segunda-feira, 25 de maio de 2020

Poulantzas, filósofo do Socialismo Democrático [Final]



Marxista inquieto, morto há 40 anos, enxergou os limites da experiência soviética, sem se render à social-democracia. Anteviu a ditadura neoliberal. Dialogou com ideias de Lênin e Foucault. Sugeriu caminhos para reinventar a emancipação


Por David Sessions, no Dissent| Tradução: Inês Castilho




Dentro e fora do Estado: a estrada democrática para o socialismo

A evolução de Poulantzas em direção a uma concepção mais dinâmica do Estado teve implicações importantes para a estratégia socialista, um dos aspectos de seu pensamento que mais atraiu atenção dos socialistas democráticos contemporâneos. Em seus primeiros trabalhos, o argumento central dessa teoria do Estado capitalista – de que ele era um dispositivo estrutural para a reprodução da dominação de classe – levou-o a afirmar uma tradicional estratégia leninista de “esmagamento do Estado”. Mas conforme Poulantzas tornou-se mais específico sobre a complexidade dos aparatos de Estado e seu status como um campo de força de luta de classes, ele chegou a uma nova conclusão: se o Estado era um conjunto de relações e não uma “coisa”, ele poderia realmente ser cercado ou atacado como uma fortaleza?

Não havia dúvidas de que, em sua forma atual, o Estado agia como organizador da dominação de classe. Mas uma dimensão crucial da teoria de Poulantzas era que, de modos não triviais, as classes dominadas eram já uma parte do Estado. No século XX, a tarefa fundamental do Estado capitalista, de “organizar” as lutas de classes, forçou-o a dar passos importantes – não menos que criar o Estado de bem-estar – para acomodar as demandas da classe trabalhadora. Embora tais conquistas tivessem estado sempre ameaçadas pelo capital, elas ainda eram conquistas que haviam se tornado uma parte verdadeira da infraestrutura estatal. Em meados dos anos 1970, conforme as ditaduras do sul da Europa faziam transição para a democracia, e conforme os partidos comunistas francês e italiano lutavam sobre como participar na política parlamentar, Poulantzas começou a pensar sobre como o equilíbrio de poder entre as classes poderia ser radicalmente mudado, de modo que as posições fracas e marginais em que as classes dominadas já tinham nas lutas pelo Estado pudessem ser transformadas em bases para ruptura e transformação.

Por razões tanto teóricas como estratégicas, Poulantzas reconsiderou a relevância da “duplicidade de poder” das estratégias leninistas destinadas a construir contra-instituições da classe trabalhadora, que num certo momento ficariam fortes o suficiente para “esmagar” o Estado capitalista. Essa estratégia teve origem de um modo deveras ad-hoc na preparação da Revolução Russa em 1917. Para Poulantzas, olhando para os sistemas políticos da Europa Ocidental no final dos anos 1970 era impossível imaginar uma posição inteiramente fora do Estado. Embora as classes dominadas pudessem e devessem construir poder institucional de base à distância do Estado, elas nunca poderiam estar verdadeiramente fora do seu campo de poder. “Hoje, o poder é menos que nunca uma torre de marfim isolada das massas populares”, escreveu ele. “O Estado não é nem uma coisa-instrumento que pode ser tomado, nem uma fortaleza que pode ser penetrada usando um cavalo de madeira, nem ainda a segurança que pode ser quebrada por um roubo: ele é o coração do exercício do poder político”.

A retórica do ”esmagamento” não falhou apenas na visão de que o Estado era mais do que uma “coisa” a destruir. Ela também implicou – como em última análise fez a Revolução de Outubro – uma supressão das instituições da democracia representativa, que poderiam ter servido como uma defesa contra um estatismo autoritário sob novo regime. Poulantzas tentou imaginar um modo como a esquerda poderia liderar simultaneamente tanto a democracia de base, distante do Estado, como uma pressão por transformação radical por dentro dele. Trabalhar por dentro do Estado teria como objetivo produzir “rachaduras” que iriam polarizar o aparato estatal altamente conflitivo em direção da classe trabalhadora, com a assistência de pressão externa de organizações de base. “Não é simplesmente uma questão de entrar nas instituições do Estado para usar suas alavancas características para um bom propósito”, escreveu Poulantzas. “Além disso, a luta deve sempre expressar-se no desenvolvimento de movimentos populares e no surgimento  de centros de autogestão.”

