quarta-feira, 28 de abril de 2021

Notas sobre capitalismo e socialismo (1)



Por  Wladimir Pomar


A atual crise econô­mica, so­cial e po­lí­tica que o Brasil atra­vessa, em grande parte como pro­duto da crise ca­pi­ta­lista global, tende a trazer à tona, cada vez com mais força, a pos­si­bi­li­dade e a ne­ces­si­dade do país e de seu povo evo­luírem para o so­ci­a­lismo como con­dição para sair da crise e evo­luir por um ca­minho mais se­guro. É ver­dade, por outro lado, que as vi­sões das di­versas forças na­ci­o­nais de es­querda a res­peito da for­mação econô­mico-so­cial so­ci­a­lista são ex­tre­ma­mente dís­pares, em grande parte porque também são dís­pares suas in­ter­pre­ta­ções sobre o ca­pi­ta­lismo, assim como sobre o pro­cesso his­tó­rico de evo­lução da so­ci­e­dade bra­si­leira

.Co­me­çando por essa evo­lução é comum, por exemplo, a su­po­sição de que a prin­cipal ca­rac­te­rís­tica ou a prin­cipal pe­cu­li­a­ri­dade do Brasil seria a de­si­gual­dade so­cial ex­trema. No en­tanto, tal de­si­gual­dade tem sido pe­cu­liar a todos os países ca­pi­ta­listas e também aos países que não in­gres­saram nessa for­mação econô­mica e so­cial. Tal de­si­gual­dade (uma uni­ver­sa­li­dade) está se tor­nando ex­tre­mada in­clu­sive nos países ca­pi­ta­listas avan­çados, o que per­mitiu a Thomas Pi­ketty as­se­gurar e de­mons­trar que a ten­dência de au­mento dela se apro­xima dos ní­veis exis­tentes du­rante os anos 1910.

Talvez o mais apro­priado seja supor que a prin­cipal pe­cu­li­a­ri­dade do Brasil é o mo­delo es­pe­cí­fico de so­ci­e­dade ca­pi­ta­lista que re­sultou de sua evo­lução his­tó­rica. Caio Prado Jr, por exemplo, as­se­gu­rava que “na base e origem da nossa es­tru­tura e or­ga­ni­zação agrária, não en­con­tramos, tal como na Eu­ropa, uma eco­nomia cam­po­nesa, e sim a mesma grande ex­plo­ração rural que se per­pe­tuou desde o início da co­lo­ni­zação bra­si­leira até nossos dias”. Tal “ex­plo­ração rural” teria se adap­tado “ao sis­tema ca­pi­ta­lista de pro­dução”, em­bora de forma não in­tei­ra­mente com­pleta, so­bre­tudo na “subs­ti­tuição do tra­balho es­cravo pelo tra­balho ju­ri­di­ca­mente livre”.

Assim, os fa­zen­deiros ou la­ti­fun­diá­rios bra­si­leiros te­riam cons­ti­tuído, desde o início, uma bur­guesia. Tal bur­guesia bra­si­leira não teria se for­mado com a in­dus­tri­a­li­zação, no sé­culo 20, nem com a ca­fei­cul­tura flu­mi­nense e pau­lista do sé­culo 19, ou com a pe­cuária, do sé­culo 17, mas com as plan­ta­tions de cana e com os en­ge­nhos de açúcar do sé­culo 16. A co­lo­ni­zação por­tu­guesa do Brasil teria sido mo­ti­vada por in­te­resses ca­pi­ta­listas, con­for­mando uma classe do­mi­nante luso-bra­si­leira com ca­rac­te­rís­ticas bur­guesas, fa­zendo com que a acu­mu­lação ca­pi­ta­lista tenha pre­ce­dido a abo­lição da es­cra­vidão.

Ou seja, em­bora Caio Prado Jr. tenha re­co­nhe­cido que as re­la­ções de tra­balho as­sa­la­riado te­nham sido mar­gi­nais, frente às re­la­ções so­ciais pré-ca­pi­ta­listas pre­va­le­centes, isso não mo­di­ficou em nada sua su­po­sição de que o Brasil ja­mais co­nheceu uma classe do­mi­nante que não fosse bur­guesa, porque o país teria nas­cido de uma ex­plo­ração com ob­je­tivos ca­pi­ta­listas co­mer­ciais. Di­zendo de outro modo, para ele o co­mércio seria a ca­rac­te­rís­tica prin­cipal do ca­pi­ta­lismo, in­de­pen­den­te­mente de ou­tras con­si­de­ra­ções.

Con­fundiu, por­tanto, o pro­cesso mer­cantil que levou à acu­mu­lação de ca­pital, re­a­li­zado prin­ci­pal­mente pela Es­panha, Por­tugal, Ho­landa, In­gla­terra e França, entre os sé­culos 15 e 17, com o pro­cesso ca­pi­ta­lista de de­sen­vol­vi­mento ma­nu­fa­tu­reiro e in­dus­trial, com base no ca­pital acu­mu­lado e no tra­balho as­sa­la­riado, re­a­li­zado pela In­gla­terra, França, Es­tados Unidos, Ale­manha e Japão, do sé­culo 18 em di­ante. Este pro­cesso ca­pi­ta­lista ca­rac­te­rizou-se não só pela acu­mu­lação de ca­pital, na forma de pro­pri­e­dade pri­vada dos meios de pro­dução, in­cluindo di­nheiro (o que também foi comum nas for­ma­ções so­ciais es­cra­vistas e feu­dais), mas prin­ci­pal­mente pelas re­la­ções so­ciais de pro­dução entre os pro­pri­e­tá­rios dos meios de pro­dução (ca­pi­ta­listas ou bur­guesia) e os tra­ba­lha­dores li­vres (ope­ra­riado, pro­le­ta­riado), ra­di­cal­mente di­fe­rentes das re­la­ções so­ciais es­cra­vistas e feu­dais.

Nas for­ma­ções his­tó­ricas es­cra­vistas e feu­dais, a renda dos es­cra­vo­cratas e dos se­nhores feu­dais pro­vinha da renda fun­diária ge­rada pelo tra­balho dos es­cravos (des­con­tado seu custo de cap­tura e de sus­tento e o custo das fer­ra­mentas) e do tra­balho dos servos (que eram pro­pri­e­tá­rios de seus meios de pro­dução e pa­gavam a renda aos feu­dais na forma de cor­veia e de parte da pro­dução).

Nessas for­ma­ções his­tó­ricas, os tra­ba­lha­dores não eram li­vres. Os es­cravos eram con­si­de­rados ani­mais fa­lantes, de pro­pri­e­dade dos es­cra­vistas, des­ti­nados a tra­ba­lhos fí­sicos, cuja vida e/ou morte também de­pen­diam do se­nhor. Os servos per­ten­ciam à gleba, de onde não po­diam ser ex­pulsos, mas também de onde não po­diam sair. O mer­cado exis­tente no es­cra­vismo in­cluía tanto a compra e a venda de es­cravos (em geral cap­tu­rados à força), quanto a venda da­quilo que os es­cravos pro­du­ziam (prin­ci­pal­mente mi­ne­rais e pro­dutos agrí­colas). Já no feu­da­lismo, o mer­cado não in­cluía a venda de seres hu­manos.

