quinta-feira, 30 de março de 2017

1917: a revolução que não terminou…


    
No Brasil para o lançamento da edição em português de seu livro “Mulher, Estado e Revolução”, a historiadora Wendy Goldman fala sobre como muitos dos ideais dos bolcheviques permanecem atuais




Por Marcelo Hailer e Vinicius Gomes, fotos por Marcelo Hailer



Livro aborda o papel da mulher
durante a 1ª fase da Revolução
Russa
(Imagem Reprodução)

União livre, criação socializada das crianças, eliminação da monogamia compulsória, aborto livre, a não obrigação dos registros civis e, por fim, a destruição do Estado, aparelho que apenas serve para oprimir e controlar os sujeitos. Não estamos falando de grupos anarquistas ou de algum movimento de contracultura dos anos 1960, mas sim da primeira fase da Revolução Vermelha, em 1917, na Rússia, que tinha por objetivo a construção de uma nova moral e, consequentemente, um novo sujeito e uma nova sociedade a partir da revolução continuada.

É a primeira fase da revolução comunista (1917-1933) que se faz presente na obra recém-lançada no Brasil, fruto de uma parceria entre a Edições Iskra e a Editora Boitempo, “Mulher, Estado e Revolução”, de autoria da pesquisadora norte-americana Wendy Goldman, que durante os anos 1980 e 1990 se debruçou sobre a primeira fase da Revolução Vermelha. O livro causou furor quando publicado, em 1994, e foi premiado com o Berkshire Conference of Woman Historians.

Wendy Goldman esteve no Brasil para um ciclo de palestras que marcou o lançamento da sua pesquisa por aqui. Entre um evento e outro, conversou com a reportagem da Fórum, à qual disse estar muito contente com a publicação de seu livro e se revelou surpresa em saber que, depois de 20 anos da primeira edição, seu trabalho ainda desperta interesse nos jovens, ainda mais, nos falantes de português. A autora disse que desde o início este era o seu objetivo: incentivar os jovens e não deixar que as ideias revolucionárias caíssem  no esquecimento.

E revolução foi o que não faltou em mais de uma hora de conversa com Wendy Goldman, que tratou do período revolucionário como o grande influenciador de boa parte dos ideais dos anos 1960, principalmente no que diz respeito ao amor livre, um ideal comunista. Falou-se também da contrarrevolução de Stálin, que, ao ascender ao poder, perseguiu e executou todos os adeptos do movimento e impôs forte retrocesso aos avanços revolucionários: criminalizou o aborto, perseguiu homossexuais, recuou na ideia do núcleo familiar como base da sociedade. Em outras palavras, enterrou a revolução.

"Eu estava muito interessada a
respeito dos ideais da Revolução
Russa de 1917 e por que sob Stalin
aconteceu um retrocesso deles".
(Foto| Marcelo Hailer)


E antes que todos se despedissem, Wendy Goldman inverteu os papeis e entrevistou os repórteres: queria informações sobre as manifestações e o sistema político brasileiro. Ficou encantada ao saber que temos uma deputada federal do Partido Comunista do Brasil (Manuela D’Ávila), eleita com grande número de votos. Ainda mais admirada se mostrou em saber que a vice-prefeita da cidade de São Paulo é também uma mulher filiada ao PCdoB e, por fim, declarou: “Vocês têm um sistema político incrível, em meu país não temos nada disso”.

Fórum – De onde veio o desejo de pesquisar sobre o papel da mulher durante a Revolução Russa?

Wendy Goldman – Eu estava muito interessada a respeito dos ideais da Revolução Russa de 1917 e por que sob Stálin aconteceu um retrocesso delas. Esse retrocesso, na realidade, aconteceu em diversas áreas – não apenas sobre os direitos das mulheres e as ideais a respeito da família, mas também ideias sobre o Estado, sobre a lei, sobre a cultura, sobre muitas áreas. Então essa foi a primeira razão que me levou a olhar mais a fundo sobre o assunto: eu estava interessada no grande retrocesso do stalinismo.

A segunda razão foi porque eu estava bastante interessada no feminismo, na libertação das mulheres e num conjunto de outros assuntos relacionados à emancipação feminina e, quando comecei a pesquisar sobre essas questões, percebi que muitos dos debates que os revolucionários russos tinham na década de 1920 eram bastante similares às ideias que os jovens nos Estados Unidos estavam discutindo na década de 1970. Agora aqui estamos nós, em 2014, e ainda temos interesse em todas essas questões.

