terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Até onde irão os Indignados?

Por Manuel Castells

Manuel Castells aposta: ao recuar, quando ação se desgastou, movimento
revelou maturidade surpreendente. Assumiu novas formas. Reemergirá,
quando a crise exigir.

O movimento de indignados, que surgiu em 2011 na Espanha, Europa e Estados Unidos, é uma lufada de ar fresco em um mundo que cheira a podre. Expuseram nas redes sociais e em acampamentos o que muitos pensam: que os bancos e os governos criaram a crise; que as pessoas sofrem com ela; que os políticos apenas representam a si mesmos; que os meios de comunicação estão condicionados; que não existem vias para que o protesto social se traduza em verdadeiras mudanças, porque na política tudo está amarrado – e bem amarrado, para que as mesmas pessoas de sempre continuem cobrando e as mesmas pagando.

Por isso, durante meses, dezenas de milhares de pessoas participaram de assembleias e manifestações e por isso a maioria dos cidadãos (até 73%, na Espanha) compartilha de suas críticas. E tudo isso de forma pacífica, exceto a violência resultante de ações policiais excessivas, que levaram os responsáveis a julgamento. O movimento teve a maturidade de levantar os acampamentos quando sentiu que as ocupações já não repercutiam e que só os ativistas participavam das assembleias diárias.

Mas o movimento não desapareceu. Apenas se difundiu pelo tecido social, com assembleias de bairro, ações de defesa contra injustiças – como a oposição a despejos de famílias – e extensão de práticas econômicas alternativas: cooperativas de consumo, banco ético, redes de intercâmbio e outras tantas formas de viver de maneira diferente para viver com sentido.

Ainda assim, os indignados, que em algum momento chegaram a assustar as elites pela possibilidade de contágio, sofreram perseguição midiática, policial e política. Isso criou a impressão de que o movimento se limitou a alguns jovens idealistas ou alguns poucos exaltados. Basta isolar os grupos e deixar que se cansem. Os partidos de ultra-esquerda tentaram pescar em águas turbulentas, para realimentar suas hostes minguadas, mas viram que os novos rebeldes já têm claro que por esse caminho não conseguirão as mudanças pelas quais lutam. Apesar da hostilidade dos poderosos, o movimento continuou, manteve sua deliberação em assembleias, comissões pela internet, e segue contando com participação popular quando surgem iniciativas concretas, e aparece à superfície o trabalho cotidiano daqueles que não aceitam que tudo continue igual.

A determinação de criar novas formas de ação transformadora sem liderança formal e sem organizações burocráticas traz dificuldades consideráveis. Por um lado, não valia a pena chegar até aqui para voltar a reproduzir um modelo de ativismo que já fracassou repetidamente. Por outro, o essencial é estabelecer um vínculo entre a deliberação e ação, além de conectar-se com os 99% que o movimento quer representar. Buscando novas vias, o 15-M está abrindo um debate profundo sobre como continuar agindo e inovando no que diz respeito a organização e elaboração estratégica. Em 19 de dezembro, depois de uma discussão em assembleia, a Comissão de Extensão Internacional da Porta do Sol de Madri decidiu suspender sua atividade e se declarar em reflexão ativa indefinida.

“O espaço público que havíamos redescoberto voltou a ser substituído por uma soma de espaços privados… O êxito do movimento depende de que sejamos de novo os 99%. Ainda que não tenhamos a resposta do que deve vir depois, que forma pode assumir o reinício de que necessitamos, entendemos que o primeiro passo para escapar de uma dinâmica equivocada é romper com ela: parar, deter-se e tomar perspectiva”, foi a argumentação.

Mesmo que esta atitude não reflita necessariamente o sentimento de outras assembleias e comissões do 15-M, é significativa. Evidencia a capacidade de autocrítica e autorreflexão que caracteriza esse movimento. Somente assim pode se constituir um novo processo de mudança que não desnaturalize seus objetivos de democracia real nas formas de sua existência. Porque onde se chega depende de como se faz para chegar, qualquer que sejam as intenções. Se a questão é como se conectar com os 99%, como se opera essa conexão?

O essencial em qualquer movimento social é a transformação mental das pessoas. Poder imaginar outras formas de vida. Romper a subordinação e a manipulação midiática. Sentir que muitos pensam como um mesmo. Esquecer o medo de afirmar seus direitos e opiniões. Nesse sentido, existem múltiplas indicações de que as pessoas estão mudando, de que o 15-M fez visível a indignação e alimentou a esperança, e que ainda que haja menos participação nas assembleias de ativistas, muitas pessoas estão buscando, de múltiplas maneiras, ocupar espaço no cotidiano e estabelecer vínculos com experiências similares.

Têm claro que a mudança não passa por eleições como as últimas, na Espanha. O triunfo da direita reunida no PP, ampliado por uma lei eleitoral não representativa do voto, foi muito menos relevante (400 mil votos a mais que em 2008), que a queda do Partido Socialista. Ela expressa o esgotamento dos que supostamente representariam os “de baixo”. Também deixa claro que a crise vai piorar, sem que ninguém saiba como lidar com ela.

Diante deste impasse, as pessoas buscam suas próprias soluções. Contando com redes de solidariedade cada vez mais numerosas. E apoiando as ações reivindicativas onde surgem. Essa transformação mental e essas múltiplas mudanças cotidianas podem ser ativadas em níveis mais amplos, em formas a ser descobertas, conforme se for quebrando a normalidade. Não se trata do velho mito comunista do súbito colapso do capitalismo, mas simplesmente de saber que a economia europeia afunda na recessão, que a cobertura social se dilui, que a política tradicional patina e que os cidadãos continuam indignados e são cada vez mais conscientes.

No 15-M existe essa consciência. Como a água, ela irá encontrando suas próprias vias até que se torne torrente – quando a situação se fizer crítica. Ainda bem: porque a alternativa a esse protesto pacífico e construtivo é uma explosão violenta e destrutiva.


Tradução: Daniela Frabasile

FONTE: Outras Palavras

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

MORE, Thomas

            
Thomas More muito dificilmente poderá ser considerado socialista. Não propunha a instituição de qualquer tipo de sociedade igualitária, nem para sua época, nem para um futuro, por mais longínquo que fôsse.

A partir das informações que obtivera sobre algumas sociedades no "Novo Mundo", nas quais os navegadores europeus testemunharam a inexistência de qualquer sinal de desigualdade social entre seus membros, More escreve uma obra literária ("Utopia") na qual imaginara/descrevera um mundo que não existia em lugar algum, um mundo que só existiria como fruto da imaginação.

Thomas More nasceu em Londres no ano de 1476. Seguindo os desejos de seu pai que era Juiz de Direito, ingressou na Universidade de Oxford, onde se formou em advocacia, embora paralelamente se dedicasse aos estudos de filosofia e teologia.

De vasta cultura humanista, foi estudioso das obras de Platão e Santo Agostinho. Desempenhou algumas funções públicas como membro do Parlamento, diplomata e Relator do Conselho de Estado.

Conheceu e preocupou-se com os problemas econômico-sociais da Inglaterra de seu tempo, que passava pelo processo de transição do feudalismo para o capitalismo: destruição das comunidades aldeãs, transformação das terras cultiváveis em campos de pastagens, expulsão dos camponeses de suas terras.

Adepto do direito natural, suas convicções neste aspecto foram reforçadas com a leitura da brochura "Novo Mundo" escrita por Américo Vespúcio, na qual esse navegador descrevia as condições de vida e a organização social das populações indígenas: inexistência da propriedade privada, ausência de qualquer tipo de autoridade, posse comum dos bens.

Edição inglesa de 1762
Em 1515, foi enviado pelo rei Henrique VIII à Antuérpia como negociador nas relações comerciais entre a Inglaterra e Flandres. Foi nessa época que começou a escrever sua obra máxima, "UTOPIA", que seria publicada em 1516, na qual descreve um país imaginário que não conhecia a propriedade privada, nem a exploração do homem pelo homem, nem a apropriação individual dos bens. Na UTOPIA todos tinham direito à educação e ao lazer; a jornada de trabalho não excedia 6 horas diárias e os interesses individuais cediam aos interesses coletivos.

Em 1529 foi nomeado Chanceler por Henrique VIII, mas anos depois, em conseqüência dos conflitos do monarca e a Igreja Católica que culminaram com a formação da Igreja anglicana por Henrique VIII, Thomas More pede demissão em 1532 das funções que exercia. Sua recusa em reconhecer Henrique VIII como chefe da Igreja na Inglaterra, motivou a abertura de um processo de alta traição, findo o qual foi decapitado em 6 de junho de 1535.