A tentativa de Poulantzas de pensar uma estratégia interna-externa visava objetivo de caminhar pela estreita linha entre o reformismo social democrata (que praticava meramente a política parlamentar de sempre) e uma estratégia leninista revolucionária (que ele viu como potencialmente autoritária e de todo modo destinada ao isolamento perpétuo dos caminhos realmente existentes para o socialismo). A crítica “revolucionária” dos anos 1970 até o presente questionou que isso era simplesmente um reformismo disfarçado. Poulantzas concordou que o risco de cair no reformismo era real, mas sugeriu que tal risco era endêmico para todas as posições revolucionárias no final do século XX. “A História ainda não nos deu uma experiência bem sucedida da estrada democrática para o socialismo”, ele escreveu. “O que ela proporcionou – e isso não é insignificante – são alguns exemplos a ser evitados e alguns erros sobre os quais refletir. … Mas uma coisa é certa: o socialismo será democrático ou não será.”

Um marxismo para o século XXI?

Poulantzas jogou-se por uma janela em Paris em 1979. Em seus últimos anos, parecia estar lutando contra as juntas de seu pensamento – e talvez até contra a própria tradição marxista. Tentou refazer a teoria do Estado capitalista para o século XX e a estratégia socialista para uma era de política democrática. Seus colegas marxistas o acusaram de todo tipo de transgressão no livro: de “escolasticismo”, de reformismo, de abandoar o conceito de classe, de permanecer muito ligado à luta de classes e o poder determinante da economia. Ele considerou que sua própria posição foi tão longe quanto se poderia ir em direção a uma política marxista sem abandonar o compromisso fundamental com o papel determinante das relações de produção. “Se permanecemos dentro dessa moldura conceitual, penso que o mais que se pode fazer para a especificidade da política é o que eu fiz”, confessou ele ao jornal britânico Marxismo Hoje (Marxism Today) em 1979. “Eu mesmo não tenho certeza absoluta de que é certo ser marxista; nunca se tem certeza”.

As ambiguidades da fase final de Poulantzas poderiam ser representativas de todo o seu trabalho. É possível enquadrar a teoria estrutural do Estado capitalista com um sentido dinâmico da luta de classes? Pode a visão de um Estado tipo máquina, cuja infraestrutura infalivelmente cospe dominação de classe, ser reconciliada como uma que “não tem poder próprio”, que meramente reflete o equilíbrio das forças de classe na sociedade? Podemos realmente pensar sobre luta de classes sem dar atenção a sujeitos históricos, à consciência de todas as discriminações e derrotas passadas que, como Marx colocou, “pesam como tormentos no cérebro dos vivos?” Será a estratégia de combinar a luta dentro do Estado capitalista com movimentos populares fora dele um sonho irrealizável, mais que todas as estratégias revolucionárias que vieram antes?

Certamente não há dúvida de que Poulantzas respondeu todas, ou ao menos a maioria das questões que os socialistas democráticos enfrentam hoje. No mínimo o estilo de seus textos, às vezes enlouquecedoramente abstratos e encantatórios, torna seu trabalho um matagal proibitivo para a penetração de leitores de quase todos os níveis de preparação. Mas é também possível argumentar que suas próprias contradições e ambiguidades, que refletem uma era de incertezas que se parece fortemente com a nossa, são precisamente o que torna Poulantzas uma fonte de provocação, hoje. Mesmo que ele tenha falhado ao fornecer respostas aos desafios dos anos 1970, cumpriu enorme papel ao iluminá-los.

Poulantzas chama atenção, sobretudo, para o que o teórico político britânico Ed Rooksby chama de “uma das polêmicas mais antigas e mais fundamentais no pensamento socialista” — ou seja, “como, e em que medida, o poder do Estado capitalista pode ser utilizado para objetivos socialistas”. Relacionado a isso, o sentido de Poulantzas sobre as modulações do Estado capitalista através de sua sucessão de crises é um desafio bem-vindo para narrativas simplistas, inclusive da esquerda, que tingiram as compreensões da história do século XX. Ao tentar entender as fases e formas de crise de um Estado capitalista fundamentalmente contínuo, Poulantzas é um corretivo útil para a noção de um período keynesiano de meio século de forte intervenção do Estado, seguido por um período de desregulação neoliberal marcado por um Estado nacional enfraquecido e neutralizado.

