domingo, 31 de agosto de 2014

LIEBKNECHT, Wilhelm




Wilhelm Liebknecht socialista alemão, um dos principais fundadores do Partido Social Democrata (SPD), de orientação marxista, considerado o maior partido politico da Alemanha e de mais longa existência naquele país, pois atua até hoje. 

Pai de dois grandes militantes socialistas Karl Liebknecht e Theodor Liebknecht (Karl, fundador juntamente com Rosa Luxembugo da Liga Spartacus e posteriormente do Partido Comunista da Alemanha, e Theodor militante do Partido Social-Democrata Independente da Alemanha -USPD, de posição centro-esquerda), Wilhelm nasceu em 29 de março de 1826, em Giessen, na Alemanha. 

Após a morte de seus pais, em 1842 foi morar com familiares, passando a estudar no Ginásio na mesma cidade onde nascera, tendo se dedicado posteriormente à filologia, teologia e filosofia, respectivamente em Giessen, Berlim e Marburg. Suas atividades politicas no movimento estudantil, fizeram-no emigrar para os Estados Unidos.

A convite de um diretor de uma Escola em Zurique, na Suiça, em 1847 muda-se para aquele pais para dedicar-se ao magistério, iniciando naquele mesmo ano suas atividades de jornalista fazendo a cobertura da guerra civil que eclodira naquele mesmo ano de 1847, entre conservadores católicos e liberais protestante, da qual resultou a criação, em 1848, de um Estado federal na Suiça, com a promulgação de uma nova Constituição.

Em fevereiro de 1848 com revolução de Paris, Wilhelm se transfere para a capital francesa e de lá vai para a Alemanha, onde participa da Revolução de 1848.  Preso em Baden, é acusado de traição, mas consegue fugir se exilando na Inglaterra.

Com o fim da Revolução de 1848 na Alemanha, Wilhelm retorna à Suíça, tornando-se um dos principais membros da Associação dos Trabalhadores de Genebra (Genfer Arbeiterverein), onde conhece Friedrich Engels.

Suas atividades politicas direcionadas à união dos trabalhadores alemães na Suíça levam-no novamente à prisão, tendo sido banido desse país em 1850, mudando-se para Londres onde ficou de 1850 a 1862, tornando-se membro de Liga dos Comunistas, desenvolvendo uma intensa colaboração com Karl Marx.

Em 1862, após a decretação da anistia para os participantes da Revolução de 1848/49, retorna à Alemanha onde torna-se membro da Associação Geral dos Trabalhadores Alemães (Allgemeiner Deutscher Arbeiterverein – ADAV), fundado por Ferdinand Lassalle.

De 1864 a 1865, Liebknecht trabalhou na revista Der Social-Demokrat, publicada por Jean Baptista von Schweitzer, mas por desacordo com o posicionamento amigável de Schweitzer com o ministro prussiano von| Bismarck, sai da equipe da revista e da Associação Geral dos Trabalhadores Alemães. 

Mudando-se para Leipzig, conhece August Bebel, com quem fundou em 1867 Sächsische Volkspartei e dois anos depois cria e dirige juntamente com August Bebel, o Partido Social-Democrata dos Trabalhadores da Alemanha (Sozialdemokratische Arbeiterpartei Deutschlands - SDAP), em Congresso realizado em Eisenach, além de desempenhar a função de editor do jornal Der Volksstaat (“Estado do Povo”), tendo ocupado ainda uma cadeira no parlamento (Reichstag).

Julgamento por alta traição de Liebknecht (em pé)
Bebel e Hapner (sentados), em Leipzig
Em 1870, com a eclosão da Guerra Franco-Prussiana, Liebknecht, através das páginas do seu jornal faz uma tremenda campanha contra a guerra, conclamando os homens de ambos os lados da fronteira para se unirem para derrubarem a classe dominante dos seus países. 

Como consequência de sua agitação, em 1872 ele, August Bebel e Adolf Hepner são presos e acusados perante  um tribunal de Leipzig, de alta traição, sendo condenados a dois anos de prisão em fortaleza. 

Em 1875, no Congresso realizado em Gotha, fundiram-se o Partido Social-Democrata dos Trabalhadores (SDAP) sob a liderança de Liebknecht e a Associação  Geral dos Trabalhadores Alemães (ADAV) de Lassalle, assumindo o nome de Partido Operário e Socialista da Alemanha.

Para este Congresso de 1875, Liebknecht redigira um Programa para ser apresentado e discutido pelos congressistas. Este Programa mereceu de Karl Marx alguns comentários publicados por Engels sob o titulo “Critica ao Programa de Gotha.” 

Autor de várias obras e panfletos entre os quais, “Sobre a Posição Politica da Social-democracia” (1889), “Karl Marx: Memórias Biográficas” (1896), “O Primeiro de Maio na Alemanha” (1897), “Nenhuma Negociação Politica” (1899). 

Um dos lideres da Primeira Internacional (1864-1876) e da Segunda Internacional Socialista (1889-1914), Wilhelm Liebknecht faleceu no dia 7 de agosto de 1900 em Berlim.



Lénin assim se refere a Wilhelm Liebknecht em sua obra Que fazer? 

tribuno que sabe reagir diante de todas as manifestações arbitrarias e opressivas, onde quer que se apresentem e seja qual for a camada social ou a classe a que digam respeito; que sabe reunir todos esses fenômenos num quadro geral do arbítrio policial e da exploração capitalista, e que sabe utilizar cada coisa insignificante para explicar ao mundo inteiro sua convicção socialista e suas reivindicações democráticas, para demonstrar claramente a todos a importância histórica mundial do movimento de emancipação do proletariado. 


(Dados compilados por Aluizio Moreira)



Fontes:
Arquivo Marxista na Internet
BEER, Max. História do socialismo e das lutas sociais.São Paulo:Expressão Popular,2006.
BRAVO, Gian Mario. Historia do socialismo. Lisboa:Europa-America, 1977, 3 vols.
COLE, G.D.H. Historia del pensamiento socialista.Mexico:Fondo de Cultura, 1957-1960, 7 vols.
DROZ, Jacques (Dir). Historia geral do socialismo. Lisboa: Horizonte, 1972-1977, 9 vols.
HOFMANN, Werner. A historia do pensamento do movimento social dos séculos 19 e 20. Rio de Janeiro:Tempo Brasileiro, 1984.