No ca­pi­ta­lismo, os tra­ba­lha­dores são for­mal­mente li­vres para vender no mer­cado não a si, mas a sua força de tra­balho, por um tempo de­ter­mi­nado. A renda ca­pi­ta­lista, con­cei­tuada como valor, é oriunda da apro­pri­ação, pelo ca­pi­ta­lista, da par­cela do valor ge­rado pelo tra­ba­lhador as­sa­la­riado du­rante seu tempo de tra­balho no pro­cesso pro­du­tivo, mas não paga pelo ca­pi­ta­lista. Ou seja, o ope­rário re­cebe um sa­lário para tra­ba­lhar um nú­mero de­ter­mi­nado de horas, mas o sa­lário cor­res­ponde apenas a uma par­cela do tempo con­tra­tado, en­quanto o ca­pi­ta­lista se apro­pria da parte não paga, um mais-valor de­no­mi­nado por Marx de mais-valia.

As re­la­ções de pro­dução são, pois, a base para a con­cei­tu­ação do tipo de so­ci­e­dade im­pe­rante. É in­te­res­sante que a maior parte dos pen­sa­dores (his­to­ri­a­dores, eco­no­mistas etc.) aceita e re­produz tran­qui­la­mente que o Im­pério Ro­mano foi es­cra­vista e que as so­ci­e­dades que re­sul­taram da de­sa­gre­gação desse im­pério na Eu­ropa foram feu­dais. No en­tanto, quando exa­minam as so­ci­e­dades ame­ri­canas re­sul­tantes do pro­cesso mer­cantil de acu­mu­lação do ca­pital du­rante a tran­sição do feu­da­lismo para o ca­pi­ta­lismo eu­ropeu, al­guns se em­ba­ra­lham porque en­xergam no co­mércio com as me­tró­poles sua apa­rente ca­rac­te­rís­tica prin­cipal, dei­xando de lado o exame das re­la­ções de pro­dução re­al­mente exis­tentes.

No Brasil do sé­culo 16, como ad­mite o pró­prio Caio Prado Jr., a re­lação de pro­dução as­sa­la­riada era ex­tre­ma­mente mi­no­ri­tária. O je­suíta An­tonil, em seu Cul­tura e Opu­lência do Brasil, cons­tatou que tal re­lação era pri­vi­légio de um ou dois mes­tres de ofício dos en­ge­nhos em meio a uma massa enorme de tra­ba­lha­dores es­cravos. Va­lério Ar­cary ad­mite que o “Brasil agrário, até me­ados do sé­culo 20, era uma so­ci­e­dade muito de­si­gual e rí­gida”. Em tal so­ci­e­dade teria pre­va­le­cido “uma in­serção so­cial quase he­re­di­tária: os fi­lhos dos sa­pa­teiros, ou dos al­fai­ates, ou dos co­mer­ci­antes, ou dos mé­dicos, en­ge­nheiros, ad­vo­gados her­davam o ne­gócio dos pais. A grande mai­oria do povo não her­dava nada, porque eram os afro­des­cen­dentes do tra­balho es­cravo, pre­do­mi­nan­te­mente, agrário”

.Por­tanto, “era es­ta­mental porque os cri­té­rios de classe e raça se cru­zavam, for­jando um sis­tema hí­brido de classe e castas que con­ge­lava a mo­bi­li­dade. A as­censão so­cial era so­mente in­di­vi­dual e es­treita. De­pendia, es­sen­ci­al­mente, de re­la­ções de in­fluência, por­tanto, de cli­en­tela e de­pen­dência através de vín­culos pes­soais: o pis­tolão. O cri­tério de se­leção era de tipo pré-ca­pi­ta­lista: o pa­ren­tesco e a con­fi­ança pes­soal”. In­fe­liz­mente, Ar­cary não es­cla­rece as re­la­ções que su­bor­di­navam o povo afro­des­cen­dente “pre­do­mi­nan­te­mente agrário”, que cons­ti­tuiu a mai­oria da po­pu­lação bra­si­leira após o fim do es­cra­vismo, em 1888.

Di­zendo de outro modo, se muitos acham que a chave de in­ter­pre­tação do Brasil deve ser a de­si­gual­dade so­cial, e que a chave dessa de­si­gual­dade seria a es­cra­vidão, talvez também seja con­ve­ni­ente exa­minar a si­tu­ação do povo afro­des­cen­dente após o final da es­cra­vidão, “pre­do­mi­nan­te­mente agrário”, e dos des­cen­dentes afros e não afros que, da se­gunda me­tade do sé­culo 20 em di­ante, se viram às voltas com um de­sen­vol­vi­mento in­dus­trial e com uma mo­der­ni­zação agrí­cola to­tal­mente di­fe­rentes dos pe­ríodos an­te­ri­ores.

Nesse sen­tido, vale a pena exa­minar os pro­cessos his­tó­ricos de evo­lução e de re­vo­lução do Brasil e dos Es­tados Unidos que co­me­çaram sua his­tória mo­derna de forma si­milar, um como colônia de Por­tugal, na Amé­rica do Sul, e o outro como 13 colô­nias di­versas da In­gla­terra, na Amé­rica do Norte.

 

FONTE: Correio da Cidadania


sábado, 17 de abril de 2021

Ensaio sobre o socialismo

[continuação]

                                                                                                Imagem: El Lissitzky

 

Por Tarso Genro*

A social democracia atual e a originária no debate socialista.


O marxismo ortodoxo – contraposto ao próprio marxismo de Marx – permaneceu fixado na visão messiânico-proletária, na qual a categoria “proletariado” (ou operariado, ou “trabalhadores”, tratados abstratamente) tornou-se – ela mesma – um conceito: o conceito de revolução[7].As vanguardas mais esclarecidas do movimento operário sabem que continuam subordinados aos donos do seu destino (que continuam sendo os capitalistas industriais), embora no plano político da representação, nos processos eleitorais, o confronto político formador das novas identidades esteja ainda distante da sua compreensão.

As mudanças estruturais que substituíram aquele tempo passado exigem, um outro patamar de politização para inserir no processo político os novos segmentos de trabalhadores, num novo modo de fazer política que supere os limites da fábrica.[8] Por esta via, as “classes trabalhadoras tradicionais” – manuais e técnicas – que tiveram diluída a sua identidade tradicional pelo surgimento de novas tecnologias podem formar suas novas identidades.

