sábado, 30 de setembro de 2017

Sua agonia, seu triunfo


Execução dos anarquistas Sacco e Vanzetti, em 1927, criou símbolos de solidariedade internacional pela liberdade



Por Roberto Amado 


Trabalhadores forma às ruas pela liberdade
do sapateiro e do peixeiro (Foto Wikipédia) 
Em silêncio eles entraram, um após o outro, na sala da morte. Caminhavam lentamente. “Viva a anarquia!”, pronunciou Ferdinando Nicola Sacco antes de ser eletrocutado. Bartolomeo Vanzetti sentou-se mudo na cadeira e apenas conseguiu gaguejar um “adeus, mamãe”. Era 23 de agosto de 1927 e o mundo assistia atônito a um dos maiores erros judiciais da história.

Na cidade de Boston, nos Estados Unidos, onde ocorreu a execução, mais de 20 mil pessoas estavam concentradas numa manifestação contra a sentença. Em Paris, 12 mil entraram em choque com a polícia, assim como em Buenos Aires, Londres e Berlim. Em Montevidéu, uma manifestação ameaçou de morte o cônsul norte-americano. A Folha da Manhã noticiava uma greve geral de operários em São Paulo em solidariedade aos dois italianos anarquistas. “Foi um dos mais importantes movimentos internacionais da história”, diz Sean Purdy, professor de História dos Estados Unidos na Universidade de São Paulo (USP).

Tudo começou sete anos antes, quando, após um duplo assassinato numa pequena cidade do Estado de Massachusetts, Sacco e Vanzetti foram presos como suspeitos. Ambos foram vítimas de um julgamento tendencioso, no qual prevaleceu sobre os fatos uma febre anticomunista que contaminou os Estados Unidos após a Primeira Guerra Mundial e a Revolução Russa, em 1917. 

“O processo judicial foi uma farsa, um ato político-ideológico”, afirma Sean Purdy. Tanto Nicola Sacco como Bartolomeo Vanzetti eram ligados ao movimento anarquista norte-americano, além de serem imigrantes italianos, num momento em que os Estados Unidos praticavam uma forte política contra a imigração. O historiador lembra que, em 1921, foi criada uma lei emergencial que reduzia o limite de imigração de 800 mil para 300 mil. 

“Na ocasião, o mundo inteiro estava sob o grande impacto da Revolução Russa e os partidos de esquerda nos Estados Unidos eram constituídos de imigrantes europeus – alemães, poloneses, italianos. Havia um consistente movimento de esquerda norte-americano naquela época: o Partido Socialista chegou a receber 3 milhões de votos nas eleições de 1911”, conta o historiador. O país estava mergulhado no medo contra as forças comunistas, anarquistas e socialistas – o red scare (temor vermelho).

Mártires

Sacco, um respeitado sapateiro, e Vanzetti, um modesto peixeiro, foram levados a um julgamento marcado por uma sucessão de arbitrariedades e erros. Para começar, nenhum dos dois conseguia se expressar fluentemente em inglês. Também pesou o fato de ambos terem se refugiado no México, anos antes, para não servir o Exército durante a guerra. Há suspeitas de que houve pressões sobre as testemunhas, ainda que não pudessem fazer plena identificação dos acusados. E o comportamento do juiz Webster Thayer foi considerado pela imprensa americana da época como “surpreendentemente imparcial”.

Os sete anos em que os amigos passaram na prisão à espera da execução da sentença foram marcados por uma sucessão de idas e vindas judiciais, resultado das pressões da opinião pública internacional contra a decisão. “Em várias cidades do mundo, houve mobilização de operários e defensores dos direitos humanos. E não foram movimentos ligados apenas ao pensamento de esquerda”, diz Purdy. No Brasil, o Congresso chegou a aprovar apoio formal aos condenados, assim como a prefeitura da capital federal, o Rio de Janeiro, para a satisfação do movimento operário. De nada adiantou. Nem mesmo a tentativa de suicídio de Sacco, que o levou ao hospital em 1923, e a greve de fome que empreendeu nos seus últimos momentos de vida.

Poucas horas antes da execução, o sapateiro deu uma declaração sobre o longo processo de erros e desacertos a que foi submetido: “Estão determinados a nos matar, sem se importar com as evidências, com a lei, com a decência. Se nos concederem um adiamento esta noite, será para nos matar na semana que vem. Vamos terminar logo com isso. Esperei sete anos para morrer sabendo o tempo todo que eles queriam nos matar”. Vanzetti citou Santo Agostinho: “O sangue dos mártires é a semente da liberdade”.

Após a morte dos dois imigrantes, transformados em símbolos da esquerda internacional, as repercussões continuaram. O caso, ao longo do tempo, deu margem a uma série de manifestações nas artes, na literatura e no Direito. Desde abordagens técnicas sobre o processo até expressões mais romanceadas. Em 1971, o diretor Giuliano Montaldo levou a história para o cinema. A exibição do filme Sacco e Vanzetti foi proibida no Brasil pela ditadura e a canção Here’s to You, interpretada por Joan Baez e incluída na trilha sonora composta por Ennio Morricone, tornou-se hino contra a repressão e a censura (Here’s to you, Nicola and Bart/ Rest forever here in our hearts/ The last and final moments is yours/ That agony is your triumph).

