sábado, 29 de fevereiro de 2020

As ideias perigosas que eles temem



Combate ao marxismo não é delírio, mas medo real de insurgência popular contra tirania. Capitalismo gerou seus coveiros — e, por isso, comunismo é perigoso. História ensina que mesmo fracassos podem ser combustível para novas revoluções


Por Gustavo Barbosa




O combate à ameaça comunista faz parte não apenas do universo bolsonarista, mas de todo projeto reacionário que precisa de um álibi para colocar suas cartas na mesa. Não é à toa que as encruzilhadas históricas onde a luta de classes se acirra são marcadas pelo fato de qualquer espirro de reformismo ou de social-democracia se tornar um potencial berçário de bolchevismos. É esta a maneira com que hoje se expressa um obscurantismo que bebe de referências medievais e ressuscita expressões como “Deus vult” (“Deus quer”, do latim), originária das primeiras Cruzadas do início do último milênio.

Algumas das afiliações do fenômeno bolsonarista, em regra inspiradas por Olavo de Carvalho, costumam falar em conspirações comunistas globais que envolvem desde a ONU ao Greenpeace, passando pelo bilionário George Soros, ONGs e Foro de São Paulo. Seus conceitos de comunismo são bem elásticos, como se pode perceber.

Mas nem tudo é delírio. Ainda que seja improvável a existência de conspiradores marxistas reunidos secretamente em alcovas para definir os rumos do que a malta olavista chama de globalismo, Bolsonaro está mais do que certo em temer a ameaça comunista por uma simples razão: ela, de fato, existe.

Primeiro: ela se faz presente porque precisa estar presente. Principalmente para quem luta pela superação do capitalismo persistir engajado em seus propósitos. A renúncia a este horizonte significa o abraço à utopia de que é possível humanizar o capital, esta sim delirante. Teríamos chegado ao malfadado Fim da História, concepção na qual nem o seu criador, o sociólogo liberal Francis Fukuyama, acredita mais.

Segundo: enquanto existir capitalismo existirá o fantasma do comunismo. Longe de se apresentar como um processo paralelo ao desenvolvimento histórico da economia de mercado, o socialismo científico, inaugurado por Marx e Engels, corresponde a formas que, nascidas das próprias entranhas do capitalismo, as rasgam no alvorecer de um novo mundo. Tudo é transitório e carrega em si o seu contrário, ensina a dialética do filósofo grego Heráclito, que inspirou as pesquisas de Hegel as quais, por sua vez, serviram de base para o materialismo histórico e dialético de Marx. Liquidar de vez e para sempre com os postulados das soluções definitivas e das verdades eternas é dever de todo materialista, ensinam ele e Engels em A Ideologia Alemã. É este tipo de verdade, vista como lei universal da vida econômica e social, que boceja quando se depara com obscenidades como o fato de pouco mais de dois mil bilionários serem mais ricos que as 4,6 bilhões de pessoas mais pobres do planeta, segundo o mais recente relatório da Oxfam. Como, frente a isso, não reconhecer que o comunismo continua sendo uma ameaça, pouco importa se distante ou próxima?

Mas e a União Soviética? Seu fim não seria o recibo de algo que não deu certo? Por que insistir mesmo depois da derrota do modelo de sociedade que representou durante mais de setenta anos, mas que veio a sucumbir diante do triunfo da ordem capitalista?

Por mais que a experiência do socialismo soviético ou do chamado socialismo real tenha padecido num fim melancólico, é importante que tenhamos a compreensão histórica do que é fracassar. É o que propõe Alan Badiou no livro A hipótese comunista quando sugere que olhemos com cuidado para a conclusão de que todas as experiências socialistas, sob o signo desta hipótese, fracassaram.

Esse fracasso seria radical, exigindo o abandono da própria ideia do comunismo? Ou é apenas relativo à via com que foi estabelecida, não sendo a forma mais apropriada para resolver o problema inicial? Sem falar na social-democracia e em seus direitos sociais, hoje tidos por muitos como socialismo embora sejam concessões consolidadas no contexto da Guerra Fria e oriundas do temor de que a classe trabalhadora aderisse à empreitada soviética.

Badiou defende que o fracasso, desde que não provoque o abandono da hipótese, é apenas um trecho indesviável do percurso de sua justificação. Por quantos perrengues históricos o capitalismo e suas representações políticas tiveram que passar desde o florescimento da burguesia, nos séculos XV e XVI, e no transcorrer dos séculos XIX e XX, onde assumiram formas monárquicas, absolutistas, despóticas, republicanas, parlamentares, fascistas, colonialistas e autoritárias até chegarem muito recentemente à sua atual condição: global, hegemônica e qualificada muito corretamente por Badiou como plutocrata e capital-parlamentarista a serviço dos bancos?

No prefácio do livro Chamamento ao povo brasileiro, que reúne textos de Carlos Marighella, Vladimir Safatle retoma a discussão sobre os perigos das conclusões açodadas. Rebatendo as opiniões de que a luta armada contra a ditadura militar brasileira teria sido um erro que descambou inevitavelmente em sua derrota, Safatle afirma ser impensável e imoral descrever dessa forma o exercício legítimo e soberano do direito natural à resistência contra a tirania. Mais: questiona em que posição de onisciência histórica se colocam os que tiram essa conclusão.

Não se pode esquecer que processos históricos são considerados um fracasso até que sejam reivindicados no interior de outras dinâmicas. Nessa esteira, Safatle traz os exemplos da Comuna de Paris, fracassada até reencarnar na vitoriosa Revolução Russa (também impensável sem o fracasso da insurreição de 1905, chamada por Lênin de “ensaio geral”), e da República Romana, superada até ser reeditada na Revolução Francesa. Adicione-se a Revolução Cubana, que não seria possível sem o retumbante fracasso do assalto ao Quartel Moncada seis anos antes, evento a partir do qual o advogado Fidel Castro despontou como liderança revolucionária que colocaria o ditador Fulgêncio Batista para correr em 1959.

Se atualmente vemos um protofascismo que se levanta contra “ameaças comunistas”, finaliza Safatle, é porque tais ameaças não são frutos de um delírio paranoico; elas existem, mas estão no futuro, de modo que o poder atual se dedica a sufocar comunistas antes mesmo de se descobrirem como tal. Quem dera se a esquerda compreendesse as amplitudes de seu horizonte histórico tão bem quanto seus adversários da vez.

O exemplo da Comuna de Paris, em 1871, é a síntese do que pode ser esse horizonte. Uma crônica de autoria incerta da época relata que “pela primeira vez ouvem-se operários trocando opiniões sobre problemas que até agora apenas os filósofos haviam abordado”. A burguesia, relata o cronista, se indaga: “se essa gente fosse livre, o que seria de nós? O que seria deles?”. É em função do capitalismo gerar seus próprios coveiros na figura do proletariado que sua existência está irremediavelmente condenada aos assombros periódicos e regulares da ameaça comunista, encarnando e reencarnando nos becos sem saída de suas crises cíclicas.

Alexis de Tocqueville, ilustre testemunha da Revolução de 1848 na França, toma nota em suas Lembranças: “O espírito da insurreição, com efeito, circulava de uma ponta a outra dessa vasta classe e em cada uma de suas partes, como o sangue de um único corpo; enchia tanto os bairros onde não se combatia com os que serviam de teatro ao combate e penetrava em nossas casas, ao redor, acima e abaixo de nós. Os próprios lugares de que acreditávamos ser os donos formigavam de inimigos domésticos; era como uma atmosfera de guerra civil que envolvia toda Paris e na qual, qualquer fosse o lugar onde se escapasse, era preciso viver”.

É por isso que Bolsonaro está certo em ter medo.


sábado, 22 de fevereiro de 2020

O Manifesto do Partido Comunista completa 172 anos



Por Aluizio Moreira



No dia 21 de fevereiro de 1848, era publicado o Manifesto do Partido Comunista, uma das obras políticas mais importantes de Marx & Engels, que mantem sua atualidade, até os nossos dias, no que diz respeito às classes sociais fundamentais do sistema capitalista, seus antagonismos; o posicionamento e os objetivos dos comunistas diante de exploração do proletariado; as diferenciações históricas entre os vários tipos de socialismo; a atuação dos comunistas em relação à diversidade das políticas dos outros partidos.  