O conjunto dos trabalhadores do “novo capitalismo” e do “velho capitalismo”, assim – no futuro da transição – provavelmente articulem de maneira diversa a questão democrática. Não é impossível, para o novo mundo do trabalho (forjado na autonomia da terceirização e da precariedade), que a ideia de sociedade futura penda mais para a utopia de “uma comunidade de indivíduos livres”; e que, para os trabalhadores ainda agrupados na velha fábrica moderna em declínio, esta sociedade do futuro se apresente como desejo de uma “comunidade livre de indivíduos associados”[9], organizados na produção e politicamente de forma distinta. É possível que esta dualidade possa ser uma das fontes de conciliação do “princípio do Estado ou o princípio do mercado”, de forma a estabilizar uma nova ordem pós-socialdemocrata e pós-socialista real, abrindo para um tempo de superação da ordem do capital.

A antiga identidade dos trabalhadores da modernidade industrial e seus interesses de classe imediatos diluem-se com a fragmentação da estrutura de classes tradicional. Para construir, antes do próprio projeto do novo socialismo, uma nova vida pública orgânica é necessária para que a maioria dos trabalhadores comecem a compartilhar novas identidades num novo modo de vida, fora da lógica do mercado capitalista. E este compartilhamento é necessariamente “transterritorial”, de “gênero”, “cultural”, “nacional” e “multilinguístico”.[10]

Estes impulsos positivos têm origem nas negatividades vividas no cotidiano da vida comum que, ao mesmo tempo em que tensionam no sentido de dissolver a liberdade numa vida sem sentido democrático (com a mercantilização alienada da vida) abre perspectivas para novas utopias. Este é o impulso inovador-conservador da ideologia neoliberal que reforça o fetiche do “renascimento” da economia liberal (que emperra o imaginário quando este se rebela por melhores condições de vida), mas também abre uma crítica radical da obsolescência programada, do consumismo irracional programado com a volatilidade dos valores do mercado.

Esta nova vida pública comum pode ser buscada nos seus exercícios concretos, como informação, lazer, produção, consumo racional e vida pública, que controlam as novas subjetividades culturais: “Para articular essa produção social geral, o capital tende a investir cada vez mais na indústria da informação. Como ‘a produção é imediatamente consumo e o consumo é imediatamente produção’ (Marx, 1974: 115), trata-se de organizar a sociedade, tanto para produzir quanto para consumir bens materiais cada vez mais distanciados das necessidades humanas básicas (comer, dormir, vestir-se). (…) O processo de produção deixou de ser apenas aquilo que se realiza dentro das fábricas. (…) Realiza-se (..) em todo lugar onde o indivíduo social é adestrado para se incorporar a uma rotina produtiva qualquer e, ao mesmo tempo, dialeticamente, é ‘construído’ para desejar usar o produto que, socialmente, ajudou a fabricar. Esta construção é, numa palavra, cultural. Razão por que, nestes tempos contemporâneos, cultura é economia”.[11]

A criação de um movimento político que contenha os germens de um novo modo de vida para uma “nova vida moral” (Gramsci) buscando as novas formas de articulação produtiva, podem ser tanto políticas de Governo como de Oposição de esquerda, a partir de um “programa mínimo” democrático e social. Neste programa, as atividades produtivas – sociais e culturais – devem contribuir para uma moralidade política na vida comum e para novas formas de produzir, tanto alimentos sadios, como os bens básicos da indústria necessários a uma vida digna.

As condições básicas para uma ofensiva de esquerda contemporânea, já estão se desenvolvendo na resistência dos diversos grupos sociais dispersos, nos novos processos de exploração do trabalho, o que é verificável com: (a) crescente legitimação das preocupações agroambientais;[12] (b) crescente legitimação da participação das comunidades pobres nos negócios públicos; (c) crescente legitimação política das características de gênero e cultura; (d) crescente (re)legitimação do Estado diante da crise de coesão social promovida pelo neoliberalismo; (e) crescente legitimação da luta pela socialização do trabalho (ou da “atividade”) para ensejar sobrevivência digna; (f) crescente superação e conformação de uma intelectualidade crítica em escala mundial.

As migrações, paralelamente à superconcentração da renda e a redução da fronteiras jurídicas e burocráticas entre os países – face à agudização da internacionalização econômica – são também aspectos de uma nova realidade mundial do novo ciclo histórico de reorganização, tanto do sistema do capital, como das relações de trabalho e convivência social.

No atual período histórico, face à implementação massiva das novas tecnologias – a informática, a robótica, a telemática os novos métodos gerencias e a redução do valor agregado pelo trabalho vivo (face à horizontalidade do processo produtivo pela terceirização, com as novas formas de cooperação entre empresas) – neste período – os focos de conflito se reordenam e aumentam a cisão entre a sociedade formal e a sociedade informal.

A necessidade de uma nova política radical, então, emerge como reformulação da utopia de um mundo fundado na igualdade, segundo a perspectiva de um realismo utópico, fundada em alguns pressupostos: combater a pobreza, absoluta ou relativa; restaurar a degradação do meio ambiente; contestar o poder arbitrário; reduzir o papel da força e da violência na vida social e a democratização da circulação de opinião, como suporte vital da democracia política.

Segue-se a necessidade de recriar a “teoria da empresa”, para permitir novas experiências empreendedoras e compor – ao lado das empresas tradicionais – novas relações produtivas na “pólis” pós-socialista “real” e pós-socialdemocrata, dentro de uma nova ordem constitucional socialdemocrata. Nesta nova ordem, os novos benefícios tributários e fiscais devem ser destinados a acolher empreendimentos de um “novo tipo”, coerentes com uma vida conscientemente orientada. Vejamos algumas ideias:

– Criação de Estatutos legais para formação cooperativas com subsídios públicos, que visem prestar serviços nas áreas de interesse público relevante, tais como nos transportes coletivos recuperação de áreas degradadas; cuidados com idosos, crianças e jovens com deficiência; apoio às iniciativas de assistência social, junto a grupos em situação de miséria; promoção de escolas de qualificação de mão-de-obra e de preparo técnico para o compartilhamento e difusão de novas tecnologias;

– Criação de Estatutos legais para formação de empresas de relevância pública, para consultoria e produção de serviços na área de proteção e recuperação ambiental, formação de mão de obra e qualificação técnica de quadros, para serviços de limpeza ambiental e manutenção dos bens do Estado;

– Impulso estatal para financiamento e aporte de “expertise” a empresas públicas “não-estatais”, sob controle das comunidades que consomem os seus serviços, com fiscalização coordenada pelo Estado; regime tributário especial e avaliação da qualidade dos seus serviços pelos destinatários, como por exemplo, nas empresas de construção de redes de coleta de esgoto, construção de estações de saneamento básico e conservação-pedagiamento das estradas;

– Impulso a empresas gestoras de aplicativos, de natureza cooperada, para projetos e produção de aplicativos destinados a promover e financiar pequenos negócios de empreendedores individuais ou cooperados, para promoção de transporte e entregas de mercadorias.

2.

A ideia contida no socialismo soviético, impulsionada por um partido profissional de quadros voltados para a organização do proletariado como classe dirigente da revolução, não tem mais condições de sustentar-se na sociedade que sucede a segunda Revolução Industrial. Os novos processos produção e a reorganização completa das relações de trabalho apontam, hoje, para um novo sentido organizativo para os partidos do socialismo e para as suas formas de organização.