Últimas palavras

"Caros amigos e camaradas do Comitê de Defesa de Sacco-Vanzetti  À meia-noite de amanhã nós seremos executados, a menos que haja novo adiamento da Corte Suprema dos Estados Unidos ou do governador Alvan T. Fuller. Nós não temos mais esperança (...) Assim, decidimos escrever essa carta para expressar nossa gratidão e admiração por tudo o que vocês fizeram em nossa defesa durante estes sete anos, quatro meses e onze dias de luta (...) Apenas dois de nós vão morrer. Nosso ideal viverá em milhões de pessoas. Nós vencemos. Conservem nosso sofrimento, nossas dores, nossos erros, nossas derrotas e nossa paixão como um tesouro para batalhas futuras e para a liberdade final. Saudações aos nossos amigos e camaradas da Terra. Vida longa à Liberdade!"


Bartolomeo Vanzetti e Nicola Sacco


sábado, 23 de setembro de 2017

Alexandra Kollontai, uma mulher do século 25


Alexandra Kollontai


Por Wevergton Brito


No dia 19 de março (pelo calendário juliano vigente na Rússia de então, hoje 31 de março) comemorou-se os 145 anos de nascimento de Alexandra Kollontai, feminista, militante bolchevique e dirigente soviética.

Afirmar que Alexandra Kollontai era uma mulher à frente do seu tempo não é incorreto, mas é uma definição até acanhada diante do que representaram suas ideias acerca de temas como libertação feminina, sexualidade, casamento, família...

Em 1907 Frida Kahlo nascia e Simone de Beauvoir nasceu um ano depois. Pois em 1907, quando estes dois ícones do feminismo ainda nem engatinhavam, Kollontai já denunciava o casamento e a família burguesas como grilhões que oprimiam a mulher: “Para se tornar verdadeiramente livre, a mulher deve desatar as correntes que a aprisionam sobre a forma atual, antiquada e opressiva da família (...) as formas atuais, estabelecidas pela lei e o costume, da estrutura familiar faz com que a mulher esteja oprimida não só como pessoa, mas também como uma esposa e mãe (...) E onde acaba a escravatura familiar oficial, legalizada, começa a ‘opinião pública’ para exercer os seus direitos sobre as mulheres” (1).

Kollontai denuncia de forma implacável a “hipócrita dupla moral”, que julga de forma severa a conduta de uma mulher que vive livremente sua sexualidade enquanto ao homem tudo é permitido: “A mulher está privada do direito de um cidadão de levantar a voz para defender seus interesses pisoteados, e (a sociedade) tem a grande bondade de oferecer esta alternativa: ou o jugo conjugal ou a prostituição, que abertamente é desprezada e condenada, mas secretamente, apoiada e sustentada” (2).

Para Alexandra Kollontai, era tarefa da classe trabalhadora lutar contra a opressão sexual vivida pelas mulheres: “Entre as múltiplas ideias fundamentais que a classe trabalhadora deve levar em conta em sua luta para a conquista da sociedade futura, deve estar, necessariamente, o estabelecimento de relações sexuais mais sadias e que, portanto, tornem a humanidade mais feliz. É imperdoável nossa atitude de indiferença diante de uma das tarefas essenciais da classe trabalhadora. É inexplicável e injustificável que o vital problema sexual seja relegado, hipocritamente, ao arquivo das questões puramente privadas” (3).

Era preciso, segundo ela, uma nova relação entre os sexos, baseada “em dois princípios novos: liberdade absoluta, por um lado, e igualdade e verdadeira solidariedade entre companheiros, por outro” (4).

Para ela, a nova sociedade socialista teria, inevitavelmente que ter uma nova moral: “Toda classe ascendente, nascida como consequência de uma cultura material distinta daquela que a antecedeu no grau anterior da evolução econômica, enriquece toda a humanidade com uma nova ideologia que lhe é característica” (5).

“Mulher comunista, sexualmente emancipada”

Em 1926, Kollontai, então com 54 anos, escreveu uma pequena autobiografia, intitulada “Autobiografia de uma mulher comunista sexualmente emancipada”. Nela, congratula-se por ter sido “bem-sucedida em estruturar minha vida de acordo com meus próprios padrões e não faço mais segredo das minhas experiências amorosas do que um homem faz das suas. Mas, acima de qualquer outra coisa, eu nunca deixei meus sentimentos, a alegria ou a dor do amor, tomarem o primeiro lugar em minha vida, ao passo que criatividade, ação e luta sempre ocuparam o primeiro plano”.

De fato, o feminismo de Kollontai era politicamente engajado e eminentemente classista, embora ela se recusasse a deixar que a questão da opressão feminina fosse adiada até a conquista do socialismo, “as mulheres só podem se tornar verdadeiramente livres e iguais apenas em um mundo organizado por novas linhas sociais e de produção. No entanto, isso não significa que a melhora parcial na vida das mulheres no âmbito do atual sistema não é possível” (6).

Alexandra nasceu em uma família abastada, com o nome de Alexandra Mikhaylovna Domontovich. O pai, ucraniano, era general do exército russo e a mãe vinha da aristocracia rural finlandesa. Aos 20 anos casa-se com Vladimir Mikhaylovich Kollontai, um jovem oficial do exército, com quem teve um filho, Misha. Vem deste casamento o sobrenome com o qual ficou famosa e que conservou até o fim da vida.

Considerada por muitos contemporâneos a mulher “mais bela da Rússia” (7), a “bolchevique enamorada” (título de um dos seus romances) teve contato com a literatura revolucionária graças a uma amiga, Lelia Stassova. Segundo suas próprias palavras “Cada vez mais minhas simpatias, meus interesses se voltaram para a classe trabalhadora revolucionária da Rússia. Eu lia vorazmente. Zelosamente estudava todas as questões sociais, frequentava palestras, e trabalhava em sociedades semilegais para o esclarecimento do povo” (8).

