quinta-feira, 31 de outubro de 2019

Althusser, Louis




“É essencial ler e estudar o Capital. Devo acrescentar que é necessário e essencial ler e estudar Lênin e todos os grandes textos, novos ou antigos, aos quais se devem a experiência da luta de classe do movimento operário internacional. É essencial estudar os textos práticos do movimento operário revolucionário em sua realidade, seus problemas e contradições: seu passado e, acima de tudo, sua história presente.”

Louis Althusser, in "A Filosofia Como Uma Arma Revolucionária"



Louis Althusser nasceu em 16 de outubro de 1918 na cidade de Birmandrais, na Argélia, então colônia francesa, para onde parte das famílias de seus pais havia emigrado. 

Após cursar o ensino fundamental em Argel, Althusser vai em 1930 para a cidade francesa de Marselha, completando ali os seus estudos secundários. De 1936 a 1939 ele frequenta o Lycée du Parc de Lyon, no qual se prepara para o concurso de ingresso na École Normale Superieur (ENS) de Paris. Nesse período, Althusser era católico e militante da Jeunesse Étudiante Chrétienne. 

Em 1939 ele ingressa na ENS, mas antes mesmo de iniciar os seus estudos é mobilizado para lutar na Segunda Grande Guerra e cai prisioneiro dos alemães, permanecendo em um campo de concentração de 1940 a 1945. Após o conflito, passa então a estudar filosofia na ENS, na qual se formaria em 1948. 

Desde o período da guerra Althusser padece de sucessivas crises psíquicas, que o acompanharão por toda a sua carreira. A partir de 1948 assume o posto de "caiman" - professor encarregado de preparar os estudantes para os exames de agregation - na ENS. Este também é o ano em que Althusser ingressa no Partido Comunista Francês, tendo já há algum tempo deslocado-se de suas posições católicas anteriores para o marxismo. 

É no início dos anos sessenta, no entanto, que surgem os trabalhos mais importantes de Althusser - Pour Marx (A favor de Marx) e Lire Le capital (Ler O capital) - que, contrapondo-se à leitura dominante de Marx até então vigente, terão o efeito de uma verdadeira revolução teórica no campo marxista. Sua produção intelectual se estenderá até os anos 80, com retificações, aprofundamentos e o desenvolvimento de uma original teoria da ideologia e dos Aparelhos Ideológicos de Estado. 

Sempre sofrendo de crises psíquicas e passando por períodos de tratamento e convalescência, Althusser vive em 16 de novembro de 1980 o drama de ter causado involuntariamente, por estrangulamento, a morte de sua companheira, Hélène, em uma severíssima recaída na doença. Afasta-se, então, do trabalho acadêmico e da cena pública, mas continua a produção teórica imerso na solidão e na culpa. Daí resultarão a sua biografia, L'avenir dure longtemps (O futuro dura muito tempo), em que reconstitui a sua trajetória e a tragédia que se abateu sobre ele, assim como uma série de textos em que apresenta uma concepção nova do materialismo, recuperando o atomismo dos pensadores da Grécia antiga, por ele denominada de "materialismo aleatório" ou "materialismo do encontro", e na qual alguns veem uma ruptura com a sua concepção primeva, e outros uma continuidade com ela. Althusser veio a falecer no dia 22 de outubro de 1990, vítima de um ataque cardíaco.

A principal contribuição que Althusser deu à teoria marxista foi a crítica ao economicismo e ao humanismo que dominavam as leituras de Marx. Demonstrando a irremediável ruptura entre Hegel e Marx, Althusser oferece uma nova periodização da obra marxiana, distinguindo um período de juventude, ainda ideológico, não-marxista, um período de maturação, no qual Marx formula o corpo conceitual de sua teoria, mas ainda em parte prisioneiro da ideologia burguesa, e o período da maturidade, em que a teoria do materialismo histórico é fundada em bases científicas rigorosas. Assim, por meio do conceito de corte epistemológico, Althusser deixa ver na própria constituição da teoria marxista a emergência da problemática científica do interior do campo da ideologia e em luta com ele. 

A afirmação do caráter materialista da teoria de Marx, formada por um conjunto de conceitos científicos, como os de modo de produção, relações de produção, forças produtivas, ideologia, luta de classes, infraestrutura, superestrura, etc, vai se contrapor à interpretação do marxismo como um vago humanismo, ancorado na noção de homem e de seus "predicados", que remete ao direito burguês e à circulação mercantil, e que sustenta, portanto, os "valores" da própria ideologia burguesa dominante. Igualmente, Althusser rompe com a concepção de que para Marx o "motor" do processo social e histórico seria o desenvolvimento das forças produtivas, de tal sorte que um progresso linear em direção ao comunismo já estaria inscrito na história como destino inelutável. Rompendo com essa concepção teleológica e economicista, Althusser mostra que Marx, especialmente em O Capital, sustenta o primado das relações de produção, abrindo a história para as incertezas da luta de classes. 

Dessa leitura de Marx, que põe no centro de sua concepção a luta de classes, Althusser recupera a noção de determinação em última instância do econômico, dando assim às instâncias da superestrutura uma eficácia própria que pode permitir a elas jogar o papel dominante na reprodução das relações sociais. A dialética marxiana, assim, é o contrário direto da dialética hegeliana, na qual a contradição se apresenta como o desdobramento de um princípio interno simples, ao passo que em Marx ela é sempre sobredeterminada, isto é, a contradição nunca se apresenta pura, mas como uma conjunção de determinações eficazes incidindo sobre um determinado objeto. 

