quarta-feira, 27 de junho de 2012

John Reed, cronista da revolução inacabada


Na obra de um jornalista norte-americano, reportagem
e paixão pelos rebeldes russos que se julgaram
capazes de mudar o mundo

Por Arlindenor Pedro (*)

O século XX foi o da tentativa de materialização das grandes utopias modernas, confrontando opiniões e levando a duas grandes guerras de caráter mundial.

Já em 1917, a revolução bolchevique passou a embalar o sonho da maioria dos marxistas, que tiveram a chance de acompanhar a implantação da primeira experiência mais sólida de um estado socialista – pelo menos, de acordo com os conceitos leninistas. Também, a Itália viveu a sua utopia, a de um estado fascista, que influenciaria a experiência nazista de Hitler e falanges em todo o mundo. 

Na América do Norte, a burguesia liberal aprofundou a sociedade de mercado, levando-a a um plano inimaginável, com novos produtos, novas organizações para o trabalho (divulgado por Hollywood, o modo de vida americano passou a ser invejado por muitos). Na China chocaram-se, numa grande guerra civil, as forças e ideias de Mao Zedong e do Kuumitang. Mesmo os japoneses não ficaram imunes a esse movimento global, e tentaram aprofundar seu grande sonho: o de um grande Japão, estendendo-se por toda a Ásia. 

No intervalo das duas grandes guerras, viveu-se um período de grandes efervescências que se materializou numa arte revolucionaria e em militantes inquietos e sonhadores. Revoluções explodiam em todo planeta. No Brasil, as ideias tenentistas e da Semana de 22 asfaltavam as estradas que levariam à revolução de 30.

John Reed foi um desses revolucionários que procurou viver plenamente o clima do século XX; daqueles que tinha como projeto de vida a realização de suas utopias. Trata-se de um tipo de personagem heroico, que poderíamos encontrar nos romances de Érico Verissimo (como o personagem Vasco, por exemplo), que são capazes de abandonar tudo e participar de uma guerra civil em um país distante, (como a Espanha…), para defender seus ideais.

Americano de Portland, filho de uma família de posses, Reed formou-se em Harvard, um centro do pensamento conservador norte-americano. Mas, para loucura de seus mestres, não seguiu o caminho tradicional dos filhos da burguesia. Viveu a sua curta e intensa vida no bairro boêmio de Village, em New York, nas primeiras décadas do século XX, rodeado de intelectuais, artistas e revolucionários, destacando-se como um dos mais brilhantes jornalistas do inicio daquele século. E como um intelectual que colocou como objetivo de vida engajar-se nos movimentos sociais, dando voz aos oprimidos pelo capital.

Amigo de Emma Goldman, importante ativista anarquista daqueles tempos, e de líderes sindicais do movimento socialista, sempre postou-se ao lado dos mais fracos, colocando seu talento literário a serviço das causas operárias, fazendo a cobertura jornalística das greves e confrontos contra os patrões. 

Jornalista por escolha, e defensor de ideias libertárias, viu na revolução mexicana de 1912 um grande acontecimento popular. Reportou-a com o risco da própria vida, chegando, inclusive, a fazer uma histórica entrevista com Pancho Villa, um dos líderes da revolução camponesa, de quem se tornou amigo.

Por suas ideias e atitudes contestatórias, Reed foi perseguido e discriminado na grande imprensa norte-americana. Por isso mesmo, tornou-se de grande valor Reds – filme que, produzido em Hollywood, tenta retratar alguns momentos de sua vida.

Talvez, pelo caráter romântico e aventureiro que esta adquiriu e pelo grande romance que o jornalista viveu com feminista Louise Bryant, sua companheira até a morte, essa produção centra-se mais no romance das suas vidas em comum, colocando em segundo plano uma extensa e intensa obra de militante de esquerda, no país mais importante do capitalismo.

A produção é dirigida por Warren Beatty, que faz também o papel de Jonh Reed. Tem a participação de Diane Hall (também Diane Keaton), no papel de Louise Bryant; Jack Nicholson interpreta Eugene O’Neill e Edward Herrmann representa Max Eastman Traz à tona, com intenso realismo, os primórdios da modernização capitalista. Mostrando uma face das utopias do movimento operário que se perdeu na sociedade de consumo contemporânea. Vale a pena refletir sobre ela, além do filme em questão.

John Reed escreveu, entre outros livrosum dos mais empolgantes trabalhos sobre a revolução soviética: Os dez dias que abalaram o mundo. É uma obra-prima; descreve com um intenso realismo o evento social mais espetacular do século XX – a grande revolução capitaneada pelos bolcheviques e pelo seu líder, Lênin.

Antes de dedicar-se à Rússia, o autor acompanhava a I Guerra Mundial na Europa, fazendo artigos para a imprensa americana. Ao saber da deposição do czar Nicolau, decidiu cobrir aquele confuso movimento político. Anteviu a grande importância histórica que ele representava.

A revolução bolchevique teria um espectador estrangeiro à sua altura: Reed não se contentou em fazer uma cobertura superficial. Tomando um lado da história, foi capaz de traduzir aqueles intrincados acontecimentos, que teriam importância sem precedentes na história moderna da humanidade.

Em certa parte do livro, o autor, ao se referir aos eventos revolucionários que assistiu, fala com propriedade: “há dias que valem por cem anos”. Significa que a história não se movimenta de maneira contínua e linear. Em certos momentos, algumas atitudes podem alterar o curso dos acontecimentos e nos projetar para um futuro antes impossível. 

De um momento para o outro, forças sociais poderosas tinham se posto em movimento na velha Rússia czarista. Chocaram-se com uma realidade até então considerada imutável, colocando abaixo o velho regime e trazendo à tona os personagens mais excluídos – considerados como escória, corja social. 

Traziam a utopia de uma nova forma de viver e de se relacionar, sem a interferência do capital e da exploração do homem pelo homem. Reed percebeu que, naquela hora, Lênin e seus companheiros bolcheviques, eram a força política que mais se identificava com esses anseios. 