Se por um lado, a burguesia lutava por sua hegemonia econômica e política contra os setores conservadores ligados ao antigo regime, por outro, o surgimento de movimentos das classes trabalhadoras por melhores condições de vida, de trabalho e de participação política, a França, Alemanha e Inglaterra, foram palcos de vários movimentos e insurreições operárias. Sem querermos nos alongarmos demais, na Inglaterra, em 1811 surge o movimento Luddista; em 1831 acontece a insurreição de Lyon na França; em 1834 forma-se a primeira Central Operária na Inglaterra e 1836 eclode o movimento cartista no mesmo país; em 1844 na Alemanha levantam-se os tecelões da Silésia. 

O socialismo deixou de ser parte de um discurso desde o século XVIII de uma intelectualidade preocupada com as injustiças sociais (Saint-Simon, Fourier, Babeuf, Owen), no decorrer o século XIX se transformara em bandeira de luta da classe proletarizada, com propostas reais de transformação da Sociedade. A História do Manifesto do Partido Comunista começa com esse “pano de fundo”. 

A partir daí, o socialismo, enquanto corrente do pensamento político e social, passa a ter como elemento fundamental, a crítica ao capitalismo que se expandia na Europa Ocidental e a construção de uma sociedade nova, não um simples melhoramento do capitalismo enquanto sistema. 

A agudização dos conflitos político-ideológicos na Europa, fora responsável pelas perseguições, às forças progressistas ou revolucionárias da época, cujo caminho natural era o exilio com endereços certos em Paris, Bruxelas e Londres.

Já em 1834 era fundada em Paris, por exilados alemães, a Liga dos Proscritos. Embora suas lutas tenham sido bandeiras nitidamente burguesas como libertação e unidade da Alemanha, em muitas situações republicanismo iluminismo e socialismo se confundissem. Quando os integrantes da Liga dos Proscritos mais à esquerda, sentiram as distancias entre as ideias burguesas e as propostas operárias, essas ultimas cindiram como tendência, formando a Liga os Justos em 1836. Mais ideologicamente à esquerda socialista e revolucionária internacionalista, teve como principal teórico Wilhelm Weitling, mas que não conseguiu libertar-se da influência do socialismo utópico francês, mesclado com uma proposta comunizante.   

Marx e Engels, seguiram suas próprias trajetórias revolucionárias, elaborando através de estudos e atividades políticas, os princípios do Comunismo que os distanciavam do esquerdismo, socialismo utópico, do comunismo romântico, presentes em muitas organizações socialistas e operárias. Suas produções intelectuais caminhavam nessa direção: Critica da Filosofia do Direito de Hegel (1843), Manuscritos Econômicos e Filosóficos (1844), A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra (1845), A Sagrada Família (1845), Teses sobre Feuerbach (1845), Ideologia Alemã (1846), Miséria da Filosofia (1847), Princípios básicos do Comunismo (1847). Suas atividades práticas culminaram com a fundação em Bruxelas, em 1846, do Comitê de Correspondência Comunista.

Uma cisão no seio da Liga dos Justos, leva à fundação, em 1846, da Liga dos Comunistas, para a qual Marx e Engels são convidados a participar. 

No Primeiro Congresso, o da fundação em junho de 1847, são discutidos os Estatutos e propostas de Programa, aprovando-se os primeiros. Quanto ao Programa Engels fica encarregado de redigi-lo. Como esboço desse Programa Engels prepara em 1847, “Princípios Básicos do Comunismo” (*), que serve como ponto de partida para a elaboração por Marx e Engels do Manifesto do Partido Comunista de 1848. 

Escrito em alemão, e publicado em Londres em 21 de fevereiro de 1848, o Manifesto do Partido Comunista (**) torna-se programa oficial dos comunistas em todo mundo, fundamentando tática, analítica e conceitualmente, os posicionamentos políticos e ideológicos dos militantes comunistas.

Embora seus próprios autores, no Prefácio à edição alemão de 1872, já admitissem a necessidade de atualizá-la, pois as condições sócio-econômicas e políticas, já naquela época, eram outras. O “espectro do comunismo” que rondava a Europa no momento em que o Manifesto tinha sido escrito, tinha rondado o mundo burguês até as transformações sofridas pelo socialismo nesses finais do século XX, como consequência das novas realidades das sociedades. As Revoluções comunistas então iminentes, que levariam o proletariado ao poder, foram adiadas sine die, pois a tendência do capitalismo de tornar-se internacionalizado, mundializado, já estava posta com muita propriedade, produto do conhecimento das próprias leis que regem o sistema capitalista. Escreveram eles no Manifesto do Partido Comunista:

A necessidade de mercados cada vez mais extensos para seus produtos impele a burguesia para todo o globo terrestre. Ela deve estabelecer-se em toda parte, instalar-se em toda parte, criar vínculos em toda parte.Através da exploração do mercado mundial, a burguesia deu um caráter cosmopolita à produção e ao consumo de todos os países.  

Mais adiante continuam:

Em lugar das velhas necessidades satisfeitas pela produção nacional, surgem necessidades novas, que para serem satisfeitas exigem os produtos das terras e dos climas mais distantes. Em lugar de antiga autossuficiência e do antigo isolamento local e nacional, desenvolve-se em todas as direções um intercambio universal, uma universal interdependência das nações. E isto tanto na produção material quanto na intelectual. 

Daí a necessidade de uma releitura

Depois destas considerações que apontam para a mundialização, universalização do capitalismo, frutos da própria dinâmica do sistema, não escapou aos autores do Manifesto, a identificação do caráter ocidentalizante e “civilizatório” desse sistema.  De igual maneira, o comunismo se apresenta como novo processo civilizatório no caminho da sua universalização, que representa não apenas os interesses do proletariado, mas representa “a causa de toda humanidade.” 

Embora 172 anos nos separem da primeira edição do Manifesto do Partido Comunista, no Brasil, só 75 anos depois surge a primeira tradução do Manifesto feita por Octavio Brandão, publicado por partes em 1923, no jornal Voz Cosmopolita do Rio de Janeiro, o que não significa que o Manifesto fosse nosso desconhecido. Em 1900 no jornal Primeiro de Maio publicado no Recife, um artigo assinado por Flaviano Martins, reproduza a expressão “Proletários de todos os países, uni-vos!”
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(*) Esses “Princípios Básicos do Comunismo”, utilizando-se da forma de perguntas e respostas, parte de várias considerações sobre o proletariado do ponto de vista conceitual e histórico, até a abordagem sobre a questão das revoluções em geral “que não se fazem deliberadamente ou por vontade, mas são sempre e em todos os lugares a consequência necessária de circunstancias absolutamente independentes da vontade e da direção de partidos singulares e mesmo de classes inteiras.”
No que diz respeito à revolução comunista propriamente dita, admite que será “uma revolução apenas nacional, mas ocorrerá simultaneamente em todos os países civilizados”, cujo significado será a tomada e dominação do poder político pelo proletariado que “estabelecerá uma Constituição democrática”, passando a constituir-se como classe dominante.

(**) Fazem parte de sua estrutura: I - Burgueses e proletários; II – Proletários e comunistas; III – Literatura socialista e comunista; IV – Posição dos Comunistas diante dos diversos partidos de oposição.



segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

Socialismo e democracia na Coreia Popular


Por Dad Tankie

A República Popular Democrática da Coreia (RPDC) é continuamente tratada como um vilão na política internacional. O "reino eremita" é pintado como tirânico, repressivo e dinástico. Neste ensaio, quero argumentar o oposto: a Coreia do Norte é um país profundamente democrático, e isso reflete seus valores socialistas.

Ao contrário da crença popular, eleições acontecem de fato na RPDC. A mídia burguesa, como o canal Al Jazeera em inglês, admite isso. Contudo, eles retratam as eleições de uma forma incrivelmente desonesta. Uma reportagem alegou que as eleições consistem somente num voto sim/não num único candidato selecionado pelo partido, depositado à vista do público e com a abstenção exigindo uma explicação por escrito [1] . Isso é na melhor da hipóteses uma meia-verdade e, na pior, totalmente fabricado. Aqui, irei argumentar que a RPDC é democrática, e uma das razões para isso são suas eleições.

