneira que se vota num partido e num programa políticos e não na pessoa dos candidatos. Os candidatos são designados pelo Comitê Central do partido político e podem ser substituídos por outros membros do partido. E mais, os delegados não são eleitos por um período determinado, mas susceptíveis de serem revogados a qualquer momento.

Nunca foi criado qualquer corpo político tão maleável e que responda desta forma à vontade popular. E isto era tanto mais necessário quanto no decurso de uma revolução a vontade popular muda muito rapidamente. Um exemplo entre tantos outros. Durante a primeira semana de Dezembro de 1917 realizaram-se algumas manifestações a favor da Assembléia Constituinte, isto é, contra o poder dos sovietes. Guardas Vermelhos irresponsáveis atiraram então contra um dos cortejos e fizeram alguns mortos. A reação perante esta violência estúpida foi imediata: em doze horas, foi modificada a constituição do Soviete de Petrogrado; mais de uma dúzia de deputados bolcheviques foram demitidos e substituídos por mencheviques... Apesar disso foI preciso três semanas para acalmar o ressentimento público e permitir o chamamento e a reintegração dos bolcheviques.

O estado dos sovietes

Pelo menos duas vezes por ano chegam de toda a Rússia delegados ao Congresso Pan-russo dos Sovietes. Em teoria, estes delegados são escolhidos em eleições populares diretas: nas províncias, à razão de um delegado para 125.000 votantes, e nas cidades, à razão de um para 25.000. Mas na prática, eles são apenas eleitores entre os membros dos sovietes provinciais e urbanos. Uma sessão extraordinária do Congresso pode ser convocada em qualquer altura a pedido do Comitê Executivo Central pan-russo ou de Sovietes, representando um terço da população operária da Rússia. Este Congresso é composto por cerca de dois mil delegados. Reúne-se na capital como Grande Soviete e delibera sobre pontos essenciais da política nacional. Elege um Comitê Executivo Central, semelhante ao Comitê Central do Soviete de Petrogrado, que convoca por convites os delegados dos comitês centrais de todas as organizações democráticas.

Este Comitê Executivo Central dos Sovietes de toda a Rússia desenvolveu-se de tal maneira que se tornou o Parlamento da República Soviética. Compõe-se de cerca de trezentos e cinquenta e cinco membros. Entre cada sessão do Congresso Pan-russo, ele é a autoridade suprema, mas a sua ação é limitada pela linha fixada no último Congresso; ele é completamente responsável por todos os seus atos até ao Congresso seguinte.

Por exemplo, o Comitê Executivo Central pôde - e assim tem feito na realidade - ordenar que fosse assinado o tratado de paz com a Alemanha. Mas não pode torná-Io obrigatório para a Rússia. Só o Congresso Pan-russo tem autoridade para o fazer.

O Comitê Executivo Central elege no seu seio onze comissários que serão os chefes das Comissões das quais dependem. Estes comissários podem sempre ser revogados e são estritamente responsáveis perante o Comitê Executivo Central. Por sua vez os comissários elegem um chefe ou presidente. Quando foi constituído o governo dos Sovietes, este chefe foi Lenin. Se a sua direcção não tivesse sido aprovada, Lenin poderia ser revogado a qualquer momento pelos delegados da massa do povo russo ou, ao fim de algumas semanas, diretamente pelo próprio povo russo.

A função principal dos Sovietes é a defesa e a consolidação da Revolução. Eles exprimem a vontade política das massas não só em todo o país, no Congresso Pan-russo, mas também em cada uma das suas secções onde a sua autoridade é praticamente suprema.

Esta descentralização é efectiva, pois são os Sovietes locais que criam o governo central e não o governo central que cria os órgãos locais. Mas apesar da autonomia local, os decretos do Comitê Executivo Central e as ordens dos comissários têm força de lei para todo o país. Efectivamente, na República dos Sovietes não são os interesses regionais ou de grupos que devem ser saIvaguardados mas a causa da Revolução, que é a mesma em todo o lado.