(Dados compilados por Aluizio Moreira)

Fontes:
Arquivo Marxista na Internet
BEER, Max. História do socialismo e das lutas sociais.São Paulo:Expressão Popular,2006.
BRAVO, Gian Mario. Historia do socialismo. Lisboa:Europa-America, 1977, 3 vols.
COLE, G.D.H. Historia del pensamiento socialista.Mexico:Fondo de Cultura, 1957-1960, 7 vols.
DROZ, Jacques (Dir). Historia geral do socialismo. Lisboa: Horizonte, 1972-1977, 9 vols.
HOFMANN, Werner. A historia do pensamento do movimento social dos séculos 19 e 20. Rio de Janeiro:Tempo Brasileiro, 1984.
PETITFILS, Jean-Christian. Os socialistas utópicos. São Paulo: Circulo do Livro, s/d.

Uma estratégia do pós-neoliberalismo ao socialismo

Por Fernando Marcelino       


Na década de 1990, os países latino-americanos, em sua grande maioria, adotaram práticas de cunho neoliberal em seus sistemas sócio-econômico, político e ideológico. Além do Chile, Bolívia, México, Argentina e Venezuela, países pioneiros na implantação do regime, o neoliberalismo surge no Brasil em momento crítico à política nacional-desenvolvimentista. Após a crise da dívida, diversas tentativas de estabilização inflacionária, fracassos dos planos econômicos, o projeto neoliberal vai ganhando espaço político no país.

No Brasil, o neoliberalismo nasce associado à abertura econômica e à democratização, culminando com a derrota do protecionismo e com a diminuição dos direitos trabalhistas provenientes do populismo. As orientações neoliberais foram acolhidas por amplos setores da sociedade brasileira, de governantes e empresários a lideranças do movimento popular e sindical e intelectuais.

Embora, desde a década de 1980, as medidas neoliberais tenham sido aplicadas no Brasil, a ofensiva maior ocorreu durante o governo de Fernando Henrique Cardoso. Em especial depois da crise de 1999, o governo FHC abriu um momento de deslegitimação generalizada do sistema político que forçava uma circulação de elites ou uma revolução. Havia na reserva, entretanto, uma contra-elite política que representava potencialmente essa circulação de elites sem revolução, pois sua base social havia erodido durante os anos 1990, suas linhas programáticas democrático-populares já tinham a simpatia de alguns setores da burguesia e Delfim Netto tinha garantido que um governo Lula seria viável para o capitalismo brasileiro.

Quando Lula venceu as eleições, muitos à esquerda e à direita acharam que o que estava em jogo não era uma simples “circulação de elites pós-neoliberal”, mas uma revolução social. No final de contas, não era uma revolução e nem forçava a organização contra-revolucionária.

Do desenvolvimento deste impasse, começou a se configurar melhor na América Latina, como escreve Emir Sader, importante expoente do petismo, duas vertentes do campo pós-neoliberal: Brasil, Argentina, Uruguai, por um lado, e Venezuela, Bolívia, Equador por outro. Na primeira existiriam governos anti-neoliberais, cujas políticas buscam a superação desse modelo; no segundo, existiriam governos também com a pretensão anticapitalista. Para ambas vertentes, o principal eixo político da América Latina seria o enfrentamento entre o neoliberalismo e o pós-neoliberalismo. Comentando este processo a partir do Brasil, Sader escreve:

“Sem uma estratégia pré-definida, Lula buscou avançar pelas linhas de menor resistência. Centrou seu governo em dois eixos fundamentais, que o diferenciou dos governos neoliberais e o aproximou dos novos governos latino-americanos. Eixos que representam os elos mais frágeis do neoliberalismo: a prioridade das políticas sociais ao invés da do ajuste fiscal e a prioridade dos processos de integração regional em lugar dos Tratados de Livre Comércio com os Estados Unidos. São essas as duas características comuns aos governos latino-americanos que podemos caracterizar como pós-neoliberais. É o caso da Venezuela, do Brasil, da Argentina, do Uruguai, da Bolívia e do Equador, que em seu conjunto mudaram a fisionomia do continente e se constituem no único núcleo regional atual de resistência ao neoliberalismo” (p. 125).

No caso brasileiro ocorre uma forma de pós-neoliberalismo que aponta para profundas transformações no desenvolvimento do capital e na estrutura de classes no Brasil recente. É verdade que o termo “pós-neoliberal” corre o risco de centralizar as discussões em se algo é “pós” ou “neo”, mas é crucial lembrar que o “pós-neoliberal” continua tendo profundas determinações do “neoliberal” e não constitui nem um programa coerente contra o neoliberalismo e nem uma estratégia positiva para além do capitalismo.

As experiências pós-neoliberais se caracterizam ao mesmo tempo pela recusa retórica do neoliberalismo e por conter muitos de seus traços fundamentais. O pós-neoliberalismo é baseado em continuidades e descontinuidades que configuram um novo contexto histórico que não tem nada de parecido com a forte intervenção na economia dos tempos do pós-guerra, seja do keynesianismo ou do desenvolvimentismo, mas que reconfigura a ação estatal em relação à sociedade civil e deixa de lado a retórica dos livres mercados como o único horizonte da condução das políticas econômicas. É correto caracterizar o pós-neoliberalismo como um período de transição, com duração variável, para a reorganização da economia, a articulação de um novo papel do Estado, emergência de novos atores sociais e superação da retórica dos livres mercados.

O “pós-neoliberalismo lulista” representa uma saída com sucesso para o capital desenvolver forças produtivas ao conseguir ampliar espaços de acumulação e expropriação das frações da burguesia com a crescente desmobilização política da sociedade civil, por conta da inserção de camadas pauperizadas da população no mercado com o acréscimo do crédito e do consumo. É a estabilidade política da esquerda no governo sustentando o crescimento econômico e vice-versa.

Estes processos envolvem o desenvolvimento das forças produtivas pela indução de políticas econômicas governamentais voltadas à acumulação monopolista do capital. Por isso que a experiência do lulismo demonstra como a crise da ideologia neoliberal não resulta necessariamente numa ordem pós-neoliberal que tenha como alvo formas sociais pós-capitalistas. Em suma, a “linha de menos resistência” utilizada pelo lulismo retraiu o projeto estratégico socialista a políticas públicas voltadas ao atendimento parcial de algumas demandas do programa democrático-popular. Ao se distanciar cada vez mais do horizonte socialista, o lulismo passa a se transformar em partido da ordem incapaz de favorecer a transformação do pós-neoliberalismo num caminho ao socialismo.

Mas como construir esta mediação? Que tipo de instrumento político é necessário para forçar estas transformações? Qual seria o horizonte programático desta estratégia do pós-neoliberalismo ao socialismo?

Como nota Wladimir Pomar, outro importante expoente do petismo, muitas vezes a esquerda peca quando supõe que seja possível realizar, sem revolução, um projeto que aproprie socialmente os excedentes econômicos provenientes das rendas, com controle público sobre o petróleo, telecomunicações, potenciais hidráulicos e terra. Não passa de ilusão de classe. Não existe qualquer experiência histórica de controle público do patrimônio nacional e apropriação dos excedentes econômicos para fins públicos que tenha sido efetivada sem uma revolução. A social-democracia européia, que realizou uma parte ínfima de um programa desse tipo, só o fez, por um lado, pressionada pelo impacto da revolução soviética e, por outro, facilitada pela expropriação das riquezas produzidas pelos povos dos países coloniais e semi-coloniais. Condições que, ao se esfumarem, afundaram a social-democracia em profunda crise existencial.

Por isso ele critica uma parte da esquerda que aparentemente não entende as dificuldades de se fazer um governo majoritariamente de esquerda num país em que predomina o modo capitalista de produção e em que a revolução socialista não está na ordem do dia.

“Uma parte da esquerda brasileira cobrou do governo Lula, e agora cobra do governo Dilma, a execução de medidas e ações típicas de governos e Estados resultantes de revoluções. É provável que alguns participantes dessa parte da esquerda acreditem que a eleição de um governo de esquerda, mesmo de coalizão, seja capaz de transformar uma vitória eleitoral numa revolução pacífica. Se acreditavam nisso, ficaram frustrados e, agora, encaram os resultados do governo como uma traição”.

Para Pomar, o governo Lula não teve como tarefa liquidar o capitalismo e erigir o socialismo. Nas condições em que foi eleito, suas principais tarefas domésticas consistiram em utilizar as forças capitalistas predominantes no país para desenvolver a indústria, a agricultura e os serviços, reconstruir a infra-estrutura de energia, transportes e comunicações e a infra-estrutura urbana, estimular a criação de novos empregos, criar mecanismos de redistribuição de renda e de democratização da propriedade agrária, dar maior musculatura ao mercado interno brasileiro e ampliar os direitos democráticos.

