sábado, 28 de março de 2015

Em debate, esquerda discutiu ameaça conservadora e luta dos trabalhadores no Brasil




Diário Liberdade – Em importante debate realizado neste sábado (21) em São Paulo, representantes da esquerda reafirmam a necessidade de construção de uma frente de lutas da classe trabalhadora e popular.

Neste sábado (21), foi realizado em São Paulo o debate “Direitos sociais e ameaça conservadora no Brasil”, organizado pelo deputado federal Ivan Valente (PSOL-SP) e que contou com a presença de Guilherme Boulos (coordenador nacional do MTST), Berna Menezes (dirigente da Intersindical), Frei Betto (teólogo e escritor) e André Singer (professor e cientista político). O ginásio do Sindicato dos Bancários lotou, e um público de mais de mil pessoas assistiu ao importante debate sobre a atual conjuntura política e os caminhos da esquerda para lutar contra a onda conservadora e as medidas do Governo Federal.

No debate, foram discutidos os assuntos referentes ao histórico de luta da esquerda, que, após décadas de mobilização, levou o PT ao governo, com a esperança de mudanças reais nos rumos do país, deixadas de lado pelo pacto de conciliação de classes desse partido, que cedeu à burguesia em detrimento da classe trabalhadora, cujos resultados atuais são o ajuste fiscal e os ataques às trabalhadoras e trabalhadores no começo deste ano. A recente mobilização da direita e as alternativas da esquerda para combater o conservadorismo e se apoiar nas massas também foram assuntos muito discutidos.

Histórico de luta da esquerda brasileira nas últimas décadas

A diriginte da Intersindical, Berna Menezes, remontou ao início dos anos 80, quando foi contruída uma grande frente, que ia da Igreja Católica, nos bairros, passando pelos sindicatos, exilados, movimento de mulheres, até a esquerda radical, que construiu grandes organizações do povo. “Essa frente atrasou e impediu por dez anos a aplicação dos planos neoliberais no Brasil, e nos anos 90 barrou a ALCA”, lembrou.

[Foto] Mais de mil pessoas lotaram o ginásio do Sindicato dos
 Bancários, em São Paulo. Diário Liberdade

Em 2003, essa frente conseguiu impor o governo Lula. Mas o governo assumiu e abandonou o conjunto de propostas amadurecidas nessa frente, decidiu não comprar grandes brigas. “O maior crime que o PT cometeu foi alterar a correlação de forças, o bem maior que a classe trabalhadora tinha”, afirmou Berna.

Governos do PT

Com a chegada da esquerda ao poder, em 2003 com o PT, grandes progressos foram conquistados, na opinião de Frei Betto, em questão de soberania nacional, integração latino-americana e caribenha e em políticas sociais, “que não foram aquelas dos meus sonhos, por isso deixei o Governo”, ponderou.

“O PT decidiu assegurar a sua governabilidade através do Mercado e do Congresso, quando deveria ter feito através dos movimentos sociais”, criticou Betto.

Para Ivan Valente, o PT não conseguiu implantar um programa minimamente democrático e popular para gerar consciência política, e hoje ele é um dos principais responsáveis pela atual correlação de forças políticas, porque “a luta é um aprendizado, a luta é pedagógica, e sem enfrentamento, sem conflito, não há crescimento de consciência política”.

O cientista político André Singer analisou a contradição dos governos petistas, que geraram emprego à classe trabalhadora, e por isso ela tem condição de resistir às políticas implantadas pelo próprio PT.

“O emprego é o eixo central da luta da classe trabalhadora, é quando ela tem condição de lutar, e quando há desemprego a espinha dorsal da classe trabalhadora está quebrada”, disse. Para ele, não foram apenas as posições do PT, mas o neoliberalismo quebrou o movimento sindical, por via do desemprego. “O Lulismo, com todas as suas contradições, produziu uma situação de pleno emprego no país, o que dá à classe trabalhadora, neste momento, condição de resistência a esta política que o próprio Lulismo está fazendo. Esta é a contradição em que estamos metidos”, afirmou.

Já para o líder do MTST, Guilherme Boulos, o modelo petista de conciliação de classes, que não tocou em nenhuma reforma estrutural pendente no país desde 1964, foi se esgotando e uma escolha teria que ser feita, mas demorou e a direita foi capaz de canalizar esse esgotamento, oferecendo uma falsa saída (pois sua intenção é aprofundar o que o governo petista tem de pior, os ataques à classe trabalhadora) pela direita, o que foi se fortalecendo.

Segundo mandato do Governo Dilma e manifestações da direita no dia 15 de março

Todos os debatedores condordaram que as medidas atuais do Governo Dilma são indefensáveis. Boulos afirmou que não é a questão da corrupção que está fazendo cair a popularidade do governo, mas o ajuste fiscal e suas medidas antipopulares. “O grosso do público manifestante no dia 15 de março era da classe média. Mas o que mais preocupa são os setores populares que aplaudiram e simpatizaram vendo pela TV as manifestações contra o governo Dilma”, disse.

“O desemprego que já começou ainda é resultante da fraqueza da economia de 2014, ainda não começou o desemprego que vai ser resultante do ajuste fiscal que está se fazendo”, afirmou André Singer, que advertiu também que a situação pode piorar muito e é o “começo de uma crise política, que está colocando questões centrais pra luta de classes no Brasil”.

Para Boulos, o que existe hoje no país é uma ofensiva da direita, com ampla gravidade, manifestada nas ruas durante os protestos do dia 15, cujo clima da intervenção militar e da intolerância foi o clima hegemônico naquele dia. Já Singer não acredita em uma ameaça de golpe militar, pois, segundo ele, não há predisposição dos militares e também não há o clima de Guerra Fria, como havia no mundo em 1964.

“A esquerda deve defender a democracia, que, no mundo, é uma conquista da classe trabalhadora”, disse Singer. Segundo ele, o Impeachment que a direita quer é na verdade um “golpe branco”, pois não há nenhuma base jurídica para o Impeachment de Dilma, e a esquerda não pode aceitar isso, por mais divergências que tenha com o governo Dilma e suas medidas, que são indefensáveis.

O deputado Ivan Valente disse que o descontentamento é generalizado e difuso, com medo do desemprego e da inflação, e que esse é um dos motivos que levou tanta gente para as manifestações da direita. “No dia 15, foi pra rua gente que votou no PT, tinha a direita organizada, tinha setores fascistas”, afirmou.

Sobre a atual situação de insatisfação e oportunismo da direita para canalizar falsamente os anseios das classes populares, Frei Betto argumentou que “as pessoas não sabem o que querem, só sabem o que não querem, e isso é um reflexo do neoliberalismo”.

“O Brasil terá quatro anos de profunda turbulência econômica, política e social, porque todos estão pensando apenas na questão do poder”, prevê Betto.

“Os que foram para a rua em Junho de 2013 sabiam o que queriam”, mas a nova traição de Dilma, que prometeu pautas de esquerda durante o segundo turno das eleições de 2014 e aplicou os mais duros ataques à classe trabalhadora no começo de 2015, jogou um balde de água fria na população, argumentou Berna Menezes. Os protestos de 15 de março, em parte, capitalizaram um descontentamento com o Governo Dilma que foi se acumulando. “Eles tinham apoio popular, infelizmente, em setores de massa”, disse.

Caminhos da esquerda e frente de luta

Ainda sobre o apoio de setores populares que foi demonstrado nas manifestações do dia 15, Berna afirmou que a esquerda deve compreender que “esses setores de massa não estão consolidados com a direita, nem setores da classe média esclarecida”. “Nós temos que disputar esses setores, não podemos deixar que se consolidem nas mãos da direita.”

Berna avalia que, neste momento, um dos maiores erros que a esquerda pode cometer é achar que a classe trabalhadora está na defensiva, mas que, na verdade, está lutando sem comando central. “A Intersindical quer reconstruir uma frente que comece a organizar essas lutas que estão ocorrendo”, disse. “Nós estamos fragmentados, e a direção tradicional das greves não quer unificar o movimentos. Nós temos que tensionar, que construir uma nova síntese, para que seja a direção desse processo.”

Outro ponto é que existem duas lutas fundamentais nesse período, segundo ela. Uma contra a reforma do Estado em curso, que rasga o concurso público e a CLT, “abrindo para a iniciativa privada e os oligopólios internacionais”, e a outra é contra a PL 43.30, que é a terceirização não só dos serviços públicos, mas de todos os cargos, “que arrebenta a legislação trabalhista e os sindicatos”. “A luta contra a direita é a luta por direitos”, por isso é preciso “construir uma grande frente para barrar a direita, o conservadorismo e a retirada de direitos sociais”, concluiu.