Observadores mal informados, na maior parte intelectuais da classe média, repetem sem cessar que são favoráveis aos Sovietes mas contra os bolcheviques. É um absurdo. Certamente que os Sovietes são os organismos representativos mais perfeitos da classe operária, mas eles são também os instrumentos da ditadura do proletariado contra a qual, com toda a evidência, se opõem os partidos anti-bolcheviques. Por consequência a medida de adesão do povo à política da ditadura proletária não é fornecida apenas pelo número dos membros do Partido Bolchevique ou Partido Comunista, mas também pelo desenvolvimento e a atividade dos Sovietes locais em toda a Rússia.

O exemplo mais revelador deste fato é dado pelos camponeses, que não se puseram à cabeça da Revolução e cujo interesse primordial e exclusivo foi a confiscação da grande propriedade. Desde o início, o Soviete dos Deputados Camponeses não teve praticamente outra função que não fosse a de resolver o problema da terra. O fracasso da solução apresentada pelo governo de coligação nascente não fez senão com que os camponeses prestassem a sua atenção aos aspectos sociais do problema, levados a isso pela propaganda contínua da ala esquerda do Partido Socialista-Revolucionário, pelos bolcheviques e pelo regresso à aldeia dos soldados revolucionários.

O partido tradicional dos camponeses é o Partido Socialista-Revolucionário. A grande massa inerte da população dos campos, cujo único interesse era a terra e que não tinha nem psicologia combativa nem iniciativa política, não quis saber nada dos Sovietes. Mas os camponeses que não participaram nos Sovietes aliaram-se muito depressa à idéia da ditadura do proletariado, convertendo-se em sustentáculos activos do governo dos Sovietes.

No gabinete do Comissariado para a Agricultura, em Petrogrado, havia um mapa da Rússia com alfinetes de cabeça vermelha espetados, cada um indicando um Soviete de Deputados Camponeses. Quando vi pela primeira vez este mapa dependurado no velho local dos camponeses, os sinais vermelhos estavam espalhados aqui e acolá, numa enorme extensão, e durante algum tempo o seu número não aumentou. Nos primeiros oito meses da Revolução havia províncias inteiras onde existiam Sovietes de Camponeses apenas numa ou duas grandes cidades e igualmente em algumas raras aldeias. Mas depois da Revolução de Outubro podia ver-se toda a Rússia tornar-se vermelha e, pouco a pouco, de aldeia em aldeia, de comitê em comitê, de província em província propagava-se a idéia da formação dos Conselhos camponeses.

Na altura da insurreição bolchevique poder-se-ia eleger uma Assembléia Constituinte tendo uma maioria contrária aos Sovietes. A coisa teria sido impossível um mês mais tarde. Assisti a três Congressos Pan-russos de Camponeses em Petrogrado. Os delegados presentes eram socialistas-revolucionários de direita. Estavam reunidos (e eles realizaram sempre reuniões muito agitadas) sob a presidência de conservadores do tipo de Avksentiev e de Peshkanov. Poucos dias depois eles giraram à esquerda, ficando sob a direcção de pseudo-radicais do tipo de Tchernov.

Alguns dias mais tarde a maioria tornou-se extremamente radical e Maria Spiridonova foi eleita para a presidência. Foi então que a maioria conservadora se separou, formando um Congresso de dissidentes que, pouco depois, estava reduzido a nada, enquanto que o corpo principal tinha enviado delegados ao palácio de Smolny para se unirem com os Sovietes.

As coisas caminharam sempre desta maneira. Jamais esquecerei o Congresso dos Camponeses que se realizou no final de Novembro; Tchernov lutou pela direcção e foi vencido. Deu-se então um acontecimento maravilhoso. Uma procissão cinzenta de trabalhadores da terra dirigiu-se para o palácio de Smolny. Atravessou, cantando, as ruas cobertas de neve, bandeira vermelha desfraldada, esvoaçando ao vento glacial do Inverno. Era uma noite escura. No interior de Smolny centenas de operários esperavam para receber os seus irmãos camponeses; na penumbra, os dois cortejos avançando um para o outro encontraram-se; caíram todos nos braços uns dos outros vertendo lágrimas e lançando gritos de alegria.