Fórum – Quando você começou a pesquisar sobre esses assuntos?

Goldman – Eu comecei a trabalhar na minha dissertação em 1983. Isso foi há muitos anos, eu provavelmente tinha mais ou menos a idade de vocês (risos), e então fui para a União Soviética em 1984-85. Esses foram os últimos anos do socialismo, pois [Mikhail] Gorbachev chegou ao poder – em meados de 1985 –, eu estava lá nessa época e foi depois disso que o socialismo começou a se transformar de maneira muito rápida, até que começou a entrar em colapso. E isso aconteceu em um período de tempo muito rápido. Então foi interessante estar lá no último ano do socialismo soviético.

Fórum – Algumas das propostas dos bolcheviques continuam atuais depois de tanto tempo – como o aborto e o amor livre, por exemplo. Em sua opinião, por que esses assuntos continuam causando tanta controvérsia?

Goldman – Bem, eu acredito que a liberdade das mulheres é uma questão que acontece no mundo inteiro. Existem correntes que não querem que as mulheres tenham acesso à educação ou igualdade e isso existe ainda hoje, em todos os lugares. Então a ideia de libertação, igualdade e a possibilidade de as mulheres se tornarem independentes é algo muito ameaçador para muitas religiões, autoridades e configurações econômicas. Acho que essa é uma das coisas muito importantes atualmente.

Em segundo lugar, a ideia do aborto, que foi legalizado pelos soviéticos em 1920. A União Soviética se tornou o primeiro país no mundo a oferecer às mulheres o aborto legal. Essa ideia é ainda muito polêmica e ainda é muito debatida hoje, em todo o mundo. Existem muitos países – e eu acho que o Brasil é um deles – que não possuem aborto legalizado; os EUA oferecem acesso ao aborto legal desde 1972, se não me engano, mas existem muitos grupos – principalmente religiosos – que acreditam que isso é errado. Isso é ainda muito controverso, até mesmo nos EUA, onde o aborto já é legal.

Fórum – E por que você acha que isso ainda acontece?

Goldman – Eu acredito que sempre existiu uma tentativa de controlar a fertilidade das mulheres, e os homens, em certas instituições – tanto Estado, quanto em igrejas –, têm um forte interesse nesse controle, em não permitir que as mulheres tomem decisões por conta própria. Então acho que essa é uma das razões de isso continuar sendo um assunto controverso.

Fórum – A Alexandra Kollontai propôs o “amor-camarada”, o tipo de amor que vai além das fronteiras das obrigações maritais e, como você disse, décadas atrás essa ideia de amor livre foi muito forte. Acha que as ideias dela sobre amor continuam atuais?

Goldman – Talvez ainda mais atuais do que foram nos EUA durante a década de 1970, mas isso depende do país. No entanto, toda vez que temos um movimento forte de libertação, de qualquer tipo, a ideia do amor livre ressurge novamente. E essa ideia data desde a Idade Média e desde os primeiros grupos cristãos, que tinham a ideia de que  amor deveria ser algo livre – livre de restrições econômicas. Então é realmente uma ideia bem antiga que sempre volta quando acontece algum movimento para “refazer” a sociedade.

Fórum – É possível dizer que, nos dias de hoje, o mais próximo que temos das propostas revolucionárias, com a devida proporção, são as ideias do movimento queer, que propõe uma nova organização social e também um novo sujeito? 

Goldman – Sim. Eu acho que existem similaridades. Os bolcheviques não acreditavam na ideia de legalização da homossexualidade. De fato, seus pensamentos a respeito de homossexuais estavam muitos e muitos anos atrasados de onde estamos hoje. Então, os primeiros movimentos para a “libertação” gay surgiram apenas na década de 1970, acho eu. Essas ideias são muito recentes e na Rússia de hoje, assim como em muitos outros países, existe um enorme preconceito e repressão contra a homossexualidade.

Fórum – Mas no início da revolução, com Lênin, Trotsky, Kollontai, não perseguia os homossexuais, apenas com Stálin aconteceu essa reversão.

Goldman – Sabe… No mundo das artes, sempre existiram muitas pessoas que eram homossexuais e eles [os revolucionários] optaram por ignorar isso. Não houve um movimento para trazer a homossexualidade ao entendimento das pessoas. Eu acredito que esse movimento, na História humana, é relativamente recente.