Por razões estratégicas, é importante que a esquerda contemporânea não veja o neoliberalismo nem como um enfraquecimento geral do Estado nacional, nem como um declínio de sua importância estratégica. O estatismo tecnocrático é, isso sim, uma combinação de práticas estatais desenvolvidas durante o século XX, incluindo a delegação seletiva de poderes governamentais para organismos internacionais, que tem ao mesmo tempo desorganizado as classes dominadas e provocado uma resistência social que agora os torna locais de luta e controvérsia.

E então há seus escritos sobre a estrada democrática para o socialismo, esboços que, embora não apresentem respostas antecipadas, deixam uma série de lacunas sugestivas que imploram para ser preenchidos. “Há apenas um caminho certo para evitar os riscos do socialismo democrático”, concluiu Poulantzas em seu livro final, “e ele é manter-se quieto e marchar adiante sob a tutela e a vara da democracia liberal avançada”. Sabemos que esse caminho guarda seus próprios riscos assustadores.


segunda-feira, 18 de maio de 2020

O que é marxismo-leninismo?





(Publicado em Lavra Palavra)


Por Florestan Fernandes via Overquil

O texto a seguir foi retirado da introdução do volume “Lenin; Política”, que faz parte da importante (e esgotada!) coleção Grandes Cientistas Sociais, organizada por Florestan Fernandes e editada pela Ática no fim dos anos 70.

Desde o inicio de suas atividades intelectuais e políticas, Lênin sempre se considerou um marxista – e, o que é mais importante, sempre procurou ser um marxista ortodoxo. Por isso, não se contentou com a rica produção socialista que encontrou à sua disposição como jovem: foi diretamente aos textos de Marx e Engels, estudou-os sistematicamente e aos poucos tentou dominar também os autores que estavam nas raízes da formação do marxismo. A sua primeira obra de grande envergadura, O Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia, evidencia três coisas: 1) completo domínio crítico das teorias econômicas de Marx e do materialismo histórico; 2) aplicação exclusiva dessas teorias na descrição e interpretação dos fatos (isto é, sem qualquer modalidade erudita de ecletismo); 3) as teorias econômicas de Marx forneciam “hipóteses diretrizes”, estando longe de ser a fonte de um dogmatismo estéril: o que assegurava a marcha criadora da investigação, que se abria para a descoberta tanto do que era geral, quanto para o que era peculiar à manifestação do capitalismo na Rússia.

Esse estilo de trabalho aparece com igual maestria nos escritos especificamente políticos da época, principalmente naqueles em que faz a crítica marxista do “populismo” e “economicismo” no movimento socialista russo. Portanto, as aplicações do marxismo ao plano prático revelam o mesmo espírito de identificação congruente, a um tempo flexível mas intransigente, com os princípios do socialismo revolucionário. Que Fazer?, como obra de síntese e de superação das experiências políticas acumuladas durante o período de formação, constitui a face política das descobertas históricas e econômicas contidas em O Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia. Sua total fidelidade ao marxismo não pressupunha a “repetição de Marx” ou a ossificação da dialética, e sim a busca de caminhos novos, que só o marxismo podia desvendar, desde que aplicado de forma precisa, exigente e imaginativa, como um saber vivo, em intrínseca conexão com a vida.