Em certo momento, quando assistia a um evento histórico – o II Congresso Pan-russo dos Sovietes dos Deputados Operários e Soldados, às vésperas da invasão do Palácio de Inverno, e início da deposição do governo de Kerensky, Reed atenta para a exclamação feita por uma das recepcionistas da reunião, revelando que em poucos meses mudara a correlação das forças políticas na Rússia e os bolcheviques,antes minoria, passavam a comandar o processo revolucionário:
“A moça encarregada do serviço, membro do grupo de Plekhânov, sorria desdenhosamente.
 – Não se parecem nada com os delegados do primeiro congresso [ela se referia ao Congresso de meses antes, em que os mencheviques e cadetes tinham a maioria] – disse-me ela: — Vejam que fisionomias abrutalhadas e que expressões de ignorância! Que gente inculta!
E não se enganava. A Rússia havia sido sacudida até as entranhas. Os que se achavam nas maiores profundidades é que estavam vindo à superfície”.
A acuidade política de Reed, adquirida nas lutas operárias de que participou nos Estados Unidos, permitiu-lhe perceber para onde se inclinava a maré revolucionária e entender a postura intransigente e determinada dos bolcheviques, que, confiando nos desejos da classe trabalhadora, foram capazes de derrubar o governo provisório de Kerensky e avançar, sem perder o rumo, para uma nova etapa da revolução russa: a implantação de um governo soviético, dirigido pelo partido que tinha Lênin como líder. 

Assim se refere Reed às características desse líder singular, quando o viu chegar ao Congresso dos Sovietes: 
“Uma silhueta baixa. Cabeça redonda e calva, mergulhada entre os ombros. Olhos pequenos, nariz rombudo, boca larga e generosa. Mandíbula pesada. Estava completamente barbeado. Mas a sua barba, dantes tão conhecida e que daquele momento em diante iria ser eterna, já começava a despontar novamente. O casaco estava poído; as calças eram compridas demais. Sua aparência física não indicava que ele poderia ser um ídolo das multidões. Mas foi querido e venerado como poucos chefes em toda a história. Um estranho chefe popular. Chefe só pelo poder do espírito. Sem brilho, sem ditos chistosos, intransigente e sempre em destaque, sem a menor particularidade interessante, mas possuindo, em alto grau, a capacidade de explicar ideias profundas em termos simples e de analisar concretamente as situações. Senhor de prodigiosa audácia intelectual, assim era Lênin.” 
Lênin caracteriza-se, sem dúvidas, por genialidade na compreensão da sociedade russa e das características do mundo em que viveu. Foi capaz de traçar uma estratégia admirável para a tomada do poder politico. 

Seus livros foram todos escritos no fragor da luta política. Cada um deles insere-se numa realidade peculiar da conjuntura da Rússia pré-revolucionária e revolucionária. Não são devaneios intelectuais, pois estão presos, no geral, ao desejo de uma prática imediata. Sua obstinação e rigidez teórica o fizeram transformar um pequeno partido, nascido da cisão da social-democracia russa, na vanguarda revolucionária de um evento que movimentou milhões de pessoas. 

Reed teve a sorte de estar ali, naquele momento, podendo conviver com uma figura tão importante. Pode, também, ouvir os discursos dos líderes dos diversos partidos, que fizeram parte daqueles dias decisivos. Entrevistou pessoas das mais diversas correntes, tanto da esquerda como da direita. Sentiu a profundidade da esperança que moveu milhões de pessoas na busca da construção de um outro tipo de sociedade, sem a exploração do homem pelo homem. E cumpriu um papel: seu livro, fruto da sua participação naqueles eventos, tornou-se no maior documento sobre a revolução russa. 

Seu valor literário é indiscutível. Lênin e sua esposa Krupskaia fizeram questão de prefaciar sua primeira edição em solo russo. Também, em nome do Partido Comunista, em 1957, escreveu-se um posfácio a uma edição russa. Seu propósito claro é afirmar conceitos sobre a luta que se sucedeu após a morte de Lênin – quando Stálin expurgou líderes bolcheviques que Reed cita no seu livro, tais como Trostsky, Zinoviev e Kamenev. 

Após retornar à Rússia, depois de passar um período nos Estados Unidos, Reed faleceu, recebendo honras de estado, como herói do povo soviético. Foi enterrado na Praça Vermelha, ao lado do túmulo de Lênin. Uma justa homenagem pelo amor que tinha pela revolução russa. 

Hoje, a utopia de Jonh Reed, o estado soviético, não existe mais. Foi vencida pela utopia da sociedade do livre mercado: aquilo que Guy Debod chamou de “Espetáculo Integrado”.

Os bolcheviques não conseguiram construir a sociedade almejada pela utopia socialista. Golpeados pelo fetiche da mercadoria, transformaram-se em administradores de um capitalismo de estado. Foram incapazes de perceber que os sujeitos sociais construídos pelo desenvolvimento capitalista (a “classe burguesa” ou a “classe proletária”) não podem ser agentes da emancipação, pois não deixam de ser sujeitos capitalistas. 

Não procuraram avançar para além da sociedade da mercadoria, de superar o trabalho abstrato e o valor, de abolir a cruel intermediação que impede o homem de atingir a sua plenitude como ser integrado ao universo. Entraram, então, numa competição vazia com seus concorrentes ocidentais, cujo objetivo era estabelecer que modelo social poderia fazer o melhor bem de consumo, as melhores armas de destruição em massa, agredindo de forma sem precedentes o meio ambiente.

Através de um estado capturado pela burocracia, comandaram, com a estrutura da III Internacional, um processo de lutas operárias em todo o mundo, que só serviu para avalizar o capitalismo, dando-lhe uma face social, adquirida nas negociações com os sindicatos. Num mundo com diversos matizes de capitalismos socializantes, a classe operária vai, então, ao paraíso, onde os seres humanos são meros consumidores, transformando-se em reféns das crises cíclicas do sistema.

A atitude inquieta e revolucionária de Jonh Reed expressa o sentido de liberdade inerente a todos os seres humanos. Ele não morreu com o desenvolvimento do estado soviético. Esteve e estará presente no espirito das barricadas da revolução de outubro, como na Comuna de Paris, ou em tantos eventos em que o povo foi às ruas lutar por suas utopias.