O professor André Singer avaliou que o que existe é um governo fraco e isolado no parlamento, e que é absolutamente urgente a construção de uma frente, porque o PT sozinho não tem mais condição de dar uma direção para a esquerda, mas que esse partido é fundamental nessa frente social ampla necessária. “Se quisermos fazer uma frente de esquerda no país, temos que aceitar as diversidades”, disse. “Precisamos reconstruir a força política da classe trabalhadora.”

Ivan Valente crê que é “patente que existe um crescimento de ideias, valores de direita e uma ofensiva de direita”. A tendência é que tenhamos um tempo de crise prolongada, de turbulência. Mas das crises saem soluções, e para Valente, podem sair dessa crise soluções mais conservadoras ou mais revolucionárias.

A esquerda também precisa combater a corrupção – porque a direita sabe trabalhar essa questão, que tem simbologia para as massas -, além de centrar em um programa unitário, que tem que ser feito com muita sabedoria, porque são as bandeiras que irão nos unificar, que irão nos levar para as ruas, afirmou o deputado.

“Nós temos que ter um movimento de baixo pra cima organizado, articulado, unitário e com bandeiras que representam avanço pra classe trabalhadora, contra o golpismo e contra o direitismo, mas principalmente pela democracia brasileira e pelos direitos sociais dos trabalhadores e por uma outra sociedade que não seja uma sociedade autoritária, nós temos que avaçar resolvendo nossas divergências.”

André Singer também teve uma conclusão semelhante à de Ivan Valente sobre a questão da corrupção. “É claro que a corrupção não começa nem termina no PT, mas é inadmissível para um partido de esquerda ter qualquer envolvimento com a corrupção”, disse. “E não podemos aceitar isso, porque nos tira a autoridade moral, e a autoridade moral é um caminho para sair da crise a favor da classe trabalhadora”, completou.

“A forma de conseguir combater o golpismo e a direita é tirar a base popular, porque a direita está surfando numa base de insatisfação. Nesse sentido, esse desafio está colocado para nós, de lutar contra o ajuste e formar uma linha de frente de enfrentamento da direita e do golpismo”, disse Guilherme Boulos. “Se deixar isso passar, depois pode ser tarde”, advertiu. “Com o fascismo não se discute; fascismo se enfrenta, fascismo se combate, e nosso papel vai ser fazer essa turminha que anda destilando ódio por aí voltar pro armário, que é o lugar deles”, concluiu Boulos.


Texto postado originalmente em:

http://www.diarioliberdade.org/brasil/reportagens/54961-em-debate,-esquerda-discutiu-ameaça-conservadora-e-luta-dos-trabalhadores-no-brasil.html


terça-feira, 24 de março de 2015

Democracia ou Capitalismo?


A democracia liberal foi derrotada pelo capitalismo e não me parece que seja derrota reversível. Portanto, trata-se de inventar nova democracia


Por Boaventura de Sousa Santos 


No início do terceiro milênio as esquerdas debatem-se com dois desafios principais: a relação entre democracia e capitalismo; o crescimento econômico infinito (capitalista ou socialista) como indicador básico de desenvolvimento e de progresso. Nesta carta, centro-me no primeiro desafio.

Ao contrário do que o senso comum dos últimos cinquenta anos nos pode fazer pensar, a relação entre democracia e capitalismo foi sempre uma relação tensa, senão mesmo de contradição. Foi-o certamente nos países periféricos do sistema mundial, o que durante muito tempo foi chamado Terceiro Mundo e hoje se designa por Sul global. Mas mesmo nos países centrais ou desenvolvidos a mesma tensão e contradição esteve sempre presente. Basta lembrar os longos anos do nazismo e do fascismo.

Uma análise mais detalhada das relações entre capitalismo e democracia obrigaria a distinguir entre diferentes tipos de capitalismo e sua dominância em diferentes períodos e regiões do mundo e entre diferentes tipos e graus de intensidade de democracia. Nesta carta concebo o capitalismo sob a sua forma geral de modo de produção e faço referência ao tipo que tem vindo a dominar nas últimas décadas, o capitalismo financeiro. No que respeita à democracia centro-me na democracia representativa tal como foi teorizada pelo liberalismo.

O capitalismo só se sente seguro se governado por quem tem capital ou se identifica com as suas “necessidades”, enquanto a democracia é idealmente o governo das maiorias que nem têm capital nem razões para se identificar com as “necessidades” do capitalismo, bem pelo contrário. O conflito é, no fundo, um conflito de classes pois as classes que se identificam com as necessidades do capitalismo (basicamente a burguesia) são minoritárias em relação às classes (classes médias, trabalhadores e classes populares em geral) que têm outros interesses cuja satisfação colide com as necessidades do capitalismo.

Sendo um conflito de classes, afirma-se social e politicamente como um conflito distributivo: por um lado, a pulsão para a acumulação e concentração da riqueza por parte dos capitalistas e, por outro, a reivindicação da redistribuição da riqueza criada em boa parte pelos trabalhadores e suas famílias. A burguesia teve sempre pavor de que as maiorias pobres tomassem o poder e usou o poder político que as revoluções do século XIX lhe concederam para impedir que tal ocorresse. Concebeu a democracia liberal de modo a garantir isso mesmo através de medidas que mudaram no tempo mas mantiveram o objetivo: restrições ao sufrágio, primazia absoluta do direito de propriedade individual, sistema político e eleitoral com múltiplas válvulas de segurança, repressão violenta de atividade política fora das instituições, corrupção dos políticos, legalização dos lobbies. E sempre que a democracia se mostrou disfuncional, manteve-se aberta a possibilidade do recurso à ditadura, o que aconteceu muitas vezes.

No imediato pós-segunda guerra mundial, muito poucos países tinham democracia, vastas regiões do mundo estavam sujeitas ao colonialismo europeu que servira para consolidar o capitalismo euro-norte-americano, a Europa estava devastada por mais uma guerra provocada pela supremacia alemã, e no Leste consolidava-se o regime comunista que se via como alternativa ao capitalismo e à democracia liberal.

Foi neste contexto que surgiu na Europa mais desenvolvida o chamado capitalismo democrático, um sistema de economia política assente na ideia de que, para ser compatível com a democracia, o capitalismo deveria ser fortemente regulado, o que implicava a nacionalização de sectores-chave da economia, a tributação progressiva, a imposição da negociação coletiva e até, como aconteceu na então Alemanha Ocidental, a participação dos trabalhadores na gestão das empresas. No plano científico, Keynes representava então a ortodoxia económica e Hayek, a dissidência. No plano político, os direitos econômicos e sociais (direitos do trabalho, educação, saúde e segurança social garantidos pelo Estado) foram o instrumento privilegiado para estabilizar as expectativas dos cidadãos e as defender das flutuações constantes e imprevisíveis dos “sinais dos mercados”.

Esta mudança alterava os termos do conflito distributivo mas não o eliminava. Pelo contrário, tinha todas as condições para o acirrar logo que abrandasse o crescimento econômico que se seguiu nas três décadas seguintes. E assim sucedeu.

Desde 1970, os Estados centrais têm vindo a gerir o conflito entre as exigências dos cidadãos e as exigências do capital, recorrendo a um conjunto de soluções que gradualmente foram dando mais poder ao capital. Primeiro, foi a inflação (1970-1980), depois, a luta contra a inflação acompanhada do aumento do desemprego e do ataque ao poder dos sindicatos (1980-), uma medida complementada com o endividamento do Estado em resultado da luta do capital contra a tributação, da estagnação econômica e do aumento das despesas sociais decorrentes do aumento do desemprego (meados de 1980-) e, logo depois, com o endividamento das famílias, seduzidas pelas facilidades de crédito concedidas por um setor financeiro finalmente livre de regulações estatais, para iludir o colapso das expectativas a respeito do consumo, educação e habitação (meados de 1990-).

Até que a engenharia das soluções fictícias chegou ao fim com a crise de 2008 e se tornou claro quem tinha ganho o conflito distributivo: o capital. Prova disso: a conversão da dívida privada em dívida pública, o disparar das desigualdades sociais e o assalto final às expectativas de vida digna da maioria (os trabalhadores, os pensionistas, os desempregados, os imigrantes, os jovens em busca de emprego,) para garantir as expectativas de rentabilidade da minoria (o capital financeiro e seus agentes). A democracia perdeu a batalha e só não perderá a guerra se as maiorias perderem o medo, se se revoltarem dentro e fora das instituições e forçarem o capital a voltar a ter medo, como sucedeu há sessenta anos.