Os partidos do socialismo democrático contemporâneo não serão os partido cuja espinha dorsal repouse predominantemente nas fábricas, mas que irá se estruturar naquele mundo do trabalho localizado nas classes trabalhadoras – novas e antigas – dispersas ou agrupadas, que são a vanguarda de uma nova vida produtiva, compartilhada na solidariedade e na cooperação.

O primeiro grande passo é travar a luta pela hegemonia, visando a constituição de uma cultura política que, por não estar mais centrada na exclusividade estratégica dos trabalhadores tradicionais, pode ser mais abrangente e “aberta”, para incorporar no movimento emancipatório a constelação dos novos sujeitos sociais, com as suas novas demandas coletivas e grupais.

Penso que os processos para a formação deste partido (seja reinventando os existentes ou criando outras alternativas) devem ser acompanhados por experiências imediatas de democratização e do controle social do Estado, com a construção de instituições públicas não-estatais de participação direta na gestão do Estado. Isso poderá ocorrer a partir das formas orgânicas já existentes, que estimulem nas cidades o surgimento de novos sujeitos sociais e também se acrescentem às formas atuais, novas formas de produção de mercadorias e de ofertas de serviços, novas expressões culturais, formas diretas virtuais e presenciais de participação no sistema político e nas decisões das políticas públicas. O MST, a Via Campesina, os movimentos orgânicos de solidariedade na luta contra a pandemia, os novos movimentos ambientalistas de defesa da Amazônia e da defesa das comunidades originárias, já mostram que isso é possível.

Emergirão no plano político, também as demandas oriundas das novas camadas técnicas que operam os novos processos produtivos de alta tecnologia, colocados pelas organizações ecológicas, de defesa do patrimônio imaterial, antirracistas, sociais comunitárias e de gênero, que deverão compor uma plataforma que aposte num modo de vida conscientemente orientado e em novas formas de organização da produção social. Trata-se interferir de forma imediata no sociometabolismo do sistema de produção mercantil do capitalismo, como propôs István Mészáros em Para além do Capital (Boitempo).[13]

Aqui emerge o importante papel dos produtores de alimentos saudáveis no campo e na periferia das grandes cidades, já que sem uma sustentabilidade alimentar que desvie da distribuição estruturada pelos oligopólios de circulação, nenhuma política do socialismo democrático resistirá. Sem uma forte relação política do novo e do velho mundo do trabalho, diretamente com as famílias produtoras destes alimentos, via uma circulação mercantil autodeterminada, não será gerada uma demanda continuada, que permita que os produtores se libertem da distribuição oligopolizada.

A crise do Estado socialdemocrata constituído após Weimar, depois dos “anos gloriosos” da social-democracia europeia, estimulou o surgimento de novas formas de organização pública, por meio das quais as demandas não aceitas (ou não respondidas pelos governos) se estruturaram num circuito de representação social e política mais amplo. Essa representação (“direta” ou “indireta”) transcende aos partidos democráticos e de esquerda, face ao surgimento de novas formas autônomas de poder e das novas ferramentas tecnológicas.

A nova esfera pública não-estatal que incide sobre o Estado – com ou sem o suporte da representação política tradicional – já existe. Ela é constituída por milhares de organização locais, regionais, nacionais e internacionais, que promovem sua auto-organização por interesses particulares, desde a atenção para determinadas doenças, lutas pela habitação e pela terra, até as entidades de demandas tipicamente comunitárias e de promoção de ações críticas, em termos ecoambientais, de gênero, de suporte aos fugitivos da fome e aos povos indígenas. Esta esfera coloca-se como espaço de mediação da ação política direta dos cidadãos por seus interesses, sem limitar-se ao que lhes é dado pelo direito estatal e regulado pela representação política tradicional.

As novas formas de dominação e exclusão, ora surgidas, portanto, produziram novas formas de autonomia e de “inclusão alternativa” para dentro, ao lado, ou contra o Estado. É a formação daquele novo espaço público não-dependente do Estado: uma esfera pública não-estatal, auto-organizada.

Nos governos regionais e locais, em ambientes urbanos conurbados ou nas grandes cidades podem ser forjadas as experimentações de ruptura sociometabólica da dominação capitalista universal, instituindo processos combinados de democracia representativa com formas participativas democráticas diretas, de caráter voluntário.

O tratamento da questão socialista democrática torna-se, neste contexto, o centro de uma estratégia transformadora, cuja base jurídico-política é a efetividade dos direitos fundamentais. Estes só serão efetivos com a recriação progressiva do Estado Social de Direito em novos moldes, naquilo que ele foi incapaz de mediar e que refere, especialmente, às demandas do novo mundo do trabalho, basicamente bloqueadas e submetidas à lógica das necessidades reais ou artificiais do mercado.

É preciso atentar aos movimentos de desregulamentação da sociedade, amparado nas relações de mercado, que chega aos diversos ramos do Direito e tem especial predileção por reformas desregulamentadoras, no âmbito do Direito do Trabalho. Tal movimento não é uma “invenção” da teoria neoliberal ou de políticos reacionários, mas é a resposta perversa às exigências das revoluções científico-tecnológicas em curso. Para o novo mundo do trabalho dos trabalhadores contratualizados é preciso reinventar tutelas jurídicas para a prestação de serviços, que advém, tantos das novas como das tradicionais formas de produzir, fundadas nas novas tecnologias

Estas experiências podem ser usadas para disseminar uma nova concepção de reforma democrática do Estado, a partir de uma nova relação Estado-sociedade, que abra o Estado para organizações voluntárias de base (e à participação do cidadão isolado, face às novas tecnologias e as comunicações em rede) particularmente aquelas que são auto-organizadas pelos cidadãos sem voz perante o Estado. O novo partido do socialismo, com centro político visível, com um “grupo dirigente” estável, deverá operar sua política diretamente nestas relações horizontais, ora virtuais ora reais, da atual sociedade de classes.

Tal processo tende a romper as fronteiras burocráticas, nos âmbitos locais e regionais, que separam o Estado do cidadão comum, produzindo resultados concretos na qualidade de vida dos “sem voz”. A parte da representação popular, que integra a representação política tradicional de esquerda deverá exercer influência no processo de construção dos consensos, pautados de “baixo para cima”, recriando – inclusive no exercício da política liberal representativa – ações contestatórias à manipulação liberal-representativa.

Estes movimentos, conscientemente orientados por decisões políticas, indicam, assim, uma co-gestão pública – estatal e não-estatal – por meio da qual a legitimidade da representação tradicional é permanentemente regenerada pela democratização das decisões de forma direta. Essas decisões são “devolvidas” à comunidade, em forma de políticas e ações governamentais, que confiam identidade aos participantes do processo e se ampliem na sociedade, alterando o cotidiano da “pólis” e interferindo na compreensão política das massas.