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

As “diferenças” das siglas do Partido Único


Por Fausto Arruda
  


Com a proximidade da data marcada para as eleições no Brasil e os institutos de pesquisas dos monopólios de comunicação alarmados com a propensão de grande parte do eleitorado a repudiar a farsa eleitoral, as siglas que compõem o Partido Único, principalmente PT, PSDB e PSB, ensaiam um joguinho de faz de conta para, mais uma vez, atrair a atenção do eleitorado para suas pseudodiferenças.

Tudo junto e misturado

As coligações, tanto ao nível nacional como estadual, são as provas cabais dessa condição de Partido Único que constituem as diversas siglas. Suas diferenças não vão mais além dos vorazes interesses de grupos correspondentes às oligarquias regionais e do afã de poder pessoal que distinguem as cúpulas de tais siglas. Exemplo disto é a situação patente do principal partido de sustentação do gerenciamento petista, o PMDB, que terá palanque diferenciado de seu aliado nacional na maioria dos estados. O mesmo PMDB que, liderado pelo atual vice-presidente Temer e candidato à reeleição, serviu como um dos principais sustentáculos para as privatizações do PSDB, sob o comando de FHC, agora entra no processo eleitoral com sua convenção obtendo pouco mais de 50% de apoio à candidatura de Dilma, pois, sua base carioca, liderando uma rebelião nacional, já hipotecou seu amor a Aécio Neves do PSDB.

Vale salientar que figuras carimbadas com o selo do regime militar como Sarney, Maluf e Delfim Netto, por exemplo, serviram a gregos e troianos dentro do Partido Único. O mesmo acontecendo com Henrique Meireles, o representante do sistema financeiro internacional, que, filiado ao PSDB e indicado por seus amos, foi aceito pelos petistas para ocupar o Banco Central do Brasil. Este foi um exemplo escancarado de “raposa tomando conta do galinheiro”, já que o FMI e o Banco Mundial queriam se certificar de que Luiz Inácio cumpriria à risca o que escrevera na “carta aos brasileiros” de se submeter às diretrizes do imperialismo. Junte-se a esta geleia geral a figura de Fernando Collor, que após cumprir cassação de seus direitos políticos, como resultado do seu impeachment, do qual o PT foi um dos principais articuladores, compõe hoje a sua base aliada. Noves fora o PSB, que há bem pouco tempo integrava o gerenciamento petista e que tecia loas tanto a Luiz Inácio quanto a Dilma Rousseff, a base aliada da gerente federal é quase a mesma que deu sustentação ao PSDB no gerenciamento de Cardoso. E mais, em São Paulo serve como base aliada de Geraldo Alckmin, candidato à reeleição tendo como vice um indicado pelo PSB de Eduardo Campos e Marina Silva, fantasiados de terceira via.

Enfim, capítulos conhecidos da nauseabunda novela: a farsa eleitoral que dá cobertura jurídica e legitimidade de “democracia” à ditadura de grandes burgueses e latifundiários a serviço do imperialismo, principalmente ianque.

Inventando "diferenças"

Verdade cada vez mais percebida pelo povo é que as principais siglas do Partido Único têm como ponto de coesão a política de subjugação nacional consubstanciada na submissão ao imperialismo e na manutenção da semifeudalidade. Estas são as características do capitalismo burocrático implementado no país que resulta no domínio da maquina estatal pelos representantes do imperialismo, da grande burguesia e do latifúndio. São os representantes destes setores que montam a farsa eleitoral através do financiamento das candidaturas, seja do executivo seja do legislativo, que se submetem e se comprometem com a defesa de seus interesses. Examinem-se os relatórios oficiais do STE (Superior Tribunal Eleitoral) sobre a prestação de contas das varias siglas para se constatar que os financiadores são praticamente os mesmos. Isto acontece porque estes financiadores sabem que qualquer dos que se elejam cumprirão o programa mínimo da manutenção do mercado, da subjugação nacional e da semifeudalidade. Daí que programaticamente as diferenças são cosméticas.

Chegado o período eleitoral é necessário criar o clima de quermesse, de rivalidade entre o partido azul e o vermelho. Pelos discursos pronunciados pelos principais candidatos do Partido Único poderemos ver que eles se esmeram em apontar diferenças entre eles, fazendo-as aparecerem como contradições irreconciliáveis. Aécio Neves acusa o PT de corrupção e de desmonte do Plano Real que, como vimos, foi elaborado pelo FMI e pelo Banco Mundial, e para tanto propõe um tsunami para varrer o petismo da gerencia do Estado. Luiz Inácio e sua criatura Dilma Rousseff reafirmam todos os seus compromissos com o imperialismo, com a grande burguesia e com o latifúndio, principalmente o agronegócio, e superfaturam a política de focalização da pobreza orientada pelo Banco Mundial, chantageando os beneficiários com a possibilidade de sua suspensão, tudo ao velho estilo de política dos coronéis.

Enquanto isso escondem a retirada de direitos conquistados pelos trabalhadores. Valendo-se do xingamento que a torcida de ricos desferiu contra Dilma Rousseff em jogo da Copa e de artigos de alguns jornalistas da imprensa dos monopólios, que o PT cevou e continua cevando, escolhe-os como seus principais inimigos e desafetos propondo a pseudopolaridade entre “eles e nós”. Ou seja, à guisa de discurso novo nas eleições, querendo com isso reviver os tempos passados quando o PT tinha uma militância que ia para as ruas e erguia sua bandeira vermelha. Esta foi substituída por marqueteiros e funcionários contratados e regiamente pagos para segurarem bandeiras verde e amarela. Por sua vez Eduardo Campos e Marina Silva procuram também uma diferenciação com seus concorrentes em cima de questões superficiais, restringindo-se mais ao quantitativo do que ao qualitativo, propondo mais do mesmo, tentando roubar os patrocinados de Aécio e de Dilma, afirmando que são mais capazes de realizar seus interesses e de “modo sustentável”.

Sobre a mudança do caráter do Estado, o fim do latifúndio, a independência nacional e uma real e nova democracia para as massas, obviamente, nenhuma palavra de nenhum deles além dos arroubos demagógicos próprios da farsa eleitoral.