Como conseqüência, agora o fundo da situação brasileira tem, por um lado, a necessidade de uma verdadeira revolução para realizar as transformações reclamadas pela sociedade. Por outro lado, a burguesia brasileira vive uma crise política que a dividiu e permitiu que socialistas chegassem ao governo (não ao poder). E, embora o socialismo continue internacionalmente em crise, o mesmo ocorre com o capitalismo e com as potências hegemônicas. Nessa situação, mesmo sendo governo, os socialistas ainda não têm condições de romper com a hegemonia das relações capitalistas e o capital também se encontra enredado em suas próprias contradições e sem condições de restabelecer seu antigo domínio. Vive-se um imbróglio. Emergem agora profundos desafios quanto à capacidade de o governo ampliar sua agenda pós-neoliberal.

“Para o governo Dilma não bastará a consolidação da política ou do sistema de planejamento, resgatado pelo governo Lula. É preciso transformá-lo, além disso, numa política ou num sistema de elaboração de projetos estruturantes. Isto é, projetos que influenciem positivamente o desenvolvimento do conjunto das forças produtivas, a exemplo da educação e dos setores energético, de transportes, telecomunicações, indústrias básicas e ciências e tecnologias (...) O desafio seria injetar no planejamento estatal brasileiro um conteúdo que seja o oposto do planejamento do período ditatorial”.

Como nota Pomar, ainda não ocorreu uma reversão completa do caminho trilhado pelos governos neoliberais, por mais que algumas mudanças importantes tenham ocorrido. Por exemplo, passamos da estagnação para o crescimento econômico. Saímos da privatização dos ativos das empresas públicas para a consolidação das empresas estatais que sobraram da privataria neoliberal, e para as parcerias público-privadas, com concessões ao setor privado. O desmantelamento do planejamento estatal foi deixado de lado e há um processo, ainda não consolidado, de retomada do planejamento macroeconômico e macro-social.

Para Pomar a esquerda precisa considerar positiva a estratégia governamental de estimular o desenvolvimento capitalista, ao mesmo tempo em que aproveita essa aliança com setores da burguesia nacional e internacional para adotar mecanismos de “democratização do capital”, multiplicação das formas de propriedade e produção (estatais, públicas, solidárias etc.) e instrumentos mais efetivos de redistribuição constante da renda e de elevação do poder de compra e da educação das camadas mais pobres da população.

“O Estado terá, por um lado, que concentrar seus investimentos naquelas áreas estratégicas, seja através das estatais ainda existentes, seja através da mobilização de investimentos privados nacionais e externos. E, no caso de áreas não estratégicas no momento atual, ele terá que mobilizar fundamentalmente capitais privados que possam arcar sozinhos com os investimentos necessários, e que elevem as taxas nacionais de investimentos para 25% a 30% do PIB.

O governo democrático e popular terá que fazer, de forma mais consciente e planejada, a transformação da política de crescimento em política de desenvolvimento industrial, científico e tecnológico. Precisará discutir com o movimento sindical e o movimento popular seu apoio explícito à política de apoio à existência das formas econômicas capitalistas e, ao mesmo tempo, à política de reforço das formas capitalistas democráticas, a exemplo das micro e pequenas empresas privadas, e de reforço da propriedade estatal e pública.

É preciso desnudar a estrutura da indústria existente no Brasil e adotar um programa eficaz, que leve as empresas estrangeiras a internalizarem novas e altas tecnologias, e que recrie ou crie empresas genuinamente nacionais que compitam com as estrangeiras tanto no mercado interno quanto no mercado internacional”.

Pomar afirma que “a sociedade brasileira precisa de um projeto democrático-popular” que, “no âmbito econômico, deve apontar, de modo mais consistente, para maior participação das empresas estatais, em especial nos setores estratégicos, e deve estimular a ampliação massiva do capitalismo democrático, isto é, das micro e pequenas empresas privadas, urbanas e rurais. O que não significa abandonar a política de reforço das empresas privadas, para que adensem as cadeias produtivas industriais e agrícolas, e desenvolvam mais rapidamente as forças produtivas do país, embora seja necessária uma ação permanente do Estado para evitar que elas tornem o mercado mais caótico do que normalmente é”.

Esta linha chinesa pós-capitalista do pensamento de Pomar conclui que “tudo isso implica em adotar políticas macroeconômicas coerentes, que tratem não só de manter a inflação baixa, mas também de praticar juros favoráveis para aquele desenvolvimento, e tratem o câmbio como instrumento de política de desenvolvimento industrial. Deixar juros e câmbio à mercê das forças desbragadas do mercado é o mesmo que atravessar estradas de alta velocidade fora das passarelas (...). Se o governo Dilma demorar demais na configuração de um projeto desse tipo, que possa unificar mais firmemente as classes e setores sociais contraditórios que a levaram ao governo, a tendência pode ser um processo de desgaste constante em torno de problemas de corrupção, reais ou fictícios, ou em torno de divergências de porte menor (...) sem um projeto unificador, o governo Dilma pode ser apanhado no contrapé”.

Pomar parece acreditar ingenuamente que existem atualmente os instrumentos políticos necessários para impulsionar esse “reformismo revolucionário” voltado para aplicação de linhas macroeconômicas coerentes, uma crescente intervenção estatal, a multiplicação das formas de propriedade, unificação das classes “aliadas” por um projeto que coloque em risco a hegemonia do poder político da burguesia, desenvolvimento de uma política industrial que acentue os avanços científicos e técnicos etc. Se parte do capital aderiu ao lulismo por sua política contra qualquer tipo de intervenção na “autonomia dos capitalistas”, o que forçaria uma mudança de rota tão grande? Seria a crise internacional que forçaria esta transformação?

O raciocínio de Pomar nos leva a crer que o desafio do governo Dilma é a criação de uma espécie de “Plano de Desenvolvimento Nacional Pós-Neoliberal” – cujo PAC é apenas um ensaio geral. Esta seria uma transformação estratégica que apontaria para uma superação do neoliberalismo definitivamente. Mas para isso não seria necessário uma revolução social e que o PT fosse um partido revolucionário de massas? Ou poderia ser feito por um “governo de coalizão dirigido pela esquerda” orientado pelo “crescimento econômico com distribuição de renda”? O lulismo seria capaz de dar o salto estratégico para aumentar o controle dos capitalistas e do mercado impulsionando novas polarizações políticas e sociais rumo ao encontro com a revolução socialista? E não seria o transformismo do PT e a renegação da revolução socialista na direção deste partido que contribui para o fortalecimento da organização política conservadora e reacionária? Afinal, é compatível articular estas transformações sem fazer mudanças que limitem o poder dos capitalistas e sem instigar ainda mais a raiva dos monopólios contrários à política petista? Haveria disposição política a fazer isso e colocar em jogo a conciliação de classes lulista para impulsionar este tipo de reformas pós-neoliberais? Teria o petismo capacidade de enfrentar os monopólios e oligopólios capitalistas e dar um salto estratégico do pós-neoliberalismo ao socialismo? Muito difícil.

É verdade que um dos problemas da esquerda socialista é que continua não distinguindo neoliberalismo de pós-neoliberalismo. É verdade que ambas são políticas oriundas do capitalismo, mas esta última ingressa na vertente desenvolvimentista aberta pelos países emergentes, embora ainda sofrendo a pressão neoliberal. É destas contradições que deve ser gestada uma estratégia socialista com reformas que tocam na propriedade e no controle efetivo dos meios de produção. Sem isso a indução do Estado no caos do mercado terá apenas efeitos conjunturais, nunca conseguindo superar as determinações do neoliberalismo e sua correlação de classes.

Uma estratégia socialista para o pós-neoliberalismo lulista é essencial para superar o capitalismo brasileiro contemporâneo. Estas transformações apontam para a necessidade de atualizar a estratégia e a tática socialista. Os socialistas têm de considerar que estão numa situação inesperada e precisam se reconstruir encontrando estratégias que não estão previstas em nenhum dos manuais marxistas.

Ainda nos falta uma estratégia que deve favorecer a transformação do pós-neoliberalismo no socialismo, caracterizando-se como um programa de transição ao socialismo. A nova esquerda tem o desafio de formulação de uma estratégia para encontrar a forma adequada de luta e de organização, com um caminho e suas alianças de classe para a revolução brasileira. O pós-neoliberalismo é uma transição de uma forma de capitalismo para outra e uma mutação na configuração do bloco de poder. No momento certo deve estar articulada uma estratégia socialista que inviabilize o retrocesso sócio-econômico e político pela saturação do modelo, com capacidade de reduzir radicalmente os direitos dos proprietários capitalistas e possibilitando uma ofensiva socialista que torne irreversíveis as transformações pós-neoliberais. Sem este tipo de ofensiva, é uma grande ingenuidade acreditar que é possível a superação do neoliberalismo apenas na linha de menor resistência do lulismo.