Serra da Mantiqueira, maio de 2012

(*) Arlindenor Pedro (arlindenor@newageconsultores.com.br | http://arlindenor.wordpress.com)
é professor de história, funcionário público e especialista em projetos educacionais. Anistiado por sua oposição ao regime militar, atualmente dedica-se à produção de flores tropicais na região das Agulhas Negras.

FONTE: Outras Palavras

Há diferença fundamental entre os golpes de Honduras e Paraguai?

Por Breno Altman (*) 

No que diz respeito à sua natureza política, nenhuma; nos dois episódios, a Casa Branca se posicionou contra o voto popular

A resposta a essa pergunta pode ser dada de bate-pronto: nenhuma. Ao menos no que diz respeito à sua natureza política. Nos dois casos, a derrocada de um presidente constitucional ocorreu através de processo sumário e operado pela via das instituições. Em ambas situações, esse modelo foi possível porque havia uma crise de poder nascida de uma mudança política incompleta: a conquista do governo pelos setores progressistas não se fez acompanhar por uma maioria parlamentar de esquerda e por reformas no sistema judiciário.

Essa contradição não é exclusiva de Honduras e Paraguai. O Brasil vive cenário bastante semelhante. O ápice desse conflito ocorreu em 2005, quando as forças conservadoras estiveram a poucos passos de apostarem no impedimento do presidente Lula. Faltou-lhes coragem e sobraram-lhes dúvidas sobre como reagiriam as ruas. As duas derrotas eleitorais, em 2006 e 2010, neutralizaram setores potencialmente golpistas e isolaram a direita mais açodada. Mas o pano de fundo continua o mesmo.

Mesmo países nos quais hoje a transformação política já atingiu todas as esferas do Estado, como é o caso de Venezuela e Bolívia, viveram essa contradição em outras fases. O golpe de Estado de 2002, contra Chávez, só foi possível quando a operação midiática dividiu as forças armadas e a base parlamentar governista, tirando-lhe maioria na Assembleia Nacional. O boliviano Evo Morales, mesmo sem ter sido vitima de um golpe aberto, também viveu agruras parecidas.

A lição dessas experiências é que não há caminho possível para romper esse conflito sem um forte apelo à mobilização social e à atuação firme dos segmentos que apoiam os governos progressistas. Manobras institucionais podem abrandar os efeitos dessa contradição, da mesma forma que a criação de maiorias táticas (como, aliás, houve em um certo período no Paraguai e há no Brasil). Mas dificilmente pode ser erradicada sem que o protagonismo das organizações populares empurre a direita para uma situação de cerco.

Apenas depois de enfrentamentos desse gabarito Evo e Chávez, por exemplo, conquistaram amplas maiorias estratégicas para suas administrações. Além da mobilização exercer uma forte influência pedagógica sobre os cidadãos, geralmente acaba por empurrar as correntes reacionárias para aventuras fora do quadro constitucional. Quando fazem essa opção, em cenário de isolamento, são mais facilmente desmascaradas e demarcadas como inimigas atávicas dos processos democráticos.

Por razões distintas, nem Manuel Zelaya nem Fernando Lugo quiseram ou puderam criar as condições para uma ampla mobilização popular em defesa de seus mandatos e da ordem constitucional quando os golpistas começaram a tecer seus planos. O primeiro porque havia feito um rara passagem da oligarquia para o campo progressista, perdendo velhos amigos sem ganhar a confiança plena dos novos aliados. O segundo porque, eleito por uma coalizão à esquerda, foi frustrando seus seguidores com concessões infindáveis, no afã de apaziguar as forças conservadoras. Perdeu antigos apoios e, de quebra, acabou derrubado por quem tentou cativar.

Justiça seja feita, e aqui vai a primeira diferença importante, o fazendeiro Zelaya colocou seu chapelão e não se rendeu aos golpistas, comandando um longo processo de resistência. O padre Lugo, abatido e anêmico, foi para casa sem assumir a liderança do questionamento à ordem imposta pelos parlamentares sublevados. Começou a acenar com atos de resistência quando já havia aceito sua substituição ilegítima.

Também há um traço de identidade nos interesses representados pelas coalizões oposicionistas das duas nações. No epicentro da conspiração estão grupos de latifundiários e banqueiros, associados a empresas de comunicação, que rejeitam qualquer reforma voltada para a democratização da terra ou o controle dos mecanismos rentistas.

Outra semelhança pode ser encontrada na postura dos Estados Unidos. Nos dois episódios, a Casa Branca impulsionou a mão de gato contra o voto popular. A princípio, com vários senões e cautelas. Depois, consumada a operação golpista, de forma escancarada. Aliás, já tinha feito o mesmo no putsch venezuelano e na tentativa de desestabilizar Evo. Não é preciso esforço para chegarmos à conclusão que o golpismo não pode ser tratado como peça de museu da Guerra Fria. Devidamente atualizada, essa alternativa continua presente no arsenal norte-americano contra as experiências progressistas da América Latina.

Reação branda

Também de diferente, o que podemos registrar, ao compararmos Honduras e Paraguai, foi a atitude da diplomacia brasileira, que transitou do rechaço inegociável para uma posição de protesto. Os presidentes do Equador, da Argentina, da Venezuela e da Bolívia já disseram claramente que se tratou de um golpe de Estado e declararam que o novo governo não tem legitimidade. O Brasil, mesmo na nota na qual acena com sanções nos termos da cláusula democrática do Mercosul e da Unasul, não foi tão taxativo a respeito.

Há informações de bastidores dando conta que Fernando Lugo cogitou recusar a passagem do cargo e dissolver o Congresso, mas teria se deparado com a negativa brasileira de dar apoio a esse tipo de reação. Se assim ocorreu, trata-se de uma resposta distinta à adotada no golpe contra Zelaya.

As razões para essa alteração ainda não estão claras. Uma das possibilidades é o receio de assistir Chile e Colômbia, governados por conservadores, se afastarem da Unasul. Outra possibilidade é a dúvida acerca da consistência da reação prometida pelo próprio Lugo, que ademais poderia transformá-lo de vítima em agressor. Os próximos passos do Itamaraty, no entanto,poderão esclarecer melhor se estamos apenas diante de inflexões circunstanciais ou de uma nova estratégia.