Fórum – Era apenas tolerado então…

Goldman: Era tolerado, mas não era debatido. Não era discutido de uma maneira aberta e pública.

"Houve um enorme retrocesso que começou o inicio da década
de 1930. Parte desse retrocesso foi um resultado das
condições de vida no país."

Fórum – O que fica claro ao lermos sobre as propostas da primeira parte da revolução é que, mais do que um projeto de poder, o que se propunha era uma nova sociedade baseada em uma nova moral, em um novo sujeito. Porém, com a ascensão de Stálin, este projeto foi enterrado. Poderia falar um pouco a respeito disso?

Goldman – Houve um enorme retrocesso que começou no início da década de 1930. Parte desse retrocesso foi um resultado das condições de vida no país. A legislação era muito revolucionária, mas frequentemente essa legislação tornava as coisas mais difíceis para as mulheres, ao invés de menos difíceis. E a razão para isso é que para se ter a união livre – em que as pessoas podiam se juntar ou se separar na base do amor, respeito e no que elas sentiam uma pela outra – cada uma das partes deveria ser economicamente independente. Se uma pessoa dependesse do salário da outra, era impossível se separar. Uma das coisas que aconteceram na década de 1920 foi uma alta taxa de desemprego e a maior parte disso recaiu sobre as mulheres. Então, com o “divórcio livre”, os homens se divorciavam, “casavam” com outra pessoa, se divorciavam novamente e assim seguia. Todavia, muitas vezes esses homens tinham  filhos com diversas mulheres e elas é quem acabavam tendo de cuidar deles – além de terem geralmente de cuidar de seus pais idosos, pois a mulher era o centro da família. Então, elas não tinham maneiras de cuidar de tudo sozinhas. Elas não conseguiam um trabalho por conta do alto desemprego e frequentemente acontecia de elas recorrem à prostituição.

Isso definitivamente não era aquilo que todos queriam. Então quando Stálin e seus comissários de justiça passaram a procurar soluções para certos problemas, as próprias mulheres diziam: “vocês têm que fazer alguma coisa sobre essa situação”, e eu acredito que um dos primeiros passos a caminho da repressão foi direcionado aos homens que não pagavam pensão alimentícia. Eles colocaram o NKVD [a polícia secreta] atrás desses homens e forçavam-nos a pagarem a pensão. Essa foi uma repressão legislada. Outra foi tornar o aborto ilegal, em 1936. O Estado ficou muito preocupado com a queda na taxa de natalidade e, como eu já disse, muitas instituições têm interesse em controlar a fertilidade da mulher. Eles acreditaram que, tornando o aborto ilegal, as mulheres seriam forçadas a terem os filhos e a natalidade voltaria a subir – mas eles estavam errados. As mulheres continuaram abortando ilegalmente e isso, obviamente, é algo muito perigoso, pois elas geralmente o faziam em condições não-higiênicas e sofriam enormemente por conta disso. Então essa foi outra parte do retrocesso repressor.

Por fim, os bolcheviques acreditavam que, após a Revolução, a família iria “sumir” – algo como uma desaparição gradual. Assim como a lei iria sumir, o Estado iria sumir e, tudo isso, não imediatamente, mas com o tempo. As pessoas continuariam a se unir, talvez até por toda a vida, mas eles não precisariam se casar legalmente, então qual seria o ponto do casamento? Ele também sumiria. As pessoas iriam ficar juntas ou não. Elas poderiam por toda uma vida ficar juntas ou não, e o Estado não iria se preocupar com isso. As leis civis também sumiriam e, como a lei civil é que regulava a propriedade, não existiriam mais propriedades. As leis criminais também sumiriam, pois as pessoas não teriam necessidade de roubar, ou matar, ou fazer qualquer mal a outra pessoa.

Sob o jugo de Stálin, a ideia de que a família, o Estado e as leis iriam desaparecer foi revertida. Eles perceberam que precisavam de uma família forte, um Estado forte e uma forte repressão como maneira de resolver problemas sociais. As ideias foram revertidas para a solução através da repressão e não através de mudança social.


Alexandra Kollontai, membro da facção
bolchevique e militante ativa durante
a Revolução Russa.
(Foto: Wikimedia Commons)

Fórum – Então é possível dizer que, em certas partes, a Revolução foi uma “vítima dela própria”? Você mencionou isso agora e está também escrito em seu livro, em uma passagem bem engraçada sobre um homem que tinha que pagar três pensões alimentícias para três mulheres diferentes…

Goldman – (Risos).