Nos países do sul global que dispõem de recursos naturais a situação é, por agora, diferente. Nalguns casos, como por exemplo em vários países da América Latina, pode até dizer-se que a democracia está a vencer o duelo com o capitalismo e não é por acaso que em países como a Venezuela e o Equador se tenha começado a discutir o tema do socialismo do século XXI — mesmo que a realidade esteja longe dos discursos. Há muitas razões para tal mas talvez a principal tenha sido a conversão da China ao neoliberalismo, o que provocou, sobretudo a partir da primeira década do século XXI, uma nova corrida aos recursos naturais.

O capital financeiro encontrou aí e na especulação com produtos alimentares uma fonte extraordinária de rentabilidade. Isto tornou possível que governos progressistas, entretanto chegados ao poder no seguimento das lutas e dos movimentos sociais das décadas anteriores, pudessem proceder a uma redistribuição da riqueza muito significativa e, em alguns países, sem precedente.

Por esta via, a democracia ganhou uma nova legitimação no imaginário popular. Mas por sua própria natureza, a redistribuição de riqueza não pôs em causa o modelo de acumulação assente na exploração intensiva dos recursos naturais e antes o intensificou. Isto esteve na origem de conflitos, que se têm vindo a agravar, com os grupos sociais ligados à terra e aos territórios onde se encontram os recursos naturais, os povos indígenas e os camponeses.

Nos países do sul global com recursos naturais mas sem democracia digna do nome o boom dos recursos não trouxe consigo nenhum ímpeto para a democracia, apesar de, em teoria, a mais fácil resolução do conflito distributivo facilitar a solução democrática e vice-versa. A verdade é que o capitalismo extrativista obtém melhores condições de rentabilidade em sistemas políticos ditatoriais ou de democracia de baixíssima intensidade (sistemas de quase-partido-único) onde é mais fácil a corrupção das elites, através do seu envolvimento na privatização das concessões e das rendas extrativistas. Não é pois de esperar nenhuma profissão de fé na democracia por parte do capitalismo extrativista, até porque, sendo global, não reconhece problemas de legitimidade política.

Por sua vez, a reivindicação da redistribuição da riqueza por parte das maiorias não chega a ser ouvida, por falta de canais democráticos e por não poder contar com a solidariedade das restritas classes médias urbanas que vão recebendo as migalhas do rendimento extrativista. As populações mais diretamente afetadas pelo extrativismo são os camponeses — em cujas terras estão as jazidas de minérios ou onde se pretende implantar a nova economia de plantation, agro-industrial. São expulsas de suas terras e sujeitas ao exílio interno. Sempre que resistem, são violentamente reprimidas e sua resistência é tratada como um caso de polícia. Nestes países, o conflito distributivo não chega sequer a existir como problema político.

Desta análise conclui-se que o futuro da democracia atualmente posto em causa na Europa do Sul é manifestação de um problema muito mais vasto que está a aflorar em diferentes formas nas várias regiões do mundo. Mas, formulado assim, o problema pode ocultar uma incerteza bem maior do que a que expressa. Não se trata apenas de questionar o futuro da democracia. Trata-se também de questionar a democracia do futuro.

A democracia liberal foi historicamente derrotada pelo capitalismo e não me parece que a derrota seja reversível. Portanto não há que ter esperança em que o capitalismo volte a ter medo da democracia liberal, se alguma vez teve. Esta última sobreviverá na medida em que o capitalismo global se puder servir dela. A luta daqueles e daquelas que veem na derrota da democracia liberal a emergência de um mundo repugnantemente injusto e descontroladamente violento tem de centrar-se na busca de uma concepção de democracia mais robusta cuja marca genética seja o anti-capitalismo.

Depois de um século de lutas populares que fizeram entrar o ideal democrático no imaginário da emancipação social seria um erro político grave desperdiçar essa experiência e assumir que luta anti-capitalista tem de ser também uma luta anti-democrática. Pelo contrário, é preciso converter o ideal democrático numa realidade radical que não se renda ao capitalismo. E como o capitalismo não exerce o seu domínio senão servindo-se de outras formas de opressão, nomeadamente, do colonialismo e do patriarcado, tal democracia radical, além de anti-capitalista tem de ser também anti-colonialista e anti-patriarcal.

Pode chamar-se revolução democrática ou democracia revolucionária — o nome pouco importa — mas é necessariamente uma democracia pós-liberal, que não aceita ser descaracterizada para se acomodar às exigências do capitalismo. Pelo contrário, assenta em dois princípios: o aprofundamento da democracia só é possível à custa do capitalismo; em caso de conflito entre capitalismo e democracia é a democracia real que deve prevalecer.



Boaventura de Sousa Santos é doutor em sociologia do direito pela Universidade de Yale, professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, diretor dos Centro de Estudos Sociais e do Centro de Documentação 25 de Abril, e Coordenador Científico do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa - todos da Universidade de Coimbra. Sua trajetória recente é marcada pela proximidade com os movimentos organizadores e participantes do Fórum Social Mundial e pela participação na coordenação de uma obra coletiva de pesquisa denominada Reinventar a Emancipação Social: Para Novos Manifestos.


sexta-feira, 20 de março de 2015

Brasil, esgotamento de um modelo

Por Aluizio Moreira


O povo foi às ruas no dia 15 deste mês, numa manifestação que foi além do esperado pelos mais otimistas opositores do governo, ultrapassando o número de brasileiros que participaram do movimento Diretas-já em 1984. Cidadãos das mais diversas categorias sociais, ocuparam ruas e avenidas por este país afora.

Aos chamamentos contra a corrupção, juntaram-se protestos contra os ajustes na economia, pedidos de impeachment da presidente Dilma, gritos de “fora o PT”, apelo de “volta à ditadura militar”. 

Não nos convencem os argumentos que os manifestantes eram majoritariamente eleitores de Aécio Neves, segundo pesquisa do Datafolha realizada junto aos participantes do movimento em São Paulo e Porto Alegre. Afinal as avaliações feitas pelo mesmo Instituto, apontam que o Governo Dilma foi considerado ruim/péssimo em todas as regiões do país: Sudeste 66%, Nordeste 55%, Sul 64%, Norte 51%, Centro-Oeste 75%. Nem mesmo no Nordeste onde Dilma teve uma expressiva votação para seu segundo mandato, a presidente teve bom desempenho nestes últimos  meses. É bom que se registre que o Congresso, segundo a mesma fonte, teve uma rejeição avaliada como ruim/péssimo em 50%. São indicadores que apontam na direção de que a população não mais acredita na política, que passou a ser sinônimo de corrupção.

É evidente que o PSDB, numa atitude revanchista por ter seu candidato perdido a presidência para Dilma nas últimas eleições, participou ativamente das mobilizações contra Dilma e o PT. É evidente também a participação de golpistas, defensores do impeachment e da intervenção militar, que se integraram ao movimento. Sem esquecermos que a manifestação, segundo divulgação nos veículos virtuais de comunicação, contou com o apoio do PPS, e de políticos como Marta Suplicy, Eduardo Jorge (PV), Jarbas Vasconcelos (PMDB) e Marina Silva (PSB). Mas foi mais que isso. 

Para Ricardo Antunes, sociólogo, professor da Unicamp, em entrevista ao Correio da Cidadania, o 15 de março foi “uma manifestação tardia da crise profunda que assolou o país a partir das manifestações de junho de 2013.” (Leia a entrevista aqui)

Na verdade concordamos com alguns analistas, quando afirmam que a questão não pode ser resumida simplesmente a uma disputa PT/PSDB. 

Admitimos que nem se pode caracterizar essa ida às ruas, como um movimento saudosista dos tempos da ditadura militar, nem como resultado das maquinações do governo dos Estados Unidos, para desestabilizar alguns governos da América Latina, entre eles Venezuela e Bolívia. Embora conheçamos a politica intervencionista de Washington no cenário mundial. É simplificar demais essas tentativas de peculiarizar as mobilizações do 15 de março.

É necessário que busquemos identificar o que está por traz de todas essas palavras de ordem, que na verdade se apresentam hoje de forma mais radicalizada, em comparação às reivindicações dos que foram ás ruas nas jornadas de junho de 2013.