Numa mirada mais abrangente, esta mudança de orientação, se verdadeira, residiria principalmente no modo de administrar as relações com Washington. Até a intentona em Assunção, poderiam ser notadas novas abordagens na política para o Oriente Médio, particularmente em relação à Síria, ao Irã e mesmo à intervenção da OTAN contra a Líbia de Kaddafi. Com Lula e Amorim, de forma corajosa, o Brasil puxava um bloco contra-hegemônico, que desafiava abertamente os desígnios da superpotência. Hoje, às vezes, parece que esse objetivo saiu da agenda.

Um paradigma readaptado implicaria, também, num lidar distinto com as forças conservadoras quando essas se lançam em golpes institucionais. Eventualmente não por conta de um novo conceito, mas para evitar conflitos com governos fora do arco progressista e com os norte-americanos, além de prevenir exaltações internas com a mídia e as elites nacionais.

Se há mesmo uma conduta diferenciada, essa acabou por sofrer, logo na estreia, inegável derrota, ao menos provisoriamente. Os atores moderados ou conservadores podem estar mais satisfeitos com o tom adotado em relação ao golpe no Paraguai, mas o fato concreto é que os golpistas não deram ouvidos e um presidente aliado foi derrubado.

Poderia ser dito que, no caso hondurenho, o Brasil tampouco viu sua política ser vitoriosa, pois Zelaya não voltou à Presidência. Isso também é verdade. Mas o país colheu frutos positivos, como líder regional, por sua firmeza em defesa da democracia. E conseguiu isto num país localizado em região onde a hegemonia dos Estados Unidos pontifica incontrastável.

Já a pátria guarani é integrante do Mercosul e sob forte influência verde-amarela. Aqui, ao contrário de Honduras, o Brasil tem meios de colocar a faca no pescoço dos golpistas. Se não tivermos êxito nisso, outros ensaios antidemocráticos poderão ter curso, na América do Sul ou mesmo dentro das fronteiras pátrias.

Oxalá a aparente brandura brasileira seja apenas um momento. Afinal, a história não conhece golpes que tenham sido impedidos ou revertidos com punhos de renda. E salpica de exemplos sobre como a contemporização tem o dom de estimular o apetite fascista das oligarquias.


(*) Jornalista e diretor de redação do site Opera Mundi

FONTE: Adital

sexta-feira, 8 de junho de 2012

Segunda Internacional

Por Aluizio Moreira

Vimos que o fim da Primeira Internacional foi decretado oficialmente em 1876 com a dissolução do Conselho Geral  ocorrida  na Conferência de Filadélfia que aconteceu em 15 de julho daquele ano. Desaparecia assim um fórum internacional no qual socialistas de diversos países trocavam experiências, aprovavam resoluções, assumiam posições políticas frente às ações repressivas  e exploratórias  do capital internacional contra a classe trabalhadora.

Em 1873, portanto três anos antes do encerramento das suas  atividades, a Associação Internacional dos Trabalhadores (A.I.T.) já mostrava sinais de uma crise que apontavam para o seu fim: os conflitos internos entre as tendências marxistas e anarquistas, a perseguição aos participantes da Comuna de Paris e por extensão, aos socialistas em vários países, e finalmente a não realização do Congresso marcado para o ano de 1873 que deveria acontecer  na cidade de Nova York.

Em 1875, na Alemanha, país onde se encontrava o partido socialista mais  influente  na época, ocorreu o Congresso de Gotha. Nesse Congresso  os dois partidos que dividiam o socialismo alemão  - o Partido Operário Social-Democrata (eisenachiano), dirigido por A. Bebel e W. Liebknecht sob influência de Marx, e a União Geral Operária Alemã (lassaliano), seguidor das idéias de F. Lassale – elaboraram um Programa comum na tentativa de uma unificação das duas organizações. Esse Programa fora encaminhado pelos eisenachianos para apreciação de Karl Marx, do qual resultou sua “Critica do Programa de Gotha” datado daquele ano de 1875. Dessa unificação surgiria o Partido Socialista dos Trabalhadores, que pouco tempo depois mudaria seu nome para Partido Social-Democrata da Alemanha, tornando-se o maior, e mais influente  partido socialista do mundo até os anos que antecederam a Primeira Guerra Mundial.

Apesar de considerarmos que o socialismo enquanto movimento mundial tenha sofrido um certo recuo após 1873, a partir daí criaram-se vários partidos social-democratas e operários nacionais, mais voltados para as questões internas de cada país. Assim, por volta de 1880, na maioria dos países da Europa central e ocidental formaram-se partidos socialistas sob liderança marxista, inspirados no socialismo alemão. Por outro lado, nesse mesmo período várias tentativas de reconstituir a Primeira Internacional foram feitas com realização de Congressos e Conferências na Suíça e França (1876 em Berna, 1881 em Chur, 1883 em Paris).

Em 1888, visando a instalação de um congresso internacional que celebrasse o centenário da tomada da Bastilha (1789), socialistas alemães e franceses passaram a reivindicar a convocação do referido Congresso.

Reunidos  nas mesmas datas, 14 a 21 de julho de 1889, aconteceram paralelamente dois congressos em Paris: o chamado "de la salle Pétrelle" proposto pelos marxistas da Alemanha, e o chamado "de la rue de Lancry" defendido pelos socialistas franceses.

O Congresso denominado “de la salle Pétrelle", de tendência marxista, passou a ser considerado como o Congresso de fundação da Segunda Internacional, reunindo delegados representantes da França, Alemanha, Inglaterra, Bélgica, Áustria, Rússia, Holanda, Dinamarca, Suécia, Noruega, Suíça, Polônia, Rumania, Itália, Hungria, Espanha, Portugal, Bulgária, Finlândia. Das Américas participaram representantes dos Estados Unidos e da  Argentina.

Nesse Congresso de fundação foi aprovada a Resolução a favor da campanha pela jornada de 8 horas e determinou-se o dia 1º de maio de 1890 como dia de manifestação internacional a favor da jornada de 8 horas.

Karl Kautsky
Duas ausências foram sentidas no Congresso de fundação da Segunda Internacional: a de Karl Marx que havia falecido em março de 1883, e a de Friedrich Engels que na ocasião cuidava da preparação do terceiro tomo d’O Capital, que Marx não tivera tempo de concluir.