Fórum – E então as autoridades perguntaram como ele sobrevivia, ao que ele respondeu que sua atual esposa recebia cinco pensões alimentícias de cinco homens diferentes…

Goldman – Sim (risos).

Fórum – Então é realmente possível dizer que a Revolução se tornou “vítima dela própria”, certo? Pois até mesmo as mulheres tiveram que olhar para o Estado e dizer: “Ei, isso aqui não está funcionando!”, e exigiram mudanças.

Goldman – Sim. Houve um elemento de apoio social para a repressão. E eu acho que isso é verdade em todos os lugares, e uma das lições que podemos aprender é que a repressão geralmente conta como o apoio das massas, e nós precisamos descobrir como criar mudança social sem que seja acompanhada de um retrocesso. Uma maneira em que a mudança realmente funcione, em vez de apenas criar outra situação pior.

Fórum – Voltando um pouco para Alexandra Kollontai, quando ela apoiou as decisões de Stálin, você acredita que isso foi causado pelo medo dela de ter o mesmo destino de seus outros camaradas – ou seja, sendo perseguida ou morta?

Goldman – Kollontai foi enviada como embaixadora da Noruega – eu acho que era Noruega – durante a era de repressão do Stálin, então ela estava fora do país. Eu acho que, se ela estivesse na União Soviética, provavelmente teria sido presa, porque seu parceiro e amante, Alexander Shliapnikov, era o líder de um grupo chamado “Oposição dos Trabalhadores”. Ele era um bolchevique, mas dentro do partido liderava essa oposição, essa facção. E Shliapnikov foi executado junto de vários e vários outros integrantes ativos da oposição. Todos eles foram presos, enviados para campos de trabalho forçado e executados, no início de 1935.

Fórum – Então você concorda que seu alinhamento a Stálin foi por medo.

Goldman – Eu acho que ela aprendeu a se tornar silenciosa e isso foi verdade para quase todos os outros.

Fórum – As mulheres ainda vivem com o fardo da jornada dupla (trabalho e casa) e desigualdade salarial. O que você pensa a respeito disso naquela época?

Goldman – Eu penso que o que resultou do experimento soviético não foi exatamente aquilo que os revolucionários queriam. Mas ainda havia partes do que eles queriam que de fato ocorreram – então existiu um misto sobre isso. O que tivemos durante a década de 1930 foi um enorme período de industrialização na União Soviética, que se tornou um país líder no mundo todo por conta de seu processo industrial. Foi um enorme sucesso essa industrialização e as mulheres entraram como força de trabalho em grande número. Mais mulheres entraram na força de trabalho industrial no início dos anos 1930 do que em qualquer outro país, em qualquer outro período da História – até mesmo mais do que durante as guerras, quando as mulheres geralmente participam do chamado “esforço de guerra”.

Então as mulheres conquistaram o acesso à independência salarial – o que era uma das condições para autonomia: o acesso ao salário. Elas também eram livres para correr atrás de educação, igualdade no trabalho, de ter uma propriedade. Em outras palavras, todos os direitos de que os homens já desfrutavam. Então essas coisas foram importantes. Quando as mulheres foram trabalhar, o governo de fato criou muitas creches para seus filhos e criou refeitórios onde as pessoas podiam comer no trabalho. Em muitos aspectos, suas visões e ideais ganharam vida. Elas eram reais e muito positivas.

Mas eles nunca conseguiram refazer por completo a relação entre homem e mulher. As mulheres passaram a exercer um novo papel, mas ainda continuavam com o velho papel, e esse é o ainda chamado “fardo duplo”.

Fórum – Você acredita que muitos dos ideais dos revolucionários – a construção de uma nova moralidade, sexualidade, maneiras de viver – ainda podem influenciar as pessoas, até mesmo nos dias de hoje?

Goldman – Eu penso que elas podem influenciar as pessoas hoje e, mais importante: os jovens estão sempre com novas ideias. Pois os jovens têm a imaginação para repensar em como as coisas são, então sim, as pessoas podem ainda ser influenciadas por aqueles ideais, ao mesmo tempo em que os jovens querem eles mesmos pensar sobre todas essas coisas.

Fórum – E falando sobre novos ideais dos jovens, supomos que tudo se resume na natureza humana. Sempre haverá pessoas tentando jogar suas ideais no mundo e tentando “remodelá-lo”; assim como sempre haverá aqueles tentando reprimi-las, mas é impossível esses ganharem, pois as pessoas estão sempre lutando por mais. Você concorda?