Democracia

Antes de seguir, entretanto, devemos nos dotar de uma definição do que realmente é democracia. Em minha opinião, devemos retornar à própria palavra. Demos quer dizer povo, enquanto -krata é usado como governo [ou domínio]. Democracia, portanto, deve significar governado pelo povo. É assim que o sítio dictionary.com define o termo. Eles dizem que democracia é "governo pelo povo; a forma de governo em que o poder supremo reside no povo e é exercido por ele ou por seus agentes eleitos sob um sistema eleitoral livre" [2] . Uma democracia é uma sociedade na qual a maioria do povo possui a habilidade de tomar decisões sobre sua vida política e social. Minha escolha em usar o dicionário aqui não pressupõe que dicionários são a autoridade suprema das definições. É simplesmente para evitar acusações de que minha definição de democracia é ideológica. Eu não inventei uma definição de democracia que inclui a RPDC para forçar o leitor a considerá-la democrática. Usei uma fonte tradicional cuja agenda política é oposta à minha.

A RPDC tem eleições distritais, municipais e provinciais para as assembleias populares locais, assim como eleições nacionais para a Assembleia Popular Suprema (APS), seu órgão legislativo. Elas acontecem a cada cinco anos.

Candidatos são escolhidos em reuniões de massa presididas pela Frente Democrática para a Reunificação da Pátria, que reúne os partidos políticos da RPDC. Cidadãos podem concorrer sob esses partidos ou como independentes. São escolhidos pelo povo, não pelo "partido" (na verdade, o parlamento da RPDC consiste em três partidos separados, como, nas últimas eleições, o PTC – Partido dos Trabalhadores da Coreia, o Partido Social-Democrata da Coreia e o Partido Chondoísta Chongu) [3] .

O fato de haver apenas um candidato na cédula é por já haver um consenso alcançado sobre quem deve estar apto para a nomeação pelo povo nas reuniões de massas, para aquela posição. Esse é um arranjo verdadeiramente democrático, que põe o poder diretamente nas mãos do povo ao invés das dos "representantes" ricos que não têm ideia de como a maioria vive. De acordo com um relatório, a renda média de um membro do congresso dos EUA é 14 vezes maior que a de um cidadão médio [4] . É simplesmente impossível eles conhecerem as lutas das massas. Na RPDC, ao contrário, as massas advogam por si mesmas diretamente. Elas entendem seus próprios interesses e são capazes de avançar abertamente em sua defesa. É isso que a verdadeira democracia implica.

A RPDC permite observadores estrangeiros nas suas eleições. As pessoas votam sozinhas numa sala separada e gozam de privacidade. As reuniões de massa exigem a contribuição das massas populares, então elas não são secretas, nem deveriam ser, já que isso impediria o processo democrático e tornaria mais difícil para os deputados atenderem diretamente às necessidades e demandas do povo. Elas são mais que votos e cédulas, são reuniões onde o povo tem voz e o poder de impactar o sistema político de forma significativa.

O Comitê Central Eleitoral é composto por vários membros da APS, do PTC e do Presidium [colegiado eleito pela APS]. É formado por uma votação do Presidium. A RPDC demonstra uma estabilidade política extensiva e eu desconheço qualquer candidato escolhido pelo povo sendo repreendido por qualquer parte do processo democrático. As eleições são efetivamente salvaguardadas de qualquer corrupção do processo democrático que ocorre durante as reuniões de massa. É de se esperar, portanto, que o resultado conte com apoio absoluto porque um não-voto indica que as reuniões de massa falharam em chegar num consenso com apoio popular [5] .

Aqui, vemos a profunda diferença das eleições na RPDC e nos Estados Unidos. As eleições americanas são desenhadas meramente para dar a ilusão de participação popular no governo. Cidadãos têm que escolher, efetivamente, entre dois candidatos que ambos representam os interesses dos grandes negócios. É virtualmente impossível fugir do sistema bipartidário, a não ser para alguém independentemente rico. Ross Perot, por exemplo, só foi capaz de concorrer contra bilionários por causa do seu status de bilionário [6] . Ele só conseguiu fugir do sistema bipartidário imposto pelo capitalismo corporativo porque ele próprio encarnava o capitalismo corporativo. Vez após vez, vemos que é o candidato com mais dinheiro que ganha as eleições nos Estados Unidos [7] . Na formulação das políticas, são os grupos de interesse endinheirados que conseguem o que querem, não as pessoas comuns da classe trabalhadora [8] . Apesar da veneração à democracia adotada pelos EUA, é na verdade uma ditadura da classe capitalista. Não há alternativa genuína aos interesses do capital (que são na realidade os interesses de uma minoria de donos de negócios) e portanto não há democracia real.

Na RPDC, contudo, a democracia floresce. Como vimos, é desenhada com o objetivo explícito de dar poder às massas populares. A votação do não é resultado direto disso. Não é a evidência da monopolização do poder nas mãos do Partido, mas uma evidência do poder do povo. Os votos não crescem quando as discussões das massas se tornam muito contenciosas. Em certo sentido, as massas às vezes têm poder demais. As eleições existem para mediar isso e chegar a conclusões verdadeiramente democráticas, nas quais a vontade da maioria é decretada. As eleições não são uma barreira para a democracia, mas uma expressão dela.

Os cidadãos nos países capitalistas tipicamente só ficam cientes de um aspecto do processo eleitoral na RPDC. São levados a acreditar que apenas um candidato aparece na cédula, e isso é usado para pintar a RPDC como ditatorial. O mesmo método de informação seletiva pode ser usado para deturpar os sistemas "democráticos" ocidentais. Se a mídia cobrisse apenas o colégio eleitoral durante uma eleição americana, por exemplo, podem afirmar facilmente que apenas 538 americanos puderam votar para presidente. Isso revela a importância de pesquisa rigorosa sobre a RPDC. Embora possa haver elementos verdadeiros nas informações ocidentais sobre a RPDC, eles nunca revelam a imagem completa. É vital que descubramos por conta própria e que nos recusemos a confiar na mídia burguesa dos Estados Unidos.

Democracia e economia: o sistema de trabalho Taean, cooperativas e comitês de fábrica

Eleições, no entanto, não são o único indicador pelo qual se pode determinar uma democracia. Os Estados Unidos têm eleições, mas eu acabei de demonstrar que são antidemocráticas. Isso deve significar que as arenas para além do parlamento (ou órgãos similares) também cumprem um papel na classificação de um país como democrático ou não. Na minha visão, um campo importante a se considerar quando se fala em democracia é a economia. É a economia que determina se ficamos vivos ou não, sem falar nas formas políticas que adotamos. Seria virtualmente impossível passar um dia teorizando sobre política se alguém tivesse que se preocupar se comeria ou não naquela noite. Assim, a questão sobre quem controla a economia é importante. Se uma pequena minoria de indivíduos controla a economia, então se segue que este mesmo grupo tem a palavra final na política, na arte e na cultura de uma sociedade particular. Isso pode ser visto nos Estados Unidos. A minoria da população é feita de proprietários ricos, que exercem uma enorme parcela de controle sobre as políticas. Eles só sustentam esse poder político porque têm dinheiro. É portanto o caso de que o centro primário de poder na sociedade é a economia. As sociedades só podem ser consideradas democráticas e as massas do povo dirigem a economia assim como a esfera política.

Este obviamente não é o caso sob o capitalismo, mas será esse o caso na RPDC? Eu argumentaria que é. Os espaços de trabalho na RPDC são geridos de acordo com o Sistema de Trabalho Taean, que é descrito da seguinte forma pelo Country Data [site da Divisão Federal de Pesquisa da Biblioteca do Congresso]:

A máxima autoridade administrativa sob o sistema Taean é o comitê do partido. Cada comitê consiste em aproximadamente 25 a 35 membros eleitos das fileiras de gestores, trabalhadores, engenheiros e as lideranças das organizações do povo trabalhador nas fábricas. Um "comitê executivo" menor, aproximadamente um quarto do tamanho do comitê principal, tem responsabilidade prática pelas operações rotineiras da planta e pelas principais decisões da fábrica. Os membros mais importantes da equipe, incluindo a secretaria do comitê do partido, gerente de fábrica e engenheiro chefe formam seus quadros. O sistema foca na cooperação entre os trabalhadores, técnicos e funcionários do partido no nível da fábrica. [9]

Esse sistema persistiu por muito tempo na RPDC. No seu discurso de Ano Novo no trigésimo aniversário do Sistema de Trabalho Taean, Kim Il-Sung disse:

O Sistema de Trabalho Taean é o melhor sistema de gestão econômica. Ele permite que as massas cumpram sua responsabilidade e seu papel de mestres e administrem a economia de maneira científica e racional, implementando a linha de massa na gestão econômica e combinando organicamente a liderança do partido com orientação administrativa, econômica e técnica. [10]

A economia da RPDC é um misto de propriedade estatal e economia cooperativa, nesta última com os trabalhadores constitucionalmente intitulados donos do seu espaço de trabalho. De acordo com a Constituição da RPDC:

Artigo 22A propriedade das organizações sociais cooperativas pertence à propriedade coletiva das pessoas que trabalham nas organizações envolvidas.Organizações sociais cooperativas podem possuir propriedades como terras, maquinaria agrícola, navios, pequenas e médias fábricas e empreendimentos.O Estado deve proteger a propriedade das organizações sociais cooperativas. [11]

A revolução coreana criou oportunidades inimagináveis para trabalhadores e camponeses sob as condições opressivas do passado. O especialista na Coreia Bruce Cumings escreve: "em qualquer momento antes de 1945, era praticamente inconcebível que camponeses pobres sem formação se tornassem oficiais de nível nacional ou oficiais do exército. Mas na Coreia do Norte essas carreiras tornaram-se normais" [12] . Ele também observa que casamentos entre classes tornaram-se normais, comuns e difundidos com o estabelecimento da Coreia Democrática, e o acesso à educação foi estendido a todos os setores da sociedade.

