sábado, 30 de junho de 2018

Para compreender Karl Marx por meio de suas obras


Nos duzentos anos do filósofo, vale ler diretamente seus livros, ao invés de
conhecê-los por outros autores. Aqui, um roteiro sucinto e provocador.



Por Eduardo Mancuso


“transformar o mundo”, disse Marx, “mudar a vida”, disse Rimbaud
– para nós essas duas palavras de ordem são apenas uma.
André Breton


Karl Marx nasce em 5 de maio de 1818, em Trier, na Renânia, filho de judeus alemães convertidos ao cristianismo. Seu pai era um liberal admirador do Iluminismo e a família Marx tinha como vizinho um alto funcionário do governo da Prússia, barão Ludwig Von Westphalen, culto aristocrata, pai de Jenny, futura esposa do jovem Marx.

Em 1841, após alguns anos na universidade – em Bonn e Berlim – onde conhece a obra filosófica de Hegel, Marx aprova sua tese de doutorado sobre os pensadores gregos Demócrito e Epicuro, mas o reacionário governo prussiano recusa uma cátedra ao jovem doutor. Ele assume então a direção do jornal A Gazeta Renana, mas sua linha editorial democrático radical leva o governo a fechá-lo. Em 1843, casa-se com Jenny e emigra para Paris, onde conhece Engels, mergulha na história da Revolução Francesa e do socialismo e na efervescência das sociedades e dos clubes operários.

Em 1844, Marx colabora na publicação dos Anais Franco-Alemães e redige os Manuscritos econômico-filosóficos, também conhecidos como Manuscritos de Paris. Nessa obra de juventude, Marx define o comunismo como a superação da “pré-história” humana, e faz uma lúcida previsão:

Para superar o pensamento da propriedade privada, basta o comunismo pensado. Para suprimir a propriedade privada efetiva, é necessária uma ação comunista efetiva. A história virá trazê-la, e aquele movimento que já conhecemos em pensamento como um movimento que se supera a si mesmo percorrerá na realidade um processo muito duro e muito extenso.

Em 1845, Marx e Friederich Engels já haviam estabelecido uma sólida amizade e uma parceria política e intelectual que duraria décadas, e que se inicia com a elaboração a quatro mãos de A sagrada família, cujo subtítulo era Crítica de uma crítica crítica (apresentação sarcástica das idéias metafísicas de alguns filósofos idealistas alemães), em que definem a essência da sua concepção humanista e materialista da história:

A história nada faz, ela “não possui nenhuma riqueza imensa”, “não trava nenhuma batalha”. É o homem, o homem vivo, real, que faz tudo isto, que possui e luta; a “história” não é uma pessoa à parte, que usa o homem para seus próprios fins particulares; a história nada é senão a atividade do homem que persegue seu objetivo…

Nesse mesmo ano, expulso da França, Marx vai para Bruxelas, Bélgica. Ele escreve, então, as geniais e concisas Teses sobre Feuerbach, breves anotações feitas pelo jovem de 27 anos em seu caderno, marcadas por um humanismo radical e revolucionário que inaugura a filosofia da práxis. Engels as chamou de “germe genial de uma nova concepção do mundo”. Com as Teses sobre Feuerbach, Marx lança as bases de “um novo materialismo”, profundamente dialético e distinto do materialismo vulgar existente até então. Na tese 2, Marx afirma a prática como critério de verdade:

A questão de saber se é preciso conceder ao pensamento humano uma verdade objetiva não é uma questão de teoria, porém uma questão prática. É na prática que o homem deve comprovar a verdade, isto é, a realidade efetiva e a força, o caráter terrestre de seu pensamento.

Na tese 3, a prática revolucionária aparece como síntese da mudança do mundo e da autotransformação:

A doutrina materialista da mudança das circunstâncias e da educação se esquece de que as circunstâncias são mudadas pelos homens e que o próprio educador deve ser educado. (…) A coincidência da mudança das circunstâncias e da atividade humana ou autotransformação só pode ser interpretada e racionalmente compreendida como prática revolucionária.

E conclui suas anotações com a célebre tese 11:

Os filósofos apenas interpretaram o mundo de forma diferente, o que importa é mudá-lo.

Em 1846, Marx e Engels concluem mais um trabalho conjunto, os dois volumes de A ideologia alemã. O manuscrito não foi publicado e ficou entregue “à crítica roedora dos ratos” segundo os próprios autores (sua primeira edição vem a público apenas no século XX). A ideologia alemã apresenta a definição clássica sobre a dominação ideológica:

As ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes; isto é, a classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, sua força espiritual dominante. A classe que tem à sua disposição os meios de produção material dispõe, ao mesmo tempo, dos meios de produção espiritual, o que faz com que a ela sejam submetidas, ao mesmo tempo e em média, as ideias daqueles aos quais faltam os meios de produção espiritual.

Em 1847, Marx publica A miséria da filosofia, uma crítica da doutrina contida na “filosofia da miséria” do pensador anarquista Proudhon. Segundo Engels, A miséria da filosofia também apresenta “os princípios fundamentais de suas novas concepções históricas e econômicas”; esboça também a teoria sobre o sujeito revolucionário:

De todos os instrumentos de produção, a maior força produtiva é a própria classe revolucionária. (…) A condição de emancipação da classe operária é a abolição de todas as classes (…). No transcurso de seu desenvolvimento, a classe operária substituirá a antiga sociedade civil por uma associação que exclua as classes e seu antagonismo; e não existirá já em poder político propriamente dito, pois o poder político é, precisamente, a expressão oficial do antagonismo de classe, dentro da sociedade civil. Enquanto isso, o antagonismo entre o proletariado e a burguesia é a luta de uma classe inteira contra outra classe, luta que, levada a sua mais alta expressão, implica numa revolução total.

