quarta-feira, 14 de março de 2018

Notas sobre capitalismo e socialismo (1)


Por Wladimir Pomar





A atual crise econô­mica, so­cial e po­lí­tica que o Brasil atra­vessa, em grande parte como pro­duto da crise ca­pi­ta­lista global, tende a trazer à tona, cada vez com mais força, a pos­si­bi­li­dade e a ne­ces­si­dade do país e de seu povo evo­luírem para o so­ci­a­lismo como con­dição para sair da crise e evo­luir por um ca­minho mais se­guro. É ver­dade, por outro lado, que as vi­sões das di­versas forças na­ci­o­nais de es­querda a res­peito da for­mação econô­mico-so­cial so­ci­a­lista são ex­tre­ma­mente dís­pares, em grande parte porque também são dís­pares suas in­ter­pre­ta­ções sobre o ca­pi­ta­lismo, assim como sobre o pro­cesso his­tó­rico de evo­lução da so­ci­e­dade bra­si­leira.

Co­me­çando por essa evo­lução é comum, por exemplo, a su­po­sição de que a prin­cipal ca­rac­te­rís­tica ou a prin­cipal pe­cu­li­a­ri­dade do Brasil seria a de­si­gual­dade so­cial ex­trema. No en­tanto, tal de­si­gual­dade tem sido pe­cu­liar a todos os países ca­pi­ta­listas e também aos países que não in­gres­saram nessa for­mação econô­mica e so­cial. Tal de­si­gual­dade (uma uni­ver­sa­li­dade) está se tor­nando ex­tre­mada in­clu­sive nos países ca­pi­ta­listas avan­çados, o que per­mitiu a Thomas Pi­ketty as­se­gurar e de­mons­trar que a ten­dência de au­mento dela se apro­xima dos ní­veis exis­tentes du­rante os anos 1910. 

Talvez o mais apro­priado seja supor que a prin­cipal pe­cu­li­a­ri­dade do Brasil é o mo­delo es­pe­cí­fico de so­ci­e­dade ca­pi­ta­lista que re­sultou de sua evo­lução his­tó­rica. Caio Prado Jr, por exemplo, as­se­gu­rava que “na base e origem da nossa es­tru­tura e or­ga­ni­zação agrária, não en­con­tramos, tal como na Eu­ropa, uma eco­nomia cam­po­nesa, e sim a mesma grande ex­plo­ração rural que se per­pe­tuou desde o início da co­lo­ni­zação bra­si­leira até nossos dias”. Tal “ex­plo­ração rural” teria se adap­tado “ao sis­tema ca­pi­ta­lista de pro­dução”, em­bora de forma não in­tei­ra­mente com­pleta, so­bre­tudo na “subs­ti­tuição do tra­balho es­cravo pelo tra­balho ju­ri­di­ca­mente livre”. 

Assim, os fa­zen­deiros ou la­ti­fun­diá­rios bra­si­leiros te­riam cons­ti­tuído, desde o início, uma bur­guesia. Tal bur­guesia bra­si­leira não teria se for­mado com a in­dus­tri­a­li­zação, no sé­culo 20, nem com a ca­fei­cul­tura flu­mi­nense e pau­lista do sé­culo 19, ou com a pe­cuária, do sé­culo 17, mas com as plan­ta­tions de cana e com os en­ge­nhos de açúcar do sé­culo 16. A co­lo­ni­zação por­tu­guesa do Brasil teria sido mo­ti­vada por in­te­resses ca­pi­ta­listas, con­for­mando uma classe do­mi­nante luso-bra­si­leira com ca­rac­te­rís­ticas bur­guesas, fa­zendo com que a acu­mu­lação ca­pi­ta­lista tenha pre­ce­dido a abo­lição da es­cra­vidão.