Em 1898 abandona o marido e o filho e inicia “uma jornada a Zurique com o objetivo de estudar economia política com o professor Heinrich Herkne” (9). Segundo Alexandra “Com isso teve início minha vida consciente em defesa dos objetivos revolucionários da classe trabalhadora” (10). Em 1899 filia-se ao Partido Operário Social Democrata Russo (POSDR), organização que reunia os marxistas revolucionários da Rússia.

Militante revolucionária

Participa da revolução russa de 1905, tem intensa atividade, mas se queixa de “quão pouco nosso partido se preocupava com a sorte das mulheres da classe trabalhadora e quão pequeno era o seu interesse na libertação feminina” (11).

Pouco a pouco vai vencendo resistências e atraindo aliadas: “Não obstante, nos anos de 1906-1908 eu conquistei um pequeno grupo de mulheres camaradas do partido para os meus planos” (12).

Os artigos de Alexandra sobre os direitos da mulher, o casamento e a família a tornam cada vez mais popular, inclusive internacionalmente, e além do mais ela revela grande talento como oradora.

A jovem revolucionária vivia plenamente sua sexualidade, enfrentando toda sorte de tabus e preconceitos, que partia inclusive de camaradas revolucionários, “Eu agora posso confessar abertamente que no partido russo eu era, de forma deliberada, mantida relativamente à distância do centro dirigente” (13).

Com o POSDR dividido entre bolcheviques e mencheviques, Alexandra junta-se aos mencheviques, tendo como um dos motivos principais a postura quanto à Duma de Estado (parlamento sem poderes efetivos criado pelo Czar Nicolau II em 1906). Os bolcheviques pregavam o boicote ativo à Duma e os mencheviques defendiam a participação (14): “eu compartilhava o ponto de vista de que mesmo um pseudoparlamento deveria ser utilizado como uma tribuna para o nosso partido e que as eleições para a Duma deveriam ser utilizadas como um ponto de congregação para a classe trabalhadora” (15).

Mas a luta principal de Kollontai dentro do Partido era para conjugar a emancipação das mulheres com a revolução proletária: “tentei influenciar camaradas do partido e as próprias mulheres trabalhadoras. Naturalmente, sempre fiz isso de um modo que exigia do partido que ele abraçasse a causa da libertação feminina. Isso nem sempre foi uma tarefa fácil. Muita resistência passiva, pouca compreensão, e ainda menor interesse para esse objetivo se apresentavam, reiteradamente, como obstáculos no caminho. Foi somente em 1914, um pouco antes do início da I Guerra Mundial, que finalmente ambas as frações – os mencheviques e os bolcheviques – passaram a levar a questão de uma maneira séria e prática, um fato que teve para mim um efeito semelhante a uma condecoração pessoal” (16).

Obrigada a se exilar pela perseguição da Okrana (a polícia secreta czarista) Kollontai, de 1908 a 1917, peregrina entre Alemanha, Bélgica, Dinamarca, Estados Unidos, França, Inglaterra, Itália, Noruega e Suíça. Para alguns destes países ela levou o filho, Misha. Sobre o filho, ela diz, em sua autobiografia, que “embora eu o tenha pessoalmente educado com grande cuidado, a maternidade nunca foi o centro da minha existência”.

Na Alemanha fica amiga de Karl Liebknecht, Rosa Luxemburgo, Karl Kautsky e também da veterana revolucionária e feminista Clara Zetkin, a quem ela atribui “uma grande influência na minha atividade de definir os princípios do movimento das mulheres trabalhadoras na Rússia” (17).

Na França, torna-se amante do operário russo exilado Chliapnikov. Ela tinha então 39 anos e ele 26. Chliapnikov era um quadro profissional dos bolcheviques, ligado diretamente a Lênin, que nesta época também estava em Paris. Lênin, informado por Chliapnikov sobre a relação – o operário diz estar “apaixonadíssimo” por Kollontai (18) – sugere que Chliapnikov atraia a valiosa militante para os bolcheviques.

Não tarda e Kollontai escreve uma carta para Zoia Chadurskaia, a sua melhor amiga, onde diz: “Ele (Chliapnikov) abriu-me os olhos para muitas coisas; transformou-me” (19).

Alexandra Kollontai filia-se oficialmente aos bolcheviques em junho de 1915 e passa a manter uma correspondência frequente com Lênin.

Embora não seja artificial supor a influência de Chliapnikov sobre a decisão de Kollontai de juntar-se aos bolcheviques, em sua “autobiografia” ela faz questão de assinalar que “nenhum dos homens que estiveram próximos de mim chegou a ter alguma influência no sentido de dar direção às minhas tendências, lutas ou visão de mundo. Ao contrário, na maior parte do tempo eu era o espírito que liderava”.

No fogo da revolução de outubro

Em fevereiro de 1917, quando cai o Czar, Alexandra é uma das primeiras bolcheviques a retornar à Rússia. Vale a pena ler seu relato sobre a sua chegada:

“Um trenó levou-me através do rio que delimita a fronteira. Em solo russo postava-se um soldado. Uma fita vermelha brilhante vibrou em seu peito. ‘Seus papéis de identidade, por favor, cidadã’. ‘Eu não tenho nenhum. Eu sou uma refugiada política’. ‘Seu nome?’ Eu identifiquei-me. Um jovem oficial foi chamado. Sim, meu nome estava na lista dos refugiados políticos que deviam ser admitidos livremente no país por ordem do Soviet dos Trabalhadores e dos Soldados. O jovem oficial ajudou-me a descer do trenó e beijou minha mão, quase como uma reverência. Eu estava pisando o solo republicano da Rússia liberta! Essa foi uma das horas mais felizes de toda a minha vida (20).”