Só a Revolução demarcará o campo entre nós e eles

Ao afirmar que não se combate o imperialismo sem simultaneamente combater o oportunismo, Lenin tinha bem presente a ideia de quanto é nociva e deletéria a ação do oportunismo infiltrado no campo do proletariado e do povo em geral para fazer a política do imperialismo.

Hoje, mais do que nunca, o oportunismo joga todas as suas fichas na farsa eleitoral para manter as massas acorrentadas a esta velha e falsa “democracia” das classes dominantes. Levantar bem alto a bandeira da Revolução de Nova Democracia, criando o instrumento para sua implementação: o Partido Revolucionário. Difundir amplamente o programa democrático da revolução baseado na Revolução Agrária e Anti-imperialista a ser implementado pela frente única das classes oprimidas, baseadas na aliança operário-camponesa e dirigida pela classe operária através de seu Partido Revolucionário.

Essa é a tarefa que está colocada para a juventude combatente do nosso país e para todos aqueles historicamente empenhados na transformação completa das estruturas econômicas, sociais, políticas e culturais de nossa sociedade.

Charge: Cleuber


sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Aspectos da criminalização da luta social no Brasil


A agilidade do Executivo em cumprir a agenda do capital, modificando leis para criar um estado de exceção e repressão, contrasta com a não execução das políticas públicas capazes de promover direitos e a ausência de ações/recursos para proteção de pessoas ameaçadas


por Francisco Carneiro de Filippo




No dia 6 de setembro, o militante Edson Francisco, da coordenação nacional do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) no Distrito Federal, teve sua casa invadida por dois homens, que dispararam dezoito tiros. Um atingiu-o de raspão no lado esquerdo do peito. Meses antes, Edson havia sofrido um constrangimento institucional ao ser conduzido à força para depor como testemunha em outro processo. No fórum, sofreu pressões psicológicas e só foi retirado de lá (mesmo após o fim do julgamento) graças à manifestação insistente do advogado, acionado por mensagem telefônica enviada às escondidas.

Entre junho e julho, o MTST fez uma jornada de lutas e ocupações questionando o déficit de 350 mil moradias na região. Desesperado, o governo do DF tentou desqualificar e associar o movimento a práticas criminosas, e fez ações de desocupação sem mandato judicial. No entanto, no final, foi obrigado a garantir o direito de ao menos quatrocentas famílias. A tentativa de assassinato de Edson Francisco está diretamente relacionada a tudo isso.

Esse não é um caso isolado no Brasil. O que temos visto em 2011 é o avanço da criminalização dos movimentos sociais e da pobreza. Trata-se de uma face ainda obscura, mas bastante dolorida, dos rumos econômicos, políticos e sociais do país no século XXI. Cabe evidenciar outras situações já ocorridas neste ano.

Em maio, no Pará, estado que concentra o maior número de assassinatos no campo, o casal de seringueiros José Claudio Ribeiro e Maria do Espírito Santo foi assassinado em virtude da defesa da floresta e dos direitos de seus povos. Ainda no Norte, só no Amazonas existem 31 pessoas listadas pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) com ameaças de morte.

No Rio de Janeiro, em 12 de agosto, a juíza Patrícia Acioli, de São Gonçalo, teve o corpo alvejado por vários tiros, após ataque de policiais por ela investigados. Exatamente um mês depois, Márcia Honorato, militante da Rede contra a Violência (RJ), sofreu uma nova tentativa de assassinato, quando um Siena cinza com homens encapuzados, vistos em articulação com policiais locais, tentaram atropelá-la por mais de uma vez, na tarde e noite do dia 12 de setembro.

Em Minas Gerais, em 14 de junho, Lacerda e Eliane, também do MTST, sofreram uma tentativa de homicídio e só não perderam a filha porque a arma travou. Ao tentar fugir, Lacerda foi alvo de disparos. Durante a investigação, a polícia mineira inverteu o jogo: Lacerda, vítima de tentativa de homicídio, foi colocado como criminoso, por meio da acusação de porte de arma e desacato à autoridade. Em Goiás, padre Geraldo vive ameaçado pelas milícias que denunciou por tortura e extermínio dos jovens que assessora. Ameaças e tentativas de assassinato também ocorreram em Recife, São Paulo e várias outras cidades do país.

Hoje, a criminalização dos movimentos e da luta social envolve, em geral, dois aspectos centrais:

a) a criminalização do protesto e da vida cotidiana da periferia.

Diversos aspectos recentes fizeram que a vida na periferia fosse associada ao crime. O primeiro diz respeito ao conceito constituído no âmbito do Estado de como coibir a violência, em especial aquela fruto da desigualdade social e da pobreza, com repressão policial e isolamento geográfico. Os casos clássicos − Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), no Rio, e Força Nacional, no entorno do DF − mostram essa vinculação de território e repressão de maneira direta. A política de “segurança” substituiu a ausência da política de inclusão social e transformou a vida nas periferias no lugar comum do abuso da violência policial e da repressão ativa.

O crescimento do tráfico representa de forma concreta a morte de jovens, mas serviu também como desculpa para essa “transmutação” do conceito de combate à pobreza: de política social para repressão. Em nome do combate ao tráfico, e posteriormente da proteção das regiões ricas e de grandes eventos, permite-se a abordagem truculenta e a humilhação física e moral da população pobre.

Por fim, em áreas ora dominadas pelo tráfico, ora pela repressão, fica difícil a tomada de consciência e a organização para a conquista ou a defesa de direitos. O sentimento de impunidade, que remonta ao período da ditadura militar, diminui ainda mais as chances de organização. Quando se limitam as possibilidades de protesto, escancara-se a porta para o capital que destrói direitos (sociais, humanos e de território) por meio das políticas do fato consumado e, com o apoio oficial, impede a denúncia, por parte da população, de seus direitos desrespeitados.

b) a associação da luta organizada como uma ameaça à sociedade e ao statu quo, e não mais como um direito.