Durante os Congressos, várias tendências conflitantes foram motivos de grandes discussões envolvendo anarquista, comunistas, sindicalistas (representados pelos socialistas franceses) e social-democratas.

Após sua fundação, vários Congressos ocorreram durante a existência dessa Internacional, entre eles: Bruxelas (1891), Zurich (1893), Londres (1896), Paris (1900), Amsterdam (1904), Stuttgart (1907), Copenhague (1910), Basiléia (1912) e Paris (1914).

Considerada como movimento totalmente europeu, ideologicamente a Segunda Internacional foi dominada pela social-democracia alemã, de influencia marxista, mas nem por isso isenta de posicionamentos conflituosos envolvendo as três tendências que marcariam a sua existência: a de Rosa Luxemburgo, a de Karl Kautsky e a de Eduard Bernstein.

No Congresso de Londres  de 1896, estabeleceu-se que só seriam convidados para os Encontros, representantes das organizações que defendessem a propriedade social dos meios de produção e que aceitassem a atuação parlamentar em matéria de legislação social. Nesse Congresso, ocorreu a expulsão dos anarquistas.

Rosa Luxemburgo
Em 1900, no Congresso de Paris, foram criados um Secretariado Internacional com sede em Bruxelas, um Escritório Socialista Internacional e uma Comissão Interparlamentar. Além das discussões sobre as ameaças de guerra que pairavam sobre a humanidade e sobre a questão nacional, esteve na pauta desse Congresso a questão da participação dos socialistas nos governos burgueses.

No Congresso de Amsterdam realizado em 1904, a questão nacional discutida no Congresso de Paris em 1900, voltou a ser debatida. Sobre essa questão conflitaram duas tendências: a) a de Hyndmann, Brake e Bronckere, que condenava o colonialismo, denunciando-o como produto do imperialismo, b) a de Vankoz, Tarbouriech e Bernstein que admitia o colonialismo como fato inevitável. 

Em Stuttgart, no Congresso realizado em 1907, aprovou-se Resolução formulada por Lênin, Martov e Rosa Luxemburgo, segundo a qual as classes trabalhadoras e seus representantes parlamentares se obrigariam a impedir a eclosão de guerra. Por outro lado, segundo a mesma Resolução, se ainda assim irrompesse a guerra, caberia aqueles trabalhadores e seus representantes, aproveitando-se da crise econômica, acelerar a eliminação do capitalismo. A questão nacional e colonial voltou a ser discutida, ganhando grande dimensão em conseqüência das lutas antiimperialistas que na época se verificavam na Ásia e África.

Paralelamente ao Congresso de Stuttgart de 1907, como extensão do mesmo, aconteceram  a Iª Conferencia Internacional das Mulheres Socialistas, liderada por Clara Zetkin, e a Iª Conferência Internacional da Juventude Socialista.
   
Eduard Bernstein
O Congresso de Basiléia, realizado nos dias 24 e 25 de novembro de 1912, foi convocado como Congresso Extraordinário pela gravidade da situação internacional que ameaçava a Europa.  Elaborou-se o “Manifesto de Basiléia” que alertava os povos contra o perigo iminente de uma guerra, denunciando os propósitos espoliativos e conclamando os operários de todos os países a conduzirem uma luta decidida contra a guerra, já inevitavel naquela altura, diante dos acontecimentos nos Balcãs. Nesse Manifesto foi incluído o ponto, formulado por Lénine, da Resolução do Congresso de Stuttgart de 1907, de que caso fosse desencadeada a guerra imperialista, os socialistas deveriam aproveitar-se da crise económica e política provocada pela guerra, a fim de conduzirem a luta pela revolução socialista.

O Congresso que se seguiria ao de Basiléia, deveria realizar-se em Viena em 1914, o que não aconteceu devido a gravidade da situação internacional, com o assassinato do arquiduque Francisco Ferdinando em Saravejo, capital da Bósnia, motivo de sua transferência para Paris.  Os conflitos internacionais envolvendo Sarajevo, Áustria-Hungria, Grã-Bretanha, França e Rússia que culminaram com a eclosão da Primeira Guerra Mundial, repercutiriam no seio da II Internacional de forma decisiva para o seu fim.

As Resoluções aprovadas pela II Internacional contra as ações bélicas e pela unidade da luta do movimento operário e socialista a nível internacional contra a guerra, não foram seguidas:  os partidos socialistas da Alemanha, Áustria, Hungria, França, Inglaterra, Bélgica e de outros países apoiaram as propostas belicistas, ou votando a favor dos créditos de guerra ou solidarizando-se com suas próprias burguesias nacionais, em detrimento dos interesses internacionais da classe operária e do socialismo. Ao pôr por terra as Resoluções da II Internacional, quebrou-se a unidade do movimento operário e socialista, desorganizando-o em escala nacional e internacional.

Obras consultadas:

COLE, G.D.H. Historia del pensamiento socialista. Trad. Rubem Landa, México: Fondo de Cultura, 1959, vol. III
DROZ, Jacques (Dir.). Historia geral do socialismo. Trad. Maria Teresa Lacerda Nobre. Lisboa: Horizonte, 1974, vol. 6
SWEEZY, Paul M. Socialismo. Trad. Giasone Rebuá e Mauricio Caminha de Lacerda. Rio de Janeiro: Zahar, 1963.

terça-feira, 5 de junho de 2012

“Como mudar o mundo”



Resenha de Hobsbawm, Eric. Como mudar o mundo:
Marx e o marxismo 1840-2011
(How to change the world:
Marx and Marxism 1840-2011
), 2011: Little Brown, 470 pp.


Por Terry Eagleton (do London Review of Books

Em 1976, muita gente no ocidente pensava que o marxismo era ideia a favor da qual se podia facilmente argumentar. Em 1986, a maioria das mesmas pessoas já não pensavam como antes. O que aconteceu nesse entretempo? Estarão todos aqueles marxistas enterrados sob uma pilha de filhos engatinhantes? Todo o marxismo terá sido desmascarado, com seus vícios expostos por novas pesquisas revolucionárias fortes? Terá alguém tropeçado em manuscrito perdido, no qual Marx confessou que era tudo mentira, piadinha?