John Reed foi um jornalista dos EUA que cobriu a revolução de Outubro Rússia e escreveu "Os 10 dias que abalaram o Mundo"


FONTE: :

sábado, 19 de agosto de 2017

Rosa Luxemburgo, a marxista menos eurocêntrica?



Rosa Luxemburg


Nova obra sobre revolucionária polonesa-alemã destaca sua contribuição essencial: compreender pioneiramente papel indispensável das periferias no processo de acumulação capitalista


Por Isabel Loureiro (*)


A civilização burguesa imperialista está num beco sem saída.
Deste beco não temos que participar – os bugres das baixas latitudes e adjacências.
          
                                           Mário Pedrosa, Discurso aos tupiniquins ou nambás, 1975



Este texto é parte do livro Rosa Luxemburgo, ou o preço da liberdade. Organizado por Jörge Schütrumpf, reúne ensaios de autores como e Michael Löwy e Isabel Loureiro. Graças é uma parceria entre Outras Palavras e a Fundação Rosa Luxemburgo



A acumulação do capital, de Rosa Luxemburgo (1913), foi criticada por várias gerações de economistas. Mesmo os que simpatizam com suas ideias reconhecem o fracasso da solução encontrada por ela para os problemas da teoria da acumulação de Marx. No entanto, existem outras leituras que deixam de lado os erros técnicos e teóricos da obra para enfatizar que Rosa Luxemburgo foi a primeira teórica marxista a compreender o capitalismo como um sistema mundial. Nessa perspectiva, ela aparece como a teórica que pela primeira vez deu lugar permanente, na civilização ocidental, aos países da periferia do capitalismo, não somente porque serviram como fonte de acumulação primitiva do capital, mas porque, desde a época da colonização até agora, foram um elemento imprescindível do desenvolvimento capitalista mundial. Essa novidade foi reconhecida na América Latina dos anos 1970 por intelectuais marxistas não-stalinistas que se deram conta de que Rosa Luxemburgo havia tido uma intuição original (que não desenvolveu) ao enfatizar a unidade dialética entre metrópole e periferia: o sistema capitalista mundial, no seu processo de constituição histórica, gerava o subdesenvolvimento na periferia como um aspecto complementar do desenvolvimento nos países centrais. Nesse sentido, ela teria antecipado em 60 anos as conclusões às quais chegou a teoria da dependência.

A grande originalidade de Rosa Luxemburgo, que não foi levada em conta pelo marxismo ortodoxo no século XX, consiste em ter percebido que “a pilhagem que ocorre nos países coloniais por parte do capital europeu”, que Marx restringia ao período da “acumulação primitiva”, é uma característica do capitalismo “mesmo em sua plena maturidade”.2 Nas suas palavras: “(…) já não se trata de acumulação primitiva, mas de um processo que prossegue inclusive em nossos dias. (…) O capital não conhece outra solução que não a da violência, um método constante da acumulação capitalista no processo histórico, não apenas por ocasião de sua gênese, mas até mesmo hoje. Para as sociedades primitivas, no entanto, trata-se, em qualquer caso, de uma luta pela sobrevivência; a resistência à agressão tem o caráter de uma luta de vida ou morte levada até o total esgotamento ou aniquilação”.3

Assim, nas leis da acumulação do capital, Rosa Luxemburgo acredita ter encontrado as raízes econômicas do imperialismo que, no seu entender, “não é senão um método específico da acumulação”.4 Na boa formulação de Paul Singer, para quem a posição de Rosa Luxemburgo é diferente da de Lenin: “Para ela, o imperialismo não é um estágio do capitalismo, é uma característica central do próprio capitalismo desde sempre. Desde o início, o capitalismo precisou capturar mercados externos para ter a razão de ser da própria expansão. O capitalismo se expande via Estado, via conquista, transforma economias naturais que não são mercantis em economias de mercado. (…) Esse tipo de interpretação, a meu ver, é extremamente fecundo e interessante para se aplicar a um país como o Brasil”.5