A parte mais importante da economia é indiscutivelmente a propriedade da terra. Antes dessa revolução, a terra era concentrada nas mãos de uma elite japonesa muito pouco numerosa. O Partido dos Trabalhadores empreendeu um processo gradual, mas sólido de conversão da terra privada em organizações cooperativas. Começando com o processo de reconstrução pós-guerra, só 1,2% dos domicílios camponeses eram organizados em cooperativas, o que abrangia meros 0,6% da área cultivada [13] . Em agosto de 1958, 100% dos domicílios rurais estavam convertidos em cooperativas, abrangendo 100% da área cultivada [14] . Ellen Brun, uma economista cujo estudo de 1976, Coreia Socialista, continua sendo o mais abrangente até o momento, escreve que "apesar da falta de meios modernos de produção, as cooperativas – com assistência eficiente pelo estado – rapidamente mostrou sua superioridade em relação ao cultivo individual, até convencendo agricultores antes relutantes a participar do movimento" [15] . A coletivização não foi forçada de cima, mas uma expressão dos desejos das massas. Foi – e continua sendo – uma ação democrática.

Comitês populares locais, nos quais qualquer trabalhador coreano pode participar, elegeram a liderança para dirigir a produção agrícola e colaboraram com as autoridades nacionais para coordenar a eficiência a nível nacional [16] . Esses comitês populares foram as instâncias primárias por onde "o Partido mantinha contato com as massas nas várias fazendas coletivas, permitindo assim avaliar a opinião pública sobre assuntos que afetam as políticas dos comitês populares do país" [17] . Em 1966, o Partido dos Trabalhadores introduziu o "sistema de administração em grupo", que "organizou grupos de 10 a 25 agricultores em unidades produtivas, cada um das quais ficando então permanentemente encarregado de uma determinada área de terra, uma determinada tarefa ou certos instrumentos de produção" [18] . Isso representa outro instrumento da democracia popular implementada na produção da Coreia socialista.

Nenhum antagonismo sério entre as áreas rurais e os centros industriais foi desenvolvidos no processo de construção socialista na Coreia Democrática. Brun nota que "dezenas de milhares de homens desmobilizados e muitos jovens e velhos formandos assim como pupilos do ensino médio foram ao campo na temporada mais trabalhosa e prestaram assistência no valor de milhões de dias de trabalho", todos voluntariamente sem coerção pelo estado [19] .

Mais importante ainda, a construção socialista coreana reorganizou a produção industrial pelos interesses do proletariado coreano antes despossuído. Baseando-se na linha de massas – o método de organização marxista-leninista que "é tanto a causa quanto o efeito da politização e do envolvimento das massas no processo de desenvolvimento econômico e construção socialista" – o PTC implementou o sistema de trabalho Taean, descrito acima, em dezembro de 1961. Em contraste com o sistema anterior, em que administradores eram nomeados para supervisionar um espaço de trabalho unilateralmente por um único membro do partido, "o comitê de fábrica do Partido assume a autoridade máxima no nível do empreendimento" no sistema de trabalho Taean [20] . Brun segue descrevendo esse sistema, e vou citá-la longamente:

Maneiras de resolver questões que afetam a produção e a atividade dos trabalhadores, assim como métodos de executar decisões, são alcançados através de discussões coletivas nos comitês de fábrica, cujos membros são eleitos pelos membros do Partido na fábrica. Para ser efetivo, esse comitê deve ser relativamente pequeno, com o número preciso de participantes a depender do tamanho do empreendimento. Na Central Elétrica Daean, com cinco mil trabalhadores, o comitê de fábrica do Partido conta com 35 membros que se reúnem uma ou duas vezes ao mês, enquanto que 9 membros do quadro executivo mantém contato contínuo. Sessenta por cento dos seus membros são trabalhadores da produção, com o restante representando uma seção intersetorial de todas as atividades da fábrica, incluindo funcionários, gerentes, vice-gerentes, engenheiros, técnicos, representantes de organizações de mulheres, de jovens, do sindicato, e dos funcionários administrativos. Sua composição portanto dá acesso a todo aspecto socioeconômico do empreendimento e das vidas dos seus trabalhadores.
Esse comitê se tornou o chamado "volante [ou timão]" da unidade industrial, conduzindo a educação ideológica e mobilizando os trabalhadores a implementar decisões coletivas e cumprir as metas de produção. Através da sua conexão com o Partido ele tem uma visão clara das políticas e objetivos gerais assim como da função exata da unidade produtiva no contexto nacional. Em outras palavras, essa configuração garante que seja dada prioridade à política. [21]

Os trabalhadores têm iniciativa e supremacia na produção e interagem diretamente com o estado para planejar e executar a produção coletivista em nome de todo o povo coreano. O fato de a economia ser administrada, muitas vezes diretamente, pelo todo da sociedade é uma evidência de que o país é democrático. Os trabalhadores não ficam presos em espaços de trabalho onde recebem ordens de cima para baixo, como ficam os trabalhadores nos Estados Unidos, em vez disso eles têm voz sobre o que é produzido e como é produzido. O povo tem voz sobre a economia e portanto sobre todos os outros aspectos da vida. Isso, como eu argumentei, significa que o país é largamente mais democrático que todos os países capitalistas, até os mais avançados.

Muitos alegam que o firme estabelecimento da política "Songun", uma política que o Partido dos Trabalhadores da Coreia descreve como "dar prioridade às armas e às forças armadas" [22] , anula os ganhos democráticos mencionados acima. Gostaria de afirmar que este não é o caso. Apesar da insistência ocidental na suposta novidade da política Songun, a história oficial da RPDC aponta para o desenvolvimento Songun mesmo décadas antes da RPDC ser formada. É importante notar isso porque deixa evidente como uma luta anti-imperialista e essencialmente de libertação nacional caracterizou a política da Coreia socialista desde o início [23] . Independentemente disso, o colapso da União Soviética trouxe mudanças qualitativas à estrutura política da RPDC. Notavelmente, a Comissão de Defesa Nacional se tornou a "espinha dorsal do corpo administrativo estatal" e "comanda todo o trabalho da política, militar e econômico". Isso pode ser atribuído em grande parte à posição única que a RPDC assumiu após seu isolamento internacional de fato em meados da década de 1990. A queda da União Soviética significou uma profunda austeridade econômica, e mais ainda, significou um fortalecimento dos EUA e um sul comprador . Isso significa que a RPDC foi forçada a seguir um caminho profundamente militarista de desenvolvimento (daí a superioridade da Comissão Nacional de Defesa e a ampla disseminação da política Songun) [24] .

À luz dessas contradições, devemos examinar os órgãos de poder de classe na RPDC, nomeadamente os órgãos estatais e a sua relação com o povo coreano em geral. Evidentemente, os órgãos estatais da RPDC exercem autoridade suprema sobre a economia e a vida social. O estado, constitucionalmente, representa os interesses do povo trabalhador e, portanto, excluiu legalmente exploradores e opressores de representação formal:

O sistema social da RPDC é um sistema centrado no povo, sob o qual o povo trabalhador é mestre de tudo, e tudo na sociedade serve ao povo trabalhador. O Estado deve defender e proteger os interesses dos trabalhadores, camponeses e trabalhadores intelectuais que foram libertados da exploração e opressão e se tornaram senhores do Estado e da sociedade. [25]

Portanto os órgãos políticos de poder de classe se tornaram explicitamente os órgãos proletários de poder de classe; ao menos no sentido fornecido constitucionalmente ao povo coreano. A força política dirigente na RPDC continua sendo o Partido dos Trabalhadores da Coreia (PTC) que ocupa 601 das 687 cadeiras da Assembleia Popular Suprema e a liderança de fato da coalizão governante Frente Democrática para a Reunificação da Pátria [26] . Todos os coreanos acima de 17 anos, independente de raça, religião, sexo ou crença, são habilitados e encorajados a participarem nos órgãos estatais de poder. Eleições são realizadas rotineiramente para órgãos locais e centrais de poder estatal, sendo que normalmente são as Assembleias Populares que compreendem o núcleo do poder estatal na RPDC, de onde vêm os órgãos destacados de poder de classe sendo institucionalmente a Comissão Nacional de Defesa e o Exército Popular da Coreia (EPC) [27] .