Por ironia, este mesmo educado jovem oficial prende Kollontai, como uma “perigosa bolchevique”, apenas quatro meses depois, por ordem do governo de Kerenski.

Antes desta prisão, Alexandra Kollontai participou da comitiva que recebeu Lênin na Estação Finlândia, quando chegou a vez de o líder bolchevique retornar do exílio. Aderiu de corpo e alma às “Teses de Abril” (obra de Lênin que prepara o partido para a insurreição).

Cada vez melhor como oradora, combatente fervorosa do governo provisório, enfrentou cerrada campanha dos jornais burgueses que redobravam seu ódio contra a “louca bolchevique”, indubitavelmente por conta também do preconceito machista: “Com frequência, tinha que pular dos bondes antes que as pessoas me reconhecessem, já que tinha me transformado no assunto do momento e frequentemente testemunhava pessoalmente os maiores abusos e mentiras dirigidos contra mim (...) Naquele tempo, os jornais hostis a mim já escreviam sobre ‘os vestidos de festa de Kollontai’ o que, particularmente nesses tempos, era risível, porque meu baú tinha sido perdido a caminho a Rússia, assim eu vestia sempre o mesmo e único vestido. Havia até mesmo uma pequena balada nas ruas que comentava sobre Lênin e mim em verso (21)“.

Um bom exemplo da capacidade oratória de Kollontai foi o episódio de seu discurso aos marinheiros da armada fundeada em Helsinque e Kronstadt, no dia 28 de abril de 1917. Os bolcheviques já haviam tentado por diversas vezes conseguir a adesão da esquadra do Báltico para os planos revolucionários, mas sem sucesso. Lênin então envia Kollontai. Em um discurso brilhante, a dirigente bolchevique conquista os marinheiros que mais tarde desempenham na revolução de outubro um papel fundamental (22).

Presa por ordem do governo provisório de Kerenski, Kollontai foi solta junto com outros bolcheviques por ordem do Soviete de Soldados e Operários e colocada em prisão domiciliar.

Fica completamente livre um mês antes da revolução de outubro: “Naquele período, eu era membro do organismo mais elevado do partido, o Comitê Central, e votei a favor da política de levante armado (...) Vieram então os grandes dias da Revolução de Outubro. O Instituto Smolny tornou-se histórico. As noites sem dormir, as sessões permanentes” (23).

O famoso Instituto Smolny, citado por Kollontai, era o local onde se reunia a Comissão Militar eleita pelo CC bolchevique e responsável por preparar a insurreição.

Comissária do Povo

Com a revolução de outubro de 1917 vitoriosa, Kollontai é eleita para compor o escalão superior do primeiro governo soviético, ocupando a pasta no Soviete Supremo de Comissária do Povo para o Bem-Estar Social, cargo equivalente ao de Ministro. Era a primeira vez na história que uma mulher era escolhida para um cargo governamental deste nível. Para se ter uma ideia do que isso significa, na França a mulher só conquista o direito de voto em 1945.

O trabalho de Kollontai é colossal, enfrentando a sabotagem da velha burocracia, que ainda estava presente em boa parte do aparelho estatal do recém-nascido Estado Soviético, surpreende a ousadia do que foi feito.

Todas as leis que discriminavam a mulher foram abolidas, o divórcio é instituído. O aborto, embora não fosse incentivado (quem cobrasse para fazer aborto era punido), passou a ser livremente feito em hospitais e maternidades públicas. Mas isso era apenas parte do trabalho. Alexandra cita alguns dos principais desafios e iniciativas, muitos deles ainda plenamente atuais e urgentes em diversos países:

“reorganizar os antigos orfanatos (...) estabelecer as primeiras hospedarias para os necessitados e os moradores de rua, reunir um comitê, composto somente de médicos, que seria encarregado de elaborar o sistema público gratuito de saúde para o país inteiro. Em minha opinião, a mais importante realização do Comissariado do Povo, entretanto, foi a fundação legal de um Escritório Central ao Bem-Estar Materno e Infantil. O esboço do projeto de lei relacionado a este escritório central foi assinado por mim em janeiro de 1918. Um segundo decreto seguiu-se transformando todas as maternidades em Casas de Atendimento à Maternidade e à Infância gratuitas, buscando, desse modo, estabelecer as bases para um sistema governamental abrangente de cuidado pré-natal. (24)”

O objetivo, segundo Kollontai, era efetivar “direitos iguais para mulheres como unidade de trabalho na economia nacional e como cidadã na esfera política e, é claro, com uma ressalva especial: a maternidade devia ser considerada uma função social e, conseqüentemente, ser protegida e garantida pelo Estado. Sob a orientação do Dr. Lebedevo, os institutos estatais para o cuidado pré-natal também floresceram nessa época. Ao mesmo tempo, escritórios centrais foram estabelecidos no país inteiro para tratar das questões e das tarefas relacionadas com a libertação das mulheres e para inseri-las no trabalho dos sovietes” (25).

Tudo isso, por óbvio, não foi feito sem despertar forte reação da direita. Alexandra foi excomungada em um ato público convocado pela igreja ortodoxa e a imprensa reacionária redobrou os ataques.