Na cisão de 1903, vários bolcheviques, mais intimamente associados a Lênin e à sua liderança política, foram designados como “leninistas” (palavra que reaparece em outros contextos e mesmo, de passagem, em escritos de Lênin). No entanto, após a reviravolta de abril e a tomada do poder, o “leninismo” ganhou expressão política, que se acentuou graças à luta pela sucessão de Lênin após sua morte. O “leninismo”, assim entendido, significa pouca coisa: na primeira acepção, “seguidor de Lênin”, no sentido de uma oposição intransigente ao reformismo e ao oportunismo; na segunda acepção, alguém que fazia profissão de fé diante da natureza revolucionária do partido comunista, da ditadura do proletariado e do Estado soviético (e, implicitamente, no desdobramento das etapas de transição para o socialismo e para o comunismo). Ora, se isso fosse tudo, não haveria razão para o uso crescente da expressão marxismo-leninismo, que finalmente se universalizou e se viu consagrada de modo definitivo. O legado de Lênin transformou o marxismo e é essa transformação que nos interessa aqui.

Sem subestimar-se a contribuição teórica de Lênin (crucial em vários pontos para o enriquecimento e o aprofundamento do marxismo: como no estudo da penetração do capitalismo na agricultura, das condições e efeitos do desenvolvimento desigual ou do imperialismo, na explicação da guerra e da revolução, na sistematização das explicações marxistas do Estado e da própria utopia marxista, tão mal representada e conhecida antes dele, etc.), é no terreno da prática que se acha o eixo da transmutação leninista do marxismo. Isto não quer dizer que esta prática estivesse desligada da teoria – pois nunca esteve ou poderia estar, no pensamento dialético-materialista – nem tampouco que Marx, Engels e seus seguidores tivessem negligenciado, na teoria e na ação, as várias dimensões da prática (especialmente a política). Mas significa, isso sim, que Lênin se impôs como tarefa de sua vida a adequação instrumental, institucional e política do marxismo à concretização da revolução proletária. O marxismo, depois de Lênin, não é mais a mesma coisa, porque ele incorporou um “modelo” de como passar da ditadura burguesa à ditadura do proletariado.

Esse modelo desloca o âmago do marxismo para a reflexão política, ou seja, para as condições concretas da ação política e da transformação política, quando se focaliza dialeticamente as relações de classes como relações de poder (a luta de classes como um processo que conduz à formação e ao controle do que destrói e instaura a transição para o socialismo). Antes de Lênin, semelhante elemento político estava incluído no marxismo como uma previsão e, também, como um momento da vontade política. Com Lênin, esse elemento converte-se no ponto central da indagação marxista e do próprio marxismo como movimento político. Sob as condições mais ou menos paralisadoras da democracia burguesa, como dar ao proletariado – classe que pode arrastar atrás de si a massa não possuidora e constituir-se em núcleo hegemônico de uma maioria atuante – a capacidade de converter seu poder potencial em poder real? Absorveu-se, assim, no problema político da sociedade de classes; e, como marxista, não apenas para explicar como a minoria pode suplantar a maioria e submetê-la, mesmo sob o “capitalismo agonizante”, mas também para descobrir como transformar o inócuo poder potencial da maioria em poder especificamente político, concentrado e disciplinado de forma revolucionária.

Atento às estruturas de poder e aos efeitos políticos da dominação de classe, inerentes à democracia burguês, Lênin chegou rapidamente à conclusão de que a revolução proletária possui um padrão histórico próprio. Em contraste com a revolução burguesa, ela não pode iniciar-se antes da tomada do poder pelo proletariado e da dominação pela maioria. Por isso, o problema estratégico de luta pelo poder tinha de ser proposto em termos do uso revolucionário do espaço político que a classe operária pode conquistar e manejar com relativa autonomia, ilegal e legalmente, no seio da sociedade de classes. Como a dominação burguesa também implica socialização ideológica e politica do resto da sociedade pela burguesia, tal uso do espaço político impunha, naturalmente, certas condições básicas: 1) formação de uma minoria contestadora fortemente organizada, capaz de atuar legalmente e ilegalmente, sem vacilações, como vanguarda revolucionária da classe operária; 2) a ruptura com tosas as formas diretas ou indiretas e visíveis ou invisíveis de acomodação à ordem democrática burguesa; 3) a educação política do proletariado e, na medida do possível, das massas pobres e da pequena burguesia, através de situações e de reivindicações concretas, do desenvolvimento da consciência de classe e da agudização (aos níveis econômico, sócio-cultural e político) dos conflitos de classe. Isso punha em primeiro plano a questão da organização do partido revolucionário do proletariado e de sua orientação política. E, de outro lado, exigia uma nova mentalidade e uma nova prática política nas relações do partido com sua base e com a massa.