Como mencionado anteriormente, o caminho Songun significou desenvolvimento material nas realidades sociais que consistem no que o ocidente considera a Coreia do Norte. A enorme ênfase no avanço e poder militar apenas ajudou os detratores imperialistas na sua descrição da RPDC como uma "ditadura militar". Essa é, na melhor das hipóteses, uma análise no nível superficial. É considerada a maior honra para um coreano servir à sua pátria na luta contra o imperialismo ao se juntar ao Exército do Povo Coreano. Diferente de outras forças militares permanentes, o EPC está definitivamente envolvido na construção social e material do socialismo na Coreia do Norte. Entender isso nos ajuda a entender como os desenvolvimentos internos únicos da Coreia socialista criaram uma expressão única de poder de classe.


As pessoas também são intimamente conectadas aos líderes da RPDC, os quadros do Partido. Os quadros do Partido são uma característica inevitável do aparato político da Coreia do Norte e portanto possivelmente a ligação mais próxima que o povo coreano tem com seus órgãos formais de poder. Os quadros, assim como funcionários e administradores do Partido, são conhecidos por visitarem locais de trabalho e fornecerem motivação e direção ao povo trabalhador [28] . Isso contrasta fortemente com a relação entre políticos capitalistas e cidadãos. Nos países capitalistas, políticos estão muito distantes do povo e não têm ideia de como são suas lutas. Na RPDC, o oposto é verdadeiro.

A classe trabalhadora é a vasta maioria da população da RPDC (por volta de setenta por cento [29] ), por isso a gestão do estado pela classe trabalhadora significa que o estado é gerido pela maioria da população. Isso é condizente com a definição de democracia proposta anteriormente.

O sistema prisional

Alega-se frequentemente que nada disso importa porque os norte-coreanos são forçados a se envolver em trabalho duro por seus crimes. O estado mantém 200 mil presos políticos, de acordo com a Anistia Internacional. "É o mesmo estado que fuzilou três cidadãos norte-coreanos que tentavam cruzar a fronteira para a China no final de dezembro [de 2016]." [30]

Uma avaliação mais cuidadosa do sistema prisional norte-coreano ironicamente vem do historiador liberal burguês Bruce Cumings . No seu livro de 2004, North Korea: Another Country [Coreia do Norte: Outro país], ele nota que a maioria das críticas ao sistema penal coreano é grosseiramente exagerada. Por exemplo, ele escreve que "Criminosos comuns que cometem crimes menores e juvenis com uma compreensão incorreta do seu lugar na família-estado que cometem pequenas infrações políticas são enviados a campos ou minas para trabalho duro e variadas durações de encarceramento", cujo objetivo é reeducá-los. Isso reflete um entendimento materialista das raízes do crime, que emerge em grande parte das condições materiais e de ideias incorretas de uma pessoa, que pode ser mudada através da alteração das condições da pessoa. É importante notar que a vasta maioria dos criminosos no sistema penal coreano cai nessa categoria e por isso o objetivo é reabilitar e reeducar, ao contrário dos objetivos punitivos do sistema penal americano.

Cumings nota o contraste entre o sistema de justiça criminal da Coreia Democrática e o dos Estados Unidos, especialmente em termos do contato e suporte do prisioneiro pela sua família. Ele escreve:

O [livro] Aquários de Pyongyang é um conto interessante e crível, precisamente porque, de modo geral, não é a história horrível de repressão totalitária que seus editores originais da França queriam que fosse; em vez disso, sugere que o encarceramento de uma década com sua família imediata era suportável e não necessariamente um obstáculo para a entrada no status de elite de residir em Pyongyang ou entrar numa faculdade. Enquanto isso temos um duradouro e interminável gulag repleto de homens negros em nossas prisões, encarcerando mais de 25% de toda a juventude negra. [32]

Também devemos observar que o único norte-coreano a escapar de uma prisão, Shin Dong-hyuk, desmentiu grande parte da sua estória Escape from Camp 14 ("Fuga do Campo 14"). De acordo com um artigo do New York Times sobre o tema,

Sr. Shin, que diz que tem 32 anos, agora diz que o fato chave que o diferenciava de outros desertores – que ele e sua família tinham sido encarcerados numa prisão da qual ninguém esperava sair vivo – era só uma meia-verdade, e que na verdade ele serviu na maior parte do tempo no menos rude Campo 18. Ele também disse que a tortura que ele sofreu quando adolescente, aconteceu na verdade anos depois e foi aplicada por razões muito diferentes. [33]

Similarmente, a revelação de que armas químicas são usadas em prisioneiros no Campo 22 já foi provada espúria. A história foi inventada no documentário da BBC de 2004, Access to Evil ("Acesso ao mal"). O documentário conta com diversas entrevistas com Kwon Hyok, um desertor da RPDC e ex-chefe da segurança do campo. A evidência do documentário para essa acusação também foi baseada numa "Carta de Transferência" supostamente autorizando experimentos em seres humanos. Essas acusações, contudo, foram totalmente fabricadas. Até as agências de inteligência da Coreia do Sul rapidamente assumiram os documentos como falsos. Escrevem:

Primeiro, foi revelado que Kwon não foi representante militar em Pequim, como afirmava. Depois, focou-se a atenção na Carta de Transferência (…) havia problemas de nomenclatura, tamanho dos selos e tipo de papel.(…)Joseph Koehler, (…) um virulento crítico do Norte (…) chegou à conclusão de que o documento parece falso. [34]

Embora isso não signifique que todas as afirmações dos desertores sejam falsas, põe em dúvida a validade da história. Não é uma surpresa que desertores exagerem suas histórias, dado que "a Coreia do Sul disse no domingo que quadruplicará a recompensa em dinheiro que oferece aos desertores norte-coreanos que chegarem com informações importantes para mil milhões de wons, ou 860 mil dólares, num esforço para encorajar mais membros da elite a fugirem" [35] . Desertores norte-coreanos não são simplesmente indivíduos perseguidos buscando uma vida melhor. Eles têm um incentivo econômico direto para mentir sobre seu país. É importante, como dito acima, verificar cada história independentemente em vez de confiar nelas cegamente.

Esse fato – de que um tempo no sistema penal coreano não resulta num castigo social como nos países capitalistas – reflete um forte ponto de contraste com sistemas penais capitalistas. Usando a família como uma rede de apoio, o estado encoraja a reeducação política e abre oportunidades para prisioneiros reabilitados serem reincluídos na sociedade coreana como cidadãos plenos. O sistema prisional na Coreia do Norte é muito mais humano, em princípio, do que o sistema nos Estados Unidos. É baseado numa filosofia centrada nas pessoas, que sustenta que a criminalidade não é inerente à humanidade. Essa é uma forte evidência de que a RPDC é um estado da maioria, e portanto democrático.

Religião e igrejas

A supressão da religião na RPDC – a anedota preferida da direita – também é vastamente exagerada. No artigo Fresh Wineskins for New Wine: A New Perspective on North Korean Christianity ("Embalagens frescas para vinhos novos: Uma nova perspectiva sobre o cristianismo norte-coreano") [36] Dae Young Ryu começa observando uma nova abertura ao cristianismo nos anos 1980, com novas igrejas construídas, uma escola teológica protestante fortalecida em Pyongyang e um aumento no número de fiéis, agora em torno de 12 mil.