O fato é que o governo ficou na retórica, desde aquelas jornadas em 2013. Adotou um esquema de alianças e compromissos com o que há de mais retrógrado na politica brasileira; acenou com medidas de caráter populares a favor dos trabalhadores, das minorias, que não cumpriu; assumiu que a saúde e a educação definitivamente não fazem parte da agenda do governo; manteve uma economia nos quadros do neoliberalismo, beneficiando o capital financeiro, dos grandes grupos nacionais e internacionais; cedeu à pressão contra o plebiscito ou o referendo no caso da reforma politica.

Dentro desse quadro, nem mesmo o impeachment da Presidente, conduziria o país para a solução dos problemas que a sociedade brasileira enfrenta hoje, pois substituiriam-se as pessoas e os partidos, mas no essencial não mudaria muita coisa, só os grupos no poder.

Respeitemos a opinião de Vladimir Safatle, livre-docente de filosofia da USP, quando afirma que “A Nova República acabou” (Leia aqui). Para nós o que acabou foi o próprio modelo de governo representativo, paradigma no mundo ocidental. Esse modelo esgotou-se. Os sintomas dessa crise final do capitalismo já estão postas em vários países da Europa. E por mais que se oponham à política de austeridade de seus governos, não há saída dentro do sistema, seja com o “Syriza” na Grécia, o “Podemos” na Espanha, a “Frente Nacional” na França, nem mesmo com o ultra-direitista UKIP na Inglaterra. Por quanto tempo esse sistema ainda resistirá, não o sabemos. 

No nosso caso, algumas correntes politicas de esquerda, ainda levantam algumas hipóteses que apontam para "solução" de nossos problemas. Entre elas defendem: proteção das classes trabalhadoras diante da ofensiva do grande capital; compromisso com a reforma agrária; demarcação das terras indígenas; suspensão das medidas de austeridade que beneficiam o capital financeiro; reversão das privatizações; punição dos envolvidos com a corrupção; reforma política; tributação progressiva sobre grandes fortunas. 

Mas como se estabeleceriam essas medidas “salvadoras”? 

Ao nosso ver, a implantação dessas propostas esbarra em situações bastante concretas, entre elas: 1 - opção pelo modelo econômico neoliberal ao qual o Brasil tem se submetido, e que dificilmente deverá romper; 2- a correlação de forças presentes na Câmara e no Senado de tendência visivelmente conservadora, que representará um obstáculo no avanço nas conquistas das minorias e das demais forças populares; 3 – afastamento do governo das massas trabalhadoras, com medidas que ameaçam as conquistas trabalhistas (previdência, aposentadoria, seguro desemprego, flexibilização do trabalho etc), que viabilizam a reprodução capitalista; 4 – manutenção de um rede de alianças e compromissos, a fim de manter a governabilidade a todo custo. 

O que se coloca hoje a nível das sociedades ocidentais em todo mundo, Brasil inclusive, é uma alternativa à democracia representativa, que serviu durante decênios aos interesses da burguesia, desde a derrocada dos regimes monárquicos, que ela mesma ajudou a derrubar. Seu ciclo de hegemonia aproxima-se do fim.

No nosso caso, o que poderia vislumbrar o fim da dominação burguesa, está longe de acontecer: não há uma liderança de esquerda capaz de congregar a população, organizando-a e orientando-a rumo ao estabelecimento de um governo popular, para nós, única forma de vencer os obstáculos e os descaminhos que trilham a sociedade brasileira. Nem mesmo uma união das esquerdas que possibilite a criação de uma ampla frente popular e democrática, que organize a sociedade civil, faz parte da agenda das discussões dos chamados partidos “revolucionários”. 

Enquanto isso não acontece, continuaremos exercendo a “democracia do voto” (Leia aqui), que julgamos insuficiente para consolidação da "democracia", no sentido etimológico do termo. 



terça-feira, 17 de março de 2015

Comuna de Paris (18 de março de 1871): o primeiro poder popular na História


Por Aluizio Moreira


Considerada a primeira experiência histórica de socialismo e poder popular, socialistas e trabalhadores assumem o poder político em Paris, possibilitando uma reorganização da sociedade sob o controle e orientação  dos setores populares. Era  a Comuna de Paris. 

Instituído um Comitê Central Revolucionário, foi estabelecida a autogestão democrática e popular, na qual todos os cargos tornaram-se eletivos (deputados, professores, juízes, etc); proclamada a igualdade civil de homens e mulheres;  promovida a separação da Igreja do Estado;  instituído um exército formado por destacamentos armados do povo;  decretado o congelamento dos preços dos gêneros de primeira necessidade. 

A exemplo de Paris, as cidades de Lyon, Marselha, Toulon e Narbonne, entre outras, passam para o controle dos communards locais.

Ao assumirem o poder em Paris, os communards editaram Os Decretos a seguir:

Artigo I. As velhas autoridades de tutela, criadas para oprimir o povo de Paris, são abolidas, tais como: comando da polícia, governo civil, câmaras e conselho municipal. E as suas múltiplas ramificações: comissariados, esquadras, juízes de paz, tribunais etc. são igualmente dissolvidas. 
Artigo II. A comuna proclama que dois princípios governarão os assuntos municipais: a gestão popular de todos os meios de vida coletiva; a gratuidade de tudo o que é necessário e de todos os serviços públicos.
Artigo III. O poder será exercido pelos conselhos de bairro eleitos. São eleitores e elegíveis para estes conselhos de bairro todas as pessoas que nele habitem e que tenham mais de 16 anos de idade.
Artigo IV. Sobre o problema da habitação, tomam-se as seguintes medidas: expropriação geral dos solos e sua colocação à disposição comum; requisição das residências secundárias e dos apartamentos ocupados parcialmente; são proibidas as profissões de promotores, agentes de imóveis e outros exploradores da miséria geral; os serviços populares de habitação trabalharão com a finalidade de restituir verdadeiramente à população parisiense o caráter trabalhador e popular.
Artigo V. Sobre os transportes, tomam-se as seguintes medidas: os ônibus, os trens suburbanos e outros meios de transporte público são gratuitos e de livre utilização; o uso de veículos particulares é proibido em toda a zona parisiense, com exceção dos veículos de bombeiros, ambulâncias e de serviço à domicílio; a Comuna põe à disposição dos habitantes de Paris um milhão de bicicletas cuja utilização é livre, mas não poderão sair da zona parisiense e de seus arredores.
Artigo VI. Sobre os serviços sociais, tomam-se as seguintes medidas: todos os serviços ficam sob controle das juntas populares de bairro e serão geridos em condições paritárias pelos habitantes de bairro e os trabalhadores destes serviços; as visitas médicas, consultas e assistência médica e medicamentos serão gratuitos.
Artigo VII. A Comuna proclama a anistia geral e a abolição da pena de morte e declara que a sua ação se baseia nos seguintes princípios: dissolução da polícia municipal, dita polícia parisiense; dissolução dos tribunais e tribunais superiores; transformação do Palácio da Justiça, situado no centro da cidade, num vasto recinto de atração e de divertimento para crianças de todas as idades; em cada bairro de Paris é criada uma milícia popular composta por todos os cidadãos, homens e mulheres, de idade superior a 15 anos e inferior a 60 anos, que habitem o bairro; são abolidos todos os casos de delitos de opinião, de imprensa e as diversas formas de censura: política, moral, religiosa etc; Paris é proclamada terra de asilo e aberta a todos os revolucionários estrangeiros, expulsos [de suas terras] pelas suas idéias e ações.
Artigo VIII. Sobre o urbanismo de Paris e arredores, consideravelmente simplificado pelas medidas precedentes, tomam-se as seguintes decisões: proibição de todas as operações de destruição de Paris: vias rápidas, parques subterrâneos etc; criação de serviços populares encarregados de embelezar a cidade, fazendo e mantendo canteiros de flores em todos os locais onde a estupidez levou à solidão, à desolação e ao inabitável; o uso doméstico (não industrial nem comercial) da água, da eletricidade e do telefone é assegurado gratuitamente em cada domicílio; os contadores são suprimidos e os empregados são colocados em atividades mais úteis.
Artigo IX. Sobre a produção, a Comuna proclama que: todas as empresas privadas (fábricas, grandes armazéns) são expropriadas e os seus bens entregues à coletividade; os trabalhadores que exercem tarefas predominantemente intelectuais (direção, gestão, planificação, investigação etc.) periodicamente serão obrigados a desempenhar tarefas manuais; todas as unidades de produção são administradas pelos trabalhadores em geral e diretamente pelos trabalhadores da empresa, em relação à organização do trabalho e distribuição de tarefas; fica abolida a organização hierárquica da produção; as diferentes categorias de trabalhadores devem desaparecer e desenvolver-se a rotatividade dos cargos de trabalho; a nova organização da produção tenderá a assegurar a gratuidade máxima de tudo o que é necessário e diminuir o tempo de trabalho. Devem-se combater os gastadores e parasitas. Desde já são suprimidas as funções de contramestre, cronometrista e supervisor.
Artigo X. Os trabalhadores com mais de 55 anos que desejem reduzir ou suspender sua atividade profissional têm direito a receber integralmente os seus meios de existência. Este limite de idade será menor em relação a trabalhos particularmente custosos.
Artigo XI. É abolida a escola “velha”. As crianças devem sentir-se como em sua casa, aberta para a cidade e para a vida. A sua única função é a de torná-las felizes e criadoras. As crianças decidem a sua arquitetura, o seu horário de trabalho e o que desejam aprender. O professor antigo deixa de existir: ninguém fica com o monopólio da educação, pois ela já não é concebida como transmissão do saber livresco, mas como transmissão das capacidades profissionais de cada um.
Artigo XII. A submissão das crianças e da mulher à autoridade do pai, que prepara a submissão de cada um à autoridade do chefe, é declarada morta. O casal constitui-se livremente com o único fim de buscar o prazer comum. A Comuna proclama a liberdade de nascimento: o direito de informação sexual desde a infância, o direito do aborto, o direito à anticoncepção. As crianças deixam de ser propriedades de seus pais. Passam a viver em conjunto na sua casa (a Escola) e dirigem sua própria vida.
Artigo XIII. A Comuna decreta: todos os bens de consumo, cuja produção em massa possa ser realizada imediatamente, são distribuídos gratuitamente; são postos à disposição de todos nos mercados da Comuna. 