Althusser criticou também a concepção de ideologia como falsa consciência, compreendendo-a como "uma representação da relação imaginária dos indivíduos com as relações de produção e com as relações delas derivadas", e lhe emprestando uma irredutível materialidade, tal como aparece no conceito de Aparelhos Ideológicos de Estado, que veio permitir que a concepção marxiana de Estado fosse ampliada e aprofundada.

Louis Althusser analisa o processo social como fenômeno objetivo, e não como o resultado da vontade de um sujeito. A sua intervenção teórica ao romper com os limites impostos pelas leituras hegelianas de Marx, põe em evidência a capacidade explicativa e transformadora do marxismo, constituindo, assim, entre as análises marxistas, uma referência importante para a luta dos trabalhadores contra o capital.

Atualmente estão disponíveis em Português as seguintes obras:

1967 - A Querela do Humanismo
1968 - Sobre Brecht e Marx
1968 - A Filosofia Como Uma Arma Revolucionária também disponível em ebook 
1970 - Aparelhos Ideológicos do Estado
1975 - Cartas sobre a Revolução Portuguesa
1978 - O Marxismo Como Teoria "Finita"
1982 - A Corrente Subterrânea do Materialismo do Encontro pdf
???? - Como ler "O Capital"? pdf


FONTE: Marxist's Internet Archive

[Althusser faleceu em 22 de outubro de 1990 em La Verniére, França]

segunda-feira, 21 de outubro de 2019

O Marxismo hoje



Entrevista com István Mészarós 



Tradução: João Roberto Martins Filho


Apresentação

Esta entrevista é uma versão elaborada a partir daquela publicada em Monthly Review (voI. 44, nº 11, abril de 1993) e que, inicialmente e na íntegra, apareceu em Radical Philosophy (nº 62, outono de 1992), sob a condução de Chris Arthur e Joseph McCarney. István Mészáros é um conhecido filósofo húngaro que colaborou diretamente com Lukács, junto à Universidade de Budapest, nos anos que antecederam à intervenção soviética na Hungria, em 1956. Posteriormente, radicou-se na Inglaterra, junto à Universidade de Sussex, onde aposentou-se recentemente. Sua produção é vasta e significativa, onde destacam-se Marx's theory of alienation (1970), publicada em diversos países (no Brasil, Rio de Janeiro, pela Zahar Ed., 1981); Philosophy, ideology and social science (1986, no Brasil, São Paulo, pela Ed., Ensaio, 1993, dentre vários textos do autor publicados por esta editora) e The power of ideology (1989), entre tantos outros trabalhos.

Na edição desta entrevista - cuja publicação em Crítica Marxista foi autorizada pelo autor - optou-se por destacar aquelas partes em que estão presentes algumas teses que constam de seu novo trabalho Beyond capital: Towards a theory of transition, que está em via de publicação pela Medin Press, Londres. Volume que sintetiza praticamente duas décadas de intensa elaboração intelectual, compreendendo, em sua versão original, mais de oitocentas páginas, onde são tematizados elementos decisivos do mundo contemporâneo e que se apresenta como uma das mais instigantes e densas reflexões no interior do marxismo contemporâneo. A publicação desta entrevista objetiva oferecer ao leitor brasileiro algumas das teses presentes em Beyond capital.

                                                                                                   (Ricardo Antunes)


Em textos recentes sobre a transformação socialista, o senhor introduziu uma importante distinção entre capital e capitalismo. Poderia explicar essa distinção e seu significado para a luta socialista?

MÉSZÁROS: Bem, na verdade tal distinção remonta ao próprio Marx. Eu salientei inúmeras vezes que Marx não intitulou sua principal obra O capitalismo, e sim O capital e também anotei que o subtítulo do volume I foi mal traduzido, sob a supervisão de Engels, como "o processo de produção capitalista", quando, de fato, é "o processo de produção do capital", o que tem um sentido radicalmente diverso. O que importa aqui, sem dúvida, é que o objetivo, o alvo da transformação socialista é superar o poder do capital. O capitalismo é um objetivo relativamente fácil nesse empreendimento, pois você pode, num certo sentido, abolir o capitalismo por meio do levante revolucionário e da intervenção no plano da política, pela expropriação do capitalista. Ao fazê-lo, você colocou um fim no capitalismo, mas nem sequer tocou no poder do capital. O capital não depende do poder do capitalismo e isso é importante também no sentido de que o capital precede o capitalismo em milhares de anos. O capital pode sobreviver ao capitalismo, é de esperar que não por milhares de anos, mas quando o capitalismo é derrubado numa área limitada, o poder do capital continua, mesmo que numa forma híbrida.