Embora o próprio governo tenha construído novas igrejas durante esse período, Ryu afirma que esse não é um fenômeno recente. Na verdade ele remonta aos cristãos da década de 1950 que adotaram o marxismo-leninismo e apoiaram a liderança de Kim Il-Sung. Esse desenvolvimento é ainda mais notável, pois ocorreu em um contexto em que o cristianismo era visto amplamente como um fenômeno imperialista americano. De fato, evidências indicam que o governo tolerou por volta de 200 igrejas cristãs pró-comunistas durante a década de 1960. Ele escreve:

Ao contrário da visão comum ocidental, parece que os líderes norte-coreanos manifestaram tolerância aos cristãos que apoiavam Kim Il-Sung e sua versão do socialismo. O ministro presbiteriano Gang Ryang Uk atuou como vice-presidente da RPDC de 1972 até a sua morte em 1982, e Kim Chang Jun, um ministro metodista ordenado, tornou-se vice-presidente da Assembleia Popular Suprema. Eles foram enterrados no exaltado Cemitério dos Patriotas, e muitos outros líderes da igreja receberam honras e medalhas nacionais. Parece que o governo permitiu igrejas domésticas em reconhecimento à contribuição dos cristãos para a construção da nação socialista. [37]

Culto à personalidade

Eu gostaria de concluir com o exame de Kim Il-Sung e o suposto "culto à personalidade" ao redor dele. O luto em massa em torno do seu funeral é tomado como evidência de que ele é adorado como um deus na RPDC. Na realidade, esse luto surge do imenso apoio popular que ele desfrutou como líder, durante e após a revolução.

Kim recusou a incapacidade da Coreia de resistir à dominação estrangeira. Os japoneses o consideravam um líder de guerrilha altamente capaz e perigoso, chegando ao ponto de estabelecer uma unidade especial de insurgência anti-Kim para caçá-lo [38] . As guerrilhas eram uma força independente, inspirada pelo desejo de recuperar a península coreana para os coreanos, e não eram controlados pelos soviéticos nem pelos chineses. Embora muitas vezes eles se retirassem para a União Soviética para evitar as forças de contra-insurgência japonesas, eles receberam pouca ajuda material dos soviéticos.

Diferente dos EUA, que impuseram um governo militar e reprimiram os Comitês Populares, os soviéticos adotaram uma justa abordagem de não interferência na sua zona de ocupação, permitindo que uma coalizão de combatentes da resistência nacionalista e comunista se organizasse autonomamente. Dentro de sete meses, o primeiro governo central foi formado, com base em um Comitê Popular interino liderado por Kim Il-Sung.

Ao contrário da mitologia popular, Kim não foi escolhido pelos soviéticos. Ele gozava de um considerável prestígio e apoio como resultado dos seus anos como líder guerrilheiro e do seu comprometimento com a libertação nacional. Na verdade, os soviéticos nunca confiaram totalmente nele [39] .

Com oito meses de ocupação, começou um programa de reforma agrária, com senhores de terras expropriados sem indenização, mas livres para migrar para o sul ou para trabalhar em lotes de igual tamanho àqueles alocados para os camponeses. Depois de um ano, o Partido dos Trabalhadores de Kim se tornou a força política dominante. As maiores indústrias, maioria de propriedade dos japoneses, foram nacionalizadas. Colaboradores com os japoneses foram expurgados de funções oficiais.

Os cidadãos da RPDC apoiam Kim Il-Sung pelo seu corajoso enfrentamento à dominação dos EUA, seu comprometimento com a reunificação e a real conquista do socialismo. Diante daqueles que fazem guerra por exploração e opressão, as decisões de Kim representavam as aspirações dos trabalhadores, camponeses, mulheres e crianças coreanas – a nação coreana unida – por liberdade. O apoio a Kim não é oriundo de um culto à personalidade ou tomado à força. Pelo contrário, ele conquistou o apoio do seu povo através da luta.

De fato, não havia mecanismos para forçar o povo coreano a apoiar Kim Il-Sung durante seu governo. Lankov escreve, "Norte-coreanos na era Kim Il-Sung não eram autômatos com lavagem cerebral cujo passatempo favorito era a esquiva (…) nem eram dissidentes retraídos (…) nem dóceis escravos que seguiam ordens de cima como ovelhas" [40] . A RPDC de Kim Il-Sung não era um estado policial, mas um país democrático e socialista travando valentemente uma guerra contra o imperialismo. O povo coreano foi – e continua – unificado na luta e apoia seus líderes baseados nisso.

Uma pesquisa com desertores estima que mais da metade do país que eles deixaram para trás aprova o trabalho que o líder Kim Jong-Un está fazendo. O Instituto pelos Estudos de Paz e Unificação de Seul, conforme relato da agência de notícias Yonhap, pediu que 133 desertores arriscassem um palpite sobre o índice de aprovação real de Kim no país, que pelo menos publicamente é vendido como um absoluto culto à personalidade em torno da liderança. Pouco mais de 60% disseram que a maior parte do país está a apoiá-lo. Em uma pesquisa similar em 2011, apenas 55% acreditavam que o pai e predecessor de Kim, Kim Jong-Il, tinha o apoio da maioria do país.

Como escreve a BBC:

Especialistas atribuem a popularidade de Kim Jong-Un aos esforços para melhorar a vida cotidiana dos cidadãos, com ênfase no crescimento econômico, indústrias leves e agricultura num país onde se acredita que a maioria tem falta de comida, diz Yonhap. Não há pesquisas de opinião no estado comunista fechado, onde – pelo menos externamente – o líder goza de apoio total e exaltado. Embora não seja diretamente comparável, o índice de aprovação percebido supera o dos líderes ocidentais. Uma pesquisa recente da McClatchy sugeriu que apenas 41% dos americanos apoiavam o desempenho do presidente Barack Obama, enquanto o primeiro-ministro do Reino Unido, David Cameron, marcou 38% numa pesquisa recente do YouGov ." [40]

O Wall Street Journal, citando a pesquisa, diz que mais de 81% dos desertores disseram que as pessoas estão comendo três refeições por dia, acima dos 75% da amostra anteriormente pesquisada.

Isso aponta para uma bem-sucedida consolidação do poder do jovem líder, que assumiu com a morte do seu pai, Kim Jong-Il, em dezembro de 2011. Isso parecia incerto há um ano, ao menos com base no relatório anterior do instituto sobre as entrevistas com desertores. Ao falar então com 122 pessoas que fugiram da Coreia do Norte entre janeiro de 2011 e maio de 2012, encontrou que 58% estavam descontentes com a escolha do jovem Sr. Kim como sucessor. (Obviamente, pessoas que fugiram do país tendem a ser mais insatisfeitas do que as pessoas que ficaram)

O novo líder parece estar se esforçando mais, com 45% dizendo que a sociedade está sob rígido controle, contra 36% no relatório anterior. Panfletos anti-regime e grafitis são um pouco menos comuns (mas talvez isso seja o alto índice de aprovação no trabalho): 66% do último grupo disse ter visto essas coisas, abaixo dos 73% na pesquisa de 2012 e 70% na de 2011. Viajar para outras partes do país ficou mais difícil. A porcentagem dos que relataram ter feito isso, após subir por cinco anos seguidos – para 70% dos desertores entrevistados em 2012, de 56% entre os entrevistados em 2008 – recuou para 64%. [41]

Conclusão

A mídia burguesa continua a retratar a RPDC como um pesadelo totalitário, povoado exclusivamente por uma cidadania pacífica e amedrontada. Como demonstrei, isso está longe de ser o caso. O povo norte-coreano tem muito mais voz sobre como suas vidas são estruturadas do que cidadãos até dos países capitalistas mais "democráticos". Eles não são forçados a aderir à linha do Partido transmitida de cima para baixo, mas são incentivados a participar na administração da sociedade. A RPDC é um excelente exemplo de socialismo, focado no desenvolvimento da classe trabalhadora – e da humanidade – em todo o seu potencial. É somente através do socialismo que poderemos realizar nosso sonho coletivo de uma sociedade livre e próspera. A RPDC está marchando em direção a esse sonho, mesmo diante de uma agressão imperialista sem paralelo. É em parte nessa base que devemos prestar solidariedade com o país. Para reiterar o argumento que fiz na última postagem, a RPDC deve ser apoiada, independentemente dela ser socialista. Ela está de pé contra o imperialismo, que é o maior inimigo do socialismo. Direta ou indiretamente, a RPDC trabalha no interesse do socialismo.

Tirem as mãos da RPDC!