No dia 26 de março de 1871, o Comitê Central se desfaz, entregando do Poder a um Governo Provisório, eleito por sufrágio universal, composto por 85 membros, dos quais 30 eram operários, 34 intelectuais revolucionários, e os demais republicanos burgueses e patriotas exaltados. Foi a formação desse Governo que praticamente decretou, por antecipação, o fim da Comuna de Paris. 

Contando com a ajuda das  tropas prussianas, soldados de Versalhes cercaram Paris, bombardeando-a intensamente. Invadem a cidade defendida por populares que desesperadamente resistiram às investidas militares. São massacrados violentamente. Resultado: 20.000 populares foram fuzilados, 38.000 detidos e 13.000 deportados. A experiência da Comuna, chega o fim em maio de 1871.

Os que conseguiram escapar à prisão e ao fuzilamento, fugiram para vários países, inclusive para o Brasil, provocando intenso debate na imprensa e no meio politico, ora contra ora favor dos refugiados.

Em sua "Historia del Pensamiento Socialista", G.D.H. Cole apresenta uma relação por ele mesmo considerada incompleta, na qual figuram entre os "communards" mortos, presos e os que conseguiram fugir depois da queda da Comuna de Paris: 

Mortos
Louis Charles Delescluze (1809-1871) - morto nas barricadas; Eugène Varlin (1839-1871) - fuzilado após aprisionamento; Émile Victor Duval (1841-1871) - fuzilado após aprisionamento; Gustave Tridon (1841-1871) - morto nas barricadas; Théophile Ferré (1845-1871) - fuzilado após aprisionamento; Raoul Rigault (1846-1871) - fuzilado após aprisionamento; Auguste Vermorel (1841-1871) - morto nas barricadas.

Presos
Louise Michel (1830-1905) - deportada para Nova Caledônia; Adolphe-Alphonse Assi (1841-1886) - deportado para Nova Caledônia; Jean Allemane (1843-1935) - deportado para Nova Caledônia

Fugiram
Charles Beslay (1795-1878) - fugiu para Suíça; Gustave Lefrançais (1826-1901) - fugiu para Suíça;  Jules Valles (1832-1885) - fugiu para Inglaterra; Jean Baptiste Clément (1837-1903) - fugiu para Inglaterra; Gabriel Ranvier (1828-1879) - fugiu para Inglaterra;  Albert Theisz (1839-1881) - foi condenado à morte, mas conseguiu fugir; Louis-Jean Pindy (1840-1917) - fugiu para Suíça;  Benoît Malon (1841-1893) - fugiu para Suíça; Leo Frankel (1844-1896) - fugiu para Inglaterra; Eugéne Protot (1839-1921) - dado como morto, mas conseguiu fugir; Édouard Vaillant (1840-1915) - fugiu para Suíça; Émile Eudes (1844-1888) - fugiu para Suíça.  

Hyppolyte Prosper-Olivier Lissagaray, um dos participantes do movimento, em sua obra "História da Comuna de 1871" apresenta o seguinte quadro de condenações:

Pena de morte 270 (sendo 8 mulheres); trabalhos forçados 410 (sendo 29 mulheres); deportação para local fortificado 3.989 (sendo 20 mulheres); deportação simples 3.507 (sendo 16 mulheres e 1 criança); detenção 1.269 (sendo 8 mulheres); reclusão 64 (sendo 10 mulheres); obras públicas  29; prisão de até três meses 432; prisão de três meses a um ano 1.622 (sendo 50 mulheres e 1 criança); prisão de mais de um ano (1.344, sendo 15 mulheres e 4 crianças); banimento 322; sob guarda policial 117 (sendo 1 mulher); multa 9; crianças menores de 16 anos enviados a uma casa de correção 56.


sexta-feira, 13 de março de 2015

“Marx morreu: viva Marx” (*)


Há 132 anos, no dia 14.03.1883, falecia em Londres, vitima de complicações pulmonares, aos 65 anos, Karl Heinrich Marx, um dos filósofos que mais influenciou gerações e gerações de pessoas, simpatizantes e militantes da causa do socialismo e do comunismo em todo mundo. Em sua homenagem, transcrevemos abaixo o "Discurso diante do túmulo de Marx", pronunciado por Friedrich Engels no cemitério de Highgate em Londres, em 17 de março de 1883.



Discurso diante do túmulo de Marx

Friedrich Engels


A 14 de Março, um quarto para as três da tarde, o maior pensador vivo deixou de pensar. Deixado só dois minutos apenas, ao chegar, encontramo-lo tranquilamente adormecido na sua poltrona — mas para sempre.

O que o proletariado combativo europeu e americano, o que a ciência histórica perderam com [a morte de] este homem não se pode de modo nenhum medir. Muito em breve se fará sentir a lacuna que a morte deste [homem] prodigioso deixou.

Assim como Darwin descobriu a lei do desenvolvimento da Natureza orgânica, descobriu Marx a lei do desenvolvimento da história humana: o simples fato, até aqui encoberto sob pululâncias ideológicas, de que os homens, antes do mais, têm primeiro que comer, beber, abrigar-se e vestir-se, antes de se poderem entregar à política, à ciência, à arte, à religião, etc; de que, portanto, a produção dos meios de vida materiais imediatos (e, com ela, o estádio de desenvolvimento econômico de um povo ou de um período de tempo) forma a base, a partir da qual as instituições do Estado, as visões do Direito, a arte e mesmo as representações religiosas dos homens em questão, se desenvolveram e a partir da qual, portanto, elas têm também que ser explicadas — e não, como até agora tem acontecido, inversamente.

Mas isto não chega. Marx descobriu também a lei específica do movimento do modo de produção capitalista hodierno e da sociedade burguesa por ele criada. Com a descoberta da mais-valia fez-se aqui de repente luz, enquanto todas as investigações anteriores, tanto de economistas burgueses como de críticos socialistas, se tinham perdido na treva.

Duas descobertas destas deviam ser suficientes para uma vida. Já é feliz aquele a quem é dado fazer apenas uma de tais [descobertas]. Mas, em todos os domínios singulares em que Marx empreendeu uma investigação — e estes domínios foram muitos e de nenhum deles ele se ocupou de um modo meramente superficial —, em todos, mesmo no da matemática, ele fez descobertas autônomas.