A criminalização da pobreza ganha complexidade quando analisamos sua transposição para a criminalização da luta em si. Primeiro, ao generalizar o conceito de terrorismo − principalmente a partir dos ataques de 11 de setembro − a qualquer ação organizada da periferia, os principais meios de comunicação colocam numa escala desigual o debate com a sociedade. Ao dar voz somente ao lado opressor, sejam os agentes das grandes empresas do campo e da cidade, da especulação imobiliária ou do próprio governo, esses meios deturpam por completo o que resta de democracia no país.

Envolvimento da polícia

Segundo, na maioria dos “acertos de contas” feitos com ativistas encontra-se o envolvimento da polícia, seja com presença direta de agentes no atentado ou em tentativas de coerção, seja na omissão das próprias delegacias em investigar. Assim, o medo de que a denúncia possa causar efeito contrário faz que boa parte das ameaças não seja registrada e reforça ainda mais a impunidade.

Outro item que impede a proteção e a segurança aos militantes é o acesso à justiça como um todo. A diferença de poder econômico entre os entes, a coerção e as ameaças feitas a juízes e promotores comprometidos com a justiça social implicam acessos assimétricos ao poder e, portanto, muitos casos não investigados. Ademais, constata-se o aumento de decisões judiciárias em relação a interditos proibitórios, anulação de greves ou omissão perante ações desproporcionais. Boa parte do judiciário brasileiro acaba por reforçar o processo de criminalização dos movimentos sociais.

Esse crescente processo encontra eco na ausência de políticas públicas e na dificuldade de relação dos movimentos com o governo, que vincula o diálogo à institucionalização do movimento. Por vezes, esse diálogo é condicionado à negação de direitos (como nas greves) ou após o fato consumado (derrubada de moradias e ocupações populares), fazendo que o Estado aja em nome do opressor.

A agilidade do Executivo em cumprir a agenda do capital, modificando leis para criar um estado de exceção e repressão, contrasta com a não execução das políticas públicas capazes de promover direitos e a ausência de ações/recursos para proteção de pessoas ameaçadas.

Com a união desses fatos, criam-se as condições que permitem o aumento dos atentados e assassinatos de pobres e lideranças populares, bem como o próprio sentimento de impunidade dos demais agentes, sejam gangues organizadas, setores da polícia e do governo ou, principalmente, capangas dos grandes setores empresariais, que ganham e acumulam pela retirada de direitos da população.

A não resolução desse problema afeta princípios básicos da liberdade de organização do povo brasileiro. Os fatos deste ano mostram que, na base da ameaça e da morte, constrói-se um estado de exceção e ditadura aos povos e de ampla liberdade para o capital.



Francisco Carneiro de Filippo é economista, militante do PSOL-DF e da Assembleia Popular.

Ilustração: Movimento dos Trabalhadores Sem Teto - (http://www.mtst.org)


FONTE: Le Monde Diplomatique Brasil

domingo, 17 de agosto de 2014

“O marxismo brasileiro precisa se renovar”: entrevista com Alvaro Bianchi e Marcelo Badaró


Por Daniela Mussi 

Em 1998, ano em que o Manifesto Comunista de Karl Marx e Friedrich Engels completou seu 150o aniversário, surgiu no Brasil a Revista Outubro. Seu manifesto de lançamento editorial apresentava uma revista marxista independente, cuja vocação estava na publicação de artigos e resenhas dedicados à atualização da pesquisa teórica e empírica crítica do mundo capitalista. Seu corpo de colaboradores era formado por pesquisadores e professores experientes e jovens acadêmicos e era principalmente do trabalho dedicado destes últimos que a revista retirava sua vitalidade e dinâmica.

A Revista Outubro nasceu com a meta de agregar e divulgar o pensamento de intelectuais marxistas em um contexto cujo ambiente acadêmico e a opinião pública brasileira se mostravam fortemente refratários à contribuição teórica e analítica destes. Seu desafio era o de enfrentar, por um lado, o agressivo avanço das ideologias do “fim da história” e da morte do ideário socialista e revolucionário, sob as quais se erguiam e sustentavam governos neoliberais ao redor do mundo. Por outro, o de compreender e enfrentar as forças centrípetas e centrífugas que desagregavam e desorganizavam o que restara da cultura marxista e criavam polos efêmeros de atração intelectual, cujo alcance se esgotava na estação seguinte.

Hoje, passados pouco mais de 15 anos, a Revista Outubro decidiu disponibilizar todo o material produzido na Internet e passará a publicar suas próximas edições exclusivamente online. São dezenas de artigos e resenhas acessíveis gratuitamente, com pesquisas e comentários bibliográficos a respeito de diversas tradições marxistas brasileiras e internacionais. O objetivo é dinamizar a produção e divulgação de seu material, bem como democratizar o acesso de antigos e novos leitores e leitoras ao conteúdo da revista.

Leia a seguir a entrevista com dois fundadores da Outubro, os professores Alvaro Bianchi (Unicamp) e Marcelo Badaró (UFF), sobre a trajetória desta revista, a atualidade do marxismo e os desafios para o futuro. 

Como surgiu a Revista Outubro? Quem fazia parte dela? O que motivou seu lançamento?

Alvaro Bianchi – A revista Outubro surgiu da percepção de que no final dos anos 1990 existia uma renovação do pensamento socialista e uma reativação dos movimentos sociais. O sinal havia sido dado pela greve geral na França, em 1996, e pela revolta em Chiapas, no México, em 1994. A revista foi lançada em outubro de 1998 e  em novembro de 1999 ocorreu a grande manifestação contra a Organização Mundial do Comércio, em Seattle. Acho que nossa caracterização estava certa.

No início reuníamos quatro grupos diferentes. O primeiro era formado por professores da Universidade Estadual de Campinas, como Edmundo Fernandes Dias, Márcio Bilharinho Naves e Ângela Tude, que haviam se afastado da revista Crítica Marxista, depois que Edmundo foi excluído de seu comitê editorial. O segundo era de professores e ativistas do Rio de Janeiro, como Marcelo Badaró Mattos, Juarez Duayer, Marina Barbosa e Elisa Guimarães, os quais estavam envolvidos na criação de um centro de formação política e sindical chamado Instituto de Estudos Socialistas (IES). O terceiro era organizado por Robério Paulino e reunia ativistas do IES de são Paulo. O último desses grupos era de jovens pós-graduandos da Universidade Estadual de Campinas, dentre os quais estávamos Ruy Braga e eu.