28 março 2017

[1] www.aljazeera.com/...
[2] www.merriam-webster.com/dictionary/democracy
[3] wayback.archive.org/...
[4] www.usnews.com/...
[5] www.youtube.com/watch?v=-4P0dMEH4RQ
[6] mashable.com/2015/08/06/trump-richest-candidates/
[7] www.opensecrets.org/news/2008/11/money-wins-white-house-and/
[8] www.washingtontimes.com/...
[9] www.country-data.com/cgi-bin/query/r-9558.html
[10] Ibid.
[11] en.wikisource.org/wiki/Constitution_of_North_Korea_(1972,_rev._1998)
[12] Bruce Cumings,  North Korea: Another Country, The New Press, New York, 2004.
[13] Ibid.
[14] Ibid.
[15] Ellen Brun, Jacques Hersh, Socialist Korea: A Case Study in the Strategy of Economic Development , 1976, Monthly Review Press, New York and London
[16] Ibid.
[16] Ibid.
[17] Ibid.
[18] Ibid.
{19] Ibid.
[20] Ibid.
[21] Suh, Jae-Jean. 2004. The Transformation of Class Structure and Class Conflict in North Korea.  International Journal of Korean Reunification Studies. p. 55 www.nkeconwatch.com/...
[22] Ibid. p. 56
[23] Ibid. p. 57
[24] Ibid.
[25] 10th Supreme People's Assembly. Constitution of the Democratic People's Republic of Korea. . Article 8. www1.korea-np.co.jp/pk/061st_issue/98091708.htm
[26] www.rodong.rep.kp/en/
[27] Korea-DPR. 2013.
[28] Journal of Asian and African Studies. 2013. Elite Volatility and Change in North Korean Politics: 1970-2010
[29] www.cia.gov/library/publications/the-world-factbook/geos/kn.html
[30] www.amnesty.org/...
[31] Bruce Cumings, North Korea: Another Country , The New Press, New York, 2004. Op. Cit.
[32] Ibid.
[33] www.nytimes.com/...
[34] ipcprayer.org/...
[35] www.nytimes.com/...
[36] Journal of Church and State 48 (2006), pp. 659-75.
[37] Ibid, 673.
[38] Bruce Cumings, "Korea's Place in the Sun: A Modern History (Updated Edition)," W.W. Norton & Company, 2005; p. 404
[39] Ibid.
[40] www.npr.org/...
[41] blogs.wsj.com/korearealtime/...

O original encontra-se em writetorebel.com/2017/03/28/socialism-and-democracy-in-the-dprk/e a tradução de Leonardo Griz Carvalheira em

Este artigo encontra-se em https://resistir.info/ .

domingo, 9 de fevereiro de 2020

A hipótese do Comunismo Hermenêutico



Dois filósofos propõem: para voltar a ser potente e perigoso, marxismo deve deixar pretensão à verdade histórica e assumir-se como imperativo ético, espectro que convoca seres humanos a novas relações entre si e com a natureza




Por Eleutério F. S. Prado | Imagem: Frida Kahlo,O marxismo dará saúde aos doentes (1954)


A palavra comunismo tem vários sentidos, ainda que um deles predomine no entendimento popular. Nessa acepção mais usual, designa o finado sistema burocrático de Estado que se instalou na Rússia depois de 1917 e se estendeu para vários outros países com o fim da II Guerra Mundial (Iugoslávia, Alemanha Oriental, Polônia etc.) formando o chamado “bloco soviético”. Como se sabe, o comunismo nesses países terminou entre 1989 e 1991. Mas esse nome, ainda hoje, aplica-se aos regimes políticos ainda existentes na China, Coreia do Norte, Vietnã, Cuba. Como também é bem sabido, nesse sentido mais ordinário, ele está associado frequentemente ao autoritarismo de Estado, à ditadura ou mesmo ao totalitarismo.

Entre os marxistas, no entanto, essa palavra é entendida teoricamente como um conceito; refere-se ao modo produção que desponta no futuro de um desenvolvimento virtuoso que começa com a superação do capitalismo. Nesse sentido, é entendido como o estágio superior do socialismo. Segundo o Marx da Crítica do programa de Gotha (Boitempo, 2012), se este último vem para abolir a propriedade dos meios de produção, como nasce no interior da “velha sociedade”, limita-se a proporcionar bens e serviços a cada um segundo a sua capacidade de produção, ao seu trabalho. Mas cria as condições para um modo de produzir e distribuir mais avançado, que é caracterizado pelo lema “de cada segundo suas capacidades, a cada um segundo as suas necessidades”. No comunismo, não haveria segundo essa doutrina nem escassez e nem classes sociais.

Registre-se, porém, que nenhum desses países elencados conseguiu caminhar verdadeiramente em direção ao comunismo assim delineado. E nem poderiam fazê-lo, já que a sua premissa histórica é que os trabalhadores, já na sociedade em construção, deveriam se encontrar livremente organizados com base em Comuns instituídos como tais. Bem ao contrário, em alguns deles, ao invés de emancipação, como era prometido pelos movimentos revolucionários, realizaram-se alguns dos piores regimes da história. . De qualquer modo, em nenhum deles foi instituída uma democracia que fosse superior à democracia liberal – muito ao contrário. E esta – como bem se sabe – é e tem sido pródiga em violências e perversidades…

A expressão “comunismo hermenêutico”, portanto, pode soar bem estranha para muitos, não só por causa do adjetivo que qualifica o nome, e que significa algo como “interpretativo” – mas também porque esse substantivo reaparece de um fundo de ineficiência, propaganda enganosa e opressão. O fato é que ressurge agora no título de um livro publicado no começo da última década, escrito por Gianni Vattimo e Santiago Zabala. A obra pretende resgatar o caráter emancipatório da proposta comunista, com que ela estava associado no. Eis o título completo do escrito: Comunismo hermenêutico – De Heidegger a Marx (Herder, 2012). Ora, a associação do conceito de comunismo ao filósofo alemão que aderiu ao nazismo na década dos anos 1930 torna essa expressão ainda mais estranha.

Antes de avançar, é preciso apresentar uma tipologia que se encontra no livro Comum – Ensaio sobre a revolução no século XXI, de Pierre Dardot e Christian Laval (Boitempo, 2014). Esses dois autores apresentam as grandes compreensões do comunismo na forma de três tipos ideais: como um ideário baseado na formação de comunidades de iguais, como auto-organização democrática dos trabalhadores em geral e como um regime de partido único que domina o Estado e a própria sociedade.

A primeira concepção, segundo Durkheim – que citam –, nasceu em A República de Platão. A sua tese básica é que o comunismo consiste numa utopia transistórica. Eleorienta as ações humanas em busca da realização de comunidades de pessoas que se têm por iguais e que, por isso, vivem e consomem em comum. Essa concepção, é de se notar, funda o cristianismo primitivo e se encontra em várias passagens da Bíblia. Em última análise, funda-se na ideia de uma totalidade ética.

A segunda compreensão de comunismo surge na sociedade moderna visando superar as relações sociais indiretas e alienadas – mediadas que estão pelas mercadorias e pelo dinheiro – entre os seres humanos. Para Durkheim – afirmam Dardot e Laval – essa concepção dá origem ao socialismo contemporâneo. Ela não se vê como uma utopia, mas como um princípio ativo que transforma a sociedade atual visando constituir uma nova sociedade caracterizada por relações sociais diretas. É como uma associação democrática de trabalhadores livremente organizados que o socialismo aparece em O capital.

A terceira concepção é aquela que se cristalizou no século XX, em várias nações, por meio das revoluções comunistas. Estas fizeram existir Estados que não apenas assumiram o monopólio da violência, mas também passaram a ditar as formas de existência da sociedade, assim como dos discursos na esfera política, das artes e da cultura, enfim, do presente e do futuro das nações que, sob o jugo de burocracias,apresentavam-se como comunistas. Se esse resultado foi possível – creem Dardot e Laval – é porque havia falhas na política do marxismo e em sua compreensão da história.

A tese de partida de Vattimo e Zabala é que o comunismo surgiu com um espectro que amedrontava a grande, a média e a pequena burguesia no século XIX, mas que agora ele aparece apenas com um fantasma do passado que já não assusta nem mesmo os anticomunistas mais paranoicos. Com base nessa constatação inicial, eles querem explicar por que ocorreu essa mutação, por que houve esse deslizamento em seu significado original e por que “a hermenêutica traz consigo a possibilidade de renovar o potencial do comunismo no mundo atual”.

Segundo os autores, havia no comunismo histórico uma debilidade constitutiva: o seu caráter autoritário e violento, mesmo quando se leva em consideração as limitações em que nasceu e se desenvolveu, sempre estiveram em contradição com as suas promessas emancipatórias. Ora, essa sua falsidade constitutiva, decorria do fato de que nunca passou de um projeto metafísico e cientificista: tal como o liberalismo, esse comunismo era produto de uma “filosofia absoluta da história, dominada pela ideia de progresso”.