Com referência à organização do partido, Lênin fixou normas de racionalização que deviam ser iguais ou superiores às que têm vigência na grande empresa capitalista, no exército moderno ou no Estado democrático burguês. Em conseqüência, as tarefas de agitação e propaganda podiam irradiar-se por toda a sociedade, embora concentrando-se com maior intensidade na classe operária; e as tarefas políticas, imediatas e de largos prazos, podiam ser definidas segundo critérios específicos de flexibilidade e de eficácia. A ideia básica consistia em que a revolução não nasce pronta e acabada – o partido revolucionário do proletariado deveria travar duas batalhas, clandestina ou abertamente, tendo em vista as combinações que poderiam favorecer, em determinado momento, ou o fortalecimento da democracia burguesa, ou o deslocamento desta no sentido de uma democracia operária, ou a tomada pura e simples do poder.

Todas essas estratégias foram exploradas, com as táticas correspondentes, e Lênin foi o mestre das principais diretrizes (embora a sua produção intelectual e política, nessa direção, aguarde estudo sistemático). Por sua vez, para cumprir essa missão, era indispensável interromper a infiltração ou a corrupção burguesa, impedindo as soluções de compromisso ou de aparente “revolução dentro da ordem” (ambas de exclusivo interesse para a dominação burguesa e a consolidação do status quo). Daí a necessidade impetuosa de combater sem tréguas o oportunismo, o reformismo e o ultra-esquerdismo, por vários motivos dissolventes do espírito revolucionário, da atuação revolucionária racional e da solidariedade política do proletariado. Por fim, uma vanguarda revolucionária do proletariado não podia nem devia representar-se e comportar-se como uma elite e segundo valores elitistas. Se ela devia contribuir para a expansão da consciência de classe do proletariado de “fora para dentro” (isto é, imprimindo às suas tarefas políticas um teor pedagógico), ela nunca foi concebida por Lênin, em si mesma, como o pólo decisivo. Este tinha de ser, naturalmente, o proletariado, como sujeito da ação revolucionária em escala coletiva, já que de sua impulsão dependeria a vitória da revolução proletária ou da contrarrevolução. Por conseguinte, as relações do partido revolucionário do proletariado com sua base e com a massa eram definidas segundo um esquema dialético: para dirigir o processo político, aquele partido teria de sintonizar-se com a classe operária e com as massas, acompanhando as evoluções de sua aprendizagem e de sua socialização política através das flutuações da luta de classes.

Apesar da extrema condensação, essas formulações sugerem como Lênin, a partir do marxismo e dentro do marxismo, quebrou a circularidade política que pesava sobre a ação revolução proletária. Ele ignorou o peso paralisante da existência ou inexistência de “condições objetivas” que permitissem a revolução proletária. Fez isso deslocando em várias direções o aproveitamento revolucionário das condições objetivas existentes (na consolidação da democracia burguesa, na acentuação da influência operária dentro da democracia burguesa ou na criação de uma democracia operária sem a destruição do Estado proletário, etc.), sempre em direções que atendessem, a curto e longo prazos, os alvos finais de destruição do capitalismo e de transição para o socialismo. Doutro lado deu maior ênfase (e mesmo maior peso relativo) ao controle político das “condições subjetivas”, mais suscetíveis de tratamento político deliberado, segundo manipulações estratégicas e táticas. Nessa esfera, tanto era possível aproveitar a influência direta da vanguarda revolucionária sobre o proletariado e as massas, quanto os efeitos educativos, seja da ineficácia do Estado democrático burguês para atender às reivindicações do proletariado, seja de uma vitória eventual da contrarrevolução. A vantagem de dispensar maior atenção às “condições subjetivas” procedia de outro resultado previsível: a rápida transformação do proletariado em classe politicamente consciente e apta para proceder à reeducação política do resto da maioria. Assim, em “condições objetivas” aparentemente desvantajosas, um país atrasado como a Rússia logrou realizar a primeira revolução proletária da história.