Estamos falando, atenção, sobre 1986, poucos anos antes do colapso do bloco soviético. Como Eric Hobsbawm lembra nessa coleção de ensaios, não foi o colapso do bloco soviético que levou tantos crentes tão fiéis a mandar para a lixeira os cartazes de Guevara. O marxismo já estava em pandarecos desde alguns anos antes de o muro de Berlim vir abaixo. Uma das razões da debacle foi que o tradicional agente das revoluções marxistas, a classe trabalhadora, havia sido varrida do mundo por mudanças do sistema capitalista – ou, pelo menos, já não era maioria significativa. É verdade que o proletariado industrial encolheu muito, mas Marx jamais disse que a classe trabalhadora fosse composta só de proletários da indústria.

Em Das Kapital, os trabalhadores do comércio aparecem no mesmo nível que os trabalhadores da indústria. Marx também sabia muito bem que o maior, e muito maior, grupo de trabalhadores assalariados de seu tempo não eram os trabalhadores da indústria, mas os empregados domésticos, a maioria dos quais eram mulheres. Marx e seus discípulos jamais supuseram que alguma classe trabalhadora pudesse avançar sozinha, sem construir alianças com outros grupos oprimidos. E, embora o proletariado industrial devesse ter papel de liderança, nada permite supor que Marx supusesse que tivesse de ser maioria, para desempenhar seu papel.

Mas, sim, algo aconteceu, sim, entre 1976 e 1986. Acossada por uma crise de lucros, a produção de massa à moda antiga deu lugar a produção em menor escala, mais versátil, descentralizada e pós-industrial, a uma cultura ‘pós-industrial’ de consumo, de tecnologia da informação e da indústria de serviços. A terceirização e a globalização viraram a nova ordem do dia. Mas isso não implicou mudança essencial no sistema; só levou a geração de 1968 a trocar Gramsci e Marcuse por Said e Spivak. Ao contrário, o sistema estava então mais poderoso que nunca, com a riqueza ainda mais concentrada em poucas mãos e as desigualdades de classe crescendo rápidas. Foi isso, ironicamente, que fez disparar as esquerdas em busca da saída mais próxima.

As ideias radicais degradadas, oferecidas como mudança radical, pareciam cada vez mais implausíveis. A única figura pública que denunciou o capitalismo nos últimos 25 anos, diz Hobsbawm, foi o Papa João Paulo II. Duas ou três décadas depois, os covardes e fracos de coração assistiram à glória de um sistema tão exultante e impregnável, que só precisava cuidar de manter abertas as caixas de autoatendimento dos bancos em todas as ruas e esquinas.

Eric Hobsbawm, que nasceu no ano da Revolução Bolchevique, permanece amplamente comprometido com o campo marxista – fato que se deve destacar, porque é fácil ler seu livro sem se aperceber desse compromisso. Isso, pela consistência do saber do autor, não porque salte de galho em galho. O autor conviveu com tantas das turbulências históricas sobre as quais discorre, que é fácil fantasiar que a própria história falaria nessas páginas – efeito da sabedoria enxuta, que tudo vê, desapaixonada. Difícil pensar em outro crítico do marxismo, assim tão competente para refletir sobre as próprias crenças com tanta honestidade e equilíbrio.

Hobsbawm, é claro, não tem a onisciência do Espírito Absoluto hegeliano, apesar do saber cosmopolita e enciclopédico. Como muitos historiadores, não é muito afiado no campo das ideias e erra ao sugerir que os discípulos de Louis Althusser trataram O Capital de Marx como se fosse, basicamente, trabalho de epistemologia. Nem o Espírito de Hegel trataria o feminismo, sequer o feminismo marxista, com tão gélida indiferença, ou dedicaria só rápidas notas laterais a uma das mais férteis correntes do marxismo moderno – o trotskismo. Hobsbawm também pensa que Gramsci seja o mais original pensador que o ocidente produziu desde 1917. Talvez queira dizer o mais original pensador marxista, mas nem isso está absolutamente claro. Walter Benjamin, com certeza, seria candidato mais bem qualificado para esse trono.

Mas fato é que até os mais eruditos estudiosos de marxismo têm muito a aprender nesses ensaios. É parte, por exemplo, do fundo de comércio do materialismo histórico que Marx esgrimiu com decisão contra os vários socialistas utópicos que o cercavam. (Um deles acreditava que, no mundo ideal, o mar viraria limonada. Marx, sem dúvida, preferiria Riesling.) Hobsbawm, ao contrário, insiste em que Marx teria dívida substancial com esses pensadores, que iam “dos penetrantemente visionários, até os psiquicamente perturbados”. Fala claramente do caráter fragmentário dos escritos políticos de Marx, e insiste, acertadamente, em que a palavra “ditadura”, na expressão “ditadura do proletariado”, que Marx usou para descrever a Comuna de Paris, tem significado absolutamente diferente do que hoje se conhece. A revolução deveria ser vista não simplesmente como repentina transferência do poder, mas como prelúdio de longo, complexo, imprevisível período de transição. Dos últimos anos da década dos 1850 em diante, Marx já não considerava nem iminente nem provável qualquer repentina tomada do poder. Por mais que tenha elogiado entusiasticamente a Comuna de Paris, Marx pouco esperava dela. Nem a ideia de revolução seria simploriamente oposta à ideia de reforma, da qual Marx foi defensor persistente.

Como Hobsbawm poderia ter acrescentado, houve revoluções praticamente sem derramamento de sangue, e alguns espetacularmente sanguinolentos processos de reforma social.

No absorvente ensaio sobre A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra de Engels, o livro é apresentado como o primeiro estudo de todos os tempos sobre como lidar com toda a classe trabalhadora, não só com específicos setores das indústrias. Na opinião de Hobsbawm, a análise que ali se fez do impacto social do capitalismo ainda não foi superada, em vários aspectos. O livro não pinta seu objeto com cores suaves: a ideia de que todos os trabalhadores fossem famintos ou vivessem em miséria absoluta, ou que jamais ultrapassariam a linha da sobrevivência, não tem qualquer fundamento. Tampouco tem fundamento a burguesia que lá se vê, apresentada como bando de vilões de coração de pedra. Como tantas vezes acontece, cada um só vê o que já conhece: Engels, ele próprio, era filho de uma rico industrial alemão proprietário de uma fábrica de tecidos em Salford, e usava seus mal-havidos lucros para ajudar a alimentar, vestir e dar teto à família Marx — essa, sim, sempre à beira da miséria. Engels gostava de caçar raposas; herói de dois mundos, do proletariado e dos colonizadores irlandeses, sabia unir teoria e prática e amou apaixonadamente sua amante irlandesa da classe operária.