Se o liberalismo pretendeu sempre estar baseado em leis naturais e, portanto, verdadeiras, do evolver e do funcionamento da economia de mercado, o comunismo realmente existente se fundou numa admitida lei de transformação da história. Eis o que disse para si mesmo e repetiu inúmeras vezes até que ficou plenamente convencido do rumo inexorável dos acontecimentos: por meio da ação das forças sociais, da luta de classes, ocorrerão dois partos: o capitalismo gerará o socialismo e este, por sua vez, fará nascer o comunismo!

Desse modo, tanto os capitalismos quanto os socialismos que ainda existem ou existiram aparecem como realizações que provêm das ações e lutas dos seres humanos, mas que se mantêm e prosperam porque estão ancoradas em metafísicas – e por esse conceito se entenda aqui “políticas socioeconômicas que têm seu fundamento numa verdade objetiva da história”. Como se sabe, a palavra “metafísica” designa usualmente um modo de pensar que concebe o “ser do ente”, ou seja, das coisas como tais, como estável, objetivo e permanente, podendo ser apreendido como uma “verdade objetiva”, como uma “verdade definitiva”.

Ora, segundo os autores, tanto a revolta global de 1968 quanto a queda do muro de Berlim e o fim da União Soviética anunciaram e mesmo realizaram a dissolução real e geral da metafísica no plano da história. No plano da filosofia, Marx e em especial a teoria crítica de Adorno e Horkheimer por um lado; Nietzsche e Heidegger por outro, fizeram uma crítica devastadora das correntes metafísicas desde Platão até Hegel, por um lado, e Husserl por outro.

Vattimo e Zabala parecem pensar que essas filosofias metafísicas não apenas interpretaram o mundo, mas ajudaram também a governar as práticas nas sociedades que se sucederam, grosso modo, desde o século IV a.C. até o século XX d.C. Mas, o que nasce afinal de seu falecimento tardio? Nascem, segundo eles, as filosofias hermenêuticas que se apresentam sempre como esforços de interpretação histórica, endógenos à própria história, e não como conhecimentos objetivos que se pretendem verdadeiros, universais e transistóricos. Nasce, também, a possibilidade de reorientar virtuosamente as transformações históricas.

Para eles, “a crise do comunismo soviético – assim como a crise atual que o capitalismo neoliberal que enfrenta – requer do marxismo uma virada hermenêutica”. Os seus grandes erros, os seus descaminhos, as suas formas de governo autoritárias e totalitárias decorreram – ainda segundo eles – de uma incapacidade intrínseca de apreender e considerar a subjetividade coletiva das populações nos países que se tornaram socialistas no século XX. Ele estava ciente de uma verdade da história e, por isso, achava-se no direito de impor ferreamente à população governada o caminho do desenvolvimento econômico e social.

A lógica cientificista atuou para elevar as forças produtivas por meio da economia centralizada, sem respeitar a complexidade dos processos de produção e das demandas econômicas, assim como os pleitos democráticos em prol da participação política na construção de uma vida boa. Considerou, assim, estupidamente, que uma consciência de classe socialista surgiria mecanicamente do próprio progresso material da sociedade.

O que representa essa retomada possível do comunismo? Para eles, como não poderia existir efetivamente uma sociedade sem classes em geral, sem diferenças e sem conflitos, o comunismo não se afigura como um Estado objetivo que vai se realizar num certo momento do futuro. Também a tese do desaparecimento da escassez que lhe é constitutiva parece irrealizável. Porém, se não é possível, dizem, “imaginar um mundo onde o comunismo se completou, tampouco se pode renunciar a esse ideal como um princípio regulador e inspirador de decisões concretas”. A ideia, para eles, de uma revolução ou de um processo histórico que se fecha e se completa é já, implicitamente, uma pretensão que tende a se converter num poder despótico.

O comunismo – afirmam – é, no entanto, um imperativo ético a que não se pode renunciar sem ceder na prática a alguma forma de opressão. Assim, “o comunismo é uma utopia ou, como disse Benjamim, trata-se de um projeto de poder messiânico e débil” – débil porque não pode ser imposto por uma vanguarda sem contrariá-lo em princípio.

A tese de Vattimo e Zabala pode suscitar muitas dúvidas e muitos debates. Não se pode julgar que pode ser bem compreendida numa resenha que não abrange todas as sendas teóricas e práticas que o livro apresenta. Esses autores, por meio de uma linguagem abissal típica de Heidegger, mencionam, por exemplo, que veem “no comunismo e na hermenêutica o destino de um acontecimento, uma espécie de chamamento do ser (…) que não é inventado ou descoberto, mas que recebem e lutam para responder”. Porém, essa convocação, enfatizam, não é misteriosa ou transcendente. Ao contrário, diz respeito à urgência do tempo presente.

Por isso, diante do interesse nessa temática, é preciso conceder-lhes aqui a palavra por extenso: “é preciso ver que o comunismo deve servir agora de “espectro”, isto é, não como um programa político que propõe novos caminhos racionais para um crescimento sem restrições; mas sim como um movimento que abraça a causa programática do “decrescimento” como a única maneira de salvar a espécie humana. Assim, a função de espectro – que perturba e altera a rotina serena daqueles que, como Hamlet, colhem os frutos de sua violência – é útil para sacudir as consciências daqueles que preferem não admitir as consequências funestas do capitalismo.”

Em consequência, “o comunismo jamais poderá se apresentar como uma força radical revolucionária”. Deve também “pôr um fim ao reformismo” atual da esquerda, já que este não tem obtido mais quaisquer avanços nas “democracias estancadas” do Ocidente. “Uma sociedade sem classes e, em consequência, capaz de viver em paz é o ideal que deve reger a luta comunista no mundo”. “A sua completa realização não é imaginável”. Sempre existirá, portanto, uma lacuna entre o ideal e o real comunista que o “vínculo indissolúvel entre teoria e práxis” não poderá preencher. “Ao fim e ao cabo, o Messias, como Jesus ensina nos Evangelhos, jamais se deixa fixar de forma conclusiva”.

Posto esse resumo heroico do livro de Vattimo e Zabala, é preciso voltar a Dardot e Laval já que eles se concentram num tema menos enfatizado pelos dois primeiros: eis que propõem que é preciso lutar, mediante ações políticas, para libertar os comuns tanto dos mecanismos do mercado quanto da captura pelo Estado. Aderem, portanto, à segunda concepção antes mencionada, sugerindo que não se pode abandonar a ambição de democratizar mais e mais não apenas a esfera política, mas também o mundo econômico e social em geral. E essa alternativa recebe atualmente a denominação mais precisa de socialismo democrático.

Antes de terminar é preciso arguir que essa opção de Dardot e Laval implica em compreender a história em geral e, em particular, o desenvolvimento capitalista, com base numa ciência, numa cientificidade crítica para ser mais preciso – e não com base num saber meramente hermenêutico. A ciência concede que todo saber é interpretativo e que está dentro de uma tradição, mas, apesar disso, não recusa e não pode recusar o caráter objetivo do conhecimento, ainda que o pense sempre como provisório e sujeito a erro, ou seja, falível. Ora, a ciência também recusa a tese metafísica de que existem “verdades objetivas”, fixadas para sempre e transistóricas, em qualquer área do saber; mas ela não pode desistir de pressupor a objetividade do conhecimento.

De qualquer modo, a ambição de instituir formas de associação livre dos sujeitos sociais, para eles, implica que as pessoas em geral não possam mais estar a-sujeitadas nem à lógica acumulativa do capital, que se manifesta por meio dos mercados, nem ao domínio abrangente do Estado, que quer substituir a concorrência por um comando administrativo total. Para Dardot e Laval, os seres humanos têm de se libertar dessas duas fontes de heteronomia, dessas duas metafísicas reais: o Capital e o Estado.

Para eles, a organização social e a forma da política devem seguir o princípio do Comum. É assim que denominam a norma política geral que leva à instituição dos comuns efetivos e preside a construção e a difusão de formas de autogoverno na prática. Na sociedade boa, os lugares de trabalho (não alienado) devem ser postos como comuns, as formas de lazer, de criar cultura e arte têm de ser participativas, a própria democracia deve estar na raiz da instituição dos Comuns. Comum é também o ar e água que devem ser preservados para haja vida em comum – ou seja, para que não sejam sistematicamente degradados como acontece agora.