Infelizmente, a aceitação do consenso pós-neoliberal lulista – e seus limites estratégicos e programáticos - ainda impede qualquer questionamento sério da forma como essa ordem democrático-popular pós-neoliberal é cúmplice dos fenômenos que ela condena, além de desconsiderar qualquer tentativa séria de construir uma ordem sócio-política pós-neoliberal, orientada por restringir a autonomia do capital e fomentar reformas amplas que visem criar rupturas com o capitalismo. A forma lulista de pós-neoliberalismo depende para sua estabilização (a “governabilidade”) de um crescente distanciamento de qualquer tipo de disposição de impulsionar transformações pós-capitalistas. Como partido da ordem, ao PT seria catastrófico para a “governabilidade” uma luta verdadeira contra o capital e entre as frações do capital. O PT não pode avançar do pós-neoliberalismo ao socialismo, preso aos seus próprios “aliados políticos” e pela relativa unidade da burguesia em torno do crescimento econômico.

Agora o desafio passa de superação do neoliberalismo para uma batalha contra o capitalismo – e provavelmente apenas a “crise dos emergentes” abrirá um novo panorama que supere as ilusões do pacto lulista. O pós-neoliberalismo produziu uma ilusão generalizada de melhora lenta, gradual e segura na “democratização do capital”. Em meio a este processo, a nova classe proletária brasileira (produto da expansão capitalista recente), junto com segmentos do subproletariado sem voz política, mobilizações camponesas, movimentos populares urbanos na periferia, igrejas de base, povos indígenas, os desempregados e um novo movimento estudantil progressista, deverão renovar e formular sua estratégia, suas organizações, métodos de luta e programa político.

Apenas um salto qualitativo neste processo pode empurrar o pós-neoliberalismo ao precipício da história junto com o capitalismo. Nossa tarefa é derrotar as forças contra-revolucionárias que defendem o capitalismo (neoliberal e pós-neoliberal). Ainda pode demorar um tempo, mas é a reorganização da esquerda sob novas bases que pode forçar o esgotamento do pós-neoliberalismo a se transformar num caminho ao socialismo com capacidade de construir uma força hegemônica, impulsionando projetos pós-neoliberais em escala mundial.

Está claro que, dadas as condições de crise internacional e os impasses do pós-neoliberalismo lulista, este é um ótimo momento para a retomada do socialismo como estratégia de luta política no Brasil e na América Latina. Se não avançarmos nesta perspectiva estratégica em nossas lutas, talvez terminemos tragados por uma inflexão histórica que aniquile o que foi conquistado. Este é um dos desafios estratégicos da nova esquerda socialista.



Fernando Marcelino é economista e analista internacional.

FONTE: Correio da Cidadania  

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

A esquerda mundial após 2011

Por Immanuel Wallerstein

Wallerstein propõe: as múltiplas correntes que desejam superar capitalismo precisam construir certos acordos, para não desperdiçar enormes esperanças surgidas no ano.

Por qualquer ângulo, 2011 foi um bom ano para a esquerda mundial – seja qual for a abrangência da definição de cada um sobre a esquerda mundial. A razão fundamental foi a condição econômica negativa, que atinge a maior parte do mundo. O desemprego, que era alto, cresceu ainda mais. A maioria dos governos enfrentou grandes dívidas e receita reduzida. A resposta deles foi tentar impor medidas de austeridade contra suas populações, ao mesmo tempo em que tentavam proteger os bancos.

O resultado disso foi uma revolta global daquilo que o movimento Occuppy Wall Street chama de "os 99%”. Os alvos eram a excessiva polarização da riqueza, os governos corruptos, e a natureza essencialmente antidemocrática desses governos — tenham eles sistemas multipartidários ou não.

O Occuppy Wall Street, a Primavera Árabe e os Indignados não alcançaram tudo o que esperavam. Mas sim conseguiram alterar o discurso mundial, levando-o para longe dos mantras ideológicos do neoliberalismo — para temas como desigualdade, injustiça e descolonização. Pela primeira vez em muito tempo, pessoas comuns passaram a discutir a natureza do sistema no qual vivem. Já não o vêem como natural ou inevitável…

A questão para a esquerda mundial, agora, é como avançar e converter o sucesso do discurso inicial em transformação política. O problema pode ser exposto de maneira muito simples. Ainda que exista, em termos econômicos, um abismo claro e crescente entre um grupo muito pequeno (o 1%) e outro muito grande (os 99%), a divisão política não segue o mesmo padrão. Em todo o mundo, as forças do centro-direita ainda comandam aproximadamente metade da população mundial, ou pelo menos daqueles que são politicamente ativos de alguma forma.

Portanto, para transformar o mundo, a esquerda mundial precisará de um grau de unidade política que ainda não tem. Há profundos desacordos tanto sobre a objetivos de longo prazo quanto sobre táticas a curto prazo. Não é que esses problemas não estejam sendo debatidos. Ao contrário, são discutidos acaloradamente, e pouco progresso tem sido feito para superar essas divisões.

Essas discordâncias são antigas. Isso não as torna fáceis de resolver. Existem duas grandes divisões. A primeira é em relação a eleições. Não existem duas, mas três posições a respeito. Existe um grupo que suspeita profundamente de eleições, argumentando que participar delas não é apenas politicamente ineficaz, mas reforça a legitimidade do sistema mundial existente.

Os outros acham que é crucial participar de processos eleitorais. Mas esse grupo está dividido em dois. Por um lado, existem aqueles que afirmam ser pragmáticos. Eles querem trabalhar de dentro – dentro dos maiores partidos de centro-esquerda quando existe um sistema multipartidário funcional, ou dentro do partido único quando a alternância parlamentar não é permitida.

E existem, é claro, os que condenam essa política de escolher o mal menor. Eles insistem que não existe diferença significativa entre os principais partidos e são a favor de votar em algum que esteja "genuinamente” na esquerda.

Todos estamos familiarizados com esse debate e já ouvimos os argumentos várias vezes. No entanto, está claro, pelo menos para mim, que se não houver algum acordo entre esses três grupos em relação às táticas eleitorais, a esquerda mundial não tem muita chance de prevalecer a curto ou a longo prazo.

Acredito que exista uma forma de reconciliação. Ela consiste em fazer uma distinção entre as táticas de curto prazo e as estratégias a longo prazo. Concordo totalmente com aqueles que argumentam que obter poder estatal é irrelevante para as transformações de longo prazo do sistema mundial – e possivelmente as prejudica. Como uma estratégia de transformação, foi tentada diversas vezes e falhou.

Isso não significa que participar nas eleições seja uma perda de tempo. É preciso considerar que uma grande parte dos 99% está sofrendo no curto prazo. Esse sofrimento é sua preocupação principal. Tentam sobreviver, e ajudar suas famílias e amigos a sobreviver. Se pensarmos nos governos não como agente potencial de transformação social, mas como estruturas que podem afetar o sofrimento a curto prazo, por meio de decisões políticas imediatas, então a esquerda mundial se verá obrigada a fazer o que puder para conquistar medidas capazes de minimizar a dor.

Agir para minimizar a dor exige participação eleitoral. E o debate entre os que propõem o menor mal e os que propõem apoiar partidos genuinamente de esquerda? Isso torna-se uma decisão de tática local, que varia enormemente de acordo com vários fatores: o tamanho do país, estrutura política formal, demografia, posição geopolítica, história política.Não há uma resposta padrão.E a resposta para 2012 também não irá necessariamente servir para 2014 ou 2016. Não é, pelo menos para mim, um debate de princípios. Diz respeito, muito mais, à situação tática de cada país.

O segundo debate fundamental presente na esquerda é entre o desenvolvimentismo e o que pode ser chamado de prioridade na mudança da civilização. Podemos observar esse debate em muitas partes do mundo. Ele está presente na América Latina, nos debates fervorosos entre os governos de esquerda e os movimentos indígenas – por exemplo na Bolívia, no Equador, na Venezuela. Também pode ser acompanhado na América do Norte e na Europa, nos debates entre ambientalistas/verdes e os sindicatos, que priorizam manutenção dos empregos já existentes e a expansão da oferta de emprego.

Por um lado, a opção desenvolvimentista, apoiada por governos de esquerda ou por sindicatos, sustenta que sem crescimento econômico, não é possível enfrentar as desigualdades econômicos do mundo de hoje – tanto as que existem dentro de cada país quanto as internacionais. Esse grupo acusa o oponente de apoiar, pelo menos objetivamente e talvez subjetivamente, os interesses das forças de direita.

Os que apóiam a opção anti-desenvolvimentista dizem que o foco em crescimento econômico está errado em dois aspectos. É uma política que leva adiante as piores características do sistema capitalista. E é uma política que causa danos irreparáveis – sociais e ambientais.

Essa divisão parece ainda mais apaixonada, se é que é possível, que a divergência sobre a participação eleitoral. A única forma de resolver isso é com compromissos, diferentes em cada caso. Para fazer com que isso seja possível, cada grupo precisam acreditar na boa fé e nas credenciais de esquerda do outro. Isso não será fácil.