Era, assim, o homem de ciência. Mas isto não era sequer metade do homem. A ciência era para Marx uma força historicamente motora, uma força revolucionária. Por mais pura alegria que ele pudesse ter com uma nova descoberta, em qualquer ciência teórica, cuja aplicação prática talvez ainda não se pudesse encarar — sentia uma alegria totalmente diferente quando se tratava de uma descoberta que de pronto intervinha revolucionariamente na indústria, no desenvolvimento histórico em geral. Seguia, assim, em pormenor o desenvolvimento das descobertas no domínio da eletricidade e, por último, ainda as de Mare Deprez. 

Pois, Marx era, antes do mais, revolucionário. Cooperar, desta ou daquela maneira, no derrubamento da sociedade capitalista e das instituições de Estado por ela criadas, cooperar na libertação do proletariado moderno, a quem ele, pela primeira vez, tinha dado a consciência da sua própria situação e das suas necessidades, a consciência das condições da sua emancipação — esta era a sua real vocação de vida. A luta era o seu elemento. E lutou com uma paixão, uma tenacidade, um êxito, como poucos. A primeira Rheinische Zeitung em 1842, o Vorwärts! de Paris em 1844, a Brüsseler Deutsche Zeitung em 1847, a Neue Rheinische Zeitung em 1848-1849, o New-York Tribune  em 1852-1861 — além disto, um conjunto de brochuras de combate, o trabalho em associações em Paris, Bruxelas e Londres, até que finalmente a grande Associação Internacional dos Trabalhadores surgiu como coroamento de tudo — verdadeiramente, isto era um resultado de que o seu autor podia estar orgulhoso, mesmo que não tivesse realizado mais nada.

E, por isso, Marx foi o homem mais odiado e mais caluniado do seu tempo. Governos, tanto absolutos como republicanos, expulsaram-no; burgueses, tanto conservadores como democratas extremos, inventaram ao desafio difamações acerca dele. Ele punha tudo isso de lado, como teias de aranha, sem lhes prestar atenção, e só respondia se houvesse extrema necessidade. E morreu honrado, amado, chorado, por milhões de companheiros operários revolucionários, que vivem desde as minas da Sibéria, ao longo de toda a Europa e América, até à Califórnia; e posso atrever-me a dizê-lo: muitos adversários ainda poderia ter, mas não tinha um só inimigo pessoal.

O seu nome continuará a viver pelos séculos, e a sua obra também!

_____
(*) Titulo da obra organizada por Barbara Freitag, Gloria Maria Vila e Maria F. Pinheiro, publicada pela Papirus em 1993.

domingo, 8 de março de 2015

8 de março, o verdadeiro Dia Internacional da Mulher Proletária!


Manifestação da União das Costureiras em Nova York, 1910

Uma data especial celebrando a luta de resistência da mulher proletária, da mulher das classes oprimidas e exploradas em todo o mundo, foi proposta por Clara Zetkin — dirigente do Partido Comunista da Alemanha e da Internacional — na Conferência de Mulheres Socialistas realizada em Copenhague (Dinamarca) em 1910. 

A Conferência tratava da luta ideológica e política do proletariado e das demais classes oprimidas e exploradas no caminho da revolução socialista e, de maneira particular, da importância da participação massiva das mulheres proletárias nesta luta. A proposta de criação de um dia especial a ser celebrado internacionalmente, portanto, representava o crescimento da luta operária e do povo em todo o mundo e a crescente presença da mulher nesta luta naquele momento. 

Desta forma, o Dia Internacional da Mulher Proletária foi idealizado e votado pelas militantes do movimento feminino popular e revolucionário a partir da concepção revolucionária da luta pela emancipação feminina. Ou seja, que a libertação da mulher só é possível com a libertação de toda sua classe, e que esta libertação é obra das próprias mulheres das classes oprimidas e não uma concessão das classes opressoras. Por isso as militantes do movimento feminino popular e revolucionário não falam de nenhuma maneira de um movimento de todas as mulheres, não propõem a conciliação de classes. 

Para essas militantes revolucionárias, ao contrário do que afirma o feminismo burguês, o Dia Internacional da Mulher refere-se às mulheres proletárias e das demais classes oprimidas, como as camponesas e a intelectualidade progressista, as estudantes e professoras, o que, longe de restringir o universo feminino, representa a imensa maioria das mulheres em todo o mundo: metade da imensa população mundial de operários, camponeses e trabalhadores explorados e oprimidos pelo imperialismo. 

A utilização desta data pelo feminismo burguês é combatida pelas proletárias, pelas mulheres do povo da cidade e do campo que trabalham sob o chicote dos homens e mulheres da burguesia e do latifúndio. É combatida e denunciada como traição e usurpação a atitude desavergonhada de deputadas e "personalidades" da esquerda oportunista e suas organizações feministas que se comprazem em sentar-se à mesa com empresárias, latifundiárias e policiais no seu falsificado dia de todas as mulheres.

Cada vez mais as classes dominantes, através dos monopólios de comunicação, se esforçam para transformar o 8 de março em mais uma data comercial. Com suas manipulações e demagogias grosseiras de glorificar "a importância da participação da mulher", na verdade estendem ainda mais o manto da opressão feminina na tentativa de sua perpetuação.

A celebração do 8 de março se tornou uma das mais fortes tradições do movimento popular, revolucionário e comunista em todo o mundo e um dos mais importantes símbolos da luta de libertação da classe operária e de todos os oprimidos da terra. 

A Nova Democracia publica neste número, em homenagem às mulheres proletárias de todo o mundo, uma investigação sobre as origens e tradição do 8 de março que comprovam o caráter de classe proletário desta data.

As origens e a tradição

As duas versões mais conhecidas do fato histórico que teria levado as militantes comunistas na Conferência de Mulheres Socialistas a eleger o dia 8 de março como o Dia Internacional da Mulher Proletária são: 

"Uma manifestação espontânea — levada a cabo por trabalhadoras do setor têxtil da cidade de Nova York, em protesto contra os baixos salários, contra a jornada de trabalho de 12 horas e o aumento de tarefas não remuneradas — foi reprimida pela polícia de uma forma brutal (8 de Março de 1857). Muitas jovens trabalhadoras foram presas e algumas esmagadas pela multidão em fuga. Cinquenta anos mais tarde, no aniversário dessa manifestação, esse dia é declarado, em sua memória, o Dia Internacional da Mulher." (Temma Kaplan, On the socialist origins of International Women’s Day, Feminist studies 11, n.º 1, 1985, p. 163)

"O Dia Internacional da Mulher Trabalhadora é considerado como uma jornada de luta feminista em todo o mundo em comemoração do dia 8 de Março de 1908, data em que as trabalhadoras da fábrica têxtil ‘Cotton’, de Nova York, declararam greve em protesto pelas condições insuportáveis de trabalho. Na sequência disso, ocuparam a fábrica e o patrão prendeu-as lá dentro, fechou todas as saídas, e incendiou a fábrica. Morreram queimadas as 129 trabalhadoras que estavam lá dentro." (Victória Sal, Dicionário ideológico feminista, 1981).

Outras referências históricas:

3  A primeira celebração do Dia Internacional da Mulher aconteceu a 19 de Março de 1911, na Áustria, Alemanha, Dinamarca e Suécia.

Em 1914 o Dia Internacional da Mulher comemorou-se pela primeira vez a 8 de Março na Alemanha, Suécia e Rússia.

5 A 8 de Março de 1917, as mulheres russas amotinaram-se devido à falta de alimentos, acontecimento este fundamental para o início do movimento revolucionário que viria a concretizar-se na chamada Revolução de Outubro, e que marcaria definitivamente, até a atualidade, o dia 8 de Março como o Dia Internacional da Mulher. (Informações: On the Socialist Origins of International Women’s Day retiradas de Ana Isabel Álvarez González (1999), Los orígenes y la celebración del Día Internacional de la Mujer, 1910-1945. KRK — Ediciones Oviedo.)

Todas essas informações fornecem alguns dados discrepantes, porém o que há de comum nelas é o fato de se referirem a lutas operárias, marcando claramente o caráter de classe do movimento 8 de março. 

O artigo que publicamos na íntegra a seguir nos dá a dimensão do que ocorria com o movimento operário no eldorado USA do início do século XX, destacando-se a participação das mulheres, acrescentando dados importantes ao histórico da origem do 8 de março.{mospagebreak}

As mulheres do incêndio da fábrica Triangle

Edificio onde funcionava a
fábrica Triangle
Dia 25 de março de 1911: as costureiras da fábrica Triangle Shirtwaist trabalhavam duro durante todo o longo dia. Estavam apinhadas, 500 delas, nos três andares superiores do edifício Asch, com vista para o parque Washington Square, Manhattan.