Marx antevia como inevitável a vitória do socialismo? Sim, como se lê no Manifesto Comunista, que Hobsbawm não concorda que seja documento determinista. Isso, em parte, porque Hobsbawm não discute o tipo de inevitabilidade que estaria em questão. Marx escreve às vezes como se as tendências históricas fossem forças da natureza e operassem como as leis naturais; mas, ainda assim, nada explica por que, depois do capitalismo, viria o socialismo, como resultado lógico.

Se o socialismo é historicamente predeterminado, por que tanto empenho na luta política? A explicação está em que Marx esperava que o capitalismo se tornasse cada vez mais explorador; e que a classe trabalhadora cresceria muito, em poder, em números e em experiência acumulada. Nesse quadro, os homens e mulheres trabalhadores, satisfatoriamente racionais, rapidamente encontrariam todos os motivos necessários para levantar-se contra seus opressores. Mais ou menos como, para os cristãos, o livre arbítrio que rege as ações humanas é parte de um plano preordenado por Deus, assim também, para Marx, o acirramento das contradições do capitalismo forçaria os homens e mulheres a, livremente, decidirem dar cabo dele. A ação humana consciente traria a revolução. O paradoxo está em que a ação livre consciente é, em certo sentido, predeterminada como em escrituras.

A verdade é que não se pode falar sobre o que homens e mulheres livres seriam obrigados a fazer em dadas circunstâncias, porque, se são obrigados a fazer, seja o que for, não são livres. É possível que o capitalismo esteja nas últimas, à beira da ruína, mas nada assegura que, depois dele, venha algum socialismo. Pode vir algum fascismo, ou a barbárie.

Hobsbawm nos lembra uma frase curta mas muito significativa do Manifesto Comunista pela qual, universalmente, todos os especialistas sempre passam apressados: o capitalismo, escreve Marx sinistramente, pode terminar “na ruína comum das classes concorrentes”. Não se deve descartar a possibilidade de que o único socialismo que talvez venhamos a conhecer seja o que nos for imposto por circunstâncias materiais, depois de uma catástrofe nuclear ou ecológica.

Como outros crentes do progresso infinito no século 19, Marx não considera a possibilidade de o engenho humano avançar tanto no campo da tecnologia, que acabe por se autodetonar. Aí está uma das várias vias pelas quais se pode demonstrar que o socialismo não é historicamente inevitável, como, de fato, nada é. Marx não viveu o suficiente para ver como a democracia social consegue subornar qualquer paixão revolucionária.

Poucos trabalhos mereceram tantos elogios das classes médias, com tanto embaraçoso fervor, quanto o Manifesto Comunista. Do ponto de vista de Marx, as classes médias foram, de longe, a força mais revolucionária na história humana, e sem seu empenho na luta pelos próprios objetivos e a riqueza espiritual que acumularam, o socialismo fracassaria. Esse, desnecessário dizer, foi dos mais agudos e certeiros prognósticos de Marx.

O socialismo no século 20 tornou-se mais necessário precisamente onde era menos possível: em regiões atrasadas do mundo, socialmente devastadas, politicamente obscurantistas, economicamente estagnadas, onde nenhum pensador marxista apareceu antes que Stalin sequer sonhasse em ali deitar raízes. Ou, pelo menos, tentar deitar raízes com o socorro massivo de nações azeitadas. Nessas condições terríveis, o projeto socialista está destinado a converter-se em monstruosa paródia dele mesmo.

Assim também, a ideia de que o marxismo leva inevitavelmente a essas monstruosidades, como Hobsbawm observa, “é tão racional e justificável quanto a tese de que o cristianismo levará necessariamente ao absolutismo papal; ou que todo o darwinismo levará à glorificação do livre mercado”. (Hobsbawm não considera a possibilidade de o darwinismo levar ao absolutismo papal – que bem se aplica, como descrição racional, a Richard Dawkins.)

Hobsbawm, contudo, lembra também que Marx foi, de fato, generoso demais com a burguesia, vício do qual não é muito frequentemente acusado. No momento em que surgiu o Manifesto Comunista, os sucessos econômicos eram muito mais modestos do que Marx imaginava. Numa curiosa arquitetura de tempos, o Manifesto descreveu, não o mundo que o capitalismo havia criado em 1848, mas o mundo que haveria depois de transformado, como era seu destino, pelo capitalismo. O que Marx tinha a dizer não era exatamente verdade, mas viria a ser verdade, digamos, à altura do ano 2000, resultado da transformação operada pelo capitalismo.

Até os comentários sobre a abolição da família foram proféticos: mais da metade das crianças nos países ocidentais avançados nascem hoje, ou são criadas, por mães solteiras; e metade de todas as moradias nas grandes cidades são ocupadas por um só morador.

O ensaio de Hobsbawm sobre o Manifesto comenta “a eloquência obscura, lacônica” e nota que, como retórica política “tem força quase bíblica”. “O novo leitor”, escreve ele, “dificilmente deixará de ser fascinado pela convicção apaixonada, pela brevidade concentrada, pela força intelectual e estilística desse extraordinário panfleto.” O Manifesto inaugurou um novo gênero, um tipo de declaração política do qual se serviram artistas como os Futuristas e os Surrealistas, cuja redação e vocabulário audaciosos e as hipérboles de escândalo fizeram, dos próprios manifestos, obras de arte.

O gênero literário “manifesto” é uma mistura de teoria e retórica, de fato e ficção, programático e performativo, que ainda não foi tomado seriamente como objeto de estudo.

Marx, ele próprio, também foi artista. Pouco se fala sobre o quanto era extraordinariamente estudado e culto e o quanto investiu, de aplicado trabalho, no estilo literário de seus escritos. Ansiava por livrar-se do “lixo econômico” de Das Kapital, para poder dedicar-se integralmente ao seu grande livro sobre Balzac.