A incidência sobre a vida econômica nos espaços territoriais urbanos, a produção de políticas de educação, segurança e assistência social, bem como a realização de obras prioritárias de interesse popular evidente, constituem fins alcançáveis, para serem geridos por esse novo modo de decidir. São esses fins que, além de entranhar-se mais diretamente na disputa pelos interesses das classes na “pólis”, permitem uma relação mais criativa e direta com a “grande política”, para promover experiências regionais e nacionais de gestão, de caráter democrático radical.

O trânsito da experiência particular-concreta dos governos locais para os níveis superiores de gestão do Estado, todavia, só poderá ocorrer com sucesso se a esquerda for capaz – além de conquistar a confiança da maioria por meio de governos capazes e bem sucedidos – ser portadora de uma nova vida moral, de uma nova dimensão ético-política no contexto de uma nova “práxis” socialdemocrata para recuperar o sentido libertador do socialismo. E é precisamente deste ponto que emerge a importância dos novos partidos do socialismo, na era que ainda não é pós-industrial, mas já é de transição para um futuro que pode ser determinado pela combinação da participação direta dos cidadãos com a democracia de representação.

A força política dos coletivos dos novos movimentos sociais e de organização dos trabalhadores, partidários ou não partidários – cujos integrantes põem a sua vida a serviço da emancipação e da liberdade – é o que pode abrir um caminho de esquerda plural, na “longa marcha das lutas do socialismo possível para o reino da liberdade.


*Tarso Genro foi governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil. Autor, entre outros livros, de Esquerda em processo (Vozes).

[O presente texto é uma fusão renovada, corrigida e atualizada, a partir de muitos textos do autor, presentes principalmente em “Vanguarda de uma Nova Cidadania” e “21 Teses para a Criação de uma Política Democrática e Socialista”. (Embora não haja menção formal, este texto tem influência das elaborações de Juarez Guimarães e Ladislau Dowbor, sobre a questão republicana e a economia, respectivamente).]

 

Notas

[7] Santos, Milton. Técnica, Espaço, Tempo – Globalização e Meio Técnico-Científico Informacional, Ed. Hucitec, 2ª ed., SP, 1966, p. 172.

[8] Os estudos que constam no livro O Mundo Depois da Queda, organizado por Emir Sader (Ed. Paz e Terra) são indispensáveis para a crítica do socialismo real e para pensar em um novo projeto socialista.

[9] Bobbio, Norberto. Igualdade e Liberdade, Ediouro, RJ, 1996, p. 72.

[10] Canclini, Nestor Garcia. Consumidores e Cidadãos – Conflitos Multiculturais da Globalização, Ed. da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1996, p. 35.

[11] Dantas, Marcos. A Lógica do Capital-Informação, Ed. Contraponto, RJ, 1996, p. 31.

[12] Veiga, José Eli da. “A Transição Agroambiental nos Estados Unidos”, em Reconstruindo a Agricultura, Jaicione Almeida e Zander Navarro (orgs.), Ed. da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1997, p. 129.

[13] Mészáros, István. Para além do Capital Rumo a uma teoria da transição, Tradutor: Castanheira, Paulo Cezar/ Lessa, Carlos, Ed. Boitempo, São Paulo, 2002, p. 17.

 

FONTE:  A Terra é Redonda

 

sexta-feira, 9 de abril de 2021

Ensaio sobre o socialismo


                                                                                             Imagem: El Lissitzky


Por Tarso Genro*

A social democracia atual e a originária no debate socialista.

1.

Nos idos de 1989 num debate promovido pela Fundação Perseu Abramo entre figuras do pensamento crítico de esquerda,[1] fiz algumas afirmativas em diálogo com o grande Carlos Nelson Coutinho, que lembro neste texto-resumo: “Uma das linhas mais importantes de reflexão, no Brasil, sobre as relações entre a democracia e socialismo – com inspiração sobretudo nas teses do PCI e na experiência do austromarxismo – vem sendo desenvolvida por Carlos Nelson Coutinho (…)”. Naqueles “idos de 89” já se debatia a inclusão, no debate socialista mundial, de ecologia, sexualidade, cultura urbana, crítica do irracionalismo, solidão coletiva e democracia política. As liberdades políticas, o pluralismo ideológico, as garantias dos direitos individuais na remodelação doutrinaria do socialismo se aceleravam (através de um debate heterodoxo e revisionista), tanto sobre as questões da socialdemocracia como a respeito do socialismo real.

O modelo capitalista de desenvolvimento industrial persistia, mas, ao lado dele (e “por dentro dele”) outro mais dinâmico se expressava, através de novas formas de exploração e novos padrões de acumulação, que não só diminuíam o trabalho direto na indústria, mas também desenvolviam formas alternativas de organização geral do trabalho e formas mais dinâmicas de controle do processo produtivo.

O surgimento de novas “classes” trabalhadoras e das novas formas de aquisição pelo capital – da força de trabalho e das novas tecnologias – impulsionavam uma tendência oposta ao previsto pelo Manifesto Comunista. Não mais ocorria uma crescente simplificação dos entes da sociedade de classes e o proletariado deixava de se concentrar em grandes fábricas, dispersando-se, tanto vertical como horizontalmente.

Era o momento histórico em que o apoio “a não limitação da riqueza dos ricos”[2] começava a ser aceito como moralidade “sadia” na tragédia da vida real: o imediato e o futuro, assim, se fundiam na vida cotidiana, de forma muito mais rápida e menos evanescente. O cinismo burguês começava uma nova etapa de controle das mentes escravizadas, ensinando que qualquer “transição” a ser experimentada seria dentro do sistema capital, logo, a partir da disseminação das políticas compensatórias e do estímulo ao empreendedorismo no individual. A criação de novas formas para produzir, viver em comunhão, lutar contra a desigualdade e a pobreza, germinando o futuro nas frestas da dominação sociometabólica do capital, tornava-se mais difícil.

A discussão sobre temas como estes, no interior da esquerda nunca foi fácil. Já Ernst Bloch entendia que os dois grandes desvios da filosofia de Marx, depois de sua morte, foram o “desvio socialdemocrata” e o “desvio stalinista”. Bloch defendera que “o marxismo corria menos riscos por parte dos seus inimigos declarados do que por parte das ações dos seus amigos” (…), o que – segundo muitos dos seus discípulos – foi uma constatação lúcida “confirmada por muitos acontecimentos no âmbito Soviético, após o final da Segunda Guerra Mundial”.[3]

O capitalismo mudou muito e para pior, a partir dos anos 1970. Hoje podemos afirmar que a diluição socialdemocrata de esquerda – que esteve no centro do debate – facilitou “o produto final do neoliberalismo (que) não é o renascimento da economia liberal, (mas) o incremento do privatismo sem redução do oligopolismo”.[4] A saída pedida pelo “Consenso de Washington”, através do rentismo, não poderia mais se apoiar em sujeitos sociais capazes de negociar um pacto de inclusão, no mesmo patamar socialdemocrata inspirado em Weimar.