A posição de Rosa Luxemburgo a favor dos países periféricos – segundo Mário Pedrosa, “o espírito menos europeu-centrista de todos”6 – foi um dos fatores que estimularam o interesse dos socialistas latino-americanos por sua obra. Enquanto para Marx os lucros procedentes das colônias eram só um elemento entre outros similares que explicavam a acumulação primitiva, para Rosa Luxemburgo, como já foi dito, as regiões não-capitalistas ocupavam uma função necessária no desenvolvimento das metrópoles.7

Já na década de 1970, Mário Pedrosa.8 se inspira nessa obra de Rosa Luxemburgo para analisar a crise daquela época e admite que ela estava certa quando dizia que os métodos violentos da “acumulação primitiva”, combinados com a força do dinheiro e da corrupção, continuavam a ser necessários à reprodução ampliada do capital. Esse mecanismo de “acumulação primitiva”, que associa antigas formas de expropriação (privatização da terra e expulsão da população camponesa, mercantilização da força de trabalho e supressão de formas de produção e consumo autóctones, apropriação de recursos naturais etc.) com novos mecanismos de mercantilização em todos os domínios, é o que David Harvey chama de “acumulação por expropriação”.9 Para dar o passo que atualiza a concepção de Rosa Luxemburgo, Harvey cita a passagem em que ela se refere à acumulação do capital como apresentando dois aspectos distintos: um, formalmente pacífico, que se realiza nos “locais produtores de mais-valia”; o outro, que se realiza “entre o capital e as formas de produção não-capitalistas. Seu palco é o cenário mundial. Aqui reinam como métodos a política colonial, o sistema internacional de empréstimos, a política das esferas de interesse, as guerras. Aqui a violência, a fraude, a repressão, o saque se apresentam de maneira totalmente aberta e sem disfarces, dificultando, sob esse emaranhado de atos de violência política e demonstrações de força, a descoberta das leis férreas do processo econômico”.10 E Rosa Luxemburgo conclui (trecho que Harvey não cita) dizendo que economia e política estão intrinsecamente ligadas: “Na realidade, a violência política é também aqui somente o veículo do processo econômico; ambos os aspectos da acumulação do capital estão organicamente ligados pelas condições de reprodução do capital, apenas juntos fornecem a carreira histórica do capital”.11

Tendo em mente a observação de Rosa Luxemburgo sobre a permanência da acumulação primitiva, Harvey também constata que as práticas predatórias e violentas que ocorreram na Europa entre os séculos XV e XVIII, descritas por Marx (remoção dos camponeses de suas terras, mercantilização da força de trabalho, trabalho forçado, comércio de escravos, fim dos commons, extração do ouro e da prata e aniquilamento dos povos indígenas na América, apropriação violenta de ativos, inclusive de recursos naturais, sistema de crédito), não são restritas a uma etapa original do capitalismo, que inclusive não são externas ao capitalismo como sistema fechado, como supunha Rosa Luxemburgo (ou seja, a violência é intrínseca, cada vez mais, ao próprio processo de trabalho), mas fazem parte desse processo em andamento. Os exemplos são irrefutáveis: expulsão de camponeses e formação de um proletariado sem terra no México e na Índia (também no Brasil) desde os anos 1970; privatização de recursos naturais como a água; privatização de indústrias nacionais; substituição da agropecuária familiar pelo agronegócio; persistência da escravidão (sobretudo no comércio sexual); o sistema de crédito e o capital financeiro, “grandes trampolins de predação, fraude e roubo”.12

Além disso, foram sendo criados “mecanismos inteiramente novos de acumulação por expropriação”,13 novas formas de privatização dos bens comuns da humanidade: patentes de material genético e de sementes; biopirataria em benefício de empresas farmacêuticas; destruição e mercantilização da natureza; mercantilização da cultura e da educação; privatização da saúde e das aposentadorias. A essa lista podemos acrescentar a “economia verde”, com seus mercados de carbono, a mais recente fonte de acumulação primitiva permanente.14