Marx e Engels ingressam na Liga dos Comunistas (antiga Liga dos Justos, organização de trabalhadores alemães emigrados) e redigem o programa do movimento. O Manifesto do Partido Comunista fica pronto e é editado no início de 1848, pouco antes de explodirem as revoluções europeias, a Primavera dos Povos, que apesar da derrota abre um novo período da luta de classes em escala internacional. Um espectro ronda a Europa, o espectro do comunismo: assim inicia-se o mais famoso panfleto político de todos os tempos, que apresenta como pressuposto que a história de todas as sociedades até o presente é a história das lutas de classes, resume a dialética da modernidade com a metáfora tudo que é sólido desmancha no ar, e conclui com a palavra de ordem: Proletários de todos os países, uni-vos!

Antevisão genial da globalização capitalista, o Manifesto é mais atual hoje do que há 150 anos. Para o sociólogo Michael Lowy, a atualidade do Manifesto Comunista se origina de suas qualidades ao mesmo tempo críticas e emancipadoras, isto é, da unidade indissolúvel entre a análise do capitalismo e o chamado à sua destruição, entre o exame lúcido das contradições da sociedade burguesa e a utopia revolucionária de uma sociedade solidária e igualitária.

Ainda em 1848, Marx e Engels voltam para a Alemanha e se instalam em Colônia, onde lançam o jornal Nova Gazeta Renana, mas o processo revolucionário reflui e Marx faz o balanço político do movimento em As lutas de classes na França, no qual conclui que o fim do ciclo das revoluções burguesas abriria a época das revoluções proletárias. Em março de 1850, na Mensagem ao Comitê Central da Liga dos Comunistas, Marx utiliza pela primeira vez o conceito de “revolução permanente” como o processo que levaria “até a conquista do poder estatal pelo proletariado” e “não em um único país, mas em todos os países dominantes do mundo inteiro”.

A partir daí, Marx fixa residência em Londres, onde passa anos na completa miséria, a ponto de algumas vezes não poder ir ao Museu Britânico, onde realiza suas pesquisas, em razão de ser obrigado a penhorar seu casaco de inverno para poder comprar papel e continuar escrevendo. Em 1852, ele escreve outra obra-prima, O dezoito brumário de Luis Bonaparte, sobre o golpe de estado de Napoleão III na França. As suas primeiras linhas são célebres:

Hegel observa, em uma de suas obras, que todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa. (…) Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado.

Entre 1857-58, Marx redige vários manuscritos que dão origem aos chamados Grundrisse (Esboços da Crítica da Economia Política), que só serão conhecidos um pouco antes da Segunda Guerra Mundial, publicados pelo Instituto Marx-Engels –Lenin de Moscou, sem maior divulgação. Devido à sua importância na evolução intelectual da obra teórica de Marx, os Grundrisse são considerados por alguns analistas como uma espécie de “elo perdido” entre o “jovem Marx” e a sua obra da maturidade.

Em 1859, Marx publica Contribuição à Crítica da Economia Política, e no seu famoso prefácio resume as linhas gerais da sua concepção materialista da história:

Nas minhas pesquisas, cheguei à conclusão de que as relações jurídicas – assim como as formas de Estado – não podem ser compreendidas por si mesmas, nem pela dita evolução geral do espírito humano, inserindo-se, pelo contrário, nas condições materiais de existência… A conclusão geral a que cheguei e que, uma vez adquirida, serviu de fio condutor dos meus estudos, pode formular-se resumidamente assim: na produção social da sua existência, os homens estabelecem relações determinadas necessárias, independentes da sua vontade, relações de produção que correspondem a um determinado grau de desenvolvimento das forças produtivas materiais. O conjunto dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base concreta sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e a qual correspondem determinadas formas de consciência social. O modo de produção da vida material condiciona o desenvolvimento da vida social, política e intelectual em geral. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; é o seu ser social que, inversamente, determina a sua consciência. Em certo estágio de desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes ou, o que é a sua expressão jurídica, com as relações de propriedade no seio das quais se tinham movido até então. De formas de desenvolvimento das forças produtivas, estas relações transformam-se no seu entrave. Surge então uma época de revolução social.

Durante sua primeira década em Londres, o único rendimento de Marx era como colaborador do jornal Tribuna de Nova York, mas após esse período dificílimo, Engels garante a ele uma ajuda financeira regular, e um grande amigo, o militante comunista Wilhelm Wolf, deixa-lhe uma pequena herança. Marx dedica a ele o primeiro volume de O Capital (1867), que não consegue concluir em vida (Engels edita o volume II em 1885 e o volume III em 1894). Antes de publicar O Capital, Marx termina os três volumes intitulados Teorias da mais-valia, em que analisa criticamente o pensamento teórico sobre a economia política, particularmente o de Adam Smith e David Ricardo.

Em 1864, um congresso realizado em Londres funda a Associação Internacional dos Trabalhadores (Primeira Internacional) e Marx redige o seu Manifesto Inaugural, onde assinala que a emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores. Durante o breve período de existência da Internacional, Marx se dedica a sua organização e assume a condição de principal dirigente do Conselho Geral. A derrota da Comuna de Paris, em 1871, quando o povo parisiense toma o poder na capital durante mais de dois meses e implanta um governo democrático revolucionário, mas é esmagado pelo exército francês em um banho de sangue, sela o destino da Internacional. Para Marx, a Comuna é a primeira “ditadura do proletariado” da história (baseada no armamento do povo e no voto direto e universal), e mostra que o governo dos trabalhadores precisa destruir o Estado burguês e erguer um Estado controlado democraticamente pelos produtores associados, destinado a desaparecer historicamente junto com a divisão da sociedade em classes sociais.