Para dissimular as suas estratégias autoritárias, os quadros do liberalismo radical moldaram uma ideologia do “caminho único”, por dentro da democracia liberal, embora Hayek já dissesse que preferia a ditadura com liberalismo econômico, à democracia foi economia liberal. A dissimulação neoliberal em relação à democracia foi amparada numa estratégia de “foco”, em políticas compensatórias destinadas aos descartáveis do sistema. Sua função seria recuperar uma parte da vida comum solidária, que fora ajustada por acordo, no mercado dos “valores” históricos do humanismo burguês.

Os movimentos sociais de defesa de direitos, todavia, passaram a ser entendidos como uma espécie de “subversão” do empreendedorismo mercantil, pois, do seu ângulo, as demandas por direitos bloqueariam a “evolução” das novas necessidades do mercado. É o contexto que se desdobra, depois, na tese da infiltração do “marxismo cultural”, que coordenaria a ação política da direita mais primitiva, para propagar que qualquer tentativa de reorganização de um pacto socialdemocrata seria uma nova ameaça comunista.

Para entender o que ocorre hoje sustento que devemos revisar às raízes do debate socialdemocrata que precedeu a Revolução Russa, revisitando a ruptura que redundou nos dois projetos de esquerda, no mundo do pós-guerra: a socialdemocracia, como reforma do sistema capitalista (Bernstein, Kautsky) e o Estado Soviético (Lenin, Tróstky, Stalin) como experiência de um novo Estado, ora como pretensão da democracia direta proletária, ora como Capitalismo de Estado, sob o alegado controle do ”partido do proletariado”.

Penso que o debate renovador da esquerda e a retomada da ideia socialista será possível se concebermos a passagem do tempo histórico em condições diferentes, opostas àqueles tempos de rupturas bruscas, tornando-as irrepetíveis. A disseminação das alternativas hoje se dão fora de um tempo de mudanças ascendentes, que eram impulsionadas pelas crises sucessivas do capital. Estas crises, hoje, são mais superadas pela evolução revolucionária nas técnicas produtivas, que ensejam novas formas de controle ideológico que bloqueiam reformas substanciais. Antes, o tempo permitia confrontar, no próprio movimento e na ação política, o campo “social-democrata” e o campo “bolchevique”, como duas possibilidades distintas: hoje, tanto a reforma como a revolução podem ser impulsionadas pelo mesmo tipo de impasses radicais na estrutura da ordem: nenhuma reforma social séria, que abra tendências para mais igualdade social será obtida com luvas de pelica por dentro de ordem.

Entendo que as ideias reformistas ou revolucionárias, socialistas e socialdemocratas, que ocorreram no século passado, então, não podem ser mais avaliadas a partir das bases materiais e sociais que lhe deram pertinência: no tempo atual as alternativas coexistem de forma paralela (mais convergentes do que divergentes) e concentram (no mesmo movimento)as alternativas da revolução e da reforma, diferentemente do que ocorria no século passado.

O desenvolvimento atual das forças produtivas unifica revolução e reforma, em cada confronto concreto e em cada alternativa política aos sistemas políticos do capital. O imposto expropriatório do excedente nas grandes fortunas, por exemplo, encerra as possibilidades tanto de um reformismo forte, como de uma transformação social radical. É por dentro deste tempo – portanto – que podem caminhar os debates e as lutas emancipatórias, por uma nova ideia socialista, a partir de cuja ideia se possa diferenciar, tanto as justas, como as injustas críticas à alternativa socialdemocrata concreta, atual, como forma capitalista contraposta ao Estado real que resultou da Revolução Russa de 1917.

É no âmbito nos grandes centros urbanos, que se colocam os elementos mais típicos do novo poder financeiro (monopolista-midiático) cujos efeitos explodem de maneira mais universal. É onde a crise se torna mais ameaçadora e, ao mesmo tempo, mais estimulante, do ponto de vista estratégico, para que se possa pensar e já começar a realizar – de forma celular – o novo projeto emancipatório. Aceitar esta hipótese de debate implica em reavaliar alguns conceitos clássicos da “democracia”, “socialdemocracia” e “socialismo”, retidos na discussão histórica da esquerda, para melhor caracterizá-los no tempo dos movimentos globais do dinheiro.

É nas cidades, junto à classe operária tradicional, que se formaram as novas “classes trabalhadoras” compostas por grupos dispersos, articulados em redes de serviços, trabalhando isoladamente ou em pequenos grupos. Ali surgem milhões de trabalhadores, “meio-jornadistas” intermitentes, precários ou autonomizados, em função da própria natureza da demanda. Eles se originam dos novos processos e instrumentos da produção que geram, ainda, a massa de prestadores “autônomos” da “sociedade digital-informática”, sem perspectivas autênticas de vida e mobilizados para prestações intermitentes.

Os prestadores autônomos da produção do lazer e cultura, prestadores de serviços para idosos, crianças e deficientes; assalariados e autônomos da informática, operários cooperativados, entregadores de mercadorias, empregados em serviços terceirizados; os trabalhadores em Ongs, em pesquisa e publicidade, bem como um novo “exército de reserva” de milhares de jovens (portadores de uma nova cultura de trabalho ou atividade) – todos estes – estão no centro de um novo modo de vida: com novas linguagens, nova estética, outra ética, que não a criada na civilização industrial que gerou a “árvore socialdemocrata”, fundada em novas formas de viver e compreender a “polis”.

A vida baseada em mais salários e mais seguridade não mais poderá tornar-se garantia ampla no capitalismo atual, bem como a própria existência do emprego, na forma jurídica clássica não será mais garantia para a sobrevivência comum. Essa dissolução dos modos tradicionais da vida industrial e das suas formas políticas obstam as saídas coletivas que seriam razoáveis dentro do capitalismo tradicional, como as que os trabalhadores da indústria experimentaram – até ontem – no contrato socialdemocrata tradicional.

Os trabalhadores “de carteira” do mundo do trabalho clássico tornaram-se portadores de uma subjetividade coletiva em crise e a crise de impotência do seu sindicalismo abre, então, um enorme vazio de estratégias e de formulação política. Sua experiência cotidiana não consegue mais abranger a múltipla diversidade do novo mundo do trabalho, que, ao mesmo tempo em que suprime, invade e fraciona a forma e o conteúdo da “velha” fábrica moderna. A própria estética da política proletária amarga o seu fim.

Reporto-me ao formulado como memória e teoria, por Boaventura de Souza Santos: “A social-democracia e os direitos econômicos e sociais significaram momentos de trégua nos conflitos mais agudos entre os dois princípios (do Estado e do Mercado). Esses conflitos não eram resultado de meras oposições teóricas, mas, resultavam das lutas sociais das classes trabalhadoras, que buscavam no Estado o refúgio contra as desigualdades e os despotismos gerados pelo princípio de mercado”.[5]

A classe operária tradicional, cerne das velhas lutas, vive então perante um futuro ainda mais incerto num presente de “amos” invisíveis, com suas novas formas de dominação e de controle da opinião, “(n)um mundo cujas profundíssimas e aceleradas transformações começaram a deixar para trás a velha estrutura de classes, sem que, (….) saibamos muito bem (…) quem são os novos dominadores e quem são os novos dominados”.[6]


 *Tarso Genro foi governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil. Autor, entre outros livros, de Esquerda em processo (Vozes).