A União Soviética não era capitalista, nem mesmo capitalista de Estado. Mas o sistema soviético era bastante dominado pelo poder do capital: a divisão de trabalho permaneceu intacta, a estrutura hierárquica de comando do capital subsistiu. O capital é um sistema de comando cujo modo de funcionamento é orientado para a acumulação, e esta pode ser assegurada de muitas formas diferentes. Na União Soviética, o trabalho excedente era extraído de forma política e foi isso o que entrou em crise nos anos recentes. A extração politicamente regulada de trabalho excedente tomou-se insustentável por uma variedade de razões. O controle político da força de trabalho não é o que se poderia considerar uma forma ótima ou ideal de controlar o processo de trabalho. Sob o capitalismo, no Ocidente, o que temos é uma extração economicamente regulada de trabalho excedente e de valor excedente. No sistema soviético isso era feito de um modo bastante impróprio, quando a ótica é a da produtividade, porque o trabalho retinha um imenso poder, na forma de atos negativos, desafio, sabotagem, dupla jornada etc., diante do qual não se podia sequer sonhar em atingir o tipo de produtividade viável em outros lugares e que minava a raison d’être desse sistema sob Stalin e seus sucessores - a acumulação politicamente imposta. Sua parte de acumulação ficou paralisada e, por isso, todo o sistema entrou em colapso. Publiquei na Itália um longo ensaio, na primavera de 1982, no qual afirmei explicitamente que, enquanto as antigas políticas dos EUA para a regressão político-militar do socialismo de tipo soviético não pareciam passíveis de sucesso, o que estava ocorrendo na Europa oriental podia levar à restauração do capitalismo. Pela mesma razão, eu também considerava a idéia de socialismo de mercado uma contradição nos próprios termos, porque pretenderia, numa concepção esperançosa, unir as duas modalidades: a extração econômica com a ex-tração politicamente regulada de trabalho excedente - daí porque seria sempre um ponto de partida impossível.

É absolutamente crucial reconhecer que o capital é um sistema metabólico, um sistema metabólico sócio-econômico de controle. Você pode derrotar o capitalista, mas o sistema fabril permanece, a divisão de trabalho permanece, nada mudou nas funções metabólicas da sociedade. Com efeito, cedo ou tarde, você perceberá a necessidade de reatribuir essas formas de controle a personalidades, e é assim que a burocracia tem origem. A burocracia é uma função dessa estrutura de comando sob as circunstâncias alteradas onde, na ausência do capitalista privado, você tem que achar um equivalente para esse controle. Considero essa conclusão muito importante, porque com muita freqüência a noção de burocracia é apresentada como uma espécie de quadro explanatório mítico, quando não explica nada. A própria burocracia precisa de explicação. Como surge essa burocracia? Quando você a utiliza como uma espécie de deus ex machina que tudo explica em termos de burocracia, se você se livrar dela então tudo estará resolvido. Mas você não se livra da burocracia, a menos que ataque os alicerces sócio-econômicos e vislumbre um modo alternativo de regular o processo metabólico da sociedade, de tal forma que o poder do capital seja, de início, limitado para, ao final, ser certamente eliminado. O capital é uma força controladora, você não pode controlar o capital, você somente pode se livrar dele por meio da transformação de todo o complexo de relações metabólicas da sociedade - é impossível enganá-lo. Ou ele o controla ou você se livra dele, não há solução intermediária, e é por isso que a idéia de socialismo de mercado não poderia concebivelmente funcionar, desde o princípio. O que realmente se necessita não é a restauração do mercado capitalista, sob o apelido de um mercado social totalmente fictício, mas a adoção de um sistema adequado de incentivos. Não há sistema de produção social que possa funcionar sem eles - e com que pessoas devemos relacioná-los? Não entidades coletivas abstratas, mas indivíduos. Se as pessoas como indivíduos não estão interessadas, não se envolvem com o processo de produção, com a regulação do processo metabólico social, então, cedo ou tarde, elas assumem uma atitude negativa ou mesmo ativamente hostil diante dele.

Estamos falando de incentivos materiais?

MÉSZÁROS: Ambas as coisas. A oposição entre incentivo moral e material é, com freqüência, bastante retórica e abstrata, pois se o resultado dessa intervenção e participação nos processos sociais é uma melhor produção, uma produtividade crescente, a ativação das potencial idades dos indivíduos envolvidos, então ela se toma um incentivo material. Mas na medida em que eles controlam seus próprios processos de vida, é também um incentivo moral: os dois devem caminhar juntos. Os incentivos materiais e morais devem andar lado a lado. É uma questão de controle dos processos desse sistema sócio-econômico no qual a ativação do potencial reprimido das pessoas é também um incentivo. Em nossa sociedade, os incentivos materiais tal como nos são apresentados sempre colocam as pessoas umas contra as outras. É possível ver isso por toda a parte, em toda profissão, no ensino, na universidade, em qualquer canto da vida: os incentivos operam na presunção de que podemos dividir as pessoas para melhor controlá-las; eis o processo inteiro. Agora, se você reverte essa relação e diz que as pessoas têm o controle daquilo em que estão envolvi- das, então a divisão não mais opera, pois elas deixam de ser os sujeitos sofredores neste tipo de sistema. Portanto, os incentivos materiais e morais podem ser também de caráter igualitário. Esta é a tragédia do desenvolvimento de tipo soviético. Quando se fala de colapso do socialismo para se referir a isso, trata-se de u.ma grotesca deturpação dos fatos, porque o socialismo sequer foi iniciado, não foram dados nem os primeiros passos na direção de uma transformação socialista, cujo alvo somente pode ser a derrubada do poder do capital e a superação da divisão social do trabalho, a derrubada do poder do Estado, que é também uma estrutura de comando para a regulação da vida das pessoas a partir do alto.