A perspectiva de Rosa Luxemburgo assume assim nova atualidade na época da globalização. A expansão imperialista, que requeria a apropriação de regiões atrasadas do globo para serem transformadas em zonas capitalistas, foi um processo que praticamente se completou na segunda metade do século XX. Hoje, as novas fronteiras de expansão capitalista já não são apenas territoriais (embora na América Latina também sejam) e sim econômicas, com a mercantilização de tudo o que ficou fora da esfera da valorização do valor. É contra esse processo de acumulação por expropriação que os movimentos socioambientais na América Latina criaram, com enormes dificuldades, suas formas de resistência. Eles denunciam a simbiose entre Estado e grandes empresas como sendo responsável por extorquir os meios de vida das camadas subalternas da sociedade – povos da floresta, indígenas, populações ribeirinhas, quilombolas, trabalhadores sem terra, pequenos agricultores – em favor da mineração e do agronegócio. Ou seja, naquilo que, numa síntese feliz, foi chamado de “consenso das commodities”15 ou “neoextrativismo progressista”.16

Os movimentos de resistência à acumulação por expropriação, diferentemente do desenvolvimentismo socialista tradicional, que apoiava a modernização forçada ainda que à custa de terríveis sacrifícios (por exemplo, coletivização forçada da agricultura na URSS, na China e no Leste europeu), valorizam formas sociais tradicionais e muitos deles, como os movimentos indígenas na América andina, não veem o desenvolvimento capitalista como progressista. Essas resistências múltiplas, permeadas de contradições internas, traduzem-se em lutas específicas contra alvos específicos: contra a construção de megarrepresas na Índia e na América Latina; contra transgênicos; contra as madeireiras, pela preservação das reservas florestais para os povos indígenas; contra o agronegócio e o uso de agrotóxicos etc. Harvey acredita que a luta anticapitalista só poderá ser bem-sucedida se unir as resistências progressistas locais e particulares contra a acumulação por expropriação (equivocadamente consideradas irrelevantes pelos movimentos comunistas e socialistas tradicionais) com as lutas contra a reprodução ampliada, típicas da esquerda tradicional. Porém, considera que na acumulação por expropriação está “a contradição primária a ser enfrentada”.17

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2 Rosa Luxemburg, A acumulação do capital, São Paulo, Nova Cultural, 1988, vol. 2, p. 28, tradução modificada.

3 Idem, pp. 32, 33.

4 Die Akkumulation des Kapitals oder Was die Epigonen aus der Marxschen Theorie gemacht haben – eine Antikritik [A acumulação do capital ou o que os epígonos fizeram da teoria marxista: uma anticrítica]. In: Rosa Luxemburg, Gesammelte Werke 5, Berlim, Dietz Verlag, 1985, p. 431.

5 Paul Singer, A teoria da acumulação do capital em Rosa Luxemburg. In: Isabel Loureiro e Tullo Vigevani (org.), Rosa Luxemburg, a recusa da alienação, op. cit., p. 85. Também Mário Pedrosa, para quem a abordagem de Rosa Luxemburgo tinha uma “profunda originalidade”, entende que para ela o imperialismo era “o primeiro ato de nascimento do capitalismo” (Pedrosa, op. cit.,p. 69).

6 Op. cit, p. 17.

7 Cf. Fritz Weber, Implicaciones políticas de la teoria del derrumbe de Rosa Luxemburg. In: J. Trías, M. Monereo (org.), Rosa Luxemburg – actualidad y clasicismo, El Viejo Topo, s/d, p. 54.

8 A crise mundial do imperialismo e Rosa Luxemburgo, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1979.

9 David Harvey, O novo imperialismo. São Paulo: Loyola, 2004.

10 Rosa Luxemburg, A acumulação do capital, op. cit., pp. 86-7. Tradução modificada segundo Gesammelte Werke 5, p. 397.

11 Gesammelte Werke 5, p. 398.

12 Harvey, op. cit., p. 122.

13 Idem, p. 123.

14 Ver Camila Moreno, Las ropas verdes del Rey. In: Miriam Lang, Claudia López, Alejandra Santillana (org.). Alternativas al capitalismo/colonialismo del siglo XXI, São Paulo, Fundação Rosa Luxemburg, 2013.