Marx presta homenagem à Comuna de Paris publicando A guerra civil em França, e propõe ao Congresso da Internacional de 1872, realizado na Holanda, a transferência da sede da organização para os Estados Unidos, em razão da repressão generalizada que se segue ao massacre da Comuna; porém, a Primeira Internacional deixa de funcionar em 1876.

A partir da década de 1870, declina a capacidade de trabalho de Marx, em face do agravamento do seu estado de saúde, mas, preocupado com o programa adotado pelos socialistas alemães, em 1875 escreve a Crítica ao Programa de Gotha:

Entre a sociedade capitalista e a sociedade comunista media o período da transformação revolucionária da primeira na segunda. A este período, corresponde também um período político de transição, cujo Estado não pode ser outro que a ditadura revolucionária do proletariado.

Em 1882, no prefácio da edição russa do Manifesto Comunista, Marx realiza uma previsão ao mesmo tempo heterodoxa (para os padrões do socialismo até então) e genial: que uma revolução na Rússia pode constituir-se no sinal para a revolução proletária no Ocidente, de modo que uma complemente a outra. Em 1883, após a morte de sua esposa e de sua filha mais velha, Marx falece e é enterrado no cemitério de Highgate.

Dois séculos depois do desaparecimento do “pensador socialista que maior influência exerceu sobre o pensamento filosófico e social e sobre a própria história da humanidade”, conforme ressalta verbete do Dicionário do Pensamento Marxista; após a social-democracia e o stalinismo terem sido remetidos para a “lata do lixo da história”; e em plena crise sistêmica do capitalismo globalizado, que já ameaça a continuidade da vida humana no planeta; podemos seguramente concordar com o marxista norte-americano Marshall Berman: “Marx está vivo. E vai bem de saúde”.


domingo, 24 de junho de 2018

O socialismo/comunismo é só uma utopia?



Por Antonio Julio de Menezes Neto



As aná­lises de Marx apon­tavam que a única so­lução para as con­tra­di­ções do ca­pi­ta­lismo seria su­perar o pró­prio ca­pi­ta­lismo, pois o sis­tema mu­ti­lava o ser-hu­mano ao apro­priar-se do tra­balho de outro e o ex­plo­rava. Ana­li­sava que já tí­nhamos uma pro­dução co­le­tiva que de­veria ser apro­priada de forma co­le­tiva pelos tra­ba­lha­dores.

Pouco de­pois da morte de Marx e En­gels, os par­tidos so­ci­al­de­mo­cratas, na época mar­xistas, co­me­çaram a crescer. Eduard Berns­tein, de­pu­tado, ainda em fins do sé­culo 19, vendo este cres­ci­mento na Ale­manha, ad­mitiu que Marx po­deria ter se equi­vo­cado em al­gumas aná­lises e que, pelas re­formas, se po­deria su­perar o ca­pi­ta­lismo. Chamou este re­for­mismo de "so­ci­a­lismo evo­lu­ci­o­nário". Karl Kautsky, na época, rompeu com Berns­tein, mas, um tempo de­pois as­sumiu esta pro­posta, in­clu­sive de­fen­dendo ser esta a pers­pec­tiva de Marx. Mas Marx nunca foi um re­for­mista e ana­li­sava as con­tra­di­ções do ca­pi­ta­lismo en­quanto sis­tema global. As es­pe­ci­fi­ci­dades (como a su­pe­rex­plo­ração do negro e o con­se­quente ra­cismo no Brasil para vi­a­bi­lizar nosso ca­pi­ta­lismo) fi­ca­riam por conta das aná­lises es­pe­cí­ficas. 

O sé­culo pas­sado co­nheceu re­vo­lu­ções im­por­tan­tís­simas, he­róicas, como a russa, a chi­nesa, a cu­bana, a vi­et­na­mita ou as afri­canas, que foram ten­ta­tivas de cons­truir o so­ci­a­lismo em es­tados pe­ri­fé­ricos, com muitos dramas e enormes di­fi­cul­dades. Ao fim, não lo­graram êxitos, apesar de grandes vi­tó­rias par­ciais. Ao lado destas Re­vo­lu­ções, ti­vemos o re­for­mismo que, pa­rece-me, é o que muitos pensam que restou para o so­ci­a­lismo. 

Sempre na de­fen­siva, sempre vendo fan­tasmas, sempre re­cu­ando. Em 1989, cai o muro e voam pe­dras até para a es­querda que fes­tejou. Em 1991, cai a URSS. A crise da es­querda so­ci­a­lista/co­mu­nista torna-se enorme. Com isso, as es­querdas passam a se or­ga­nizar em torno de dois eixos, que não ques­ti­onam fron­tal­mente o ca­pital: as opres­sões e o re­for­mismo. Re­for­mismo bem fraco, diga-se.

O ca­pital, por seu lado, nunca foi tão forte como nos tempos atuais Um cres­ci­mento hoje de 1% deve equi­valer a um cres­ci­mento de 5% de al­gumas dé­cadas atrás. Me­ga­em­presas, fu­sões, aqui­si­ções e o ca­pital fi­nan­ceiro tendo me­ga­lu­cros.  O ca­pital está à von­tade neste con­texto em que é pouco ques­ti­o­nado e onde so­bram apenas as “mi­ga­lhas” para os tra­ba­lha­dores e as classes po­pu­lares que muitas vezes se con­formam com pe­quenas bolsas para ga­rantir sua so­bre­vi­vência. 