Pacientemente, a dirigente buscava esclarecer o povo: “A república operária não toma as crianças dos braços de suas mães à força, como versam os relatos fictícios dos países burgueses sobre os horrores do ‘regime bolchevique’; pelo contrário, a república operária procura criar instituições que permitam que todas as mulheres, e não apenas as mulheres ricas, tenham a oportunidade de criar seus filhos em um ambiente saudável e feliz. Em vez de levar mães angustiadas a largarem seus filhos sob os cuidados de uma babá contratada, a Rússia soviética deseja que a operária e a camponesa possam trabalhar tranquilamente, sabendo que seu filho estará seguro nas mãos hábeis de uma creche, de um jardim de infância ou de um lar de crianças. (26)”

Combatia, com argumentos didáticos, o preconceito contra as mudanças. A citação é longa, mas vale conhecer como a dirigente soviética buscava escrever visando atingir os operários e camponeses:

“Não há nenhuma razão para nos enganarmos: a família normal dos tempos passados na qual o homem era tudo e a mulher era nada – posto que não tinha vontade própria, nem tempo do qual dispor livremente -, este tipo de família sofre modificações dia a dia, e atualmente é quase uma coisa do passado, o qual não deve nos assustar. Seja por erro ou ignorância, estamos dispostos a crer que tudo o que nos rodeia deve permanecer imutável, enquanto tudo o mais muda. ‘Sempre foi assim e sempre será’. Esta afirmação é um erro profundo. A moral a serviço do homem atual o autoriza exigir das jovens a virgindade até seu casamento legítimo. Porém, não obstante, há tribos em que ocorre o contrário: a mulher tem orgulho de ter tido muitos amantes e enfeita braços e pernas com braceletes que indicam o número... Diversos costumes, que a nós nos surpreendem, hábitos que podemos, inclusive, qualificar de imorais, outros povos o praticam, com a sanção divina, enquanto que, por sua parte, qualificam de ‘pecaminosos’ muitos de nossos costumes e leis. Portanto, não há nenhuma razão para que nos aterrorizemos diante do fato de que a família sofra uma mudança, porque gradualmente se descartem vestígios do passado vividos até agora, nem porque se implantam novas relações entre o homem e a mulher. Sobre as ruínas da velha vida familiar, veremos ressurgir uma nova forma de família que suporá relações completamente diferentes entre o homem e a mulher, baseadas em uma união de afetos e camaradagem, em uma união de pessoas iguais na sociedade comunista, as duas livres, as duas independentes, as duas operárias. Não mais ‘servidão’ doméstica para a mulher! Não mais desigualdade no seio da família! O matrimônio ficará purificado de todos seus elementos materiais, de todos os cálculos de dinheiros que constituem a repugnante mancha da vida familiar de nosso tempo. O matrimônio se transformará de agora em diante na união sublime de duas almas que se amam, que se professem fé mútua” (27).

Kollontai não se deixava intimidar pelos ataques, mas tampouco se inebriava pelas conquistas iniciais. Em discurso às operárias, ela fala do avanço e dos limites do que se tinha alcançado (ouça abaixo o áudio deste discurso completo e com legendas em português): “A Revolução de Outubro emancipou a mulher: hoje as camponesas têm os mesmos direitos que os camponeses, e as operárias, os mesmos que os operários. Em todo lugar a mulher pode votar, ser membro dos sovietes ou comissária, e até comissária do povo. A lei equipara a mulher em direitos, mas a realidade ainda não a libertou: as operárias e camponesas continuam subjugadas ao trabalho doméstico, como escravas dentro da própria família. Numa sociedade comunista mulher e homem devem ter direitos iguais! Sem essa igualdade, não há comunismo” (28).

A pobreza de uma nação devastada pela guerra e ainda em guerra civil também é um obstáculo:

“Nós não precisamos nos valer de métodos de agitação para convencer as mulheres a utilizarem os lares de gestantes. O nosso problema é a limitação dos recursos materiais da Rússia; nós somos pobres, o que torna difícil ampliar a nossa rede, a fim de cobrir toda a área da Rússia operária com tais ‘postos de atendimento’ para operárias e camponesas (...) Ao longo de 1921, foram inauguradas 689 creches desse tipo, atendendo a 32.180 crianças. Para as mães que trabalham em fábricas e escritórios, foram abertas creches nas fábricas e nas instituições, além daquelas disponíveis a nível distrital e municipal. Não creio ser necessário enfatizar a enorme importância dessas creches para as mães. O problema é que nós não temos creches suficientes e não podemos atender a um décimo da demanda” (29).

Contudo, apesar de todos estes limites o trabalho alcançava notável avanço, o que Kollontai atribuía ao caráter da Revolução Soviética:

“É óbvio que somente um país do futuro, como a União Soviética, pode ousar confrontar a mulher sem nenhum preconceito, para considerá-la somente do ponto de vista de suas habilidades e talentos e, consequentemente, incumbi-la de tarefas de responsabilidade. Somente as frescas tempestades revolucionárias foram fortes o bastante para varrer velhos preconceitos contra a mulher” (30).

Em fins de 1918 Kollontai renuncia a seu cargo de comissária do povo por discordar das negociações que redundaram no tratado de paz de Brest-Litovski, entre o governo bolchevique e os países do bloco alemão (Alemanha, Áustria-Hungria, Bulgária e Turquia). Ela, que havia optado pelos mencheviques em 1906, em um típico desvio de direita, desta vez incorre em um desvio de esquerda e adere em 1919 à Oposição Operária, liderada por Chliapnikov (aquele mesmo operário bolchevique que ela conheceu na França e do qual foi amante durante certo período), Medvedlev, entre outros.

Na verdade, Kollontai tinha arestas com diversos dirigentes do Partido, que secretamente censuravam seu estilo de vida. Trotski e Zinoviev a detestavam. Stálin, por outro lado, a admirava, embora considerasse seu feminismo “exacerbado” (31).

Mais tarde Kollontai, assim como boa parte da “Oposição Operária”, faz autocrítica de sua posição anterior e se realinha com o Comitê Central do Partido.