O senhor fala em desafiar o capital e me pergunto se poderia dizer um pouco mais sobre as implicações práticas, as implicações para a luta socialista, de sua distinção entre capital e capitalismo.

MÉSZÁROS: Antes de tudo, a estratégia a considerar tem que ser definida nesses termos. Os socialistas não podem continuar com a ilusão de que tudo se resume a abolir o capitalismo privado - porque o problema real permanece. Enfrentamos realmente uma profunda crise histórica. O processo de expansão do capital, abrangendo o próprio globo, foi mais ou menos realizado. O que presenciamos nas últimas décadas foi a crise estrutural do capital. Eu sempre defendi que há uma grande diferença da época em que Marx falava da crise como algo que se desencadeia na forma de grandes tempestades. Hoje ela não tem que assumir essa forma. O que caracteriza a crise de nosso tempo são as precipitações de variada intensidade, tendentes a um continuum depressivo. Recentemente começamos a falar de uma recessão de mergulho duplo (double dip), logo falaremos de uma recessão de mergulho triplo. O que estou dizendo é que essa tendência para um continuum depressivo, em que uma recessão se segue a outra, não é uma condição que pode ser mantida indefinidamente, porque ao final ela reativa violentamente as explosivas contradições internas do capital e existem também certos limites absolutos a considerar nesse aspecto.

É bom lembrar que estou falando da crise estrutural do capital, que é um problema tão sério quanto a crise do capitalismo, pois uma forma de se livrar da crise do capitalismo, em princípio, era a regulação estatal da economia - e, em alguns aspectos, no horizonte externo do sistema capitalista ocidental você pode considerar sua possibilidade. O capitalismo estatal pode surgir quando o sistema capitalista ocidental enfrenta problemas profundos, mas eu diria de novo que esta não é uma solução viável a longo prazo, porque os mesmos tipos de contradições são reativados, notadamente a contradição entre a extração política e a econômica do trabalho excedente. E não estou falando de fictícios eventos futuros. Basta pensar no fascismo, no sistema nazista que tentou esse tipo de regulação corporativa estatal do sistema, a fim de sair da crise do capitalismo alemão naquele momento preciso da história. Portanto, o que estamos considerando aqui é que todas essas formas de deslocar temporariamente as contradições internas do capital estão se esgotando. O mundo todo é muito inseguro. A maioria avassaladora da humanidade vive nas condições mais abomináveis. O que aconteceu com a modernização desses países? Ela assumiu a forma de roubo, subtração e recusa insensata em considerar mesmo as implicações para a sobrevivência da humanidade - o modo como esses territórios e sua população foram tratados -, que tudo foi completamente solapado, e hoje você tem uma situação na qual  ninguém acredita mais na modernização do chamado "Terceiro Mundo". E é por isso que esse continuum depressivo é, a longo termo, uma situação insustentável e, por essa razão, uma transformação social deve ser viável. Mas não o é por meio da revitalização do capital. Só pode ser efetuada com base em um afastamento radical da lógica desse insensato e destrutivo controle orientado para a acumulação.

Essa crise imensa a que me refiro viu não apenas a virtual extinção dos partidos comunistas, dos partidos da Terceira Internacional, mas também a extinção dos partidos da Segunda Internacional. Por quase cem anos, aqueles que acreditavam nas virtudes da reforma e do socialismo evolucionista falavam da transformação da sociedade que conduz às relações socialistas da humanidade. Tudo isso foi descartado, mesmo em termos de seus próprios programas e perspectivas. Vimos recentemente que os partidos socialistas da Segunda Internacional, e seus vários associados, sofreram derrotas e reveses avassaladores em cada país particular: na França, na Itália, na Alemanha, na Bélgica e nos países escandinavos e agora há pouco também na Inglaterra, a quarta derrota consecutiva do Partido Trabalhista. Foi bastante apropriado que essa derrota em série, em todos esses países, coincidisse com a abertura festiva da Euro Disney, porque o que esses partidos adotaram nesse período histórico, em sua resposta à crise, foi uma espécie de socialismo Mickey Mouse, e este é totalmente incapaz de intervir no processo social. Eis por que não é acidental que esses partidos adotem a sabedoria do capital como sistema insubstituível. O líder do Partido Trabalhista chegou a declarar que a tarefa dos socialistas é o melhor gerenciamento do capitalismo. Atualmente essa espécie de grotesca insensatez é ela mesma uma contradição. É uma contradição nos próprios termos porque é extremamente presunçoso pensar que o sistema capitalista funcionaria melhor com um governo trabalhista. Os problemas continuam a se tomar mais graves e o sistema político é incapaz de responder, porque opera sob os cada vez mais estritos constrangimentos do capital. O próprio capital não deixa mais nenhuma margem de manobra. A margem que antes existia para os movimentos políticos e as forças parlamentares era incomparavelmente maior no século XIX ou nas três primeiras décadas do século XX. A Grã Bretanha já é parte da Europa e não há meio de reverter esse processo, no sentido de que a pequena Inglaterra será capaz de resolver tais problemas.