Essas diferenças poderão ser superadas nos próximos cinco ou dez anos? Não tenho certeza. Mas se não forem, não acredito que a esquerda mundial possa ganhar, nos próximos vinte ou quarenta anos, a batalha fundamental. Nela se definirá que tipo de sistema sucederá o capitalismo, quando este sistema entrar definitivamente em colapso.

Tradução: Daniela Frabasile

FONTE: Adital (http://www.adital.com.br)

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

A Liga dos Comunistas

Por Aluizio Moreira


A Liga dos Comunistas é considerada por vários historiadores do socialismo, como resultado da “evolução natural” da Liga dos Justos. Isto porque internamente, a Liga dos Justos em Londres, entre 1843 e 1846, foi palco de várias discussões das quais participaram Schapper, Heinrich Bauer, Karl Pfänder e Albert Schmann, que terminaram por determinar a aceitação de novos princípios orientadores para a Liga.
  
Esses novos princípios distanciaram a Liga dos Justos em Londres, na França e na Suíça, na medida em que rejeitaram os planos utópicos de Cabet, as idéias golpistas e conspirativas: a revolução passou a ser vista como resultado de todo um processo; defendeu-se uma maior intensificação das atividades de organização e propaganda; condenou-se  a tendência de se criar um modelo ideal de sociedade comunista; considerou-se a necessidade de se buscar um embasamento científico às teorias e práticas revolucionárias. 

Paralelamente a isso, em Bruxelas, Marx e Engels começavam a participar mais intensamente do movimento político. Em 1846, fundaram naquela cidade, o Comitê de Correspondência Comunista, que entre outras coisas: a) opunha os interesses do proletariado aos da burguesia; b) defendia a abolição da propriedade privada e a instituição da comunidade dos bens; c) destacava a necessidade de estudos científicos da sociedade burguesa, como fundamenta para a ação revolucionária. 

Na verdade, entre vários ativistas e intelectuais que militavam no movimento socialista na França, Alemanha, Inglaterra, Suíça e Bélgica naqueles anos (1843/1846), e que mantinham troca de idéias e informações através de cartas, circulares e periódicos, começou a se sentir a necessidade, não só de ampliar o movimento para além dos limites nacionais, como de buscar fundamentações científicas  e novas orientações para o movimento revolucionário da época.

Marx e Engels em reunião da Liga
Foi nesta conjuntura que a Liga dos Justos em Londres enviou representantes para manter contato com ativistas, organizações e intelectuais de outros países e ao mesmo tempo convoca-los, por uma Circular de novembro de 1846, para participar de um Congresso que se realizaria naquela capital, entre 2 e 9 de junho de 1847. 

Foi nesse Primeiro Congresso, que a Liga dos Justos se converteria em Liga dos Comunistas. Também nesse Congresso foram elaborados o “Projeto de Estatutos” e  o “Projeto Comunista”, encaminhados para as várias secções (chamadas de “comunas”) da Liga em vários países para serem discutidos e aprovados num futuro II Congresso.

De 29 de novembro a 8 de dezembro daquele mesmo ano de 1847, em Londres,  realizou-se o II Congresso da Liga dos Comunistas,  no qual foram apresentadas as propostas pelas várias “comunas” da Liga.  Aprovados os Estatutos, Marx e Engels  foram  encarregados da redação do Programa cujo resultado foi o “Manifesto do Partido Comunista”. 

Nos primeiros meses de 1848, explode a Revolução de Paris, seguida por uma onda revolucionária que atingiu quase todo continente europeu... Por isso mesmo, o Comitê Central da Liga em Londres transfere seus poderes para o círculo dirigente da Liga em Bruxelas, que se encontrava em estado de sítio, o que motivou a Liga delegar a Marx e tarefa de constituir um novo Comitê Central em Paris. 

Os acontecimentos políticos de 1848 diminuíram as atividades da Liga dos Comunistas: muitos dos seus membros, inclusive Marx e Engels retornaram aos seus países para participarem do movimento revolucionário de 1848/1849.

Manifesto do Partido Comunista
Passada a “onda revolucionária”, inicia-se nos primeiros meses de 1850 os trabalhos de reorganização da Liga. No entanto, as reavaliações do movimento de 1848 e a análise da nova situação econômica e política em 1850, provocaram divergências entre a liderança da Liga dos Comunistas, que culminam com a polarização de dois grupos: o de Willich/Schapper e o de Marx.

Em reunião da direção da Liga realizada em 15 de setembro de 1850 em Londres, Marx consegue aprovar as propostas; a) que dissolvia o Comitê existente e a transferência de suas funções para o Comitê Distrital de Colônia ("Köln", cidade da Alemanha); b) que abolia os Estatutos em vigor e os substituiria por outros que se adequassem ao novo momento histórico; c) que formava duas organizações distintas da Liga em Londres, ambas ligadas ao Comitê em Colônia.

As “comunas” de Londres resolveram não acatar as decisões tomadas pela maioria do Comitê Central, e numa reunião da qual participaram Willich e Schapper, aprovaram a expulsão de todo o grupo de Marx (Engels, Schramm, Wolff, Seiler, Liebknecht, Pieper, Pfander, Bauer, Eccarius e o próprio Marx). 

Assim a Liga dos Comunistas se divide em dois grupos bem definidos: o de Londres, sob a liderança de Willich e Schapper, e o de Colônia sob orientação de Marx e Engels.

Em maio de 1851, em Leipzig, a prisão de Peter Nothjung, emissário do Comitê Central em Colônia, desencadeia uma sucessão de prisões dos demais dirigentes da Liga. Inicia-se o chamado “Processo dos Comunistas de Colônia”, cujo veredicto exarado em outubro de 1852 condenou a maioria dos membros do Comitê Central da Liga a vários anos de prisão. Naquele mesmo ano a Liga dos Comunistas era dissolvida por seus membros remanescentes atendendo  à proposta de Marx.
   
A Liga dos Comunistas em Londres sob a liderança de Schapper  desaparecerá poucos meses depois. 

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Os indignados e a irrupção contestatória

Por Leo Lince  

Um espectro ronda a Europa (e também a Ásia, a África e as Américas): o espectro da rebeldia juvenil contra os podres poderes que dominam o mundo. Da Primavera Árabe aos Indignados da Espanha, da Grécia ao Chile, de Londres a Jerusalém, de Nova York ao Rio de Janeiro, um pouco por toda parte, sopram os ventos de um movimento político cujo alcance e sentido ainda carecem de decifração.

Acampamentos tomam conta das praças. Marchas agitam o espaço livre das ruas. Mensagens atravessam com a rapidez do relâmpago o universo sem fronteira das redes virtuais. São “ocupações” - se denominam como tal – que funcionam como uma espécie de mostruário dos conflitos que dilaceram a sociedade contemporânea. Os patentes, os latentes, e os que ainda sequer foram nomeados.

O desejo de mudar monta barricadas que, embora pacíficas, incomodam pelo simples fato de existir. Nelas, como nas crateras dos vulcões quase ativos, borbulham as lavas do mal-estar geral. Vindo de toda a parte e não tendo centro em lugar algum, um tipo pouco comum de eletrização política espalha pontos luminosos pelos quatro cantos do mundo.

Em 1848, quando Marx e Engels escreveram o Manifesto Comunista, cujas primeiras palavras são as que iniciam este artigo, o mundo da época, em quase tudo dessemelhante do atual, vivia também uma eletrização política pouco comum. Não existia, claro, internet, nem televisão, nem rádio. Apenas o impresso tosco e o contato direto veiculavam as ondas do descontentamento. Ainda assim, o turbilhão vertiginoso da contestação atravessou um sem número de países, principalmente na Europa: França, Prússia, Império Austro-Húngaro, Itália, Polônia, Romênia, Bélgica, Dinamarca, entre outros. Registram-se até ressonâncias longínquas na América, na Colômbia e no Brasil, com a Revolução Praieira.

O sobressalto foi geral, deixando marcas por toda a parte. O Papa, o Tzar e os imperadores de então ficaram assustadíssimos. Contra o mundo odioso das desigualdades e da opressão, a “Liga dos Justos” anunciava a “eclosão irrefreável do novo”: uma revolução grandiosa que iria mudar os destinos da humanidade. Propagada como a “Primavera dos Povos”, tal revolução não houve. O proletariado, para quem fora dirigido o manifesto de Marx, não se emancipou. Ainda assim, apesar da ausência de qualquer ruptura radical, o ano de 1848 passará para a história como sendo o período marcado pela concentração de acontecimentos que produziu mudanças definitivas nas feições da política subseqüente. Depois dele, nada voltou a ser como antes.