E as es­querdas so­ci­a­listas, que que­riam grandes trans­for­ma­ções, o que fazem neste mo­mento? Estão lis­tando os ga­nhos de­cor­rentes das “mi­ga­lhas”, desde que sejam po­lí­ticas feitas por go­vernos que um dia ti­veram origem nas es­querdas, como no caso bra­si­leiro. Pas­saram a co­locar o "es­tado de di­reito" acima de tudo. Estão como sempre na de­fen­siva. Estão se ape­que­nando. E estão tri­lhando o fra­cas­sado ca­minho iden­ti­tário da es­querda dos EUA.

Di­ante deste quadro, po­de­ríamos per­guntar: Acabou o sonho? Berns­tein tinha razão? O mar­xismo, que ana­li­sava o co­mu­nismo como o fim das classes, da pro­pri­e­dade, do di­nheiro e do Es­tado, não passa de uma utopia?

Apesar de todas as di­fi­cul­dades com que nos de­fron­tamos, acre­dito que não. Marx fez uma pro­funda aná­lise da so­ci­e­dade ca­pi­ta­lista. É ló­gico que seus li­vros não podem ser so­mente uma exe­gese, pois sua fi­na­li­dade é para serem com­pre­en­didos, re­for­mu­lados e co­lo­cados em ação em cada re­a­li­dade con­creta, cada re­a­li­dade es­pe­cí­fica. 

Vejo a aná­lise de Marx como mé­todo de com­pre­ender a so­ci­e­dade ca­pi­ta­lista e o mar­xismo como sua apli­cação ade­quada aos di­versos temas e re­a­li­dades. Mas as aná­lises de Marx car­regam também seus de­sejos. É im­pos­sível cons­truirmos al­guma obra sem de­sejo, sem von­tade, sem um pouco de so­nhos e uto­pias. Não somos só ob­je­ti­vi­dade. Mas Marx não abria muitos es­paços para o re­for­mismo e con­ci­li­a­ções. Ao con­trário dos pos­te­ri­ores "mar­xismos".

Um grande equí­voco das es­querdas mar­xistas foi le­varem todas as lutas po­lí­ticas para a con­quista do Es­tado. Pas­saram a acre­ditar que, con­quis­tando o Es­tado, fa­riam as re­formas ou até su­pe­ra­riam o ca­pi­ta­lismo. Mas este pró­prio Es­tado também não era um com­po­nente do ca­pi­ta­lismo, como En­gels e Marx ha­viam mos­trado na “Ide­o­logia Alemã” ou na “Origem da Fa­mília, da pro­pri­e­dade e do Es­tado”? Mas, pior, as es­querdas so­ci­a­listas/co­mu­nistas foram re­bai­xando as lutas. Agora, qual­quer pe­quena re­forma já es­tava bem, já que a cor­re­lação de forças “não per­mitia ir além”. No fim, já se con­tenta com mi­ga­lhas. E, muitas vezes usando o nome do "mar­xismo". 

Che­gamos em um mo­mento em que, no Brasil, lutar contra a prisão de um po­lí­tico que fez um go­verno con­ci­li­ador, li­beral e eco­no­mi­ca­mente de di­reita já é su­fi­ci­ente porque o ex-pre­si­dente tem origem ope­rária e boa en­trada nas classes po­pu­lares e nos sin­di­catos. Não po­demos deixar que as grandes aná­lises de Marx, que os so­nhos de mi­lhões de tra­ba­lha­dores por um mundo eman­ci­pado seja tão re­bai­xado. 

A luta contra o ca­pital, o ca­pi­ta­lismo, a ex­plo­ração, a pro­pri­e­dade deve pros­se­guir. O mar­xismo é vivo e muito além de apenas uma sim­ples utopia.



An­tonio Julio de Me­nezes Neto é so­ció­logo e pro­fessor ti­tular na Fa­cul­dade de Edu­cação da UFMG.


terça-feira, 19 de junho de 2018

Os EUA e o jornalista Karl Marx



Ele correspondia-se com presidente Lincoln e colaborou, por mais de
 uma década, com New York Tribune, então o maior diário do mundo.


Por Renato Pompeu, em Retrato do Brasil


O relacionamento do próprio Karl Marx com os EUA teve início concretamente em 1851, quando Charles Dana, editor do New Yorl Tribune – considerado na época o maior diário do mundo, com 200 mil exemplares de circulação –, convidou-o a escrever sobre as mudanças ocorridas na Alemanha a partir das revoluções de 1848. O convite foi bem aceito por Marx, entre outras razões, porque ele precisava de dinheiro para manter a família. Marx vivia exilado em Londres e, rapidamente, recorreu a seu parceiro e amigo Friedrich Engels para realizar o trabalho. Ambos escreveram artigos para o jornal americano por mais de uma década, explica Jams Ledbetter, editor de Dispatches for the New York Tribune selected journalism of Karl Marx (Penguin Books, 2007). No total, o jornal publicou 487 textos da dupla, 350 dos quais assinados por Marx, 125 por Engels e 12 por ambos. Os artigos tomam cerca de sete dos 50 volumes das obras de Marx e Engels – mais do que O capital. [A relação completa está disponível no site www.marxists.org. É possível ler alguns textos na íntegra]

Em 1864, quando já encerrara a colaboração com o Tribune, em nome da recém-fundada Associação Internacional dos Trabalhadores, Marx escreveu ao então presidente americano, Abraham Lincoln, cumprimentando-o por sua reeleição e liderança na luta antiescravista. Lincoln respondeu por meio do embaixador americano na Inglaterra, o que teria deixado Marx exultante.