As revoluções de 1905 e de 1917 forneceram a Lênin base política para a ampliação e o aperfeiçoamento desse “modelo” básico. A primeira revolução, em particular, submeteu à prova a própria consistência do “modelo”. O comportamento do proletariado e do campesinato pobre demonstrou que ele era correto: a vanguarda revolucionária não ficou sozinha (e por vezes andou atrás das massas!). Portanto, dadas as condições adequadas de organização e de orientação política, o partido revolucionário do proletariado podia colocar-se à frente do movimento político revolucionário e dirigi-lo. De outro lado, eclodiram e multiplicaram-se greves de massa, econômicas e políticas, que abriram os olhos de Lênin e dos socialistas europeus para as novas técnicas revolucionárias que emergiam, as quais envolviam a contraviolência armada. À medida que os sovietes se firmam, por sua vez, como o equivalente russo da Comuna, as reflexões de Lênin se voltam para os aspectos institucionais e militares da tomada do poder. O soviete oferecia uma solução para a pressão democrático-revolucionária do proletariado, de alguns setores do campesinato ou das massas urbanas. Todavia, ao longo do processo, ficou patente que os sovietes não detinham a força real e que não podiam, por si mesmos, suprimir a dominação da classe burguesa. Ainda aí voltava a ser decisivo o “modelo” central esboçado acima. Só que a situação compelia a novas definições, relacionadas com a natureza e variedade dos meios institucionais de que se deveria valer a ditadura do proletariado para atingir seus objetivos.

Os sovietes permitiam resolver o problema das fontes e da natureza do poder proletário, que deveria emanar da maioria e exprimi-la o mais democraticamente possível, em sua estrutura interna. As fases iniciais, porém, teriam de ser de dominação exclusiva e plena da maioria (portanto, não de abolição imediata das classes, que não iriam desaparecer por um passe de mágica, mas de sua destruição progressiva). Lênin formula o Estado desse período como um Estado proletário, fundado no poder real da maioria (isto é, o poder soviético), mas submetido à necessidade inelutável de construir uma fortíssima maquinaria estatal, instrumentalizada pelo partido revolucionário do proletariado e pelos sovietes. Antes de promover a transição para o socialismo, esse Estado proletário ou soviético deveria proceder ao reajustamento das “condições objetivas”, levando a revolução proletária a todas as estruturas econômicas, sociais, culturais e políticas da sociedade russa.

Aí está, em linhas gerias, o “modelo” ampliado de Lênin, quanto à passagem da ditadura burguesa à ditadura do proletariado. Para o marxismo, a contribuição de Lênin representa um acréscimo substantivo em duas direções. Primeiro, ela repôs o marxismo como política em suas bases revolucionárias, avançando do conhecimento da realidade política da sociedade de classes para o modo de organizar politicamente a sua transformação e destruição, como etapa preliminar à instauração do socialismo. Segundo, ela traz consigo a primeira descrição teórica e a primeira formulação prática da revolução proletária como processo histórico e vivido. Embora Lênin se preocupasse mais com as condições, as técnicas e os processos políticos de intervenção revolucionária na realidade, limitando as formalizações abstratas ao conhecimento teórico essencial para atingir tais fins, suas indagações e reflexões introduzem no marxismo um tratamento mais livre e dialético do político.

Sem ignorar que qualquer transformação política possui uma base econômica e social concreta, ele desvendou, mais que os outros pensadores marxistas, o grau de autonomia relativa do político e a intensificação dessa autonomia nos momentos de crise e revolução. Com ele, o marxismo torna-se politicamente operacional, o que explica porque, depois dele, converte-se em marxismo-leninismo.


quinta-feira, 7 de maio de 2020

Poulantzas, filósofo do Socialismo Democrático [II]



Marxista inquieto, morto há 40 anos, enxergou os limites da experiência soviética, sem se render à social-democracia. Anteviu a ditadura neoliberal. Dialogou com ideias de Lênin e Foucault. Sugeriu caminhos para reinventar a emancipação