Notas

[1] Apolônio de Carvalho, Carlos Nelson Coutinho, Fábio Konder Comparato, Flávio Koutzii, Francisco Correia Weffort, Geraldo Cavagnari Filho, Jacob Gorender, José Arthur Gianotti, José Dirceu, José Genoino, Luiz Inácio Lula da Silva, Márcio Thomaz Bastos, René Dreifuss, Tarso Genro, Wanderlei Guilherme dos Santos e Wladimir Pomar.

[2] Dahrendorf, Ralf. O Conflito Social Moderno – Um Ensaio Sobre a Política da Liberdade, Jorge Zahar Editor, Edusp, SP, 1992, p. 30;

[3] Bloch, Ernst, “Marx, Aufrechter Gang, Konkrete Utopie”, in: Über Karl Marx, Frankfurt, 1968, p.165-166, “in” Munster, Arno, Ernst Bloch: Filosofia da Práxis e Utopia Concreta, Ed. Unesp, 1993, p. 91

[4] Lago, Benjamim Marcos. Dinâmica Social – Como as Sociedades Se Transformam, Ed. Vozes, Petrópolis, 1995, p. 235.

[5] Santos, Boaventura de Souza Santos, “esquerdas do mundo, uni-vos!”, Boitempo, São Paulo, 2018, p. 27.

[6] Morales, Angel Garrorena. Representación Politica y Constitución Democrática, Editorial Civitas, Madri, 1991, p.108.

[Continua]

FONTE:  A Terra é Redonda




domingo, 4 de abril de 2021

Marxistas somos todos nós

 

Por Atilio Bóron *

 



Os trogloditas da direita argentina quiseram desqualificar Axel Kicillof acusando-o de “marxista”. Este ataque revela o nível cultural primário dos seus críticos, ignaros quanto à história das ideias e teorias científicas elaboradas ao longo dos séculos. É óbvio que na sua inépcia desconhecem que Karl Marx produziu uma revolução teórica de enorme alcance na história e nas ciências sociais, equivalente, segundo muitos especialistas, ao que no seu tempo produziu Copérnico no campo da Astronomia. Por isso hoje, quer o saibamos ou não (e muitos não o sabem) somos todos copernicianos e marxistas, e quem quer que negue essa verdade revela-se como um grosseiro sobrevivente de séculos passados alheado das categorias intelectuais que lhe permitem entender o mundo de hoje.

Copérnico argumentou na sua grande obra, A Revolução das Esferas Celestes, que era o Sol e não a Terra quem ocupava o centro do universo. E, além disso, ao contrário do que sustentava a Astronomia de Ptolomeu, ele descobriu que nosso planeta não era um centro imóvel em torno do qual giravam todos os outros, mas ela mesma se movia e girava. Lembre-se das palavras de Galileu quando os médicos da Inquisição o obrigaram a retratar-se da sua adesão à teoria de Copérnico: “E no entanto ela move-se”, sussurrou para os seus censores que ainda estavam enfurecidos com Copérnico mais de um século depois da formulação da sua teoria.

Descoberta revolucionária, mas não apenas no campo da Astronomia, pois punha em questão crenças políticas cruciais de sua época. Como recorda Bertolt Brecht na sua magnifica peça Galileu, a dignidade e a sacralidade dos tronos e poderes foram irremediavelmente prejudicados pela teorização do astrónomo polaco. Se, na teoria geocêntrica de Ptolomeu, o papa, reis e imperadores eram excelsas figuras que estavam no topo de uma hierarquia social num planeta que não era nada menos que o centro do universo, com a revolução coperniciana eles foram reduzidos à condição de frágeis reizinhos de um pequeno planeta, que como tantos outros, girava em torno do sol.

Quatro séculos depois de Copérnico, Marx produziu una revolução teórica de envergadura semelhante ao deitar por terra as concepções dominantes sobre a sociedade e os processos históricos. A sua genial descoberta pode resumir-se assim: a forma como as sociedades resolvem as suas necessidades fundamentais – alimentar-se, vestir-se, abrigar-se, proteger-se, promover o bem-estar, possibilitar o crescimento espiritual da população e garantir a reprodução da espécie – constituem a indispensável sustentação de toda a vida social.

Sobre este conjunto de condições materiais cada sociedade constrói um imenso entrelaçado de agentes e estruturas sociais, instituições políticas, crenças morais e religiosas e tradições culturais que vão variando à medida em que o substrato material que as sustem se vai modificando.

Da sua análise, Marx extraiu duas grandes conclusões: primeiro, que o significado profundo do processo histórico assenta na sucessão das maneiras pelas quais homens e mulheres enfrentaram esses desafios ao longo de milhares de anos. Segundo, que essas formações sociais são inerentemente históricas e transitórias: elas surgem sob certas condições, expandem-se, consolidam-se, atingem o seu pico e então começam um declínio irreversível. Portanto, nenhuma formação social pode aspirar à eternidade e muito menos o capitalismo, dada a densidade e a velocidade com que as contradições que lhe são próprias se desenvolvem. Más notícias para Francis Fukuyama e seus discípulos que no final do século passado anunciaram ao mundo o fim da história, o triunfo dos mercados livres, da globalização neoliberal e da vitória final da democracia liberal.

Tal como acontecera com Copérnico na Astronomia, a revolução teórica de Marx deitou por terra o conhecimento convencional que prevalecera durante séculos. Este conhecimento concebia a história como um desfile caleidoscópico de personalidades notáveis (reis, príncipes, papas, presidentes, chefes de Estado, líderes políticos, etc) pontuado por grandes eventos (batalhas, guerras, inovações científicas, descobertas geográficas).

Marx pôs de parte todas essas aparências e descobriu que o fio condutor que permitia decifrar o hieróglifo do processo histórico foram as mudanças que ocorreram no modo como homens e mulheres se alimentavam, vestiam, abrigavam e davam continuidade à sua espécie, tudo o que sintetizou sob o conceito de “modo de produção”. Essas mudanças, nas condições materiais da vida social, deram origem a novas estruturas sociais, instituições políticas, valores, crenças, tradições culturais, enquanto decretavam a obsolescência das precedentes, embora não houvesse nada de mecânico ou linear nesse condicionamento “em última instância” do substrato material da vida social.

Com isto Marx desencadeou na história e nas ciências sociais uma revolução teórica tão retumbante e transcendente quanto a de Copérnico e, quase simultaneamente, como a que fluiu das revelações sensacionais de Charles Darwin. E assim como hoje se tornaria objecto de riso mundial quem reivindicasse a concepção geocêntrica de Ptolomeu, não teriam melhor sorte aqueles que acusassem alguém de “marxista”. Porque isso nega o papel fundamental que a vida económica desempenha na sociedade e também os processos históricos (dos quais Marx foi o primeiro a colocar no centro da cena).