Ou seja, em­bora Caio Prado Jr. tenha re­co­nhe­cido que as re­la­ções de tra­balho as­sa­la­riado te­nham sido mar­gi­nais, frente às re­la­ções so­ciais pré-ca­pi­ta­listas pre­va­le­centes, isso não mo­di­ficou em nada sua su­po­sição de que o Brasil ja­mais co­nheceu uma classe do­mi­nante que não fosse bur­guesa, porque o país teria nas­cido de uma ex­plo­ração com ob­je­tivos ca­pi­ta­listas co­mer­ciais. Di­zendo de outro modo, para ele o co­mércio seria a ca­rac­te­rís­tica prin­cipal do ca­pi­ta­lismo, in­de­pen­den­te­mente de ou­tras con­si­de­ra­ções. 

Con­fundiu, por­tanto, o pro­cesso mer­cantil que levou à acu­mu­lação de ca­pital, re­a­li­zado prin­ci­pal­mente pela Es­panha, Por­tugal, Ho­landa, In­gla­terra e França, entre os sé­culos 15 e 17, com o pro­cesso ca­pi­ta­lista de de­sen­vol­vi­mento ma­nu­fa­tu­reiro e in­dus­trial, com base no ca­pital acu­mu­lado e no tra­balho as­sa­la­riado, re­a­li­zado pela In­gla­terra, França, Es­tados Unidos, Ale­manha e Japão, do sé­culo 18 em di­ante. Este pro­cesso ca­pi­ta­lista ca­rac­te­rizou-se não só pela acu­mu­lação de ca­pital, na forma de pro­pri­e­dade pri­vada dos meios de pro­dução, in­cluindo di­nheiro (o que também foi comum nas for­ma­ções so­ciais es­cra­vistas e feu­dais), mas prin­ci­pal­mente pelas re­la­ções so­ciais de pro­dução entre os pro­pri­e­tá­rios dos meios de pro­dução (ca­pi­ta­listas ou bur­guesia) e os tra­ba­lha­dores li­vres (ope­ra­riado, pro­le­ta­riado), ra­di­cal­mente di­fe­rentes das re­la­ções so­ciais es­cra­vistas e feu­dais.

Nas for­ma­ções his­tó­ricas es­cra­vistas e feu­dais, a renda dos es­cra­vo­cratas e dos se­nhores feu­dais pro­vinha da renda fun­diária ge­rada pelo tra­balho dos es­cravos (des­con­tado seu custo de cap­tura e de sus­tento e o custo das fer­ra­mentas) e do tra­balho dos servos (que eram pro­pri­e­tá­rios de seus meios de pro­dução e pa­gavam a renda aos feu­dais na forma de cor­veia e de parte da pro­dução). 

Nessas for­ma­ções his­tó­ricas, os tra­ba­lha­dores não eram li­vres. Os es­cravos eram con­si­de­rados ani­mais fa­lantes, de pro­pri­e­dade dos es­cra­vistas, des­ti­nados a tra­ba­lhos fí­sicos, cuja vida e/ou morte também de­pen­diam do se­nhor. Os servos per­ten­ciam à gleba, de onde não po­diam ser ex­pulsos, mas também de onde não po­diam sair. O mer­cado exis­tente no es­cra­vismo in­cluía tanto a compra e a venda de es­cravos (em geral cap­tu­rados à força), quanto a venda da­quilo que os es­cravos pro­du­ziam (prin­ci­pal­mente mi­ne­rais e pro­dutos agrí­colas). Já no feu­da­lismo, o mer­cado não in­cluía a venda de seres hu­manos. 

No ca­pi­ta­lismo, os tra­ba­lha­dores são for­mal­mente li­vres para vender no mer­cado não a si, mas a sua força de tra­balho, por um tempo de­ter­mi­nado. A renda ca­pi­ta­lista, con­cei­tuada como valor, é oriunda da apro­pri­ação, pelo ca­pi­ta­lista, da par­cela do valor ge­rado pelo tra­ba­lhador as­sa­la­riado du­rante seu tempo de tra­balho no pro­cesso pro­du­tivo, mas não paga pelo ca­pi­ta­lista. Ou seja, o ope­rário re­cebe um sa­lário para tra­ba­lhar um nú­mero de­ter­mi­nado de horas, mas o sa­lário cor­res­ponde apenas a uma par­cela do tempo con­tra­tado, en­quanto o ca­pi­ta­lista se apro­pria da parte não paga, um mais-valor de­no­mi­nado por Marx de mais-valia.   