Mas isso também levanta imediatamente a questão: como nos relacionamos com o resto do mundo diante do que aconteceu no Leste, na União Soviética? Um novo problema fundamental surgiu no horizonte. No caso da Rússia, li recentemente que, além dos 25 bilhões de dólares prometidos pelo Ocidente, ela precisará somente este ano de outros 20 bilhões. Onde vamos achar os bilhões de dólares de que a Rússia necessitará quando o débito americano é ele próprio astronômico? Os problemas deste mundo estão se tomando tão entrelaçados, tão mesclados uns com os outros, que não se pode pensar numa solução parcial para eles. São necessárias mudanças estruturais fundamentais. As duas décadas e meia de expansão depois da Segunda Guerra Mundial foram seguidas por um mal-estar cada vez maior, o colapso de estratégias antes acalentadas, o fim do keynesianismo, o aparecimento do monetarismo etc., e todos eles levando a nada. Quando pessoas autocomplacentes como John Major  dizem que o socialismo está morto e o capitalismo funciona, devemos perguntar: o capitalismo funciona para quem e por quanto tempo? Li recentemente que os diretores da Merrill Lynch receberam, um 16,5 milhões de dólares, outro 14 milhões e outros dez ou quinze deles, 5,5 milhões cada um, como remuneração anual. Funciona muito bem para eles, mas como funciona para os povos da África, onde você os vê todo dia, na tela da TV? Ou em vastas áreas da América Latina, ou na Índia, ou no Paquistão, ou em Bangladesh? Eu poderia continuar enumerando os países onde falamos de centenas de milhões de pessoas que mal podem sobreviver.

Em sua visão, o agente da mudança nessa situação, o sujeito revolucionário, é ainda a classe operária?

MÉSZÁROS: Sem dúvida, não pode haver outro. Lembro-me que houve uma época em que Herbert Marcuse sonhava com novos agentes sociais, os intelectuais e os marginalizados, mas nenhum deles foi capaz de implementar a mudança. Os intelectuais podem desempenhar papel importante na definição de estratégias, mas é impossível que os marginalizados sejam a força a implementar essa mudança. A única força capaz de introduzir a mudança e fazê-la funcionar são os produtores da sociedade, que têm as potencialidades e as energias reprimidas por meio das quais todos esses problemas e contradições podem ser resolvidos. O único agente capaz de alterar essa situação: que pode fazer valer sua força, encontrando satisfação nesse processo, é a classe operária.

E quanto à sua formo. de organização? O senhor pensa que são necessárias novas formas de organização? Há quem diga que o partido político de velho estilo é irrelevante.

MÉSZÁROS: Sim, eu concordaria totalmente com isso. O partido político de velho estilo está integrado no sistema parlamentar, o qual sobreviveu à sua relevância histórica. Ele existia bastante antes do aparecimento da classe operária no horizonte histórico como agência social. A classe operária teve que se acomodar e se constranger às possibilidades, sejam quais fossem, que esse quadro fornecia e, conseqüentemente, podia  produzir apenas organizações defensivas. Todas as organizações da classe operária historicamente constituídas sendo os partidos políticos e os sindicatos de trabalhadores as mais importantes - foram organizações defensivas. Mas elas funcionaram até um certo ponto e é por isso que a perspectiva do socialismo evolucionista teve sucesso por tantos anos, uma vez que ganhos parciais podiam ser conquistados. Os padrões de vida operária dos países do Grupo dos Sete subiram enormemente nesse período. Quando Marx diz no Manifesto Comunista que a classe operária tinha a perder apenas os seus grilhões, isso certamente não é verdade para a classe operária dos países do Grupo dos Sete, tanto hoje como há algum tempo. Eles foram muito bem-sucedidos em melhorar seu padrão de vida por todo esse período histórico até a última década, aproximadamente. O que aconteceu na última década ou década e meia foi a conclusão desse processo, porque o capital não pode mais permitir-se garantir benefícios e ganhos significativos às classes trabalhadoras. O capital nunca deu nada de presente. Se isso estivesse afinado com sua própria lógica interna de expansão, de auto-expansão, então esses ganhos podiam ser fornecidos. Na verdade, eles se tornaram fatores dinâmicos nesse processo auto- expansionista. Eis por que estamos na situação em que os serviços de saúde estão em crise, o sistema educacional está em crise, o sistema de welfare, em seu conjunto, está em crise. Assim, o fim histórico desse processo reabre a questão: se a classe operária não pode mais obter ganhos defensivos, por meio de que estratégias ela pode transformar a sociedade?

O que eu tinha em mente eram mais os partidos extraparlamentares como os bolcheviques de Lenin ou o Partido Comunista Chinês, que foram bem-sucedidos em destruir o capitalismo. Eles estão historicamente superados?

MÉSZÁROS: Sim, completamente. Mesmo eles permaneceram constrangidos pela perspectiva do parlamentarismo e o próprio Lenin era a favor de que operassem no quadro parlamentar. Assim, o que constitui certamente um imenso problema para a agência histórica da transformação é que o capital é, por definição e de forma bastante efetiva, em seu modo de agir e funcionar, uma força extraparlamentar. Os sindicatos de trabalhadores seriam uma força extraparlamentar, mas eles se identificaram com os partidos reformistas, o que os refreou. Não haverá avanço algum até que o movimento da classe operária, o movimento socialista, seja rearticulado de forma a se tomar capaz de ação ofensiva, por meio de suas instituições apropriadas e de sua força extraparlamentar. O parlamento, se deve se tomar de algum modo significativo no futuro, deve ser revitalizado e somente poderá sê-lo se assumir uma força extraparlamentar em conjunção com o movimento político radical, que também pode ser ativo através do parlamento.