Importante carreira diplomática

Em 1922, Alexandra Kollontai é nomeada para uma missão diplomática na Noruega. Logo assume o posto de embaixadora: “Em agosto de 1924, fui designada ‘ministra plenipotenciária’ e entreguei minhas credenciais ao rei da Noruega com o cerimonial usual” (32). Mais uma vez Kollontai enfrentava o arraigado preconceito: “Isto, é claro, deu à imprensa conservadora de todos os países uma outra ocasião para vomitar suas mentiras sobre mim. Afinal de contas, nunca antes em toda a História uma mulher tinha sido aceita como embaixadora com a pompa e cerimônia habituais (...) A imprensa conservadora, especialmente a imprensa ‘branca’ russa sentiu-se ultrajada e tentou fazer de mim um verdadeiro monstro de imoralidade e um espectro sangrento. Particularmente agora, foi escrita uma profusão de artigos sobre minhas ‘ideias horríveis’ em relação ao casamento e ao amor” (33).

Kollontai dá grande importância ao seu posto e ao que ele representa para a luta das mulheres:

“A diplomacia é uma casta que, mais do que qualquer outra, mantém seus antigos costumes, tradições e, acima de tudo, seus rígidos rituais cerimoniosos. O fato de que uma mulher, uma mulher ‘livre’, uma mulher solteira, tenha sido reconhecida neste posto sem oposição mostra que chegou o tempo em que todos os seres humanos serão igualmente avaliados de acordo com sua atividade e sua mais alta dignidade humana. Quando eu fui nomeada para o trabalho da diplomacia russa em Oslo, percebi que dessa forma tinha conquistado uma vitória que não era somente minha, mas das mulheres em geral, e de fato, uma vitória sobre seu pior inimigo, qual seja, sobre a moral convencional e sobre conceitos conservadores acerca do casamento (...) eu sempre penso comigo mesma que em última análise a principal vitória no que diz respeito à libertação feminina não reside apenas nesse fato. Mas antes, o que tem todo um significado especial é que uma mulher, como eu, que acertou as contas com a dupla moral e que nunca ocultou isso, tenha sido aceita em uma casta que ainda hoje se apega firmemente à tradição e à pseudomoral. (34)”

O desempenho de Kollontai como embaixadora teve total êxito. O Governo norueguês reconheceu oficialmente a URSS e Alexandra conseguiu ainda normalizar as relações comerciais entre os dois países no final de 1925.

Depois Kollontai serviu como embaixadora no México, de novo na Noruega e posteriormente, durante a guerra, na Suécia, onde levou adiante com a competência de sempre a delicada tarefa de ser a representante de um país em guerra em uma nação neutra.

Em 1945, com 73 anos, se aposenta e retorna a Rússia. Recebeu de Stálin a mais alta comenda do Estado Soviético, a Ordem de Lênin.

Morreu aos 79 anos, em 1952.

Quando escreveu sua autobiografia, terminou dizendo: “está perfeitamente claro para mim que a libertação completa da mulher trabalhadora e a criação das bases de uma nova moral sexual manter-se-ão para sempre como o alvo mais elevado de minha atividade, e de minha vida” (35).

Ela acalentava a convicção de que “inevitavelmente chegará o tempo em que uma mulher será julgada pelos mesmos padrões morais utilizados para os homens” (36).

Sem dúvida muito se avançou, graças as ideias e as lutas de Alexandra Kollontai, das feministas que vieram antes dela e das que a sucederam na batalha.

Mas também é forçoso reconhecer que ao estudar a produção teórica e a trajetória de Kollontai temos a sensação que mesmo hoje em dia ela seria incompreendida e atacada por defender – de forma consequente – valores de emancipação feminina e igualdade social.

É incrível constatar que em 2017, já findando a primeira década do século XXI, tenhamos ainda pensamentos como o do presidente brasileiro Michel Temer, que em recente discurso na cerimônia do 8 de março disse que a mulher tem grande importância como fiscal de preços no supermercado.

Felizmente existirão sempre novas Alexandras Kollontais, para enfrentar e derrotar os czares e os guardas brancos do nosso tempo, poderosos sem dúvida, mas cada vez mais arrogantes, com a arrogância típica de quem pressente que seu tempo histórico acabou e que o século 25, quem sabe, está logo ali.

*Wevergton Brito Lima é Jornalista, membro da Comissão de Política e Relações Internacionais do PCdoB

Notas:

1, 2, 6 – Os Fundamentos Sociais da Questão Feminina (Extratos,) Alexandra Kollontai, 1907

3, 4, 5 – As Relações entre os Sexos e a Luta de Classes, Alexandra Kollontai, 1911

7, 18, 19, 31 – Alexandra Kollontai, uma mulher à frente do seu tempo, Miguel Urbano Rodrigues, 2016

8, 9, 10, 11, 12, 13, 15, 16, 17, 20, 21, 22, 24, 25, 30, 32, 33, 34, 35, 36 – Autobiografia de uma mulher comunista sexualmente emancipada, Alexandra Kollontai, 1926

14 – A criação da Duma, com funções apenas de “aconselhamento” ao Czar, foi uma tentativa da reação de frear o ascenso revolucionário das massas que explodiu em 1905 em violentos protestos contra o czarismo. Lênin e os bolcheviques interpretaram corretamente os fatos e adotaram uma tática consequente de boicote ativo à Duma, que trouxe grande prestígio ao Partido. Em 1910, quando a maré revolucionária havia refluído, Lênin, diante do novo cenário, propôs a revisão do “boicote a Duna” e os bolcheviques passaram a participar das eleições.