As re­la­ções de pro­dução são, pois, a base para a con­cei­tu­ação do tipo de so­ci­e­dade im­pe­rante. É in­te­res­sante que a maior parte dos pen­sa­dores (his­to­ri­a­dores, eco­no­mistas etc.) aceita e re­produz tran­qui­la­mente que o Im­pério Ro­mano foi es­cra­vista e que as so­ci­e­dades que re­sul­taram da de­sa­gre­gação desse im­pério na Eu­ropa foram feu­dais. No en­tanto, quando exa­minam as so­ci­e­dades ame­ri­canas re­sul­tantes do pro­cesso mer­cantil de acu­mu­lação do ca­pital du­rante a tran­sição do feu­da­lismo para o ca­pi­ta­lismo eu­ropeu, al­guns se em­ba­ra­lham porque en­xergam no co­mércio com as me­tró­poles sua apa­rente ca­rac­te­rís­tica prin­cipal, dei­xando de lado o exame das re­la­ções de pro­dução re­al­mente exis­tentes.

No Brasil do sé­culo 16, como ad­mite o pró­prio Caio Prado Jr., a re­lação de pro­dução as­sa­la­riada era ex­tre­ma­mente mi­no­ri­tária. O je­suíta An­tonil, em seu Cul­tura e Opu­lência do Brasil, cons­tatou que tal re­lação era pri­vi­légio de um ou dois mes­tres de ofício dos en­ge­nhos em meio a uma massa enorme de tra­ba­lha­dores es­cravos. Va­lério Ar­cary ad­mite que o “Brasil agrário, até me­ados do sé­culo 20, era uma so­ci­e­dade muito de­si­gual e rí­gida”. Em tal so­ci­e­dade teria pre­va­le­cido “uma in­serção so­cial quase he­re­di­tária: os fi­lhos dos sa­pa­teiros, ou dos al­fai­ates, ou dos co­mer­ci­antes, ou dos mé­dicos, en­ge­nheiros, ad­vo­gados her­davam o ne­gócio dos pais. A grande mai­oria do povo não her­dava nada, porque eram os afro­des­cen­dentes do tra­balho es­cravo, pre­do­mi­nan­te­mente, agrário”. 

Por­tanto, “era es­ta­mental porque os cri­té­rios de classe e raça se cru­zavam, for­jando um sis­tema hí­brido de classe e castas que con­ge­lava a mo­bi­li­dade. A as­censão so­cial era so­mente in­di­vi­dual e es­treita. De­pendia, es­sen­ci­al­mente, de re­la­ções de in­fluência, por­tanto, de cli­en­tela e de­pen­dência através de vín­culos pes­soais: o pis­tolão. O cri­tério de se­leção era de tipo pré-ca­pi­ta­lista: o pa­ren­tesco e a con­fi­ança pes­soal”. In­fe­liz­mente, Ar­cary não es­cla­rece as re­la­ções que su­bor­di­navam o povo afro­des­cen­dente “pre­do­mi­nan­te­mente agrário”, que cons­ti­tuiu a mai­oria da po­pu­lação bra­si­leira após o fim do es­cra­vismo, em 1888. 