Duas décadas mais tarde, quando ele já havia falecido, suas ideias foram divulgadas pela filha caçula, Eleanor, a qual acompanhou Edward Aveling, seu marido, e Wilhelm Liebknecht, veterano militante socialista, numa viagem aos EUA, a convite do Partido Socialista dos Trabalhadores da América do Norte, composto basicamente por alemães. Ao longo de 12 semanas eles passaram por 35 cidades, “onde se encontraram com milhares de militantes de esquerda, feministas, socialistas e sindicalistas e falaram em quase todas as paradas no caminho, às vezes em quatro eventos no mesmo dia”, escreveu Mary Gabriel em Amor & Capital (Zahar, 2013). Em Chicago – cidade que vivia grande agitação política – milhares de pessoas compareceram às palestras. “Com um discurso pronto, Tussy [apelido de Eleanor] orientou o público a ‘jogar três bombas no meio da massa: agitação, educação e organização’.”


segunda-feira, 11 de junho de 2018

Revolução e Democracia, reencontro incerto



Revolução portuguesa . 1974

Superar o divórcio é mais necessário que nunca. Mas exigirá enorme esforço intelectual e político. Eis um roteiro dos obstáculos a vencer


Por Boaventura de Sousa Santos *

Tenho escrito que um dos desenvolvimentos políticos mais fatais dos últimos cem anos foi a separação e até contradição entre  revolução e democracia como dois paradigmas de transformação social. Tenho afirmado que esse fato é, em parte, responsável pela situação de impasse em que nos encontramos. Enquanto no início do século XX dispúnhamos de dois paradigmas de transformação social e os conflitos entre eles eram intensos, hoje, no início do século XXI, não dispomos de nenhum deles. A revolução não está na agenda política e a democracia perdeu todo o impulso reformista que tinha, transformada agora numa arma do imperialismo e tendo sido em muitos países sequestrada por antidemocratas.

Esta tensão entre revolução e democracia percorreu todo o século XIX europeu mas foi na Revolução Russa que a separação, ou mesmo incompatibilização, tomou forma política. É objeto de debate a data precisa em que tal ocorreu, mas o mais provável é que tenha sido em janeiro de 1918, quando Lenin ordenou a dissolução da Assembleia Constituinte onde o Partido Bolchevique não tinha maioria. A grande revolucionária Rosa Luxemburgo foi a primeira a alertar para o perigo da ruptura entre revolução e democracia. Estando na prisão, Rosa Luxemburgo escreveu em 1919 um panfleto sobre a revolução russa cujo destino foi turbulento, só muito mais tarde tendo sido publicado na íntegra. Nesse texto, Rosa Luxemburgo escreve de modo lapidar que a liberdade só para os apoiantes do governo ou só para os membros de um partido não é liberdade. A liberdade é sempre e exclusivamente a dos que pensam diferentemente, e acrescenta: “Com a repressão da vida política no país todo, a vida dos sovietes [o poder popular ou conselhos de operários, camponeses e soldados] definhará mais e mais. Sem eleições gerais, sem total liberdade de expressão e de reunião, sem a disputa livre entre as opiniões, a vida morre nas instituições públicas, torna-se uma mera aparência de vida em que a burocracia é o único elemento ativo. A vida pública adormece aos poucos, e uns poucos líderes partidários, dotados de uma energia sem limites e com grande experiência, são quem governa. Entre eles, apenas um pequeno número de notáveis dirige enquanto a elite da classe operária é convidada de tempos a tempos a participar em encontros para aplaudir os discursos dos líderes e aprovar por unanimidade as resoluções propostas—no fundo, o trabalho de uma clique, uma ditadura, não certamente do proletariado, mas de um pequeno grupo de políticos… Estas condições causarão inevitavelmente a brutalização da vida pública: tentativas de assassinato, liquidação de reféns.” Um texto premonitório de alguém que seria, ela própria, assassinada dois anos depois.

Vivemos um tempo de possibilidades desfiguradas. A revolução seguiu uma trajetória que foi dando cada vez mais razão às previsões de Rosa Luxemburgo e foi levando a cabo uma transição que, em vez transitar para o socialismo, acabou por transitar para o capitalismo, como bem ilustra hoje o caso da China. Por sua vez, a democracia (reduzida progressivamente à democracia liberal) perdeu o impulso reformista e provou não ser capaz de se defender dos fascistas, como mostrou a eleição democrática de Adolfo Hitler. Aliás, o “esquecimento” da injustiça sócio-econômica (para além de outras, como a injustiça histórica, racial, sexual, cultural e ambiental) faz com que a maioria da população viva hoje em sociedades politicamente democráticas mas socialmente fascistas.

Se o drama político do século XX foi separar revolução e democracia, atrevo-me a pensar que o século XXI só começará politicamente no momento em que unir revolução e democracia. A tarefa pode ser assim resumida: democratizar a revolução e revolucionar a democracia. Vejamos como. Dados os limites de espaço, as orientações são formuladas em termos de princípios com escassa explicação.

Democratizar a revolução

Primeiro, são por vezes necessárias rupturas que quebram a ordem política existente. Esta, quando se auto-designa democrática, é certamente uma democracia de minorias para as minorias, em suma, uma falsa democracia ou uma democracia de baixíssima intensidade. A ruptura só se justifica quando não há outro recurso para pôr fim a este estado de coisas e o seu objetivo principal é o de construir uma democracia digna do nome, uma democracia de alta intensidade para as maiorias, com respeito pela acomodação das minorias. A revolução não pode correr o risco de se perverter na substituição de uma minoria por outra.