Goldman – Pois é, Karl Marx disse exatamente isso o que acabaram de dizer.

Fórum – Oh! Não sabíamos disso.

Goldman – Está no “Manifesto Comunista”. Exatamente o que vocês disseram – que a História de toda sociedade humana é uma história de luta, e isso é verdade. Onde quer que exista repressão, existirá resistência. Sempre. Em qualquer lugar. Então, frequentemente os conservadores vão dizer: “Oh! É da natureza humana ser egoísta, ser repressiva, querer ter muitas posses ou roubar e lucrar dos outros. Isso é a natureza humana”; mas, ao mesmo tempo, é também da natureza humana resistir a essas coisas e é da natureza humana querer construir um mundo melhor, então sim, eu concordo.

FONTE: Revista Forum Semanal

domingo, 5 de março de 2017

Comunismo: haverá uma "quarta onda"?


Por David Priestland


Cartaz de propaganda chinesa sobre modernização agrícola. Segundo Priestland, a Revolução
Chinesa é parte da terceira onda do comunismo. As primeiras foram o triunfo dos bolcheviques
e a liderança na luta anti-fascista

Cem anos após a Revolução Russa, o mundo parece mais desigual e injusto que nunca. A velha fênix, que já viveu três vezes, poderá ressurgir das cinzas?



Por David Priestland | Tradução: Antonio Martins | Imagem: Zhang DaxinMamãe vem com um trator (1960)