Di­zendo de outro modo, se muitos acham que a chave de in­ter­pre­tação do Brasil deve ser a de­si­gual­dade so­cial, e que a chave dessa de­si­gual­dade seria a es­cra­vidão, talvez também seja con­ve­ni­ente exa­minar a si­tu­ação do povo afro­des­cen­dente após o final da es­cra­vidão, “pre­do­mi­nan­te­mente agrário”, e dos des­cen­dentes afros e não afros que, da se­gunda me­tade do sé­culo 20 em di­ante, se viram às voltas com um de­sen­vol­vi­mento in­dus­trial e com uma mo­der­ni­zação agrí­cola to­tal­mente di­fe­rentes dos pe­ríodos an­te­ri­ores.

Nesse sen­tido, vale a pena exa­minar os pro­cessos his­tó­ricos de evo­lução e de re­vo­lução do Brasil e dos Es­tados Unidos que co­me­çaram sua his­tória mo­derna de forma si­milar, um como colônia de Por­tugal, na Amé­rica do Sul, e o outro como 13 colô­nias di­versas da In­gla­terra, na Amé­rica do Norte.     


terça-feira, 6 de março de 2018

Marxismo para o Século XXI



Por Ivo Tonet (*)

Introdução


Para a maioria dos intelectuais, Marx não passa, hoje, de um “cachorro morto”. Não por acaso, esses intelectuais abriram mão de qualquer perspectiva revolucionária em relação à ordem atual, se alguma vez acreditaram nela.

Contudo, para aqueles que julgam que é impossível resolver, no interior do capitalismo, os graves problemas que a humanidade enfrenta, a reconstrução da teoria revolucionária é uma das tarefas mais importantes neste momento. E, no interior dela, o resgate do pensamento marxiano ocupa um lugar centralíssimo. Ambas as tarefas têm uma enorme urgência e importância, dado o extravio e a confusão em que se vê enredada a luta anti-capitalista na atualidade. Contudo, nossa intenção, aqui, é de ocupar-nos apenas da questão do pensamento de Marx.

Mesmo no tocante a este, porém, a quantidade e a densidade dos problemas envolvidos é imensa. Nossa intenção, nesse texto, é abordar apenas alguns aspectos dessa problemática.

A primeira questão que, ao nosso ver, se coloca, é esta: qual o sentido deste resgate?  Para alguns, trata-se, apenas, de defender o marxismo dos ataques dos seus adversários e de corrigir eventuais falhas e deformações historicamente situadas. Para outros, levando em consideração as enormes mudanças que o mundo sofreu desde o nascimento do marxismo até hoje, trata-se de estabelecer “o que é vivo e o que é morto” nele, atualizando-o face aos problemas do mundo atual. Para isto, há quem advogue a necessidade de entrecruzá-lo com outras correntes atuais, o que permitiria evitar todo dogmatismo e sectarismo e traria mais produtividade ao próprio marxismo.

Não nos parece que estes sejam os melhores caminhos para a realização dessa tarefa. Com efeito, se partirmos do pressuposto de que o núcleo mais íntimo dessa tarefa é a restituição, ao ideário marxiano, daquele caráter radicalmente crítico e revolucionário, que é a sua marca mais essencial, então nem as interpretações dogmatizantes nem aquelas ecléticas conseguiram atingir esse objetivo. E ambas – por maiores que sejam as suas diferenças – confluem para o mesmo problema: a incapacidade de fundamentar solidamente a superação radical do capitalismo e a construção de uma sociedade comunista.

Parece-nos, porém, que, entre o dogmatismo e o ecletismo, existe um  tertium que pode levar àquele objetivo acima mencionado. Trata-se da compreensão do marxismo como ontologia do ser social. Independente do quantum realizado e dos erros e acertos, acreditamos que esta vertente, cujo expoente maior é G. Lukács, é a que mais contribuiu para resgatar aquele espírito original do pensamento de Marx.

Nesta perspectiva, não se trata só de defesa, de correções, de atualizações e muito menos de entrecruzamento com outras correntes de pensamento. Considerando as variadas interpretações, extravios e deformações que este pensamento sofreu ao longo da sua trajetória, como resultado de todo um processo histórico, impõe-se, hoje, ao nosso ver, a necessidade de recomeçar ab initio, vale dizer, daquelas questões que estabelecem os fundamentos deste novo modo de pensar.