26, 29 – O Trabalho Feminino no Desenvolvimento da Economia, Alexandra Kollontai, 1921

27 – O Comunismo e a Família, Alexandra Kollontai, 1920

28 – Às Trabalhadoras, Alexandra Kollontai, 1918



sexta-feira, 8 de setembro de 2017

Construir o poder popular




Por Aluizio Moreira


Partimos da consideração que o modelo de democracia que temos, a democracia burguesa, embora tenha aberto espaço para algum tipo de melhoramento da situação das classes trabalhadoras, o faz dentro dos limites impostos pelo capital. 

Em alguns momentos, partidos ditos de esquerda, não necessariamente comunistas, portanto, conseguem através de sua atuação parlamentar, “costurar” alianças com os partidos que tem assumido uma posição menos conservadora, não porque tenham compromissos com mudanças significativas da sociedade, mas simplesmente pelo fato da perspectiva de poder assegurar, pelo voto, o crescimento de sua bancada no parlamento burguês.  

Do nosso ponto de vista, não há que invalidar, senão até mesmo defender as conquistas conseguidas pelos trabalhadores nos marcos do sistema capitalista. O que não podemos, é não levarmos a sério a mensagem como Marx e Engels encerram a mensagem do CC da Liga dos Comunistas em 1850: [. . .] “não se trata de melhorar a sociedade existente, mas de estabelecer uma nova.”

Para quem não se lembra, este trecho faz parte da mensagem redigida após os massacres dos trabalhadores na Alemanha em 1849, ocasião em que Marx e Engels criticaram a política de conciliação dos sociais-democratas/pequena-burguesia democrata, durante a Revolução de 1848-49 naquele país.

Evidentemente, os revolucionários não podem perder de vista que a luta pela instituição de uma sociedade qualitativamente diferente, não se resume no enfrentamento do aparelho de Estado burguês, nos momentos de crises que afetam diretamente os trabalhadores. Temos que pensar para além dessa luta cotidiana pela sobrevivência. É fundamental que haja por parte dos trabalhadores, a formação e consolidação de suas organizações, que direcionem suas atividades também para o objetivo a ser alcançado, que é a construção de uma outra forma de aparelho de Estado, o aparelho de Estado que não apenas represente a maioria dos que fazem a classe subalterna da sociedade, mas que seja os próprios trabalhadores os que constituirão o novo aparelho de Estado. 

Afinal, como já afirmava Karl Marx: “A emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores.”

Na verdade não há espaço mais para que as classes dominantes se apresentem e se mantenham como governo representativo de todas as classes sociais, independentemente da posição que ocupem em relação às relações de produção, e nós ingenuamente continuemos acreditando nisto.

Não há como se falar de democracia, Estado Democrático de Direito, quando o exercício do poder se concentra nas mãos de uma minoria em contraposição a maioria dos excluídos, quando são exatamente esses excluídos que deverão exercer a verdadeira democracia. 

Mas que fazemos nós para que a nova sociedade que buscamos construir não exista apenas como um olhar para o futuro? Por que não antecipamos esse futuro com ações que saiam das discussões puramente acadêmicas? Por que partidos comunistas, após fazer as avaliações conjunturais nacionais e internacionais, insistem na formação de alianças com partidos liberais, como forma de aumentar sua participação no poder, objetivando incorporar-se na sustentação e defesa de uma democracia burguesa, reprodutora do capital? 

É fundamental que os partidos comunistas assumam uma prática revolucionaria de formação e organização das massas trabalhadoras, das cidades e do campo, criando os embriões dos futuros conselhos que formarão as bases do poder popular, substituindo os aparelhos de Estado burguês. Conselhos operários, que já constavam dos textos dos clássicos do marxismo, como formas específicas da democracia operária. 


Nota:
Sobre a questão do partido revolucionário e sua prática, veja nossa postagem 




sexta-feira, 1 de setembro de 2017

Gramsci sobre a legalidade


Por Antonio Gramsci, em Socialismo e Fascimo. L’Ordine Nuovo 1921-1922, via Capitalismo em desencanto. Imagem via AsymptoticWay.



Sem qualquer ilusão na democracia formal, que alguns de seus intérpretes parecem ter, Gramsci critica duramente a esquerda que se permite enganar com as garantias legais do estado burguês. O texto que segue, publicado originalmente sob o título “Legalidade”, é de extrema atualidade para o estudo da teoria marxista do direito e do Estado.

Até onde vão os limites da legalidade? Em que momento deixam de ser respeitados? É certamente difícil fixar qualquer limite, dado o caráter bastante elástico que assume o conceito de legalidade. Para qualquer governo, toda ação que se manifesta no campo da oposição contra ele supera os limites da legalidade. Contudo, pode-se dizer que a legalidade é determinada pelos interesses da classe que detém o poder em cada sociedade concreta. Na sociedade capitalista, a legalidade é representada pelos interesses da classe burguesa. Quando uma ação busca atingir de algum modo a propriedade privada e os lucros que dela derivam, tal ação se torna imediatamente ilegal. Isso é o que ocorre no plano da substância. No plano formal, a legalidade se apresenta de modo diverso. Já que a burguesia, ao conquistar o poder, concedeu igual direito de voto ao patrão e seu assalariado, a legalidade foi aparentemente assumindo o aspecto de um conjunto de normas livremente reconhecidas por todos os segmentos de um agregado social. Houve então quem confundisse a substância com a forma, dando assim vida à ideologia liberal-democrática. O Estado burguês é o Estado liberal por excelência. Nele, todos podem expressar livremente seu pensamento através do voto. Na verdade, no Estado burguês, a legalidade reduz-se a isto: ao exercício do voto. A conquista do sufrágio pelas massas populares apareceu aos olhos dos ingênuos ideólogos da democracia liberal como a conquista decisiva para o processo social da humanidade. Jamais se levou em conta que a legalidade tem uma dupla face: uma interna, a substancial; outra externa, a formal.