Centenas de costureiras, encolhidas de frio sobre máquinas de costura de pedal, confeccionavam blusas para mulher, uma após outra. A luz de umas poucas lâmpadas de gás lançava largas sombras pela galeria e era necessário grande esforço para ver na semi-obscuridade. Montes de retalhos de tecido cobriam o piso e no ar morto voavam nuvens de fios de algodão.

As costureiras recebiam pagamento por peça; a mais rápida e mais capacitada, a duras penas, ganhava 4 dólares por uma semana de seis ou sete dias. Apenas dava para o aluguel de quartinhos nas vizinhanças paupérrimas e quase não sobrava para a comida.

Muitas crianças tinham que deixar a escola e seguir seus pais à oficina. No "canto dos meninos" da fábrica trabalhavam como "limpadores": cortavam os fiozinhos das blusas amontoadas às centenas a seu redor.

Os capatazes andavam furtivamente, vigiando todo movimento das trabalhadoras e cronometrando suas idas ao banheiro. Uma trabalhadora contou que muitos capatazes compravam os recém inventados sapatos de sola de borracha, e assim podiam aproximar-se às escondidas para espiar as conversas das costureiras em italiano, iídiche e meia dezena de idiomas mais.

Havia demissões por infrações leves e em especial por desconfiança de ligação com a forte organização socialista dos guetos. Um letreiro pregado no galpão dizia: "Se não vens no domingo, nem pense em regressar na segunda".

Sem aviso, sem proteção 

Em março de 1911 morreram 147 trabalhadores
Ninguém sabe como se iniciou o incêndio na fábrica Triangle. Um ano antes, durante a grande greve chamada o Levantamento das vinte mil, se advertiu que existia sério perigo de incêndio. Às 4:50 da manhã do dia 25 de março, largas chamas amarelas se estenderam rapidamente pelo oitavo andar, alimentadas pelos retalhos de tecido.

Ouviu-se o grito de "fogo!" Pelos estreitos corredores, entre as filas de mesas, trabalhadoras corriam em busca de uma saída pelas escadas ou pequenos elevadores. Não havia nada à mão para combater o incêndio. A única coisa que se podia fazer era avisar as demais e tratar de fugir. 

Jamais se havia feito um treinamento de salvamento de incêndio. Muito poucas trabalhadoras sabiam que existia uma escada de incêndio que descia por um estreito poço vertical no centro do edifício. Algumas conseguiram descer apressadas pela escada principal, antes das chamas a bloquearem. O elevador parou de funcionar.

Acima, o oitavo andar se tornou uma massa de chamas. Alguém conseguiu avisar por telefone às trabalhadoras do décimo andar. A maioria teve tempo de subir ao terraço. Os dois donos da fábrica, Harris e Blanck, escaparam com elas.

No nono andar não houve aviso: as chamas irromperam por baixo das mesas de trabalho; a fumaça encheu a galeria rapidamente. Mais tarde foram descobertos esqueletos carbonizados encolhidos sobre as máquinas, quando as chamas alcançaram suas roupas, subiram às mesas e aí morreram.

Foram encontrados montes de cadáveres espremidos próximos às portas de saída. No nono andar os capatazes tinham fechado com chave a porta que dava acesso a uma escada para que as trabalhadoras não saíssem para descansar. Outras saídas não estavam trancadas, porém, abriam para dentro e não era possível desunir as partes móveis com o peso de tanta gente desesperada.

Algumas mulheres conseguiram descer pela escada de incêndio. As primeiras que desceram pelo poço descobriram que a escada metálica não chegava até o solo. Era uma armadilha sem saída, porém impossível de voltar atrás. Pela implacável pressão e peso das mulheres às suas costas, simplesmente caíam do último degrau. Depois foram encontrados muitos cadáveres, lancetados pelas pontas de ferro de uma cerca.

Sob o peso das trabalhadoras, a escada quebrada foi derrubada.

Nas marquises

Muitas trabalhadoras não puderam alcançar qualquer saída e as chamas as obrigaram a fugir das galerias. Pularam e caíram pelo poço do elevador — foram encontrados pelo menos 20 cadáveres no fundo. Muitas tiveram que sair pelas janelas: formaram uma fila indiana nas estreitas marquises, olhando para a multidão na rua abaixo.

Os primeiros bombeiros com escadas, a Companhia 20, chegaram correndo pela rua Mercer. A multidão gritava, com uma só voz: "Subam a escada!", porém haviam subido ao máximo e só alcançavam o sexto andar. Da marquise do nono andar uma garota agitava um pano. Uma chama começou a queimar a barra de sua saia comprida. Saltou tentando agarrar-se ao topo da escada, que ficava a cerca de 10 metros, porém foi inútil e caiu como um cometa em chamas.

Os bombeiros usavam as mangueiras para proteger as pessoas agarradas nas marquises; também foi inútil. Diante da multidão horrorizada, as chamas forçavam mais e mais trabalhadoras para as marquises. Não cabiam mais e as chamas alcançavam as que estavam mais perto das janelas.

Uma organizadora operária escreveu: "Ia pela Quinta Avenida no sábado à tarde quando um enorme rolo de fumaça saiu de Washington Square e (...) duas garotas que já tinha visto trabalhando na região se aproximaram de mim correndo, chorando desesperadamente. Pálidas e tremendo, agarraram meu braço. Ai! — gritou uma delas— Estão saltando!" Muitas costureiras, companheiras de vida e trabalho, se abraçaram fortemente e saltaram juntas. De nada serviram as redes dos bombeiros, pois o peso dos corpos as rompeu, rachando a própria a calçada.

O Nova York World escreveu: "Homens e mulheres, garotos e garotas, amontoados nas marquises, gritavam e saltavam ao espaço, para a rua abaixo, com a roupa em chamas. Quando umas garotas saltaram, seus cabelos voavam em chamas. O impacto no chão produzia um ruído surdo." O cheiro de sangue e o terrível ruído surdo espantaram os cavalos dos bombeiros. Se encabritaram nas patas traseiras com os olhos esbugalhados. Os bombeiros amontoavam os cadáveres na rua Greene.

Sem atenção à vida e à segurança

O horror pareceu congelar a buliçosa cidade. Morreram 147 costureiras. Rapidamente o nome da fábrica Triangle Shirtwaist percorreu o planeta.

25 de março de 1911: foi um desses dias da história em que os olhos do mundo se focam num só acontecimento determinante, quando as mentiras se desfiam sob o peso dos fatos, quando de repente é impossível ocultar as injustiças.

Há um século, os Estados Unidos apregoavam ser a "terra prometida", um refúgio para os pobres da Europa em busca de um futuro mais tranquilo. Porém, nesta tarde horrorosa, todo mundo testemunhou a vil exploração dos trabalhadores imigrantes de Nova Iorque. 

As potências coloniais da Europa e Estados Unidos diziam que sua "civilização cristã" tinha uma superioridade moral que lhes dava o direito de governar os "povos bárbaros". Porém, quando as garotas caíram em chamas nas ruas da cidade de Nova Iorque, puseram a nu esses presunçosos auto-elogios. De repente, se pôs em julgamento a vida e o tratamento das 8 milhões de "trabalhadoras fabris" do país.

O novo maquinário, os métodos e as eficiências da produção industrial moderna se pintavam como o futuro da humanidade. Porém, nesse dia horroroso, o 25 de março, sobressaiu a pura verdade: que essa tecnologia capitalista era para obter lucros, sem atenção à segurança nem à vida das costureiras. Nessas galerias incendiadas não havia sistema de água, mangueiras, machados nem extintores — nenhuma medida contra incêndios, em absoluto. Metade da classe operária nova-iorquina trabalhava nos andares superiores ao sétimo, porém, nenhuma companhia de bombeiros estava equipada para resgatá-los.{mospagebreak}

Dor e determinação


A manifestação/enterro
Vi esse monte de cadáveres e recordei que essas garotas confeccionavam blusas e que em sua greve no ano anterior reclamaram condições de trabalho mais higiênicas e maiores medidas de segurança nas fábricas. Esses cadáveres deram a resposta.
(Bill Shepherd, correspondente)

Se falasse em tom de paz, trairia esses pobres cadáveres carbonizados. Temos exortado o público e não recebemos resposta. A antiga Inquisição teve seus terríveis instrumentos de tortura. Sabemos o que são estes instrumentos hoje: nossas necessidades, o maquinário veloz de alta potência e as estruturas à prova de incêndios que nos destruirão quando pegar fogo. 
(Rose Schneiderman, líder operária na manifestação/enterro)

O levante das vinte mil

Ainda que muitos setores fossem sacudidos com o horror do incêndio, o povo trabalhador de Nova Iorque já conhecia os perigos e o sofrimento que vivia, e sabia que era possível evitar essas mortes.