Marcelo Badaró – A revista surgiu em 1998, a partir da iniciativa de um grupo de professores (universitários e do ensino básico), estudantes e militantes políticos associados ao Instituto de Estudos Socialistas, fundado com o objetivo de promover cursos de formação política e difundir o debate teórico marxista. A nossa principal motivação era ocupar o que diagnosticávamos como uma lacuna entre os periódicos marxistas disponíveis.

Pretendíamos construir uma revista capaz de aprofundar o debate sobre a teoria marxista e as grandes questões da luta de classes hoje, que fosse ao mesmo tempo consistente do ponto de vista das contribuições ao debate e interessante para um público leitor militante que iria além dos espaços acadêmicos.

É muito comum encontrar no ambiente acadêmico e na opinião pública brasileira a ideia de que o “marxismo morreu”, que as ideias de Karl Marx e Friedrich Engels não possuem atualidade alguma. Como você localiza o pensamento marxista nos debates teóricos e políticos atuais?

Alvaro Bianchi - É um processo que tem um desenvolvimento desigual e combinado. Houve nos últimos anos uma importante expansão das universidades públicas brasileiras e isso permitiu o ingresso no sistema de ensino superior de novos professores e pesquisadores. Se nossa caracterização estivesse errada o pensamento marxista não teria sido beneficiado por essa expansão, mas o que ocorreu é que um número considerável dos jovens professores, principalmente na área de humanas, tinham passado pelo movimento estudantil ou sindical e eram influenciados de alguma forma pelo pensamento marxista. Nos anos 2000 cresceu muito o número de revistas, de centros de pesquisa e de encontros acadêmicos marxistas.

Mas como disse esse é também um processo desigual. Houve de alguma maneira uma ruptura nos anos 1990 que separou as gerações atuais das gerações precedentes. As razões são várias e eu destacaria duas: o avanço da ideologia neoliberal e o processo de absorção de muitos intelectuais promissores pela máquina de administração estatal petista. Dessa maneira as novas gerações de intelectuais marxistas tiveram que recomeçar seu trabalho praticamente do zero. Isso teve um preço bastante elevado. Em minha opinião  teoria marxista produzida hoje no Brasil está aquém daquela dos anos 1960 e 1970. O marxismo brasileiro é muito influente, mas precisa renovar-se e estar mais atento ao debate internacional, particularmente àquele que tem lugar na Inglaterra e nos Estados Unidos, que são hoje os centros dinâmicos de desenvolvimento da teoria marxista.

Marcelo Badaró - Acredito que a fase mais dura do antimarxismo nos debates públicos foi vivida nos anos 1990. Desde 2008, com a nova etapa de manifestação mais aguda da crise capitalista, os nomes de Marx e Engels voltaram a ser reconhecidos, ao menos como analistas relevantes da economia capitalista, muitas vezes até por porta vozes de um pensamento econômico liberal.

No entanto, o estrago produzido pelo antimarxismo acadêmico dominante desde anos 1990 foi forte o suficiente para que as novas gerações de professores e estudantes de pós-graduação tenham sido formadas, na maior parte das vezes, com uma visão estereotipada e preconceituosa do marxismo, que se reproduz amplamente nas áreas de Ciências Humanas e Sociais. Daí a importância dos centros de estudos marxistas e de revistas como Outubro, que se constituíram em trincheiras de resistência, aglutinaram marxistas dispersos em vários departamentos e instituições e ajudaram a formar uma nova geração de intelectuais críticos e militantes que teve muito pouco contato com o marxismo nas suas salas de aula.

O que é a renovação do marxismo hoje?

Alvaro Bianchi – A renovação do marxismo significa, a meu ver, enfrentar dois desafios hoje. Primeiro, o de um novo retorno crítico à obra de Marx e Engels, à luz das descobertas que a nova edição da Marx-Engels Gesamtausgabe (MEGA) tem permitido.  Temos hoje no Brasil novas traduções de importantes obras, as quais tem permitido estudos mais atentos às sutilezas do texto marxiano. Os primeiros passos tem sido dados nessa direção. Mas ainda há dívidas a serem saldadas, por exemplo, com a obra de Engels, frequente e injustamente desvalorizada, e com os escritos históricos e políticos que Marx produziu na década de 1860 e 1870.

Significa, em segundo lugar, ir além dessa obra e enfrentar, com o método de Marx e a partir de suas pistas, quatro críticas que considero fundamentais: a crítica da economia política contemporânea, a crítica da política presente, a crítica da atual divisão do trabalho e a crítica das ideologias pós-modernas. Para renovar-se, ou seja, para enfrentar esses desafios, o marxismo brasileiro precisa  internacionalizar-se e superar seu apoliticismo.

O marxismo brasileiro é ainda provinciano. Precisa colocar-se em diálogo com as correntes mais férteis do marxismo no mundo. E necessita, também, sair das universidades e vincular-se de maneira mais íntima aos movimentos sociais e aos partidos de esquerda. Sem essa internacionalização e sem a politização a renovação enfrentará limites intransponíveis.

Nos últimos anos, assistimos a um ciclo de revoltas e revoluções ao redor do mundo em que a juventude desempenhou um importante papel importante, bem como a Internet e suas redes sociais. Como pensar esse novo momento de um ponto de vista marxista?

Marcelo Badaró - Penso que a nós cabe o desafio de compreender em que medida tal participação da juventude, com suas potencialidades e limites, se relaciona à dinâmica da luta de classes, ou seja, de que forma podemos entender como as novas configurações do conflito entre capital e trabalho potencializa revoltas dessa natureza. Por exemplo, compreendendo como os protagonistas de muitos desses movimentos foram/são jovens com formação escolar mais elevada que seus pais trabalhadores, mas que apesar disso, em quadros sociais de avanço do desemprego e da precarização, já não possuem sequer a perspectiva do trabalho regular, quanto mais a de ascensão social. Isso, no entanto, não os faz identificarem-se automaticamente como parte da classe trabalhadora e, especialmente, os leva muitas vezes a rejeitar genericamente todas as organizações tradicionais da classe, como os partidos e os sindicatos. O que, diga-se de passagem, é um sentimento reforçado pelo percurso errático da maior parte dessas organizações nas últimas décadas.