Sabe-se que o pensamento marxiano se configurou como uma clara perspectiva crítica e revolucionária, ou seja, de compreensão da realidade social até a sua raiz e de superação radical da ordem burguesa. E foi precisamente este caráter radical e revolucionário que ele foi perdendo ao longo da sua trajetória. Entre as inúmeras deformações que ele sofreu, está a redução desta radicalidade a mera crítica teórica ou a uma crítica política, quando a questão é muito mais ampla e profunda. Ser radical, como o próprio Marx diz, é ir à raiz. Ora, continua ele, a raiz do homem é o próprio homem. Trata-se, pois, ao nosso ver, de retornar a Marx, não para encontrar o “verdadeiro Marx” – tarefa impossível e sem sentido – mas, para buscar nele os fundamentos para a compreensão do mundo dos homens até a sua raiz, compreensão que, por sua própria natureza, tem um caráter revolucionário.

Defendemos a idéia – aparentemente absurda diante da situação em que se encontra o marxismo hoje – de que Marx realizou uma revolução teórica similar, mutatis mutandis, àquela realizada pelos pensadores modernos dos séculos XVII e XVIII; de que Marx lançou os fundamentos de uma concepção radicalmente nova de mundo e de que, por isso, ele representa o patamar de conhecimento mais elevado que a humanidade produziu até hoje. Fundamentos esses que não têm sua validade limitada a determinado campo específico, mas que permitem abordar qualquer fenômeno social com possibilidades superiores a quaisquer outros instrumentos teóricos.

Para que não pairem dúvidas acerca do sentido de uma afirmação tão contundente e ousada – especialmente em um momento em que tudo parece demonstrar o contrário – esclarecemos que ela se refere apenas aos fundamentos e de modo nenhum ao que Marx realizou a partir deles. Quanto ele mesmo realizou em termos de conhecimento da realidade social, quais os seus acertos e erros, o que tem ou não validade para a análise do mundo de hoje, são questões importantes, mas de outro tipo. Também queremos deixar claro que não se trata de diminuir ou menosprezar as contribuições – muitas vezes enormes – de outros autores. O próprio Marx tinha consciência de que ele só pode fazer o que fez porque subiu nos ombros de outros gigantes. O sentido preciso de nossa afirmação é este: Marx lançou os fundamentos de uma concepção radicalmente nova de fazer ciência e filosofia e, portanto, de compreender o mundo. Isto quer dizer que o fundamento da luta revolucionária está primeiramente na ontologia (natureza do ser social) e só depois na política e na ética.

Vale, então, dizer: qualquer empreitada que pretenda restituir ao pensamento marxiano o seu caráter radicalmente crítico e revolucionário tem que repor-lhe a capacidade de compreender a origem, a natureza e as determinações essenciais do processo de tornar-se homem do homem. Compreensão esta que deve permitir explicar como os homens (e só eles) fazem a história, por que a fizeram deste modo e como poderão superar a atual forma de sociabilidade.

1. O argumento histórico

A pergunta à qual procuraremos responder é a seguinte: o que é que confere ao pensamento de Marx um caráter radicalmente crítico e revolucionário? E que, ao mesmo tempo, o faz constituir-se como uma forma inteiramente nova de fazer ciência e filosofia estabelecendo, portanto, uma ruptura radical com o pensamento anterior?

A resposta a estas perguntas nos obriga a fazer um percurso no qual se articulam, ao mesmo tempo, o momento histórico e o momento teórico-ontológico. Vale dizer, a busca da gênese e da trajetória histórico-social dessas idéias e, ao mesmo tempo, da função que elas exercem na autoconstrução do ser social. Entendemos que a natureza mais profunda de um fenômeno social – neste caso, o pensamento de um autor – aparece tanto mais nitidamente quanto mais se articulem estes dois momentos: o histórico e o teórico-ontológico.