Segundo, a ruptura, como o nome indica, rompe com uma dada ordem, mas romper não significa fazê-lo com violência física. No dia da tomada do Palácio de Inverno morreram poucas pessoas e os teatros funcionaram normalmente. Tal como na Revolução de 25 de Abril de 1974 em Portugal, em que morreram quatro pessoas e houve um ferido grave.

Terceiro, os fins nunca justificam os meios. A coerência entre uns e outros não é mecânica mas devem equivaler-se nos tipos de ação e de sociabilidade política que promovem. Neste sentido, não é admissível que se sacrifiquem gerações inteiras em nome de um futuro radioso que hipoteticamente virá. O futuro daqueles que mais precisam da revolução são as maiorias empobrecidas excluídas, discriminadas e lançadas pela sociedade injusta em zonas de sacrifício. O seu futuro é amanhã e é amanhã que se devem começar a sentir os efeitos benéficos da revolução.

Quarto, historicamente muitas revoluções foram rápidas em despolarizar as suas diferenças com os inimigos e antigas classes dominantes, ao mesmo tempo que polarizaram, por vezes de forma brutal, as suas diferenças com grupos revolucionários, cuja linha política fora derrotada. Chamou-se a isso sectarismo e dogmatismo. Esta perversão dominou toda a esquerda política do século XX.

Quinto, a luta de classes é uma luta importante mas não é a única. As lutas contra as injustiças e discriminações raciais (colonialismo) e sexuais (hétero-patriarcado) são igualmente importantes e a luta de classes nunca terá êxito se as outras também não tiverem. Vivemos em sociedades capitalistas, colonialistas e patriarcais e as três formas de dominação atuam articuladamente. Homens e mulheres que lutam contra a injustiça concentram-se, em geral, numa das lutas, negligenciando as outras. Enquanto as lutas se mantiverem separadas, nunca terão êxito significativo.

Sexto, não há uma única forma de emancipação social. Há múltiplas formas e, por isso, a libertação ou é intercultural ou nunca será.

Revolucionar a democracia

Primeiro, não há democracia, há democratização progressiva da sociedade e do estado.

Segundo, não há uma única forma legítima de democracia, há várias, e o conjunto delas forma o que designo por demodiversidade. Tal como não podemos viver sem a biodiversidade, também não podemos viver sem demodiversidade.

Terceiro, nos diferentes espaços-tempos da nossa vida colectiva, as tarefas de democratização têm de ser levadas a cabo de modo diferente, e os tipos de democracia serão igualmente distintos. Não é possível a democratização do estado sem a democratização da sociedade. Distingo seis espaços-tempo principais: família, produção, comunidade, mercado, cidadania e mundo. Em cada um destes espaços a necessidade de democratização é a mesma, mas os tipos e os exercícios de democracia são diferentes.

Quarto, seguindo o pensamento político do liberalismo, as sociedades capitalistas, colonialistas e patriarcais em que vivemos reduziram a democracia ao espaço-tempo da cidadania, o espaço que designamos por político, quando todos os outros são igualmente políticos. Por isso, a democracia liberal é uma ilha democrática num arquipélago de despotismos.

Quinto, mesmo reduzida ao espaço da cidadania, a democracia liberal, também conhecida por representativa, é frágil, porque não pode defender-se facilmente dos anti-democratas e dos fascistas. Para ser sustentável, tem de ser complementada e articulada com a democracia participativa, ou seja, com a participação organizada e apartidária de cidadãos e cidadãs na vida política muito para além do exercício do direito de voto, que obviamente é precioso; apenas não é suficiente.

Sexto, os próprios partidos têm de se reinventar como entidades que combinam dentro de si formas de democracia participativa entre os seus militantes e simpatizantes, sobretudo na formulação dos programas dos partidos e na escolha de candidatos a cargos eletivos.

Sétimo, a democracia de alta intensidade deve distinguir entre legalidade e legitimidade, entre o primado do direito (que inclui os direitos fundamentais e os direitos humanos) e o primado da lei (direito positivado), ou seja, entre rule of law e rule by law. O primado da lei (rule by law) pode ser respeitado por ditadores, mas não o primado do direito (rule of law).

Oitavo, hoje em dia governar democraticamente significa governar contra a corrente, já que as sociedades nacionais estão sujeitas a um duplo constitucionalismo: o constitucionalismo nacional, que garante os direitos dos cidadãos e as instituições democráticas, e o constitucionalismo global das empresas multinacionais, dos tratados de livre-comércio e do capital financeiro. Entre os dois constitucionalismos há enormes contradições, já que o constitucionalismo global não reconhece a democracia como um valor civilizacional. E o mais grave é que, na maioria das situações, em caso de conflito entre eles, é o constitucionalismo global que prevalece. Quem controla o poder do governo não é necessariamente quem controla o poder social e econômico. É o que acontece com os governos de esquerda. Para que estes se sustentem, não podem confiar exclusivamente nas instituições. Devem saber articular-se com a sociedade civil organizada e com os movimentos sociais interessados em aprofundar a democracia e dispor de meios de comunicação próprios que rivalizem com os média corporativos em geral subordinados aos ditames do constitucionalismo global.

Democratizar a revolução e revolucionar a democracia não são tarefas fáceis, mas são a única via para travar o caminho ao crescimento das forças de extrema-direita e fascistas que vão ocupando o campo democrático, aproveitando-se das debilidades estruturais da democracia liberal. A miséria da liberdade será patente quando a grande maioria da população só tiver liberdade para ser miserável.