Dois anos antes, em novembro de 1909, as mulheres da fábrica Triangle Shirtwaist se uniram ao Levantamento das vinte mil, uma greve geral de costureiras de 500 oficinas de Nova Iorque. Travaram a greve com heroísmo e determinação. As trabalhadoras, em particular muitas jovens, saíram das sombras e tomaram as ruas com demandas de dignidade, melhores salários, jornadas mais curtas e o reconhecimento de seu sindicato. Em muitas oficinas, entre elas a fábrica Triangle, pediram escadas de incêndio e portas sem cadeado.

Depois de muitas semanas de dura greve, ganharam em algumas oficinas, porém perderam em outras. Muitos capitalistas rechaçaram as negociações. Os donos da Triangle, a maior fabricante de blusas femininas, contrataram funcionários para furar a greve. Voltaram a trabalhar com um acordo parcial, sem ganhar suas demandas de segurança.

Quando 147 mulheres morreram no incêndio, as massas responderam com dor e maior consciência de classe. No dia 2 de abril se celebrou uma enorme manifestação/enterro no Teatro Metropolitano da Ópera. Morris Rosenfeld, "o poeta premiado da oficina e do bairro", declamou o seguinte poema:
Nem batalha nem vil pogromenche de dor esta grande cidade;nem treme o solo nem rasgam o céu os trovões,as nuvens não se escurecem e os canhões não rompem o silênciosomente o infernal incêndio engole estas jaulas de escravoe Mammon devora nossos filhos e filhas.Envoltos em chamas vermelhas, caem de suas garras para a mortee a morte os recebe a todos...neste dia de descansoquando uma avalanche de sangue vermelho e fogojorra do máximo deus do ouroassim como minhas lágrimas jorram caudalosas.Ao diabo os ricos!Ao diabo o sistema!Ao diabo o mundo!
A tempestade ensopou a multidão de centenas de milhares no dia do enterro. Gente trabalhadora vestida de negro marchou pelas ruas com senhoras sufragistas, com enorme quantidade de transeuntes e pessoas solidárias nos passeios.

O jornal América comentou: "Quando a manifestação chegou a Washington Square, ao ver o edifício Asch, as mulheres romperam em pranto. Um longo e doloroso pranto, a união de milhares de vozes, uma espécie de trovão humano numa tormenta primordial, um lamento que era a expressão mais impressionante de dor humana que jamais se tinha ouvido na cidade."

Os capitães da polícia mobilizaram suas forças, temerosos de perder o controle de Washington Square ou de toda a cidade.

O legado de Triangle

É um fato inconfundível que milhões de homens e mulheres dos Estados Unidos trabalham hoje em lugares que cada ano cobram vidas e saúde, tão inevitável e tão implacavelmente como mudam as estações do ano.
(revista Solidarity, 1904)

Consideramos que a concentração de negócios, indústrias e comércios nas mãos de umas poucas pessoas é benéfica e essencial para o futuro da raça, e que é necessário acomodar grandes desigualdades de riqueza e propriedade.
(Andrew Carnegie, dono da US Steel)

O incêndio provocou grande debate e luta na classe dominante. Muitos donos de fábricas afirmavam que a "regulamentação governamental" era antiamericana e inconstitucional. Poderosas forças da classe dominante correram a proteger a si mesmas e ao sistema do enorme perigo que se gestava nos guetos nova-iorquinos. As costureiras imigrantes de Nova Iorque forjavam uma poderosa força consciente de classe contra a brutalidade do sistema, com sua experiência em outros países e o vigoroso trabalho de organização dos revolucionários e dos socialistas. Começavam a impulsionar uma nova corrente revolucionária dentro da classe operária estadunidense.

Fortes pressões empurraram os governos municipais, estaduais e federais a fazer reformas. Comissões oficiais fizeram investigações (CPIs) sobre as minas e as oficinas do país e a morte de milhares de trabalhadores, a cada ano, na produção capitalista. O conselho municipal (câmara de vereadores) de Nova Iorque e as câmaras de alguns estados aprovaram leis de proteção e códigos de segurança, contrataram inspetores e idealizaram novas técnicas para combater os incêndios.

Porém, a verdade é que depois do incêndio da Triangle o maquinário do capitalismo seguiu moendo e espremendo desapiedadamente os trabalhadores, apesar das reformas e das novas leis. Em três dias, Harris e Blanck, os donos da Triangle, começaram de novo operações num edifício da University Place. Rapidamente bloquearam a única escada de incêndio com duas filas de máquinas de costura. Oito meses depois os tribunais os absolveram de toda culpa no incêndio. Os meios de comunicação capitalista lançaram a culpa numa trabalhadora que fumava, sem apresentar nenhuma prova.

Desde 1911, o capitalismo seguiu expandindo-se como um câncer fora de controle, penetrando e reestruturando a vida humana do planeta, com uma praga de mortes industriais, envenenamentos, explosões, males pulmonares e condições dantescas para os trabalhadores.

Nos últimos dez anos, o galopante crescimento dos novos enclaves de fábricas gerou novos "massacres industriais" similares ao da Triangle. Em 1991, 25 empacotadores de frango morreram queimados, atrás das portas trancadas em Hamlet, Carolina do Norte, numa fábrica "moderna" sem equipamentos de prevenção nem alarmes de incêndios. Em 1993, morreram 188 trabalhadores carbonizados espremidos atrás das portas fechadas a cadeado na fábrica de brinquedos Kadar, na Tailândia. Em 31 de janeiro de 2000 morreu o costureiro Bienvenido Hernández e ficaram feridos vários outros companheiros em um incêndio num edifício de oito oficinas na Rua 36 de Manhattam.

Hoje, o incêndio da fábrica Triangle segue sendo um exemplo contundente da desalmada natureza do capitalismo, que não mudou nem um ápice no último século. 

Depois de ver o documentário da PBS sobre o incêndio da Triangle, Sandra, uma costureira de Los Angeles, nos disse: "Isto que estamos vendo ocorreu em 1911, agora estamos em 2000, e nada em absoluto mudou! De fato, estamos mais ‘ferrados’! Hoje há maquinário e tecnologia avançados e se supõe que o trabalhador deveria ter melhores condições de trabalho. Depois do incêndio se lutou por melhores regulamentos e se supõe que se deveria trabalhar em melhores condições, oito horas e receber o salário mínimo. Se essas leis existem onde estão?" (RW, Nº 1045)

As costureiras da Triangle e suas companheiras de Nova Iorque deixaram um poderoso legado de luta que se celebra cada ano. Em 1910, as delegadas da Segunda Conferência Internacional de Mulheres Socialistas em Copenhague proclamaram o 8 de março Dia Internacional da Mulher em honra ao Levantamento das vinte mil e às trabalhadoras de Nova Iorque. 

No ano do incêndio da Triangle se celebrou pela primeira vez o Dia Internacional da Mulher nas ruas da Alemanha, Áustria, Dinamarca e outros países.

Ao recordar as mulheres que tomaram as ruas no Levantamento e aquelas que morreram na fábrica Triangle, Sandra diz: "Olha, é muito pesada a corrente que nos prende hoje. A mulher sempre pensa em levar adiante a família e sabe o que é lutar pelos outros. Ela vive sob a opressão de gerações e sabe que sua filha seguirá o mesmo caminho, já está feito. Quando a mulher luta pelo geral, luta com uma visão mais ampla, com mais impulso, com uma forte motivação de que se unimos nossas lutas, a nossa situação pode mudar. Isso é o que vimos no Levantamento das vinte mil. Essa luta acendeu outra luta por maiores mudanças. Não lutavam por elas mesmas, e sim por todos os pobres".

Em honra das lutadoras de nossa classe, em memória de nossos mortos no incêndio da Triangle, as faixas do Dia Internacional da Mulher 2000 proclamam: Romper os grilhões! Desencadear a fúria da mulher como uma força poderosa para a revolução!

"Rimos de alegria quando ouvimos essas palavras", diz Sandra. 

Extraído de Revolutionary Worker, 2000