Alvaro Bianchi –  O número 22 da revista Outubro trará um interessante artigo de Colin Baker que permite pensar esses processos políticos e sociais. Em vez de falar de “movimento sociais”, como boa parte da literatura tem feito, enfatizando as particularidades de cada um, ele propõe retornar à formula marxiana de “o movimento social em geral” para apreender as formas e manifestações variadas de revolta popular contra o atual desenvolvimento capitalista. Eu acho essa uma fórmula promissora que pode ajudar a compreender esse ciclo de revoltas e revoluções de um ponto de vista marxista. O que o marxismo permite é uma análise desses movimentos do ponto de vista da totalidade, como diz Lukács, apesar de sua heterogeneidade interna.

Não foram poucos os que tentaram explicar esses processos políticos e sociais. E nem sempre os marxistas acertaram. Algumas formulações que tentam atribuir a esses movimentos o caráter de “movimentos de classe média” são, a meu ver, claramente deficitárias teórica e empiricamente. Mas as melhores respostas foram dadas pelos marxistas e eu fico muito feliz em perceber que alguns deles são colaboradores da revista Outubro.

No caso brasileiro eu estou convencido de que foi um membro do Conselho Editorial da revista Outubro, Ruy Braga, quem matou a charada das revoltas de junho de 2013. O conceito de precariado que ele desenvolveu para explicar traços importantes das classes trabalhadoras brasileiras, permitiu compreender as principais características dessas revoltas: a juventude de seus integrantes, o fato da maioria deles trabalhar, a espontaneidade do movimento, sua radicalidade e, também, seu caráter ideologicamente confuso.

O nome da revista, Outubro, faz uma referencia ao processo revolucionário de 1917, na Rússia, quando os trabalhadores tomaram o poder do Estado, dirigidos por figuras como Lenin e Trotsky. Quase cem anos depois, é possível dizer que aquele “outubro” se mantém como referencia? Em que sentido?

Alvaro Bianchi - Nós estávamos em uma daquelas discussões intermináveis sobre o nome da revista, quando Márcio Bilharinho Naves sugeriu Outubro. Foi um consenso instantâneo. Porque, de certa maneira, Outubro sintetiza nosso programa. A revista tem um perfil anticapitalista, antirreformista e antiburocrático. Seu programa é, também, o programa da revolução Russa de 1917. Acho importante destacar que em outubro de 1917 teve início um período riquíssimo de desenvolvimento da teoria marxista. Algumas correntes dogmáticas tentaram reduzir esse desenvolvimento a este ou aquele líder soviético. Mas o que a revolução permitiu foi um impressionante movimento de ideias e o surgimento de correntes intelectuais inovadoras: o pensamento jurídico de Stuchka e Pashukanis; a linguística de Bakhtin e Volossinov; a teoria econômica de Rubin e Preobrazhenski; a historiografia da escola de Pokrovski; além é claro, do desenvolvimento do pensamento político de Lenin e Trotsky.

Isso sem falar das vanguardas estéticas na poesia, na literatura, na música e nas artes plásticas, das quais gosto muito. Descobri há pouco algo que deveria ter conhecido há muito, a opera de Shostakovich, Lady Macbeth  do Distrito de Mtsensk, inspirada na obra de um narrador russo que Walter Bejamin apreciava muito, Nicolai Leskov. A obra de Shostakovich é impressionante, de uma complexidade notável. Como muitos, esse compositor foi perseguido pelo stalinismo, que não lhe perdoou o fato de ter começado sua carreira com o apoio do comandante do Exército Vermelho, o grande estrategista Mikhail Tukhachevsky, executado em 1937 por ordem de Stalin.

Essa tradição teórica e cultural está longe de ter esgotado todo seu potencial e pode continuar a estimular um marxismo laico, livre de todo culto à personalidade. Por isso a revolução de outubro é não apenas uma referencia política, é, também, uma referencia intelectual.

Marcelo Badaró – Para nós, no momento de fundação da revista, o nome Outubro indicou um horizonte político claro: o de um marxismo comprometido com a transformação socialista, que só pode ser alcançada pela via da ruptura revolucionária. É nesse sentido que a revolução de 1917 continua a nos inspirar.

A orientação marxista revolucionária da revista nunca foi construída de forma dogmática ou sectária. Pelo contrário, nossa intenção sempre foi tomar a experiência soviética como objeto de reflexão. Temos como ponto unificador do coletivo a perspectiva crítica ao estalinismo, mas procuramos não receitar fórmulas revolucionárias definitivas. Por isso mesmo, o debate sobre as estratégias revolucionárias é outro ponto aberto nas discussões da revista.

(Entrevista publicada originalmente no blog do PSTU-Curitiba. Disponível em: http://bit.ly/1n18F1a)


FONTE: Convergencia

domingo, 3 de agosto de 2014

Dênis de Moraes: Reforma Agrária foi o que mais preocupou as classes dominantes


Por José Coutinho Júnior



O período que precedeu o golpe militar foi marcado por intensas lutas sociais no campo. As Ligas Camponesas e os sindicatos rurais mobilizavam os camponeses para exigir que os direitos dos trabalhadores rurais fossem cumpridos.

Na esteira dessas mobilizações, o governo de João Goulart realiza diversas medidas que beneficiam os trabalhadores, além de anunciar que priorizaria a Reforma Agrária nas reformas de base, conjunto de medidas planejadas para garantir direitos sociais e desenvolver o país.

Pouco tempo depois de anunciar as reformas de base, João Goulart foi deposto por um golpe militar, apoiado pelos setores mais conservadores da sociedade. Para o jornalista e professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) Dênis de Moraes, a Reforma Agrária foi um dos pontos que mais incomodou as classes dominantes.
  
“Goulart apontou reformas de base em várias áreas, mas uma das que mais preocupava as classes dominantes eram as medidas em relação à Reforma Agrária e as grandes linhas para o desdobramento da democratização do campo”.

Em entrevista à Página do MST, Dênis de Moraes analisa o papel das lutas sociais no campo durante o governo Goulart, no período da ditadura militar e a diferença na luta pela terra daquele período com as de hoje. Confira:

Que fatores levaram ao surgimento das reformas de base?