15 Ver Maristella Svampa, Consenso de los commodities, giro ecoterritorial y pensamiento crítico en América Latina, OSAL (Buenos Aires: CLACSO), ano XIII, n° 32, novembro de 2012.

16 Eduardo Gudynas, Estado compensador y nuevos extractivismos – las ambivalencias del progresismo sudamericano, Nueva Sociedad, no 237, enero-febrero de 2012. www.nuso.org

17 Harvey, op. cit., p. 144.


Isabel Loureiro é filósofa e especialista em Rosa Luxemburgo, organizadora e tradutora de muitas obras que discutem esta obra, como “Socialismo ou Barbárie – Rosa Luxemburgo no Brasil” (FRL) e “Rosa Luxemburgo – textos escolhidos“, Ed. UNESP. É professora aposentada do Departamento de Filosofia da UNESP.


segunda-feira, 7 de agosto de 2017

PROUDHON, Pierre-Joseph



Por Aluizio Moreira


Nasceu em Besançon, França, em 1809. Filho de uma família camponesa, de formação autodidata, aos 29 anos recebeu uma bolsa para estudar em Paris, onde publicou seu primeiro livro, “Que é propriedade?” em 1840 no qaual desenvolveu a concepção de que “a propriedade é um roubo”, enquanto resultado da exploração do trabalho de outros. Esta afirmação teve como consequência a perda da bolso de estudos em Paris.
Em 1846, escreveu “Sistema de contradições econômicas ou Filosofia da miséria” (1) que defendia que a sociedade ideal seria aquela em que o indivíduo têm o controle sobre os meios de produção. Pela publicação dessa obra Proudhon foi processado e posteriormente absolvido, mudando-se para Lyon.

No ano seguinte, volta a Paris fundando o jornal “O Representante do Povo”. Tendo sido durante a Revolução de 1848 (2), eleito deputado para a Assembleia Constituinte.

Como membro da Assembleia lançou diversas propostas revolucionárias, como a fundação de um banco popular, fixar impostos sobre a propriedade privada.




Na época publicou folhetos de tendência mutualista, criticando o centralismo e o autoritarismo, em defesa de uma sociedade sem Estado, sob a gestão de comunas, que dispensaria a direção de um governo.

Após o golpe de Estado de Luis Napoleão em dezembro de 1851(3), por suas duras críticas ao governo, foi mantido preso por 4 anos. Libertado, se refugiou na Bélgica entre os anos 1858 e 1862, criando uma nova polemica com a publicação de seu  novo livro “A justiça na Revolução e na Igreja” (1858).

De regresso a Paris, com a saúde debilitada, considerado por muitos autores como o pai do anarquismo moderno, faleceu em Paris em janeiro de 1865 com 56 anos de idade. 

Além de suas obras principais, publicou ainda “Advertência aos proprietários” (1842), “Confissões de um revolucionário” (1849), “Ideia geral da Revolução do século XIX” (1851), “O Princípio federativo” (1863), “A capacidade política das classes operarias (1865)

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(1) Karl Marx fez severas críticas a esta obra de Proudhon, com o livro “Miséria da Filosofia”, publicado em 1847

(2) A Revolução de 1848 não ficou restrita à França. De caráter liberal e nacionalista, as revoluções de 1848 congregaram membros da burguesia, nobreza e trabalhadores, em defesa de reformas econômicas e políticas, que abalaram as monarquias europeias. As Revoluções de 1848, além da França, aconteceu na Alemanha, Itália, Áustria e Hungria. Karl Marx comenta a Revolução de 1848 na França, em sua obra “As lutas de classe na França de 1848 a 1850”, escrito em 1850.

(3) Sobre o golpe de Estado de Luis Napoleão (Napoleão III), ver a obra de Karl Marx “O 18 Brumário de Luis Bonaparte”, publicado em 1852.
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