* Boaventura de Sousa Santos é doutor em sociologia do direito pela Universidade de Yale, professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, diretor dos Centro de Estudos Sociais e do Centro de Documentação 25 de Abril, e Coordenador Científico do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa - todos da Universidade de Coimbra. Sua trajetória recente é marcada pela proximidade com os movimentos organizadores e participantes do Fórum Social Mundial e pela participação na coordenação de uma obra coletiva de pesquisa denominada Reinventar a Emancipação Social: Para Novos Manifestos.


sábado, 2 de junho de 2018

O retorno dos filósofos comunistas






Empobrecimento, desigualdade e declínio das velhas democracias estão levando pensadores a dialogar com face anti-estatista, radical e libertária do marxismo 


Por Santiago Zabala, na Al Jazeera | Tradução: Vila Vudu



Ler Marx e escrever sobre Marx não faz de ninguém comunista, mas a evidência de que tantos importantes filósofos estão reavaliando as ideias de Marx com certeza significa alguma coisa. Depois da crise econômica global que começou no outono [nórdico] de 2008, voltaram a aparecer nas livrarias novas edições de textos de Marx, além de introduções, biografias e novas interpretações do mestre alemão.

Por mais que essa ressurreição [2] tenha sido provocada pelo derretimento financeiro global, para o qual não faltou a empenhada colaboração de governos democráticos na Europa e nos EUA, esse ressurgimento [3] de Marx entre os filósofos não é consequência nem simples nem óbvia, como creem alguns. Afinal, já no início dos anos 1990s, Jacques Derrida [4], importante filósofo francês, previu que o mundo procuraria Marx novamente. A previsão certeira apareceu na resposta que Derrida escreveu a uma autoproclamada “vitória neoliberal” e ao “fim da história” inventados por Francis Fukuyama.

Contra as previsões de Fukuyama, o movimento Occupy e a Primavera Árabe demonstraram que a história já caminha por novos tempos e vias, indiferente aos paradigmas econômicos e geopolíticos sob os quais vivemos. Vários importantes pensadores comunistas (Judith Balso, Bruno Bosteels, Susan Buck-Mors, Jodi Dean, Terry Eagleton, Jean-Luc Nancy, Jacques Rancière, dentre outros), dos quais Slavoj Zizek é o que mais aparece, já operam para ver e mostrar como esses novos tempos são descritos em termos comunistas, quer dizer, como alternativa radical.

O movimento acontece não só em conferências de repercussão planetária em Londres [5], Paris [6], Berlin [7] e New York [8] (com participação de milhares de professores, alunos e ativistas) mas também na edição de livros que se convertem em best-sellers globais como Império [9] de Toni Negri e Michael Hardt, A Hipótese Comunista [10] de Alain Badiou e Ecce Comu [11] de Gianni Vattimo, dentre outros. Embora nem todos esses filósofos apresentem-se como comunistas – não, com certeza, como o mesmo tipo de comunista –, a evidência de que o pensamento comunista está no centro de seu trabalho intelectual autoriza a perguntar por que há hoje tantos filósofos comunistas tão ativos.

A ressurgência do marxismo

Evidentemente, nessas conferências e nesses livros, o comunismo não é proposto como programa para partidos políticos, para que reproduzam regimes historicamente superados; é proposto como resposta existencial à atual catástrofe neoliberal global.

A correlação entre existência e filosofia é constitutiva, não só da maioria das tradições filosóficas, mas também das tradições políticas, no que tenham a ver com a responsabilidade sobre o bem-estar existencial dos seres humanos. Afinal, a política não é apenas instrumento posto a serviço da vida burocrática diária dos governos. Mais importante do que isso, a política existe para oferecer guia confiável rumo a uma existência mais plena. Mas quando essa e outras obrigações da política deixam de ser cumpridas pelos políticos profissionais, os filósofos tendem a tornar-se mais existenciais, vale dizer, tendem a questionar a realidade e a propor alternativas.

Foi o que aconteceu no início do século 20, quando Oswald Spengler, Karl Popper e outros filósofos começaram a chamar a atenção para os perigos da racionalização cega de todos os campos da atividade humana e de uma industrialização sem limites em todo o planeta. Mas a política, em vez de resistir à industrialização do homem e da vida humana, limitou-se a seguir uma mesma lógica industrial. As consequências foram devastadoras, como todos já sabemos.

Hoje, as coisas não são essencialmente diferentes, se se consideram os efeitos igualmente calamitosos do neoliberalismo. Apesar do discurso triunfalista do neoliberalismo, a crise das finanças globais neoliberais do início do século 21 serviu para mostrar que nunca as diferenças de bem-estar material foram maiores ou mais claras que hoje: 25 milhões de pessoas passam a viver, a cada ano, em favelas urbanas; e a devastação dos recursos naturais do planeta já provoca efeitos assustadores em todo o mundo, tão devastadores que, em alguns casos, já não há remédio possível.

Por isso tudo, relatório recente do ministério da Defesa da Grã-Bretanha [12] previa, além de uma ressurgência de “ideologias anticapitalistas, possivelmente associadas movimentos religiosos, anarquistas ou nihilistas, também movimentos associados ao populismo; além do renascimento do marxismo”. Essa ressurgência do marxismo é consequência direta da aniquilação das condições de existência humana resultantes do capitalismo neoliberal como o conhecemos.

O que é “comunismo”?

Por mais que a palavra “comunista” tenha adquirido inumeráveis significados distintos, ao longo da história, na opinião pública atual ela significa uma relíquia do passado e é associada a um sistema político cujos componentes culturais, sociais e econômicos são todos controlados pelo estado.