Acreditamos, também, que com este procedimento nos poderemos acercar mais adequadamente daquilo que constitui o fio condutor do pensamento deste autor. Fio condutor que nos permitirá, por sua vez, compreender o conjunto da obra dele sem estabelecer arbitrárias descontinuidades, mas também sem pretender reduzi-la a uma totalidade homogênea.

Compreender-se-á, portanto, melhor a natureza do pensamento de Marx quando se examinarem os traços fundamentais do momento histórico-social que lhe deu origem. Com efeito, Marx viveu e escreveu a sua obra ao longo do século XIX. E é neste século, como resultado de todo um processo que começou com o declínio da Idade Média, que se instaura a forma burguesa de sociabilidade. É neste momento, e como resultado decisivo da revolução industrial, que o ser social chega à sua maturidade. Vale dizer, é neste momento que ele aparece e pode ser percebido como resultado da sua própria atividade e não de forças naturais ou sobrenaturais. Diferentemente de todo o período anterior, em que as determinações naturais ainda tinham um peso decisivo, nesta forma de sociabilidade são claramente as determinações sociais o eixo da reprodução social.

É ao longo deste processo que entram em cena, em momentos e formas diferentes, os dois principais sujeitos desta nova etapa histórica: a classe burguesa e a classe trabalhadora. Tanto um como outro, pela sua própria natureza (entendida como resultado do processo histórico e não como uma determinação metafísica), dão origem a visões de mundo e a perspectivas profundamente diferentes para a humanidade. Este é um pressuposto absolutamente fundamental[1]. Se ele for infirmado, toda argumentação posterior não terá o menor sentido. Contudo, como ele nos parece solidamente estabelecido, continuaremos a desenvolver os nossos argumentos.

Qual é a natureza essencial da classe burguesa? Ela é uma classe que tem sua origem e sua reprodução baseadas na exploração dos trabalhadores e cujo objetivo fundamental é a produção de mercadorias visando ao seu enriquecimento. Daí porque ela é uma classe cujos interesses são necessariamente particulares. Por isso mesmo, o conhecimento da realidade – tanto natural como social – será configurado de forma a tornar possível a consecução daqueles objetivos. O objetivo fundamental é sempre conhecer a realidade, sim, mas apenas na forma, no conteúdo e nos limites que permitam a reprodução desta forma de sociabilidade.

Qual é a natureza da classe trabalhadora? Ela é aquela classe que se origina da venda da força de trabalho e que, pelo processo de extração da mais-valia, é transformada em simples mercadoria e, assim, expropriada da sua humanidade. Os indivíduos pertencentes a esta classe encontram-se numa situação tal que, para poderem realizar-se como seres genuinamente humanos, se vêem obrigados a destruir a sua própria condição de classe e, para isso, a própria sociedade de classes. Daí porque ela é uma classe cujos interesses mais essenciais não são particulares, mas universais. Daí porque ela tem necessidade de um outro tipo de conhecimento, um conhecimento que vá até a raiz das desigualdades sociais, um conhecimento que permita intervir na realidade social de modo a alcançar aqueles objetivos universais.

Não parece existir dúvida de que os grandes pensadores modernos – de modo muito especial Kant – instauraram um novo patamar científico-filosófico. E de que esta instauração se deu em confronto com o modo de pensar greco-medieval.

Mas, para além disso, para nós também não existe dúvida de que – com a autonomia relativa que é própria das elaborações ideativas – os pensadores modernos expressavam – independente do seu grau de consciência – a perspectiva da classe burguesa. Classe esta que, ao mesmo tempo que se formava, também ia assumindo a liderança na luta por uma nova forma de sociabilidade.