“Ura! Ura! Ura!” Lembro-me vivamente da parede de som que se formou quando soldados severos, em uniformes cinzentos responderam ao brado de seu comandante: “Saudações no 70º aniversário da Grande Revolução Socialista de Outubro!”
Estudante de intercâmbio em Moscou, em 1987, eu havia viajado à Rua Gorky naquela manhã trepidante de novembro, para assistir à parada militar a caminho da Praça Vermelha. Uma fileira de autoridades soviéticas e estrangeiras observava os jovens soldados prestar homenagem ao Mausoléu de Lênin. A cena impressionante deveria servir para demonstrar tanto a energia revolucionária duradoura do comunismo quanto seu alcance global.
O líder soviético, Mikhail Gorbachev, falou sobre um movimento revigorado pelos valores de 1917 a uma audiência de líderes de esquerda que incluía Oliver Tambo, do Congresso Nacional Africano, e Yasser Arafat, da Organização pela Libertação da Palestina. Cartazes ostentavam a proclamação do poeta Vladimir Mayakovsky: “Lênin viveu, Lênin vive, Lênin viverá para sempre!”
As palavras soavam ocas, pois os problemas econômicos da União Soviética eram evidentes para todos, especialmente para meus amigos estudantes, que dependiam de universidades mal abastecidas para comer. Ainda assim, o sistema ainda parecia tão sólido quando o mármore do mausoléu. Como a maioria dos observadores, eu não teria acreditado que em dois anos o comunismo  estaria desmoronando, e em quatro a própria União Soviética teria ruído.
Logo, a visão popular sobre 1917 mudou inteiramente. A desregulação dos mercados parecia natural e inevitável. O comunismo parecia ter sido sempre condenado à “lata de lixo da História” de Trotsky. Se houvesse desafios à ordem liberal globalizada, eles viriam do islamismo ou do capitalismo de Estado chinês, não mais de um marxismo desacreditado.
Agora, quando passaram-se cem anos da Revolução de Fevereiro – que precedeu à tomada do poder pelos bolcheviques de Lênin, em novembro – a História mudou de novo. A China e a Rússia exibem símbolos de sua herança comunista para fortalecer um nacionalismo antiliberal. No Ocidente, a confiança no capitalismo de livre mercado não se recuperou, desde o crash financeiro de 2008. Novas forças de extrema direita e de esquerda ativista disputam popularidade. A força inesperada do socialista independente Bernie Sanders, nos EUA; e as vitórias eleitorais do novo partido Podemos, liderado por um ex comunista, na Espanha, são sinais de um ressurgimento de base da esquerda. Na Grã-Bretanha, o “Manifesto Comunista”, obra clássica escrita por Marx e Engels em 1848, foi um best seller em 2015.
Terei testemunhado, naquele dia em Moscou, o último hurra do comunismo? Ou um comunismo remodelado para o século 21 estará lutando para nascer?
Há sinais de uma resposta nesta epopeia complexa e centenária, um arco narrativo cheio de falsos começos, quase mortes e reviveres imprevistos.
Observe a vida de Semyon Kanatchikov. Filho de um ex-servo, ele trocou a pobreza rural por um emprego de operário e a excitação da modernidade. Entusiasmado e sociável, Kanatchikov lutou para se aperfeiçoar tendo como guia “O Autodidata de Dança e das Boas Maneiras”. Em Moscou, uniu-se a um círculo de discussões socialista e mais tarde ao Partido Bolchevique.
A experiência de Kanatchikov tornou-o receptivo a ideias revolucionárias: uma atenção aguda ao abismo entre ricos e pobres, a sensação de que uma velha ordem bloqueava a emergência do novo e ódio ao poder arbitrário. Os comunistas ofereciam soluções claras e convincentes. Ao contrário dos liberais, defendiam a igualdade econômica; mas, diferente dos anarquistas, queriam a indústria moderna e o planejamento estatal; e, em oposição aos socialistas moderados, argumentavam que a mudança teria de vir por meio da luta de classes revolucionária.
Na prática, foi difícil combinar estes ideais. Um Estado muito poderoso tendeu a sufocar o crescimento, ao mesmo tempo em que criou novas elites. A violência da revolução trouxe consigo periódicas caças aos “inimigos”. Também Kanatchkov tornou-se vítima. Embora fosse levado a postos de prestígio após a revolução, seus laços com Trotsky, o arqui-rival de Stalin, provocaram seu rebaixamento, em 1926.
Àquela altura, as perspectivas do comunismo eram sombrias. As primeiras chamas da revolução na Europa Central, logo após a I Guerra Mundial, estavam extintas. A União Soviética viu-se isolada, e os Partidos Comunistas em outras partes do mundo eram pequenos e conflagrados. A modernidade forjada dos EUA dos flamejantes anos 1920 era despudoradamente consumista, não comunista.
Mas as fraquezas do laissez-faire logo vieram em socorro do comunismo. O crash de Wall Street em 1929 e a Depressão que se seguiu fizeram das ideias socialistas de igualdade e planejamento estatal uma alternativa poderosa à mão invisível do mercado. E a militância comunista emergiu como uma das forças preparadas a resistir à ameaça do fascismo.
Mesmo o terreno árido dos Estados Unidos, não congênito ao coletivismo e ao socialismo sem Deus, tornou-se fértil. Quando Moscou trocou, em 1935, sua doutrina sectária por uma política de apoio às “frentes populares”, os comunistas norte-americanos somaram-se a esquerdistas moderados contra o fascismo. Al Richmond, um jornalista novaiorquino no Daily Worker lembrava-se do otimismo renovado quando ele e seus colegas passavam noites num restaurante italiano fazendo brindes “à vida, àquela era, a seus presságios e esperanças, certos de nossas respostas ao ritmo deste tempo, porque nele sentíamos nossa pulsação”.