O que o senhor pensa do estado presente da filosofia marxista?

MÉSZÁROS: Penso que a filosofia marxista em geral encontra-se numa situação muito difícil, precisamente pelas razões que estamos mencionando, porque estamos numa crise histórica crucial, a desorientação é a regra do dia e o que aconteceu no Leste afetou fortemente socialistas e marxistas no Ocidente, de forma compreensível. Ela tem que passar por um processo de reavaliação, de busca de ânimo e redefinição de todo tipo de coisas. Considero muito mais interessante, por exemplo, a situação na América Latina, o fermento intelectual que ocorre ali é muito mais interessante no momento do que eu possa apontar aqui. Mas não creio que essa situação seja permanente e sou o último a sugerir que uma transformação socialista radical possa vir dessas áreas sozinhas. Com efeito, estou paradoxalmente convencido de que o futuro do socialismo será decidido nos Estados Unidos, por mais pessimista que isso possa soar. Tento aludir a isso na última seção de The power of ideology, em que discuto o problema da universalidade. Ou o socialismo se afirma universalmente, de forma a abranger todas essas áreas, incluindo as regiões capitalistas mais avançadas do globo, ou ele não vencerá.

O mundo é um só. Eu sempre rejeitei a noção de um "Terceiro Mundo": existe um único mundo. Estou convencido de que uma retomada do pensamento marxista no futuro também ocorrerá aqui em resposta aos problemas e demandas da época, especialmente quando foram varridas algumas das mistificações do passado. Até quando as pessoas poderão ser enganadas com a idéia de que se esperarem bastante tempo, por meio dos processos de reforma social-democratas e do socialismo evolucionista, um dia seus problemas serão resolvidos? Não creio que as pessoas acreditem nisso hoje e houve bastante evidência nas eleições por toda a Europa de que essa idéia foi profundamente desacreditada. Quando as expectativas parlamentares são amargamente contrariadas, as pessoas se movem para a ação. Tivemos um exemplo muito dramático no passado recente com a oposição ao Poll Tax* e, por meio desse processo, a derrota de Margaret Thatcher, antes considerada permanente, imbatível. E agora, depois da eleição geral britânica, na Escócia as pessoas já falam de ação direta e mesmo de desobediência civil, a fim de afirmar o que consideram ser seu interesse legítimo de assegurar seu próprio parlamento ou até sua independência. Então, é esse o tipo de eventos sociais, de movimentos sociais, em relação aos quais a filosofia marxista, o pensamento marxista em geral, pode se redefinir.

Presumivelmente o que precisa acontecer é que os operários nos Estados Unidos formem vínculos e façam causa comum com os trabalhadores no Terceiro Mundo. Mas como podem fazê-lo? Esses trabalhadores vivem, em certa medida, de uma transferência de valor desses mesmos países.

MÉSZÁROS: Este é um dos problemas e é também onde uma crítica de Marx tem que ser indicada, pois a própria classe operária é fragmentada, dividida, há muitas contradições. Nos Estados Unidos, nos últimos dez anos, o padrão de vida da classe trabalhadora decaiu. Assim, estamos falando de um processo, não falamos de objetos de desejo mas de realidades que ocorrem em nosso tempo. Em janeiro de 1971, proferi a Conferência Memorial Isaac Deutscher, "A necessidade do controle social", e aí eu indicava o início do desemprego estrutural. Mas o desemprego na Grã- Bretanha da época estava bastante abaixo de um milhão. Hoje, mesmo depois de 23 falsificações das verdadeiras cifras de desemprego, está oficialmente em torno de 2,7 milhões. E não há compromisso, nem mesmo do Partido Trabalhista, de retorno ao pleno emprego. Eis a medida das mudanças em curso. É uma contradição maciça quando você declara supérflua uma parcela bastante grande da população. Esta parte da população não vai permanecer sempre dócil, complacente e resignada às condições às quais está condenada. Portanto, as coisas estão acontecendo, estão mudando. Mas essas mudanças terão que se aprofundar e estou convencido de que o farão.


* Poll Tax: imposto pago por cabeça. (N.T.)




[Nota do MS: embora publicada na década de 1990, esta entrevista mantem sua atualidade, sobretudo  por algumas considerações objeto de novas e mais recentes discussões, em especial  sobre o papel do partido "extraparlamentar" e do operariado no processo revolucionário]

sexta-feira, 11 de outubro de 2019

Rui Facó: um intelectual da revolução brasileira


Por Milton Pinheiro




O jornalista comunista e escritor marxista brasileiro Rui Facó esmiuçou a história da luta de classes no Brasil e ajudou a construir uma compreensão avançada da trajetória do povo brasileiro

A história do Brasil sempre foi apresentada para outras gerações, através de leituras que davam protagonismo à burguesia. Não obstante a presença heróica e militante de homens e mulheres, que construíram com suas lutas o país, e que contradiziam a lógica dessa história oficial – a visibilidade das lutas sociais, e dos trabalhadores, não é do conhecimento da sociedade brasileira.