Ora, se é válido o raciocínio anterior para a passagem do mundo feudal ao mundo capitalista, por que não seria para a passagem do mundo capitalista ao mundo comunista? A grande diferença – de larguíssimas conseqüências – é que a primeira já se realizou e, portanto, a perspectiva burguesa mostrou a sua superioridade sobre a anterior, ao passo que a segunda ainda é apenas uma possibilidade. O que nos permite dizer que, se algum dia a humanidade viver numa forma comunista de sociabilidade, a superioridade desta última – tomada de modo geral – se evidenciará de modo tão claro como se evidencia a da perspectiva burguesa sobre a feudal.

O pressuposto dessas afirmações é que as idéias são sempre mediações – ainda que indiretas – para o conhecimento e a intervenção na realidade. Ora, é claro que, numa sociedade de classes, as classes dominantes buscarão compreender a realidade e orientar a intervenção nela de modo a favorecer os seus interesse que, não esqueçamos, são sempre apresentados como interesses universais. Não se trata de querer ou não. Trata-se de uma necessidade inescapável. Isto acontece até, embora de forma muito diferente, com relação ao conhecimento da natureza. Quanto mais em relação ao conhecimento da sociedade! Afinal, como bem disse Marx “As idéias dominantes são as idéias das classes dominantes”.

Contudo, não há nenhum argumento conclusivo que demonstre que a passagem do capitalismo ao comunismo é impossível. Argumentando ad hominem, em boa lógica popperiana, a afirmação de que o comunismo é impossível é uma afirmação não falsificável, o que lhe retira qualquer caráter científico e traduz muito mais o desejo da burguesia. O fracasso das tentativas até agora feitas apenas prova que aquele não era o caminho, mas não a impossibilidade de atingir tal objetivo. Isto é boa lógica!

O que nós afirmamos é que, no século XIX, a classe trabalhadora, por sua própria – e histórica – natureza, estabelecia as bases para uma outra forma de sociabilidade: a sociabilidade comunista. Com ela comparecia a possibilidade de compreender a realidade social até a sua raiz mais profunda, vale dizer, até a ação humana como responsável última e única e, ao mesmo tempo, de superação da sociabilidade capitalista. Abria-se, assim, uma nova e superior perspectiva para a humanidade.

Ora, nossa tese é de que, assim como os pensadores modernos expressaram a perspectiva cujas bases materiais foram postas pela classe burguesa, do mesmo modo, Marx (e outros pensadores) lançou os fundamentos teóricos da perspectiva cuja matriz material encontrava seu núcleo na classe trabalhadora. Mas, valha enfatizar: Marx não criou uma nova doutrina; não concebeu especulativamente uma nova forma de sociabilidade. Ele apenas (e este apenas em nada diminui a grandeza do seu feito) reproduziu intelectualmente aquilo que estava acontecendo no próprio processo real. Não inventou, não imaginou, não especulou. Apenas traduziu, no nível das idéias, aquilo que se passava no mundo real. E ele tinha consciência disto.

É a classe trabalhadora, por sua própria natureza, que expressa, como já vimos, a possibilidade e a exigência de superação do capitalismo. É na análise da sociabilidade regida pelo capital que Marx encontra as possibilidades de sua superação, as balizas que deverão fundamentar essa superação e o sujeito decisivo dessa tarefa. Nada disto confere validade a tudo o que Marx escreveu. Apenas expressa o fato de que ele, ao examinar o processo real, lançou as bases para uma nova forma de fazer ciência e filosofia e de intervir no mundo, trazendo, assim, à tona a possibilidade de uma nova e superior forma de sociabilidade.

O que assistimos, desde o século XIX até os dias de hoje, é o embate, teórico e prático, entres estas duas grandes perspectivas. Com altos e baixos, mas, infelizmente, com sucessivas derrotas para a perspectiva da classe trabalhadora. Derrotas tão significativas, algumas já sucedidas ainda em vida de Marx, que levaram a inúmeras alterações, “correções”, deformações e extravios da teoria por ele formulada, não só por parte dos ideólogos burgueses – o que é plenamente compreensível – mas até por parte da maioria dos que se proclamavam seus seguidores.