Para entendermos a dimensão das medidas tomadas por Goulart, precisamos analisar a crise agrária da época. 

Havia predominância absoluta do latifúndio: propriedades com mais de 1000 hectares representavam mais da metade do total do território agricultável. Os produtos agrícolas originários do latifúndio eram os principais itens da nossa pauta de exportação.

A luta de classes se intensifica, porque o lucro dos grandes proprietários rurais ultrapassava os limites, mas o arrocho salarial e as condições semifeudais que presidiam as relações sociais no campo revoltavam os setores mais mobilizados e conscientes dos trabalhadores rurais.

Ocorre um surto de mobilizações do campo que se materializou, no governo Goulart, no reconhecimento dos sindicatos dos trabalhadores rurais pelo Ministério do Trabalho.

Ele não foi só o homem que anunciou as principais reformas de base e se comprometeu a lutar por elas, ele tomou medidas para beneficiar os trabalhadores antes disso. Os benefícios da previdência social foram estendidos aos camponeses.

É no governo Goulart que é criada a Superintendência de Reforma Agrária (Supra) e se aprova o estatuto do trabalhador rural, uma espécie de CLT para os trabalhadores do campo.

Em relação às reformas de base, nenhum presidente foi tão longe no elenco de medidas para tentar conter o latifúndio e desapropriar terras improdutivas.

Ele mostrou consciência de que as terras devolutas da União deveriam ter uma destinação social para fixar o homem na terra, permitindo a pequena produção agrícola.

As reformas de base, no sentido do que elas representaram em grandes metas, continuam atuais porque simplesmente não tivemos até a presente data nenhum governo que se debruçasse com a coragem necessária ao problema do campo.

As reformas de base eram medidas estritamente capitalistas, ou representavam algo mais?

Temos que lembrar que o governo Goulart não era de esquerda. Era um governo que hoje podemos classificar de centro esquerda com viés progressista.

Mesmo não sendo de esquerda, e sem nenhum compromisso explícito para uma transição de caráter socialista, ele conseguiu avanços consideráveis, que governos posteriores que se apresentavam com plataformas socialistas, como foi o caso do inicio do governo Lula, não fizeram.

Esses avanços importantes do governo assustaram os setores conservadores, tanto na sociedade civil como nas forças armadas.

Goulart apontou reformas de base em várias áreas, mas uma das que mais preocupava as classes dominantes eram as medidas em relação à Reforma Agrária e as grandes linhas para o desdobramento da democratização do campo.

A burguesia em nenhum momento apoiou o governo Goulart?

O que ocorreu foi a ruptura de um pacto social que envolvesse a burguesia nacional, associada ao capital estrangeiro e ao imperialismo. Até 1963 uma parte da burguesia nacional tinha uma expectativa em relação ao governo. 

Com o aprofundamento da concentração golpista, que penetrou de maneira muito forte em setores da classe média, no empresariado e no latifúndio, se configurou um quadro em que a animosidade contra as reformas de base se expandiu, apesar de ter apoio consistente de setores populares.

Os golpistas veem que o presidente precisava se apoiar cada vez mais nas classes populares e setores mais politizados da classe média e deixam patente que não haveria possibilidade de um pacto social que buscasse acomodar interesses divergentes, vendo na conduta do governo e na pressão organizada que crescia na sociedade ameaças aos seus privilégios e intentos de dominação política. 

Por que a esquerda não se opunha fortemente à burguesia?

Uma das ilusões fundamentais da esquerda naquela fase foi a de que a burguesia poderia participar de uma aliança com os setores populares não só no sentido de assegurar a governabilidade, mas em ter um pacto de classes que permitisse um processo de transição para um país mais evoluído, menos desigual.

Foi uma ilusão grave, porque conduziu a uma ideia de que era possível conter a mobilização nas cidades e no campo para que não houvesse um quadro de acirramento da luta de classes, e com isso seria possível acomodar ou conciliar os interesses do trabalho e do capital.

Isso se revelou trágico, porque muito antes do golpe militar, a burguesia nacional estava onde sempre esteve: do lado do interesse do grande capital, da mercantilização generalizada. Parte da esquerda só na semana que antecedeu o golpe mostrou ceticismo no caráter de progressismo da burguesia nacional.

Qual foi o papel das Ligas Camponesas nesse período?

A trajetória das Ligas é um dos momentos mais significativos em termos de mobilização dos trabalhadores rurais do país. Esse movimento vem desde Juscelino Kubitschek, com o acirramento dos conflitos no campo e a brutalidade dos proprietários em não reconhecer os direitos elementares sociais, trabalhistas e previdenciais dos trabalhadores.

As Ligas representaram um momento extraordinário de convencimento, conscientização e organização de áreas importantes do meio rural, no sentido de fazer valer direitos no processo de enfrentamento cada vez maior dos grandes proprietários. Além disso, ocorria o processo de sindicalização dos trabalhadores.

A partir da influência cada vez maior da Revolução Cubana e de movimentos de libertação em outros países, as ligas radicalizavam seu ideário e métodos de ação política. Não foi uma radicalização negativa no sentido de atropelar o estado de direito democrático e a legalidade constitucional.

Mas a direita apresentava a mobilização dos trabalhadores rurais como uma quebra de princípios constitucionais, como se os trabalhadores não pudessem reivindicar condições e direitos básicos. Para a direita rural, os trabalhadores rurais eram como escravos, pois lhes eram negados de maneira quase absoluta os direitos.

Essa radicalização precisa ser analisada, pois em certos momentos as Ligas acreditavam ter mais poder do que de fato tinham. A partir de 1963, elas tem uma guinada à esquerda, com palavras mais revolucionárias, perdendo de vista que a sociedade vivia uma intensificação da luta de classes em um processo cada vez mais difícil, complexo e violento.

Antes do golpe, talvez as lideranças do movimento camponês tivessem perdido a bússola da correlação de forças. Consideravam que a balança pendia para o lado dos trabalhadores, quando o que existia era um cabo de guerra.

De um lado as forças dominantes, lideradas pelos grandes proprietários rurais, apoiados pelo conservadorismo e golpista; de outro o movimento dos trabalhadores rurais, tentando fazer cumprir seus direitos.