Por David Sessions, no Dissent| Tradução: Inês Castilho






O Estatismo Autoritário

À medida em que Poulantzas debatia a natureza do Estado, desde o final dos anos 1960 e durante os 70, o consenso pós-ideológico do pós-guerra começava a ser desfeito. Movimentos de esquerda com novas ideias brotavam por todo canto, ao mesmo tempo em que aumentava a filiação nos partidos comunistas e social-democratas tradicionais, aparentemente colocando-os no caminho do poder institucional. Mas em quase toda parte, os passos do socialismo em direção ao poder eram respondidos com uma reação brutal. O medo de um governo de esquerda levou a um golpe militar na Grécia em 1967, e o governo socialista eleito democraticamente de Salvador Allende no Chile foi esmagado por um golpe semelhante – igualmente apoiado pelos EUA – em 1973. No final da década, uma crise econômica complicou ainda mais a situação, anunciando um longo período de recuo do uso do poder estatal para projetos igualitários e de distribuição de renda.

Poulantzas destacou-se entre os pensadores dos anos 1970 ao ver nas ditaduras militares e o início do neoliberalismo como parte de um único cardápio de opções que os governos capitalistas tinham em resposta à crise política e econômica. Há uma visão que persiste obstinadamente, de que a ordem político-econômica dos anos pós-1970 envolvia um enfraquecimento dos Estados-Nações: de que as grandes corporações exigiam a retirada da intervenção estatal na economia, enquanto um sistema cada vez mais global possibilitava aos capitalistas esquivar-se dos governos nacionais. Para Poulantzas, o neoliberalismo era só uma face de uma volta mais ampla que ele chamava “estatismo autoritário”, uma combinação do poder gerencial do Estado keynesiano com um recuo estratégico de algumas de suas funções anteriores. As novas táticas do Estado incluíam submissão deliberada a instituições internacionais antidemocráticas, políticas econômicas que tornaram a vida mais atomizada e precária, e intensificaram a vigilância e a repressão. Em situações extremas, especialmente em países dependentes de maiores poderes “imperialistas”, a crise econômica poderia levar a “formas excepcionais” de capitalismo, como o fascismo ou a ditadura militar. Nos países liberais democráticos avançados, era provável que parecesse uma combinação mais sutil de internacionalismo seletivo, tecnocracia intensificada e violência policial.

No início de sua trajetória, Poulantzas ressaltou a importância de localizar a posição de cada nação numa “cadeia imperialista” global para compreender a forma particular que seu Estado precisava tomar para reproduzir o poder de classe capitalista. Nos anos 1970, ele focou particularmente na dependência emergente dos Estados europeus e suas classes dominantes em relação ao imperialismo dos EUA, expresso no crescente investimento de capital norte-americano na Europa durante os anos 1960. Não era suficiente para a esquerda europeia concluir que a crise do “capitalismo monopolista” estava destinada a destrui-lo desde dentro, como sustentavam muitos partidos comunistas. Por razões estratégicas, eles precisavam entender as relações específicas do imperialismo e as crises que produzia, incluindo as relações entre o “imperialismo de metrópoles” dos Estados Unidos e Europa. O capital norte-americano, argumentava Poulantzas, aumentara sua influência sobre a Europa por meio de investimentos diretos em setores em que as corporações norte-americanas já exerciam um controle internacional altamente consolidado. Ao fazê-lo, conseguiram exercer uma influência econômica ainda maior, definindo padrões para as matérias-primas, insistindo na reorganização do processo de trabalho e na imposição de certas ideologias de gestão.

A resposta para a nova dependência da Europa ou “imperialismo de satélite” não era, como até mesmo alguns liberais franceses argumentaram, a de um Estado-Nação versus “corporações multinacionais” ou, como alguns esquerdistas imaginaram, a oportunidade para uma coalizão que alinhasse a burguesia nacional com a esquerda, contra as forças dominantes do capital internacional. A despeito da internacionalização da economia e do crescimento das instituições supranacionais como a Comunidade Econômica Europeia, Poulantzas insistia que o Estado nacional ainda era o lugar principal da “reprodução” do capitalismo. O próprio aumento de instituições supranacionais era simplesmente parte da transformação do papel do Estado nacional no gerenciamento da economia, facilitando a internacionalização econômica como parte de seus esforços em benefício de sua classe dominante nacional.