O marxismo trata de lazer, não de trabalho. É projeto que deve ser apoiado por todos que detestam ter de trabalhar. O marxismo afirma que as mais preciosas atividades são feitas “porque sim e deixe-me em paz”[1], e que a arte é, nesse sentido, o paradigma da autêntica atividade humana. O marxismo diz também que os recursos materiais que tornariam possível a sociedade onde seria possível essa vida humana já existem em princípio, mas são geridos de tal modo que a maioria é obrigada a trabalhar tão duro quanto trabalhavam nossos ancestrais no Neolítico. Fizemos, pois, extraordinários progressos e, ao mesmo tempo, progresso nenhum.

Nos anos 1840, argumenta Hobsbawm, não era de modo algum improvável concluir que a sociedade estivesse às portas da revolução. Improvável, isso sim, seria a ideia de que, em meia dúzia de décadas a política da Europa capitalista estaria transformada pela ascensão de partidos e movimentos das classes trabalhadoras. Pois foi o que aconteceu.

E foi nesse momento que a discussão sobre Marx, pelo menos na Grã-Bretanha, passou, de admiração cheia de cautelas, a, praticamente, histeria.

Em 1885, Balfour – e ninguém menos revolucionário que Balfour – comentou os escritos de Marx, elogiando a força intelectual e o brilho do raciocínio econômico. Muitos comentaristas liberais e conservadores levaram realmente muito a sério aquelas ideias econômicas. Quando as mesmas ideias assumiram a forma de força política, porém, começaram a aparecer os primeiros trabalhos ferozmente antimarxistas. A apoteose foi a espantosíssima revelação, por Hugh Trevor-Roper, de que Marx não trazia qualquer contribuição original à história das ideias.

A maioria desses críticos, aposto, teriam rejeitado a ideia marxista de que o pensamento humano é muitas vezes modelado, curvado, pela pressão de interesses políticos,  fenômeno que atende quase sempre pelo nome de “ideologia”.

Só recentemente o marxismo voltou à agenda planetária, ali metido, ironicamente, por um capitalismo agonizante. “Capitalismo em Convulsão” – em manchete do Financial Times em Londres, em 2008. Quando os capitalistas começam a falar sobre o capitalismo, aposte: o sistema está em estado crítico. Nos EUA, nenhum jornal (e nenhum capitalista), até agora, se atreveu tanto.

Há muito mais a admirar em How to Change the World. Numa passagem sugestiva sobre William Morris, o livro mostra que era lógico que brotasse em Londres uma crítica baseada nas artes e nos artesanatos, do capitalismo; em Londres, onde o capitalismo industrial avançado impunha ameaça mortal a todas as artes e artesanatos. Um capítulo sobre os anos 1930 traz fascinante relato das relações entre o marxismo e a ciência – e foi o único período, Hobsbawm anota, em que os cientistas naturais deixaram-se atrair em números significativos, pelo marxismo. Aparecia no horizonte a ameaça de um fascismo irracionalista; e os traços “iluministas” do credo marxista – a fé na razão, na ciência, no progresso humano e no planejamento social – atraíram homens como Joseph Needham e J.D. Bernal. Durante o renascimento histórico seguinte do marxismo, nos anos 1960 e 1970, essa versão do materialismo histórico seria deslocada pelos parâmetros mais culturais e filosóficos do chamado Marxismo Ocidental. De fato, a ciência, a razão, o progresso e o planejamento já eram então mais inimigos que aliados, em guerra contra novos cultos libertários, do desejo e da espontaneidade. Hobsbawm mostra, no máximo, uma simpatia ilustrada pelo pessoal de 1968, o que não surpreende, em membro eterno do Partido Comunista. A idealização, naqueles anos, da Revolução Cultural na China, ele sugere, com bastante razão, teria tanto a ver com a China quanto o culto do “bon sauvage”, no século 18, teria a ver com o Tahiti.

“Se algum pensador deixou marca que ainda se vê no século 20”, diz Hobsbawm, “foi Marx”. Setenta anos depois da morte de Marx, para o bem ou para o mal, um terço da humanidade vivia sob regimes políticos inspirados por seu pensamento. Bem mais de 20% continuam a viver. O socialismo foi descrito como o maior movimento de reforma da história da humanidade. Poucos intelectuais mudaram o mundo, de modo tão objetivo e prático. É coisa que se diz, mais, de estadistas, cientistas e generais, não de filósofos ou teóricos da política. Freud pode ter mudado a vida de muita gente, mas não se sabe que tenha mudado governos.

“Os únicos pensadores individualmente identificáveis que alcançaram status comparável” – escreve Hobsbawm – “são os fundadores das grandes religiões do passado; e, com a única possível exceção de Maomé, nenhum deles triunfou nem tão rapidamente, nem em escala comparável”. Mas poucos, como Hobsbawm destaca, previram que seriam tão célebres também pela miséria extrema ou pelo exílio de judeu atormentado por furúnculos, homem que observou um dia, falando de si próprio, que ninguém jamais escrevera tanto sobre dinheiro, nem vivera com menos dinheiro, que ele.

Vários dos ensaios reunidos nesse livro já foram publicado, mas dois terços deles eram inéditos em inglês. Os que não leiam italiano podem, agora, ler vários importantes ensaios de Hobsbawm editados primeiro naquela língua, entre os quais três importantes revisões da história do marxismo, de 1880 a 1983. Bastariam esses ensaios, para tornar valiosíssimo o novo volume, mas há mais, sobre o socialismo pré-Marx, Marx sobre as formações pré-capitalistas, Gramsci, Marx e o trabalhismo, que ampliam consideravelmente o âmbito da nova seleção.

How to Change the World é o trabalho de um homem que chegou a idade em que a maioria de nós dar-se-á por feliz se conseguir sair sozinho do fundo da poltrona, sem precisar de duas enfermeiras e um guindaste, mestre também da pesquisa histórica. Não será, com absoluta certeza, o último trabalho desse espírito indomável.

Tradução: Coletivo VilaVudu


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[1] Orig. “the most precious activities are those done simply for the hell of it”. Tradução impossível, sem perder o que o autor escreveu. Mais uma tradução tentativa precária. Há outras. (NTs) 

FONTE: OUTRAS PALAVRAS