Quem profere tal “insulto” confessa, para sua vergonha, a sua ignorância dos últimos dois séculos no desenvolvimento do pensamento social. Personagens grotescos como esses não apenas se tornam pré-copernicianos, mas também pré-darwinianos, pré-newtonianos e pré-freudianos. Eles representam, em suma, uma fuga para a parte mais obscura do pensamento medieval.

Bem, mas acima foi dito é que “somos todos marxistas”? Acho que sim, e pelas seguintes razões: se algo caracteriza o pensamento e a ideologia da sociedade capitalista, é a tendência para a comercialização total da vida social. Tudo em que o capital toca se torna mercadoria ou um facto económico: das crenças religiosas a antigos direitos, consagrados em tradições multisseculares; da saúde à educação; da segurança social às prisões, ao entretenimento e informação.

Sob o domínio do capitalismo, as nações degradam-se à categoria de mercados e o bem-estar ou mal social são medidos exclusivamente pelos números da economia, pelo PIB, pelo défice das contas públicas ou pela capacidade exportadora.

Se alguma impressão deixou o capitalismo na sua passagem pela história – transitória, porque como sistema está destinado a desaparecer, como aconteceu sem excepção com todas as formas económicas que o precederam – tem sido tornar a economia o parâmetro supremo para distinguir a boa e a má sociedade.

A ordem do capital erigiu o mercado como seu deus e as únicas ofertas que este moderno Moloch admite são as mercadorias e os lucros que a sua troca produz. A ênfase subtil e cautelosa que Marx deu às condições materiais – sempre mediada por componentes não económicos, como cultura, política, ideologia – atinge no pensamento burguês extremos de vulgaridade que confinam o obsceno.

Escutemos aquilo com que Bill Clinton confrontou George Bush na campanha presidencial de 1992: “É a economia, idiota!”. E é suficiente ler os relatórios de governos, académicos e organizações internacionais para verificar se o que distingue o bem do mal de uma sociedade capitalista é o progresso da economia. Quer saber como é um país? Veja como os seus títulos do Tesouro são negociados na Wall Street ou qual é o índice de “risco” do seu país. Ou ouçam o que os governantes da direita lhe dizem mil vezes para justificar o holocausto social a que submetem o povo através dos ajustes no orçamento, afirmando que “os números governam o mundo”.

Personagens como esses compõem uma classe especial e aberrante de “marxistas” porque reduziram a descoberta radical de seu fundador e toda a complexidade do seu aparelho teórico a um economicismo grosseiro. O “materialismo economicista” é uma versão abortada, incompleta e distorcida do marxismo, mas é muito conveniente para as necessidades da burguesia e de uma sociedade que só conhece preços e nada de valores. Um marxismo deformado e abortado porque a burguesia e seus representantes só se apropriaram de parte do argumento marxista: o que destacava a importância decisiva dos factores económicos na estruturação da vida social.

Por instinto certeiro puseram de lado a outra metade: a que estabelecia a dialéctica das contradições sociais – o incessante conflito entre as forças produtivas e as relações de produção e a resultante luta de classes – que conduziriam inexoravelmente à abolição do capitalismo e à construção de um tipo histórico de sociedade pós-capitalista. Que isso não esteja iminente não significa que não vá acontecer. Por outras palavras: o “marxismo” de que as classes dominantes no capitalismo se apropriaram através dos seus intelectuais orgânicos foi reduzido a um materialismo economicista grosseiro.

Por isso hoje somos todos marxistas. Os marxistas mais aberrantes, de “cozedura incompleta”, exaltam até ao paroxismo a importância dos acontecimentos económicos e ocultam conscientemente que as dinâmicas sociais levarão, mais cedo ou mais tarde, a uma transformação revolucionária da sociedade actual. Esse economicismo é o grau zero do marxismo, seu ponto de partida, mas não o ponto de chegada. É um marxismo truncado no seu desenvolvimento teórico; Ele contém os germes do materialismo histórico, mas estagna nas suas primeiras hipóteses e ignora – ou esconde conscientemente – o resultado revolucionário e a proposta de construir uma sociedade mais justa, livre e democrática.

Mas temos outros marxistas para quem a revolução teórica de Marx não só corrobora a transitoriedade da sociedade actual como também sugere os caminhos prováveis da sua superação histórica, seja por diferentes meios revolucionários ou pela dinâmica imparável de um processo de reforma radicalizado.

Contra os marxistas inacabados, da “cozedura incompleta”, apologistas da sociedade burguesa, defendemos a tese de que o modo de produção capitalista será substituído, por meio de intensos conflitos sociais (porque nenhuma classe dominante abdica do seu poder económico e político sem lutar até ao fim) para finalmente dar à luz uma sociedade pós-capitalista e, como disse Marx, pôr fim à pré-história da humanidade. Porém, para além dessas diferenças, somos todos filhos do marxismo no mundo de hoje. Não poderíamos deixar de ser marxistas, assim como não poderíamos deixar de ser copernicianos.

O capitalismo contemporâneo é muito mais “marxista” do que quando, há quase dois séculos, Marx e Engels escreveram o Manifesto do Partido Comunista. A diatribe contra Axel Kicillof é um desabafo que pinta o brutal anacronismo de vastos sectores da direita argentina e latino-americana e dos seus representantes políticos e intelectuais, que no seu escandaloso atraso receiam os avanços produzidos pelos grandes revolucionários do pensamento contemporâneo. Eles desconfiam de Darwin e Freud e acreditam que o marxismo é o delírio de um judeu alemão.

Mas, como Marx disse com astúcia, alguns são marxistas como Monsieur Jourdain, aquela curiosa personagem de O Burguês Gentil-Homem de Molière que falava em prosa sem o saber. Eles balbuciam um marxismo desenfreado, transformado num economicismo grosseiro e sem a menor consciência da origem dessas ideias na obra de um dos maiores cientistas do século XIX. Outros, por seu lado, sabem que o marxismo é a teoria que nos ensina como o capitalismo funciona e que, portanto, fornece os instrumentos que nos permitirão deixar para trás este sistema desumano, predatório e destrutivo da natureza e das sociedades, que se alimenta de inúmeras e intermináveis guerras que ameaçam acabar com toda a vida deste planeta.

Portanto, longe de ser um insulto, ser um marxista no mundo de hoje, no capitalismo de nosso tempo, é um timbre de honra, constituindo uma nódoa indelével naqueles que o expressam como um insulto.




* ATÍLIO BÓRON é Doutor em Filosofia pela Universidade de Harvard. Foi Professor de Ciências Políticas no Instituto Latino-Americano de Ciências Sociais e na Universidade de Buenos Aires. Foi secretário-geral do CLACSO. Artigo publicado originalmente em

http://www.resumenlatinoamericano.org/2019/07/21/pensamiento-critico-argentina-marxistas-somos-todos/

 

FONTE: Revista Espaço Acadêmico