Mas agir como o agente principal da internacionalização colocou o Estado nacional capitalista numa posição particularmente vulnerável a crises – e com um leque limitado de respostas. A internacionalização enfraqueceu a unidade das classes dominantes domésticas, conforme o Estado agia em beneficio de certas frações do capital às expensas de outras. Isso colocou em risco a unidade ideológica da nação, apoiando o desenvolvimento econômico desequilibrado dentro do seu próprio território — como ilustrado pela nossa situação atual,  em que megacidades em expansão impulsionam a economia global, enquanto as pequenas cidades e as áreas rurais sofrem um despovoamento e declínio dolorosos. Essas contradições por certo causam tensões políticas e revolta, porque destroem o mito de que o Estado é um árbitro neutro em benefício de toda a nação. (Eles podem, por exemplo, levar as pessoas a pensar sobre “nacionalistas” versus “globalistas”.) “Num certo sentido, o Estado é pego em sua própria armadilha”, escreve Poulantzas. “Não estamos lidando com um Estado todo-poderoso, mas antes um Estado com as costas na parede e a frente posicionada diante de uma vala.

“Estatismo autoritário”, então, era um termo genérico para o tipo de governança capitalista que emergiu no período de pós-guerra e foi apenas acentuado pelas crises políticas e econômicas dos anos 1970 e o aumento da militância popular. Ele usava deliberadamente o termo como um amplo substituto para o que parecia ser a transformação do Estado capitalista: a mudança massiva do poder dos parlamentos para o executivo, o declínio dos partidos políticos tradicionais, a mudança de cada vez mais funções de Estado – de instituições representativas para aparatos burocráticos permanentes controladas pelo poder executivo. Tinha também dimensões de repressão direta: o aumento do uso da violência policial e militar contra populações domésticas, restrições arbitrárias das liberdades civis e o surgimento do governo em base emergencial que transcendia – às vezes permanentemente – o “Estado de direito” normal.

O Estado, o poder e o socialismo (State, Power, Socialism, 1978) foi a principal atualização de Poulantzas a sua teoria do Estado capitalista. Na obra, uma de suas principais tarefas foi pensar através da teoria do poder do filósofo francês Michel Foucault, e articular como o estatismo autoritário, como ele chamou mais tarde, trouxe uma mudança da “força bruta organizada para a repressão internalizada”. Ao contrário de Foucault, contudo, Poulantzas insistiu que tais técnicas disciplinadoras, embora sejam levadas por meio do Estado, são em última análise ligadas de novo à exploração econômica e poder de classe. Poulantzas já havia argumentado que separar o político do econômico, com sua decorrente criação de indivíduos legais atomizados, era parte da infraestrutura do Estado capitalista. Em O Estado, o poder e o socialismo, ele reiterou que dividir os indivíduos para a dominação econômica é o papel primordial dos Estados liberais. Eles institucionalizam continuamente essa fratura, reforçando-a ideológica e materialmente. Em outras palavras, o Estado usa suas próprias práticas para produzir o indivíduo neoliberal. Velhos marcadores de hierarquia social e relacionamentos são substituídos por normas que classificam e medem as pessoas, lembrando-os de seu status de átomos sociais individualizados.

A concepção de Estado de Poulantzas tornou-se progressivamente mais dinâmica: onde ele inicialmente enfatizava suas qualidades funcionais, tipo máquina, ele agora dramatizava suas fraturas e divisões internas, e as contingências introduzidas por sua vulnerabilidade às crises e suas estreitas ligações com a luta de classes. O Estado, na mais famosa formulação de Poulantzas, era “a condensação de um relacionamento de forças entre as classes… As contradições de classe são a própria substância do Estado: elas estão presentes em sua estrutura material e padronizam sua organização”. A insistência de Poulantzas na materialidade dos aparatos do Estado e sua reprodução do poder de classe foi um desafio direto à teorização foucaultiana do poder como um tecido abrangente da sociedade, uma espécie de jogo em que cada ato de resistência era um “movimento” estratégico. “O poder sempre tem uma base precisa”, contrapôs Poulantzas. O Estado “é um local e um centro do exercício do poder, mas não possui poder próprio”.


FONTE: Outras Palavras

[continua]