Confundindo estas duas faces, os ideólogos da democracia liberal enganaram por alguns anos as grandes massas populares, levando-as a acreditar que o sufrágio as libertaria de todas as suas cadeias. Nesta ilusão, desgraçadamente, não caíram apenas os míopes defensores da democracia liberal. Muita gente que se considerava e se considera marxista acreditou que a emancipação da classe proletária tinha de se realizar por meio do exercício soberano do direito ao voto. Alguns imprudentes chegaram mesmo a se servir do nome de Engels para justificar essa crença. Mas a realidade destruiu todas essas ilusões. A realidade mostrou, do modo mais evidente possível, que a legalidade é uma só e existe somente enquanto se concilia com os interesses da classe dominante, ou seja, na sociedade capitalista, com os interesses da classe patronal. A particular experiência deste fato nos últimos tempos contém, na verdade, muitos e importantes ensinamentos.

A classe operária, valendo-se do seu direito de voto, conquistou um grande número de governos municipais e provinciais. Suas organizações alcançaram um poderoso crescimento numérico e conseguiram impor contratos vantajosos para os operários. Mas, no dia em que o sufrágio e o direito de organização se tornaram meios de uma ofensiva contra a classe patronal, esta última renunciou a qualquer legalidade formal e passou a obedecer apenas à sua verdadeira lei, à lei do seu interesse e da sua conservação. Uma a uma, as prefeituras foram sendo arrancadas pela violência das mãos da classe operária; as organizações foram dissolvidas com o uso da força armada; a classe operária e camponesa foi expulsa das posições conquistadas, a partir das quais ameaçava para além da conta a existência da propriedade privada. Surgiu assim o fascismo, que se afirmou e impôs fazendo da ilegalidade a única coisa legal. Nenhuma organização, salvo a fascista; nenhum direito de voto, a não ser quando dado aos representantes dos latifundiários e dos industriais. É esta a legalidade que a burguesia reconhece quando é obrigada a repudiar a legalidade formal. Portanto, a experiência destes últimos tempos não é privada de ensinamentos para os que antes haviam honestamente acreditado na eficácia das garantias legais concedidas pelo Estatuto liberal burguês.

Existe um momento na história em que a burguesia é obrigada a repudiar o que ela mesma criou. Estamos vivendo este momento na Itália. Não levar em conta a experiência que disso resulta ou é suma ingenuidade, que merece as mais severas sanções, ou é má-fé, que deve ser impiedosamente punida. Tal nos parece, com efeito, o caso daqueles organizadores socialistas que hoje revelam espanto porque, por exemplo, o deputado Beneduce não consegue fazer com que os contratos de trabalho sejam respeitados. Tudo isso é grave em pessoas que continuam pretendendo se situar no terreno da luta de classes. Será que é permitido, a um organizador que pretenda não ter renegado os princípios da luta de classes, perguntar a um ministro quais são os recursos de que este dispõe para impedir a violação dos contratos de trabalho pelos patrões? Tais perguntas não podem deixar de gerar dúvidas e incertezas na classe operária. É natural que o ministro do Trabalho não disponha de nenhum recurso, salvo o de ser um instrumento nas mãos dos latifundiários e dos industriais. Enquanto os organizadores socialistas não souberem fazer mais do que dirigir-se ao ministro do Trabalho solicitando-lhe que peça aos patrões o cumprimento dos contratos, a classe operária continuará a sofrer todas as violações, sem nem mesmo poder organizar sua própria defesa.

Os industriais retiram-se das juntas de arbitragem. E esta é também uma consequência lógica da situação. Os industriais querem hoje retomar todo o seu poder. Os industriais não querem mais reconhecer limites de nenhuma espécie à sua própria vontade. Aceitaram as juntas de arbitragem no momento em que o ímpeto revolucionário das massas ameaçava a existência deles. Agora, quando a situação parece favorável a qualquer iniciativa reacionária, os patrões nem mesmo se preocupam em conservar qualquer escrúpulo. Escolheram abertamente o caminho da retomada integral e despótica do poder sobre as massas operárias. Que atitude os organizadores socialistas imaginam que deve ser tomada diante destas tendências da classe patronal? Tudo o que os organizadores socialistas sabem fazer é denunciar à opinião pública a inadimplência patronal e a impotência do ministro do Trabalho. Mas, enquanto isso, a classe operária sofre todas as consequências do comportamento patronal e da incerteza dos seus dirigentes. Enquanto estes apresentam solicitações ao ministro do Trabalho, cresce a fome, a miséria se multiplica, a reação se reforça. Aqueles organizadores socialistas que, durante a guerra, apertavam as mãos ensanguentadas dos generais nos comitês de mobilização são os mesmos que agora pedem a ajuda e a intervenção dos ministros do Trabalho. Ontem se faziam cúmplices dos assassinos que haviam desencadeado a guerra, ao frearem o ímpeto revolucionário das massas através das decisões das juntas de arbitragem; hoje deixam indefesa a classe operária, enquanto por toda parte os patrões não mais respeitam os acordos e os violam a seu bel-prazer.

Somente a proposta do Comitê Sindical Comunista é capaz de organizar uma defesa operária contra o assalto capitalista; somente se unirmos todas as forças operárias num exército compacto será possível pensar numa séria oposição aos capitalistas, os quais, obedecendo a uma palavra de ordem, visam a reduzir à escravidão toda a classe operária. Mas, para os senhores organizadores socialistas, até mesmo pedir o respeito aos acordos hoje é demasiadamente revolucionário.