É necessário abrir uma nova frente na batalha das ideias, tornar público o papel desenvolvido pelos trabalhadores e as lutas que marcaram a história brasileira, seja no campo ou na cidade. Falar de nossos heróis, aprofundar as formulações dos intelectuais do campo marxista que estiveram ao lado da revolução brasileira. Trata-se, mais do que nunca, de lutar por uma contra-hegemonia que fomente nas consciências dos trabalhadores, e da juventude, o sentido de sua missão histórica, a construção do caminho na perspectiva do socialismo como horizonte para a emancipação humana.

É com base nessas ideias que ora apresento um importante intelectual orgânico, que sempre esteve ao lado dos trabalhadores, como ligação de classe: Rui Facó. Construiu formulações para entender o Brasil no século XX, utilizando-se do referencial marxista para explicar a ação dos trabalhadores, as lutas sociais e a sociedade brasileira. Assim, ele abriu trilhas para desvendar a realidade social.

A obra de Rui Facó foi elaborada a partir do arcabouço e da tradição marxista, centrada nos estudos sobre a formação social brasileira, a partir das categorias povo, nação e lutas sociais. O seu cabedal interpretativo está centrado no rigor historiográfico e no aprofundamento da análise política. Para além das falsas premissas, que hoje são apresentadas pela lógica pós-moderna, encontramos nele uma interpretação da realidade pautada nos processos de lutas, cuja orientação era a procura por uma nova sociabilidade na história. Assim, resgatar para o debate o pensamento de Rui Facó é trazer para os estudos contemporâneos, do ponto de vista teórico e político, uma vertente analítica que é uma síntese explicativa do Brasil no século XX.

Das origens à interpretação do Brasil

Rui Facó nasceu em Beberibe, no Ceará, em 4 de outubro de 1913 e a sua inserção na realidade nordestina permitiu que ele desenvolvesse, a partir desse lócus, um compromisso de pesquisa sobre o Brasil, e o processo de autoconstituição do povo. Essa preocupação tornou-se um programa de pesquisa, orientado pela análise da luta do povo contra a opressão; do conjunto das lutas sociais; das manifestações dos índios; dos escravos; do que ocorreu em Canudos; das manifestações e atos dos cangaceiros; dos movimentos dos beatos; dos movimentos republicanos; das lutas pela libertação do imperialismo; e da guerra engendrada pelo latifúndio. Tudo isso, a partir d o princípio dialético da relação entre dominação e resistência, que formou o todo articulado que compreendemos como nação.

Rui Facó analisa as particularidades da realidade, histórica, do Brasil, orientado por duas questões: primeiro, na estrutura das forças produtivas e, no segundo momento, na questão do monopólio da terra. A partir daí, ele identifica como questões centrais que precisavam ser afrontadas: o latifúndio, a ação do colonialismo e a dominação cultural, que tinham um peso sobre a realidade nacional, em particular, pelo papel que as classes dominantes davam aos segregados desse processo societário.

Como historiador do desenvolvimento do país, do desenvolvimento desigual do Nordeste, Rui Facó estudou o papel dos movimentos sociais, levando-se em consideração a questão nacional, a questão sindical, estudantil, camponesa, o papel da igreja, da imprensa, e o comportamento da chamada “burguesia nacional”.

No livro Brasil Século XX, um minucioso estudo sobre o país, Rui Facó faz um debate sobre as forças produtivas e o nível de desenvolvimento do capitalismo entre nós. Alertando sobre os descaminhos do processo político, sinalizando para o papel que deveria ser desempenhado pelos trabalhadores no cenário da luta de classes; sem abrir mão de avaliar que a presença do Partido Comunista, nesse contexto, era uma necessidade histórica. O livro Cangaceiros e Fanáticos: gênese e lutas tem um valor histórico extraordinário. Apresenta uma interpretação inédita das contradições brasileiras, pautada nas questões da terra, nas lutas dos despossuídos, e do poder político em curso no Brasil. E, tudo isso, analisado com o rigor da dialética marxista, pois apreende na história o processo das lutas de classe.

Ao lado dessa análise, Rui Facó encontra no papel político das classes dominantes uma reação para impedir o ajuntamento de comunidades, entendido aí como ajuntamento de pessoas pobres em várias áreas do Nordeste. Na lógica do poder político, em vigor, essa situação era um perigo à continuidade da dominação de classe que perenizava o latifúndio. E, tinha ao mesmo tempo, uma preocupação dos reacionários com o princípio de solidariedade que se estabelecia nas diversas comunidades onde ocorriam as lutas pela terra.

Rui Facó questionou a leitura oficial sobre o papel que davam às lutas no campo, qualificadas de misticismo e, para alguns, dotada de passividade no processo de resistência. Para ele, podem-se até encontrar características de uma resistência passiva a partir do papel desempenhado por figuras como Antonio Conselheiro, beato Lourenço e Padre Cícero. No entanto, essa passividade como forma de luta, não era real e concreta no conjunto das manifestações de resistências que foram encontradas no campo no século XX, basta analisar Porecatú, as ligas camponesas e Trombas e Formoso.