O século 20, nos anos 60, também vivenciou os abalos de um pandemônio semelhante. Mais uma vez, outra onda contestatória varreu a geografia do mundo. A Europa inteira, inclusive no Leste do chamado socialismo real, sofreu o seu impacto: França, Itália, Alemanha, Portugal, Espanha, Polônia, Tchecoslováquia. Nas três Américas, com destaque para o México, Estados Unidos, Argentina e Brasil, a juventude ocupou o espaço livre das ruas, carregando Guevara redivivo em canções e camisetas. Na África do Sul, excluída por racismo das Olimpíadas do México, Mandela tocava da prisão o primeiro violino da política. Na Ásia de Ho Chi Min, a guerra do Vietnã polarizava as atenções do mundo, onde o princípio esperança executava prodígios de resistência.

O epicentro do abalo geral foi na França. Sociedade sacudida de alto a baixo, economia paralisada por duas semanas. Os grevistas, mais de 10 milhões, aspiravam não apenas melhorias, mas questionavam o despotismo patronal e a autoridade do Estado. As “barricadas do desejo” ocuparam o centro histórico de Paris. Apesar da envergadura gigantesca, o movimento não conseguiu se traduzir em alterações imediatas na política. Além do pânico gerado entre as classes dominantes, o colapso geral das estruturas sociais sequer se constituiu como momentânea “dualidade” de poder. Como no enigma de 1848, a explosão de rebeldia, um imenso poder à margem do Poder, não resultou em ruptura revolucionária. Tudo aconteceu como se os contestadores, ao se dirigirem ao mundo da política, repetissem o crucificado do Gólgota: “nosso reino não é deste mundo”.

Henri Lefebvre, um marxista arguto, analisou a rebelião de maio ainda no calor da refrega e sacou conclusões de grande valia para a decifração do enigma. Segundo ele, estavam presentes na França da época todos os ingredientes de uma típica “situação revolucionária”, mas não haveria uma revolução. Por conta de características elencadas no tempo real, o quadro deveria evoluir como uma “situação revolucionária sem revolução”. Os desdobramentos subseqüentes, posteriores ao texto de Lefebvre, indicam que tampouco houve uma contra-revolução, o que valoriza ainda mais o conceito elaborado então pelo autor em pauta. A gigantesca onda contestatória que não desemboca em revolução, tampouco em contra-revolução, foi chamada de “irrupção”.

A irrupção espontâneo-contestatória é o movimento que revela o surgimento de novas contradições no solo cristalizado da política. Contradições nascidas por acréscimo, superpostas às antigas que foram atenuadas, dissimuladas, “reduzidas” no interior dos aparatos do poder, mas nunca resolvidas. Quando a oposição política, integrada no “aparato total”, deixa de expressar a dinâmica das demandas sociais; quando os chamados “corpos intermediários” se mostram momentaneamente absorvidos pela rotina que reproduz o “mesmo”, entre a política institucional e a sociedade civil, se abre um imenso vazio.

A onda contestatória brota em tais ocasiões para, exatamente, preencher tal vazio. Aspira (suprema pretensão) substituir, recompor, refazer a partir do zero as mediações sociais e políticas através das quais as demandas deveriam se elevar ao nível global. Ao constatar a ineficácia dos partidos e dos “corpos intermediários”, a contestação se volta contra o institucional em geral.  Ela vem do global e se dirige ao global. Não é despolitizada, mas expressa e aspira, quase sempre, outro tipo de política. Os agentes políticos tradicionais, inclusive os que operam por dentro das instituições o projeto revolucionário, trabalham na perspectiva da “acumulação de forças”, sempre de olho na “correlação” que possa interferir nos pontos fortes da política.

O sentido mais profundo da onda contestatória é inteiramente outro. É, antes de tudo, o da recusa à integração. Daí provém o tipo “nosso reino não é deste mundo” de seu original radicalismo. Tais movimentos ou são radicais ou não são nada. Nascem das profundezas, sob as raízes da vida social organizada, de costas para o Estado e longe de suas instituições. Para usar uma expressão feliz de Lefebvre, são movimentos localizados “abaixo da base”.

A juventude, entendida menos como faixa etária e mais como um tipo determinado de relação com o mundo, é por excelência o agente social da irrupção contestatória. Hoje, além do jovem, que ainda não foi “reduzido” a um papel social no interior do sistema, há uma multidão de “recusados” pelo sistema. Os excluídos, os fulminados, os desempregados, os discriminados, os criminalizados, a multidão dos “sem-alguma coisa essencial”, por conta do modelo excludente, operam na mesma clava. Sem espaço ou canais de expressão, seu descontentamento explode no espontâneo, inimigo mortal de todos os poderes e instituições, pois remete ao imponderável.

A irrupção contestatória é um fenômeno urbano, habitado por aspirações grandiosas de reconstruir a sociedade de alto a baixo, através de um exercício democrático radical, constituinte e instituinte, onde todos os conflitos e interesses estariam, mais do que representados, presentes nas ruas e praças, lugares ainda não totalmente controlados.

O movimento dos indignados, que espalha ocupações nos quatro cantos do mundo, nasce do vazio criado pela crise institucional latente. Seu possível crescimento pode levar, em alguns casos, ao agravamento de tal crise, pondo em questão a hierarquia, os valores, os poderes carcomidos que sustentam a reprodução ampliada do modelo excludente. Estamos diante, tudo indica, de uma nova manifestação daquilo que foi nomeado por Henri Lefebvre como irrupção contestatória. Como no caso das manifestações anteriores, são movimentos políticos de larga envergadura, mas que se destinam a produzir um tipo original de interferência no processo da luta política.

Ao expressar de maneira fragmentária o mal-estar geral, tais movimentos tratam dos conflitos estruturais como manifestações pré-políticas, no estado bruto da fratura exposta. Um grande mostruário da crise, que não hierarquiza nem estabelece variáveis ordenadoras ou vetores de lutas. Por conta de sua própria natureza, são movimentos destituídos de positividade programática. Querem tudo para todos, já. Em tal característica reside, ao mesmo tempo, a grandeza e a pouca eficácia política imediata das chamadas irrupções. São movimentos políticos importantes, buscam interpelar o mundo da política, em alguns casos conseguem revolver camadas profundas da sociedade. Embora expressem uma recusa total aos poderes dominantes, não resultam de imediato em rupturas ou revoluções.

Foi assim em 1848. O turbilhão contestatório não resultou em revolução. Mas o empenho da “Liga dos Justos” não foi em vão. Foi assim em 1968. O abalo que assustou o mundo também não resultou em rupturas imediatas. Mas as “barricadas do desejo” deixaram marcas que persistem até hoje. Nos dois casos, o impulso produzido pela onda contestatória desencadeou processos constitutivos de novos “sujeitos” políticos e sociais. Depois de 48, partidos e sindicatos passaram a ocupar um lugar central no ordenamento de todas das lutas e movimentos sociais. Depois de 68, uma miríade de novas organizações, associativas, culturais e da luta por direitos passou a operar como determinantes do fato político. Nada mudou de imediato, mas tudo mudou no processo subseqüente.

O movimento dos indignados, contestação serena que transborda dos aparelhos especializados no exercício do poder, emite sinais ainda não decifrados. Para o bem ou para o mal, a morfologia da cena política haverá de sofrer o seu impacto. Os decanos da luta por mudança, os que falam em repolitizar a política, mais do que os que se ocupam da conservação do modelo dominante, devem olhar com atenção para estes sinais. Eles, por certo, não apontam saídas imediatas, mas ostentam elementos reveladores do estágio atual da crise. O slogan posto em curso pelo movimento, “99% contra 1%”, enfatiza a clivagem entre a minoria ensandecida que detém o poder e a maioria esmagadora que o sofre. Escancara, ao mesmo tempo, a necessidade da construção de nexos entre as diferentes culturas críticas do totalitarismo financeiro que coloca em risco o processo civilizatório. Logo, vale atualizar para os dias de hoje a consigna final do famoso manifesto de 1848: “Indignados do mundo, uni-vos!

Léo Lince é sociólogo.

FONTE: Correio da Cidadania

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Comissão Pastoral da Terra e Reforma Agrária

BALANÇO DA REFORMA AGRÁRIA EM 2011


O ano de 2011 deixa enormes desafios para 2012, pois as baixas perspectivas só irão melhorar com muita luta do povo do campo e das suas entidades de classe. Em 2012 completará 50 anos da morte do líder das ligas camponesas, João Pedro Teixeira. Ele foi “um cabra marcado pra morrer" por sua luta em defesa da Reforma Agrária. Hoje, a depender do Estado brasileiro, e de todos os que o governam ou que dele se beneficiam, a Reforma Agrária também está "marcada pra morrer". Confira análise feita pela CPT Nordeste II:


O início de 2011 foi marcado pela perspectiva de que o governo da Presidenta Dilma pudesse percorrer o caminho para superar os desafios e impasses históricos da Reforma Agrária no Brasil. Com o apoio da maioria no Congresso Nacional, a nova Presidenta teria, nesse campo estratégico, condições políticas para impulsionar um processo de Reforma Agrária, o que nunca foi feito no Brasil.