Tal otimismo, era partilhado por um grupo seleto. Vítima dos expurgos de Stalin, Semyon Kanatchikov morreu no Gulag, em 1940.
Muitos aceitavam esquecer do terror stalinista para preservar a unidade anti-fascista. Mas a segunda ascensão do comunismo no final dos anos 1930 e início dos 40 não sobreviveu à derrota do fascismo. Quando a Guerra Fria intensificou-se, a identificação do comunismo com o império soviético comprometeu sua tentativa de apresentar-se como libertador. Na Europa Ocidental, um capitalismo reformado e regulado, que os EUA incentivavam, ofereceu níveis de vida mais altos e o Estado do Bem-estar Social. As economias de comando, que faziam sentido no período de guerra, estavam menos aptas para a paz.
Mas se o comunismo se esvaía no Norte global, no Sul ele tomava corpo. Lá, as promessas dos comunistas de modernização rápida, liderada pelo Estado, incendiaram a imaginação de muitos nacionalistas anticoloniais. Aqui, ergueu-se uma terceira onda vermelha, que irrompeu na Ásia Oriental nos anos 1940 e no Sul pós-colonial a partir do final dos 60.
Para Geng Chansuo, um chinês que visitou uma fazenda-modelo coletiva na Ucrânia, em 1952 – três anos depois que as guerrilhas comunistas entraram em Beijing –, o legado de 1917 continuava potente. Sóbrio líder camponês de Wugong, um vilarejo cerca de 200 km. ao sul de Beijing, ele foi transformado pela viagem. Ao voltar, tirou a barba e o bigode, vestiu roupas ocidentais e começou a pregar em favor da coletivização agrícola e do milagroso trator.
A China revolucionária fortaleceu a determinação de Washington em conter o comunismo. Mas enquanto os EUA travavam sua desastrosa guerra no Vietnã, uma nova geração de nacionalistas marxistas emergia no Sul, atacando o “neo-imperialismo” que, acreditavam, havia sido tolerado por seus antecessores, socialistas moderados. A Conferência Tricontinental de socialistas africanos, latinoamericanos e asiáticos, patrocinada por Cuba e realizada em 1966, abriu uma nova série de revoluções. Por volta de 1980, os Estados marxistas-leninistas estendiam-se do Afeganistão a Angola, ao Yêmen do Sul e à Somália.
O Ocidente também assistiu a um revival marxista nos 60, mas seus estudantes radicais tinham, ao fim, mais compromisso com autonomia individual, democracia na vida quotidiana e cosmopolitismo do que com disciplina leninista, luta de classes e poder de Estado. A trajetória do estudante alemão radical Joschka Fischer é um exemplo expressivo. Membro de um grupo denominado Luta Revolucionária, que tentou inspirar um levante comunista entre trabalhadores da indústria automobilística em 1971, ele tornou-se mais tarde líder do Partido Verde alemão.
A emergência, a partir do final dos anos 1970, de uma ordem americana dominada pelos mercados globais, seguida pela queda do comunismo soviético ao apagar dos 80, causou uma crise generalizada da esquerda radical. Fischer, como muitos outros estudantes dos 60, adaptou-se ao novo mundo. Como ministro do Exterior da Alemanha, ele apoiou os bombardeios dos EUA em Kosovo (contra as forças de Slobodan Milosevic, antigo líder comunista sérvio), e defendeu os cortes no Estado de Bem-estar Social da Alemanha, em 2003.
No Sul, o FMI forçou reformas de mercado em países pós-comunistas endividados, e algumas das antigas elites comunistas fizeram uma conversão ardente ao neoliberalismo. Resta agora só um punhado de Estados denomidos comunistas: Coreia do Norte e Cuba, além de China, Vietnã e Laos, mais capitalistas.
Hoje, mais de um quarto de século após o colapso da União Soviética, seria possível uma quarta encarnação do comunismo?
Um grande obstáculo é a divisão pós-60 entre uma velha esquerda que prioriza a igualdade econômica e os herdeiros de Fischer, que ostentam valores cosmopolitas, políticas de gênero e multiculturalismo. Além disso, defender os interesses dos exluídos, em escala global, parece uma tarefa quase impossível. O crash de 2008 apenas intensificou os dilemas da esquerda, enquanto criou, para nacionaistas radicais como Donald Trump e Marine Le Pen, uma oportunidade de explorar a ira diante das desigualdades econômicas do Norte global.
Estamos apenas no início de um período de grandes mudanças econômicas e agitações sociais. À medida em que um tecno-capitalismo altamente desigual for incapaz de oferecer empregos decentes, os jovens poderão adotar uma agenda econômica mais radical. Uma nova esquerda poderia ser capaz de unir estes hoje derrotados — estejam na economia do material ou do imaterial – em favor de uma nova ordem econômica. Já surgem reivindicações de um Estado mais redistributivo. Ideias como a renda universal da cidadania, que a Holanda e Finlândia estão experimentando, aproximam-se, na concepção, à visão de Marx sobre a aptidão do comunismo para suprir os quereres de todos – “de cada um segundo sua capacidade para cada um segundo sua necessidade”.
Um longo caminho nos separa da Praça Vermelha de Moscou em 1987 – e ainda mais do Palácio de Inverno de Petrogrado em 1917. Não haverá volta ao comunismo dos planos quinquenais e  dos gulags. Mas se há algo que esta história turbulenta ensina é que os “últimos hurras” podem ser tão ilusórios quando o “fim da ideologia” previsto nos anos 1950 ou o “fim da História” de Fukuyama, em 1989.
Lênin já não vive e o velho comunismo pode estar morto, mas o senso de injustiça que os animou está vivíssimo…

Texto publicado originalmente no “New York Times”, que dedica seção especial aos cem anos da Revolução Russa