Sua percepção sobre novos personagens e o papel do campo na formação social brasileira denota seu ineditismo. Ao se contrapor às formulações racistas de Euclides da Cunha, ele construiu uma critica original. Na compreensão sobre o grau de desenvolvimento do capitalismo, na leitura sobre a classe dominante e suas frações, na análise das lutas sociais como princípio pedagógico para a emancipação humana percebe-se a qualidade metodológica de seus instrumentos de pesquisa. Constata-se então, o refinamento conceitual para entender o seu tempo, comprovando ser Rui Facó, a partir da sua síntese explicativa, um intérprete do Brasil.

Lutas sociais e compromisso revolucionário

Rui Facó ficou na sua cidade natal até terminar o ensino básico, quando premido pela necessidade de trabalhar, mudou-se para Fortaleza. Procurou emprego na função em que já demonstrava alguma habilidade, o jornalismo. Nessa cidade, no início dos anos 30, passou a frequentar o ambiente cultural e político que contestava a ordem em vigor e entrou para o Partido Comunista.

Em 1935, o país passava por profundas agitações políticas, surgiu a Aliança Nacional Libertadora, um movimento de frente única que contestava o governo Getúlio Vargas; e os levantes armados de novembro em Natal, Recife e no Rio de Janeiro. Rui Facó participou das manifestações de massas que abalaram o ano vermelho de 1935. Logo, transferiu-se para Salvador, trabalhou nos Diários Associados e participou da fundação da revista Seiva, em 1938. Ainda na Bahia, durante a segunda metade dos anos 30, ele foi encarcerado pela polícia getulista em virtude de sua intensa atividade política e intelectual.

Com o fim da segunda guerra, Rui Facó se mudou para o Rio de Janeiro, começando a trabalhar na redação do jornal A Classe Operária. A partir daquele mo mento, quando passou a escrever para diversos jornais e revistas de todo o país, percebe-se que já estava construindo o alicerce das suas formulações sobre a formação social brasileira.

A conjuntura no pós-guerra era de ascenso das massas. A imprensa comunista estava em crescimento, isso em virtude da legalidade conquistada pelo PCB e pela grande presença desse operador político no cenário das lutas sociais, no parlamento e na intelectualidade. No entanto, as suas formulações, pautado pelo fogo da conjuntura, contavam com dubiedades que poderiam desarmar o Partido para enfrentar as próximas batalhas. E, foi o que terminou acontecendo. A conjuntura brasileira foi tensionada pela ação bonapartista da classe dominante, que queria evitar qualquer risco à manutenção do poder nas mãos da burguesia, e as frações de classe do bloco no poder, agiram. Mesmo o PCB sendo um partido de massas (contava com 200 mil filiados), com uma importante representação parlamentar pelos estados e no congresso, com uma grande influência cultural, artística e intelectual, o partido foi posto na ilegalidade pelo general Dutra, o Le Petit de plantão. Seus parlamentares foram cassados, começando, outra vez, uma feroz perseguição aos comunistas: com prisões, torturas e assassinatos. É a partir desse cenário político que Rui Facó, em 1952, vai morar na URSS, trabalhando na Rádio Moscou, onde teve uma intensa “atividade literária e jornalística”.

A última batalha de um intelectual orgânico

De volta ao Brasil em 1958, Rui Facó avançou para desenvolver as bases de suas formulações mais sistemáticas, e aprofundou uma intensa e qualificada intervenção no debate jornalístico em curso, até 1963. Todavia, também encontramos a sua enorme presença, para além desse período, como militante da pena, em muitos periódicos e jornais: Seiva, Flama, Continental, Problemas, Estudos Sociais, A Classe Operária, Tribuna Popular, Hoje, O Momento, O Democrata, Voz Operária, Novos Rumos e na agência de notícias, Interpress.

Como escritor e pensador comunista, Rui Facó nos brindou com alguns textos de imenso valor histórico. Encontramos ainda, uma grande quantidade de artigos e trabalhos sobre acontecimentos relevantes, como a eleição de Miguel Arraes em 1962, para o jornal Novos Rumos. O artigo sobre a fundação do Movimento Unificador dos Trabalhadores, O MUT, instrumento de unidade da classe operária, publicado no jornal Tribuna Popular, em 1945. Temos um denso estudo sobre as lutas dos camponeses em 1963, mas, também uma incursão pela crítica teatral, quando da estréia de uma peça de Dias Gomes, em 1962.

Intelectual orgânico e militante político, o historiador Rui Facó dedicou os últimos cinco anos da sua vida (1958-1963) ao exercício da contra-hegemonia ideológica e política, exercendo o papel de jornalista. Foi nessa condição que fez a sua última viagem e lutou a sua última batalha. Morreu no dia 15 de março de 1963 em um desastre aéreo na Bolívia, antes mesmo de completar 50 anos, numa viagem pela América Latina como correspondente do jornal Novos Rumos.

Não obstante o prematuro desaparecimento, ele nos legou uma obra que construiu pontes para explicar a realidade brasileira, a partir das lutas sociais e do papel do povo. Afinal, novos atores, trabalhadores do campo e da cidade tiveram em Rui Facó o pesquisador participante, o cientista social e historiador que não foi leviano com a verdade das lutas que marcaram, no Brasil, o breve século XX.


*Milton Pinheiro é membro professor de Ciência Política da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), colunista do jornal Brasil de Fato e autor/organizador, entre outros, dos livros 140 anos da Comuna de Paris (São Paulo, Expressão Popular, 2011) e Caio Prado Júnior: história e sociedade (Salvador, Quarteto, 2010).