Por mais que talvez seja o caso na China, Vietnã ou Coreia do Norte, para a maioria dos filósofos e pensadores contemporâneos esse significado é insuficiente, está superado, é efeito de propaganda maciça e, sobretudo, é diariamente desmentido pela evidência de que o mundo não estaria vivendo uma “ressurgência” do marxismo, se o comunismo marxista fosse apenas isso.

Como diz Zizek, o comunismo de estado não funcionou, não por fracasso do comunismo, mas por causa do fracasso das políticas antiestatizantes: porque não se conseguiu quebrar as limitações que o estado impôs ao comunismo, porque não se substituíram as formas de organização do estado por forma ‘diretas’ não representativas de auto-organização social.”

O comunismo, como ideário antiestatizante das oportunidades realmente iguais para todos, é hoje a melhor hipótese, ideia e guia  para os movimentos políticos libertários antipoder, como os que nasceram dos protestos em Seattle (1999), Cochabamba (2000) e Barcelona (2011).

Por mais que esses movimentos lutem em nome de causas e valores específicos e diferentes entre si (contra a globalização econômica desigualitária, contra a privatização da água, contra políticas financeiras danosas), todos lutam contra o mesmo adversário: o sistema de distribuição não igualitária da propriedade, em democracias organizadas pelos princípios impositivos do capitalismo.

Como o demonstram a pobreza sempre crescente e o inchaço das favelas, este modelo deixou para trás todos os que não foram “bem-sucedidos” segundo suas regras, produzindo novos comunistas.

Comunismo e democracia

Em resumo, enquanto Negri e Hardt [13] buscam no “comum” (quer dizer, nos modos pelos quais a propriedade pública imaterial pode ser propriedade dos muitos), e Badiou busca nas insurreições (em ações como a da Comuna de Paris) [14], a possibilidade de se alcançarem “formas de auto-organização” não estatais, quer dizer, a possibilidade de formas comunistas, Vattimo (e eu) [15] sugerimos que todos examinemos os novos líderes democraticamente eleitos na Venezuela, Bolívia e outros países latino-americanos.[16]

Se esses líderes conseguiram chegar ao governo e começar a construir políticas comunistas sem insurreições violentas, não foi por terem chegado ao mundo político armados por fortes conteúdos teóricos ou programáticos; mas por suas fraquezas.

Diferente da agenda pregada pelo “socialismo científico”, o comunismo “fraco” (também chamado “hermenêutico” [17]) abraçou não só a causa ecológica [18] do de-crescimento, mas também a causa da decentralização do sistema burocrático estatal, de modo a permitir que se constituam conselhos independentes locais, que estimulam o envolvimento das comunidades.

Que ninguém se surpreenda se muitos outros filósofos, atraídos para o comunismo pelas ações e políticas de destruição da vida do neoliberalismo, também vislumbrarem a alternativa [19] que se constrói na América Latina. Especialmente, porque as nações latino-americanas demonstraram que os comunistas podem ter acesso ao poder também pelas vias formais da democracia.


Santiago Zabala é pesquisador e professor de filosofia da Institució Catalana de Recerca i Estudis Avançats, ICREA[1], da Universidade de Barcelona. É autor, dentre outros trabalhos, de The Hermeneutic Nature of Analytic Philosophy (2008), The Remains of Being (2009), e, mais recentemente, com G. Vattimo, Hermeneutic Communism (2011), todos publicados pela Columbia University Press.

Notas

 [1] http://www.icrea.cat/Web/Links.aspx
[2] http://50.56.48.50/article/new-communism-resurrecting-utopian-delusion

[3]http://www.guardian.co.uk/commentisfree/2009/oct/08/communism-university-workplace-occupations?INTCMP=ILCNETTXT3487

[4] www. routledge. com/ books/ details/ 9780415389570/

[5] http://www.guardian.co.uk/uk/2009/mar/12/philosophy

[6] http://marxau21.blogspot.com.es/2009/12/puissances-du-communisme.html

[7]http://www.volksbuehneberlin.de/praxis/en/idee_des_kommunismus__philosophie_und_kunst/?id_datum=2533

[8] http://www.versobooks.com/blogs/706

[9] Império, 2005, Rio de Janeiro: Ed. Record, 501 p.

[10] A hipótese comunista, 2012, São Paulo: Boitempo Editorial, 152 p.

[11] http://www.fazieditore.it/Libro.aspx?id=572

[12] http://thenewalexandrialibrary.com/trends.html

[13]http://www.guardian.co.uk/commentisfree/2011/feb/03/communism-capitalism-socialism-property

[14] http://www.lacan.com/baddiscipline.html

[15] http://www.cup.columbia.edu/book/978-0-231-15802-2/hermeneutic-communism

[16] http://southoftheborderdoc.com/

[17] Hermenêutico: adj. Relativo à interpretação dos textos, do sentido das palavras. (…) 3) Rubrica: semiologia. Teoria, ciência voltada à interpretação dos signos e de seu valor simbólico. Obs.: cf. semiologia  4) Rubrica: termo jurídico. Conjunto de regras e princípios us. na interpretação do texto legal (…). Etimologia: gr. herméneutikê (sc. tékhné) ‘arte de interpretar’ < herméneutikós,ê,ón ‘relativo a interpretação, próprio para fazer compreender’ [NTs, com verbete do Dicionário Houaiss, emhttp://houaiss.uol.com.br/busca.jhtm?verbete=hermen%EAutica&cod=101764]

[18] http://therightsofnature.org/bolivia-experience/

[19] http://www.thenation.com/article/muscling-latin-america