E os trabalhadores não dispõem dos recursos que a classe dominante tem. Ao lado dos proprietários estava a grande imprensa, que transformava as ligas e o sindicato em “adversários da democracia”, criminalizando o movimento, não diferente do que ocorre hoje em relação ao MST e outras organizações da sociedade civil que lutam pelos direitos dos trabalhadores.

Era uma disputa feroz e que pendia para o lado conservador, na medida que tinha apoio maciço dos meios de comunicação e do congresso nacional, muito conservador, que tornava difícil a aprovação de leis aos trabalhadores.

E depois do golpe, o que ocorreu com a luta no campo?

A história se concentra muito na repressão urbana, mas as Ligas Camponesas sofreram uma repressão barbárica, com prisões, torturas e perseguições das mais hediondas aos líderes. Os sindicatos rurais foram fechados, e os atos do presidente Goulart e da Supra anulados.

Esse processo não teve fim até a reabertura política, o que resultou numa involução de todo o processo de organização e mobilização feito pelas Ligas e sindicatos.

Por outro lado, assistimos ao fenômeno que resultou na versão mais perversa do agronegócio, que aumentou a concentração fundiária e preservou os interesses dos grandes proprietários. A entrada de capital estrangeiro nas atividades agrícolas do país encontrou na ditadura militar um estímulo e alavanca.

O processo pós golpe teve uma dupla violência, no sentido de desmantelar a organização dos trabalhadores do campo e suprimir os avanços em vigor no governo Goulart, além de permitir uma presença indiscriminada dos monopólios da terra, que já vinham de antes, mas que foram reforçados.

Hoje ainda há no Brasil alta concentração de terra, criminalização dos movimentos, forte presença do capital financeiro no campo... o que mudou do período da ditadura para cá?

A mudança mais benéfica é o surgimento de organizações que foram aos poucos recuperando os ideais das Ligas Camponesas e sindicatos rurais no sentido de conscientizar, organizar e mobilizar essa população tão desamparada, submetida a regimes de exploração no campo.

É doloroso reconhecer que mesmo os governos Lula e Dilma avançaram tão pouco nessa questão. Inclusive o governo Dilma investiu menos na Reforma Agrária do que o segundo governo FHC, o que é uma vergonha, uma demonstração de falta de prioridades.

Ao contrário, o agronegócio foi endeusado, a presença do capital estrangeiro tem sido incentivada. 

A luta foi novamente posta como prioridade pelos trabalhadores, e não podemos negar que as necessidades e carências do campo estão postas perante a sociedade.

O que me parece ser um dramático mais do mesmo é verificarmos na segunda década do século XXI que grande parte das questões majoritárias que envolvem a concentração fundiária nesse país continuam intocadas.

A concentração de terras continua presente, com vertentes do agronegócio que não tem o menor compromisso com o país e, por incrível que pareça, merecem apreço por parte de partidos que antes defendiam a Reforma Agrária, que quando chegaram ao poder rasgaram suas biografias e passaram a se conciliar com esses interesses a pretexto de que isso é a “modernização no campo”.

A modernização não pode ser feita em detrimento das garantias e direitos que o trabalho precisa ter. Hoje criamos uma modernização de rentabilidade dos processos produtivos, mas nos conservamos na vanguarda do atraso em termos de proteção social e defesa dos direitos humanos no campo.

Se isso é muito triste de constatar, mais razões temos para lutar, mesmo que seja um longo e árduo processo. Milton Santos costumava dizer que nossa tarefa enquanto militantes sociais é ter a luta como valor central, e não podemos nos abater com esse cenário. 

Pelo contrário, devemos nos fortalecer mais ainda apesar de todas as diversidades e obstáculos em uma luta que é essencialmente cidadã e civilizatória. 

Outros países na América do Sul estão democratizando o campo, exercendo severo controle sob a produção agrícola, utilizando de medidas legais para atenuar, quando não modificar radicalmente, o problema da concentração do campo. Precisamos fazer o mesmo.

Você acredita que fatores como a repressão aos movimentos sociais, violência policial e campanha midiáticas a medidas mais progressistas do governo apontam para outra guinada conservadora na sociedade brasileira? 

É difícil sustentar com elementos concretos a ideia de que a sociedade está se tornando mais conservadora, mas muitas observações podem ser comprovadas na realidade do país.

É fato que, desde a ditadura, o atual momento do Brasil seja o que há mais violência e repressão desde que terminou a ditadura. Isso é preocupante, porque mesmo num período democrático, uma série de direitos constitucionais são colocados em xeque por setores conservadores, que tem forte capacidade de influenciar a opinião pública pelos meios de comunicação. 

A mídia não é a única responsável; o governo nada fez para democratizar as concessões públicas do país de rádio e TV, há uma inércia governamental que revela uma contradição enorme entre o discurso de alguns líderes da coalizão governamental.

O ex-presidente Lula, que sistematicamente se queixa das deturpações e mentiras dos meios de comunicação, nada fez concretamente, durante oito anos de governo, para reverter a concentração responsável pela prevalência dos valores irradiados pela mídia no imaginário social do país.

Vivemos em um tempo preocupante. Os avanços tem sido tímidos, há uma espécie de temor em enfrentar o conservadorismo da imprensa e do congresso, uma inércia em temas como a Reforma Agrária, saúde, educação, e todas as vezes que há uma iniciativa “menos tímida” para tentar resolver algum desses problemas, há uma reação completamente desproporcional por parte dos setores conservadores.

É preciso romper com essa cadeia de mentira, de medo, de ameaças que rondam propostas que representem avanços à população e de grandes questões. Buscar vontade política e coragem para enfrentar esse conservadorismo, mobilizando a sociedade, que não pode ficar passiva, atordoada diante do que acontece no país. 

Temos que defender as liberdades democráticas e aplicar reformas de base, que possam rever o caminho do desenvolvimento de forma mais igualitária, mais justa e que coloquem a soberania nacional, a defesa dos recursos naturais, as identidades culturais do país a frente dos interesses mercantis.


*Para rememorar os 50 anos do golpe civil-militar, a Página do MST traz uma série de artigos, entrevistas e matérias ao longo dessa semana, que relacionam o papel da Reforma Agrária e das lutas sociais do campo em torno do golpe de 1964.  


FONTE: MST