Apesar dessas legítimas expectativas, o que se configurou na prática foi que o Estado brasileiro direcionou toda a sua energia para garantir o avanço de um modelo ultrapassado de desenvolvimento para o país, com um perfil concentrador de renda, prejudicial ao meio-ambiente e às populações tradicionais.

De fato, as diretrizes política e econômica do governo são as mesmas do grande capital. Como consequência desta opção, os maiores impactados foram os trabalhadores e trabalhadoras rurais, as comunidades tradicionais, indígenas, posseiros, ribeirinhos, toda a diversidade de povos que vivem no campo brasileiro e a mãe Terra.

De um lado, isso reflete uma violência e o abandono do povo excluído. Do outro, tem provocado um momento de retomada de mobilizações e independência dos pequenos, frente à traição de quem julgavam ser aliados. Essa importante retomada vem acontecendo em toda América Latina.

No Brasil, a obsessão do Governo da Presidenta Dilma pela implantação de grandes projetos e pela produção ilimitada de commodities tem levado as populações tradicionais, indígenas e camponeses a retomarem seus originais métodos de protesto. Exemplo emblemático disto é o debate em torno da Hidroelétrica de Belo Monte e do Código Florestal.

A Reforma Agrária agoniza

Os números da Reforma Agrária deste governo, em relação às famílias assentadas, foram ainda piores do que o primeiro ano do governo anterior. Em 2011, somente 6.072 famílias foram assentadas pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). O número é pífio e insignificante diante da quantidade de famílias acampadas que se encontram do outro lado das cercas do latifúndio do agronegócio. De acordo com estimativas do próprio Incra, existem aproximadamente 180 mil famílias debaixo da lona preta em todo o país.

De um lado, o número insignificante de desapropriações. Do outro, um imenso contingente de famílias sem terras. Esta realidade se choca com outra: a da grande disponibilidade de terras improdutivas e devolutas no país. Os dados oficiais mostram que mais de dois terços das propriedades de grande e médio porte não cumprem com sua função social. Terras improdutivas, assim como as devolutas, deveriam ser destinadas imediatamente para fins de Reforma Agrária, no entanto já possuem um destino definido: o agro-hidronegócio e os projetos de desenvolvimento.

Mesmo nas áreas de assentamentos, continuou faltando política de Estado. Neste cenário de total ausência de incentivo à agricultura camponesa, muitas famílias foram mantidas à mercê do capital, de seus interesses e de seus instrumentos de controle e de exploração. Nas regiões de monocultivo da cana-de-açúcar, por exemplo, as Usinas ocupam o vácuo deixado pelo Estado e se apropriam do território camponês, oferecendo financiamento, infraestrutura e assistência técnica às famílias, tornando-as reféns da lógica definida pelo modelo de produção do agronegócio.

Por outro lado, o Governo não mediu esforços para garantir o avanço do agronegócio e do latifúndio, principalmente sob áreas tradicionalmente ocupadas por camponeses e camponesas. Um dos exemplos mais marcantes aconteceu em maio, quando a presidenta Dilma assinou de uma única vez, o decreto de desapropriação de quase 14 mil hectares na Chapada do Apodí/RN, para implantação do Projeto de irrigação que beneficiará meia dúzia de empresas do agronegócio. Em consequência, serão atingidos e prejudicados milhares de pequenos agricultores que desenvolvem experiências de convivência com o semiárido, reconhecidas internacionalmente.

É espantoso que Lula, em seus últimos anos de governo, não tenha chegado a desapropriar 14 mil hectares para a Reforma Agrária no RN e que Dilma, muito provavelmente, não desaproprie 14 mil hectares para essa finalidade em todo o seu governo. Entretanto, logo no seu primeiro ano de mandato, ela já desapropriou essa grande quantidade de terras para atender ao agronegócio. Além deste caso, vimos também a desapropriação de cerca de 8 mil hectares na região de Assú, também no RN, para a Zona de Processamento de Exportação (ZPEs).

Para os Povos indígenas e quilombolas que travam no dia-a-dia um embate pelo direito a terra, enfrentando a chegada do agronegócio e dos projetos governamentais, não há o que comemorar em 2011. Foram homologadas apenas três terras indígenas, sendo duas no estado do Amazonas e uma no Pará. O Governo não se sensibilizou nem com a situação dos povos indígenas de Mato Grosso do Sul, em especial os Kaiowá e Guarani, que vivem em conflito com fazendeiros e usineiros da região. Nenhuma ação foi feita para homologação das terras neste estado. No caso das populações descendentes de Zumbi dos Palmares, fora a desapropriação do território da comunidade de Brejo dos Crioulos, em Minas Gerais, poucos foram os resultados conseguidos frente às reivindicações e resistências das 3,5 mil comunidades quilombolas existentes no Brasil. De todas, apenas 6% tem a titulação de suas terras.

Também em 2011 foi dada a concessão, pelo Ibama, da licença de instalação para a Usina Hidrelétrica de Belo Monte, no Rio Xingu (PA), o que possibilitou o início das construções na região. Belo Monte é uma das principais obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e a primeira de inúmeras usinas a ser instalada na região Amazônica para beneficiar as grandes mineradoras, devastar a floresta e acabar com a forma de viver dos índios. Com ela, expande-se sobre a floresta o modelo de exploração e degradação planejado há 50 anos pelo grande capital

Na contramão do que reivindicam as populações tradicionais e os sem terras, o Governo ainda anunciou uma redução do orçamento da Reforma Agrária para 2012. De acordo com o projeto de lei orçamentária previsto para o ano que se avizinha, as ações de obtenção de terras terão uma drástica redução de 28% em relação a 2011 e de 31,2% em relação a 2010. Além disso, a assistência técnica, já inviabilizada pelo Governo nos anos anteriores, ainda sofrerá uma redução de 30% em relação a 2010. Para a implantação de infraestrutura, o orçamento prevê uma perda de 8% em relação a 2011. Já a área da educação sofreu uma perda de quase R$ 55 milhões em comparação a 2009, correspondendo a uma redução de 63% de seu orçamento.

O Retrocesso continuou também na lei. O ano se encerra com mais uma vitória da Bancada Ruralista. A aprovação do Código Florestal no Congresso Nacional ultrapassou as expectativas dos aliados da motoserra no Governo. Com retrocessos históricos, o Código prevê, entre outros exemplos gritantes, a anistia aos desmatadores anteriormente a julho de 2008, no que diz respeito ao dever de recuperação ambiental. Posição esta, aquém do entendimento consolidado até então pelo conservador Poder Judiciário brasileiro.

Como se não bastasse, a Lei complementar de nº 140, no que se refere à gestão ambiental, foi sancionada pela presidenta Dilma no final do ano, sem alardes. Com a aprovação da lei complementar, as competências de gestão ambiental ficam diluídas nos Estados e nos Municípios, que são muito mais vulneráveis a pressões políticas e empresariais.

A nova ameaça de retrocesso em curso é o lobby para um novo Código Mineral, que vem sendo redigido no Governo e no Congresso Nacional, sem o debate e sem a participação da sociedade e das populações diretamente interessadas e que serão atingidas, em sua grande maioria comunidades tradicionais.

Enquanto isso, avançam os grandes projetos de forma truculenta

Em 2011, obras impactantes como a Transposição do Rio São Francisco, a Transnordestina, projetos de mineração, construções de BR's, a especulação imobiliária, obras da Copa, Porto de Suape, a construção da Hidrelétrica de Belo Monte e do Rio Madeira, barragens, além de outros mega-projetos, foram um dos principais causadores de conflitos agrários no país.

Para se ter uma ideia da gravidade desses efeitos sobre as populações tradicionais, no período de janeiro a setembro de 2011, registramos um total de 17 assassinatos de trabalhadores no campo. Destes assassinatos, pelo menos 8 têm ligações com a defesa do meio ambiente, 04 estão relacionados com as comunidades originárias ou tradicionais.

Em Alagoas, ocorreu o avanço do projeto de plantação de Eucalipto por parte do Grupo Suzano, especializado na fabricação de papel e celulose. O Grupo reivindica uma área de 30 mil hectares para viabilizar o investimento. O Governo do Estado já sinalizou positivamente e já tem mapeadas as terras que serão destinadas para a plantação do monocultivo.

Na Paraíba, outro fato emblemático foi o apoio incondicional do Governo para a implementação de uma Fábrica de Cimentos da Empresa Elizabeth em uma área de assentamento no litoral sul do Estado. A área que será ocupada pela Empresa também é reivindicada pelo povo indígena Tabajara.

Em Pernambuco, a Transnordestina atingiu as comunidades camponesas por onde tem passado, desde o Sertão, como o caso do município de Betânia até a Zona da Mata, como as famílias de Fleixeiras, no município de Escada, que resistiram bravamente ao despejo que daria lugar aos trilhos da Ferrovia.

Lutas e Resistência Camponesa em 2011

Os camponeses e as camponesas continuam lutando pela Reforma Agrária e resistindo ao avanço do latifúndio e do agronegócio. Mesmo diante de todas as dificuldades impostas pelo Estado e pelo agronegócio, estes camponeses teimam em reescrever a história. Das 789.542 famílias assentadas nos últimos dez anos, 87% permanecem resistindo e produzindo no campo, sem qualquer tipo de incentivo governamental para a agricultura camponesa.

Apesar da diminuição das ocorrências das ocupações e acampamentos em 2011, aumentou o número de famílias envolvidas nestes conflitos. Este ano, de acordo com os dados parciais da CPT, foram 245.420 pessoas envolvidas no período de janeiro a setembro de 2011, enquanto que no mesmo período de 2010, foram 234.150 pessoas envolvidas.

Registramos em 2011 mais de 350 mobilizações no país, protagonizadas pelos povos do campo. É como se em cada um dos 365 dias do ano, camponeses e camponesas organizados se mobilizassem em defesa da Reforma Agrária, dos direitos dos povos do campo e pelos territórios dos povos originários e de uso comum.

Algumas grandes mobilizações marcaram este ano que se encerra. Em agosto, cerca de 70 mil mulheres camponesas ocuparam as ruas de Brasília, reivindicando seus direitos, durante a Marcha das Margaridas. Naquele mesmo mês, mais de 4 mil trabalhadores rurais sem terra ligados à Via Campesina montaram acampamento na capital federal, exigindo do Governo o compromisso com a Reforma Agrária. Por sua vez, “Aperte a Mão de Quem te Alimenta”, foi o nome da marcha realizada pelo MLST, de Goiânia até Brasília, e que explicitou a importância da produção agroecológica e da criação de assentamentos para garantir alimentos saudáveis, sem utilização de agrotóxicos.

Mais recentemente, cerca de 15 mil pessoas foram as ruas em Juazeiro e em Petrolina protestar contra a proposta do Governo de construir cisternas de PVC, que vai contra toda a metodologia de relação com o semiárido, construída pelas populações ao longo dos anos.

Além dos trabalhadores e trabalhadoras rurais sem terra, os quilombolas e indígenas também estiveram firmes em suas manifestações em 2011. Durante o mês de maio, os povos indígenas realizaram uma de suas maiores mobilizações, o acampamento Terra Livre, realizado em Brasília e que reuniu centenas de indígenas de mais de 230 povos de todo o país para apresentar suas principais reivindicações. Já no início de novembro, mais de dois mil quilombolas estiveram reunidos em Brasília, quando ocuparam pela primeira vez o Palácio do Planalto durante a Marcha Nacional em Defesa dos Direitos dos Quilombolas.

2012: Marcharemos na Luta pela Reforma Agrária

Apesar do Estado brasileiro e de seus governantes condenarem a Reforma Agrária à morte, ela segue a cada dia pulsando com mais intensidade nas veias dos camponeses e das camponesas, como se ouvissem os ecos do compromisso de Elizabete Teixeira, na ocasião do sepultamento do seu companheiro: "Continuarei a tua luta". Este é o chamado que ecoa para aqueles e aquelas que acreditam e lutam em defesa da vida, da vida plena.

“Eu vim para que todos tenham Vida e Vida em abundância.” (João 10:10)

COMISSÃO PASTORAL DA TERRA - NORDESTE II

FONTE: Comissão Pastoral da Terra (CPT) - Secretaria Nacional 

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

A Liga dos Proscritos e a Liga dos Justos

Por Aluizio Moreira


A Liga dos Proscritos

As quatro primeiras décadas do século XIX, foram marcadas por um intenso movimento político em toda a Europa. São os chamados Movimentos Liberais e Nacionais, que atingiram vários países. Essas chamadas “ondas revolucionárias”  de caráter liberal, democrático e nacional, mobilizaram setores progressistas da burguesia, liberais da classe média, democráticos e socialistas da intelectualidade e do operariado. A Alemanha vivenciou também essas “ondas revolucionárias”, quase sempre esmagadas pelos governos absolutistas e autoritários.

Em 1815 instituiu-se o Congresso de Viena (1) que além de perseguir os adeptos de Revolução Francesa, procurou reerguer o Antigo Regime, reconduzindo aos tronos os governos derrotados por Napoleão Bonaparte.
Nesse novo contexto político, um grande número de alemães que lutaram pela liberdade e pela unidade do seu país durante a expansão do Império Napoleônico, foram obrigados a se refugiarem no estrangeiro. Mas o movimento de alemães que buscavam exílio no exterior, não cessou em 1815. Após a Revolução de 1830, das manifestações de Hambach em 1832, dos acontecimentos de Frankfurt em 1833, das mobilizações populares de 1848, democratas, liberais e revolucionários alemães perseguidos pelo governo se fixam em Paris, Londres e  Bruxelas.

Jacob Venedey
Em Paris, o primeiro passo dos exilados alemães que se estabeleceram naquela cidade, foi a organização de associações que dessem prosseguimento à luta pela liberdade e pela unidade alemã. Surgiu assim a Associação Patriótica Alemã, que em 1834 se transformará na Liga dos Proscritos.

Dirigida por Jacob Venedey, professor da Universidade de Heidelberg, e pelo Dr. Theodor Schuster, ex-catedrático da Universidade de Göttingen, manteve-se como órgão de divulgação dos conceitos de Sismondi e dos utopistas franceses, a revista Der Geächtete sob a responsabilidade de Venedey, que tinha como princípio "a igualdade e solidariedade entre os homens".

No interior da Liga, sobretudo através das páginas de Der Geächtete,  as idéias democráticas e nacionalistas de Venedey, se chocaram com as idéias revolucionárias e internacionalista de Schuster, o que terminou por provocar cisão no grupo de emigrados alemães. Sua conseqüência, foi a formação, em 1836, de uma nova liga, a Liga dos Justos, liderada por Theodor Schuster.

A Liga dos Justos

No ano seguinte à sua criação, Theodor Schuster foi substituído por Wilhelm Weitling que a dirigiu de 1837 a 1844, tendo como colaboradores na direção da Liga: Karl Schapper, George Weissenbach, Karl Hoffmann, Henri Bauer (sapateiro), Joseph Moll (relojoeiro), Hermann Everberck (escritor) e Germann Maurer (professor).
A Liga dos Justos não ficou porém restrita à capital francesa; expandiu-se na Suíça e na Inglaterra, recebendo em cada um desses países, influências diferentes.

Wilhelm Weitling
Na França a Liga adotou as idéias utópicas, conspirativas e igualitaristas de Saint-Simon, Fourier, Babeuf, Blanqui, Cabet e Proudhon. Na Suíça predominou as idéias de Weitling. Já em Londres, apesar da influência de Owen, a Liga terá contato com uma heterogeneidade de idéias, expressas nas trade-unions, no movimento cartista e nas concepções de vários operários fabris e exilados políticos de diversos países europeus.

Por isso mesmo, entre 1843 e 1846,  Londres mais do que em qualquer outro lugar, vivenciou uma efervescência de idéias, provocando a rejeição dos pensamentos igualitário, utópico e conspirativo, difundidos naquela época, o que determinou a afirmação de novos princípios no interior da Liga, dando lugar a uma concepção de revolução como resultado “de um longo processo que combinava propaganda, ação permanente e organização”(2), além de se passar a admitir a necessidade de uma fundamentação científica em torno de uma revolução social, preparando-se “o terreno para uma aproximação com os intelectuais que, por caminhos diversos, buscavam elaborar uma teoria crítica do socialismo” (3).

No seio da Liga do Justos em Londres, começou a amadurecer a idéia da sua reorganização, produto de uma rediscussão do comunismo em novas bases.

Finalmente em 1847 foi convocado um Congresso para os meses de maio e junho que deveria contar com a participação de seguidores daquelas idéias em diversos países.

Em janeiro do mesmo ano, antes portanto da realização do referido Congresso, Joseph Moll, em nome da “Autoridade Central da Liga dos Justos”, inicia seus contatos com a intelectualidade revolucionária espalhada em diversos países, ocasião em que encontra-se com Marx em Bruxelas e Engels em Paris, do que resultará o ingresso de ambos na Liga dos Justos.

É nesse congresso realizado em maio-junho de 1847 em Londres, que é aprovada a conversão da Liga dos Justos em Liga dos Comunistas, na qual Marx e Engels terão papel fundamental. 

Notas

(1) O Congresso de Viena realizou-se na Áustria entre 2 de maio de 1814 e 9 de junho de 1815, e congregou a Áustria, Rússia, Prússia e Reino Unido.
(2) Nogueira, Marco Aurélio. Introdução. In; MARX, Karl, ENGELS, Friedrich. “Manifesto do Partido Comunista”. Petrópolis: Vozes, 1988, p. 11.
(3)  Ibidem, idem, p. 12.