2. O argumento teórico

Quais são, então, os elementos essenciais, que caracterizam a perspectiva marxiana e a demarcam como um patamar radicalmente novo de filosofia e cientificidade? Em síntese, podemos dizer que o núcleo mais essencial se encontra na demonstração da radical historicidade e socialidade do mundo dos homens e na identificação da correta articulação entre subjetividade e objetividade. Por que isso e como essa demonstração é feita, veremos a seguir.

Os desdobramentos destas bases estabelecidas por Marx são imensos, como procuraremos mostrar a seguir. Por outro lado, o caminho percorrido para o lançamento destas bases também foi complexo e acidentado. Por isso, queremos delimitar claramente o nosso propósito: pretendemos aludir apenas ao núcleo essencial destas questões e não ao enorme complexo de problemas que elas envolvem.

Compreenderemos melhor esta problemática se recorrermos de novo à comparação entre as várias perspectivas: greco-medieval, moderna e marxiana. Partimos do pressuposto de que todo conhecimento acerca da realidade implica – explícita ou implicitamente – uma prévia e determinada concepção acerca da própria realidade. Vale dizer, que uma teoria do ser precede uma teoria do conhecer.

Sem entrarmos em detalhes, é sabido que os gregos e medievais – não obstante as inúmeras e profundas diferenças – tinham uma concepção a-histórica acerca da realidade. Pare eles, o mundo – natural e social – possuía uma ordem e uma hierarquia definidas e essencialmente imutáveis. Tanto o mundo natural como o mundo social não eram vistos como históricos e, muito menos, como resultado da atividade humana. Por isso mesmo, diante dessa realidade infensa à intervenção humana, o pensamento e a atividade do homem tinham um caráter marcadamente contemplativo e passivo. Por outro lado, sua concepção de mundo era essencialmente dualista. Espírito e matéria, consciência e realidade objetiva, subjetividade e objetividade, apresentavam-se como elementos mutuamente irredutíveis, cuja articulação nunca obtinha resultados satisfatórios. Donde se seguia que era impossível resolver adequadamente as relações entre liberdade e necessidade, teoria e prática, ação e estrutura, subjetividade e objetividade.

As mudanças, materiais e espirituais, que deram origem ao mundo moderno, alteraram profundamente toda essa forma de pensar.

As enormes e profundas transformações, que aconteceram na passagem do feudalismo ao capitalismo, e sua cada vez mais clara conexão com a atividade humana, tiveram como conseqüência a elaboração de uma concepção de mundo marcadamente histórica e social.

Contudo, e isto é freqüentemente esquecido, esta concepção não era radicalmente histórica e social. Nem poderia ser. O ser social ainda estava em vias de amadurecimento, o que significava que a sua carga de naturalidade ainda era muito forte. Deste modo, o mundo social era visto como histórico e social, mas não radicalmente histórico e social. Sua origem, em relação à natureza, fazia com que ele conservasse um núcleo essencialmente não histórico e não social, expresso na idéia de uma igual natureza humana dos indivíduos anterior à sua interação social.

Estabelecia-se, deste modo, uma dualidade entre elementos histórico-sociais e elementos não-histórico-sociais. Como expressão daquela natureza humana essencialmente imutável, a economia seria governada por leis em tudo semelhantes às leis da natureza. Nenhuma ação humana poderia alterá-las, pois elas pertenciam à essência do ser social. A historicidade e a socialidade manifestavam-se no fato de que os homens podiam estabelecer os limites – jurídicos, políticos, morais, etc – dentro dos quais aquela natureza podia ter livre desenvolvimento. Sabe-se que o egoísmo proprietário era identificado como esta marca essencial da natureza humana.

Como conseqüência disto, a relação entre subjetividade e objetividade continuava problemática. É sintomática disto a ênfase desmesurada no poder da razão, da conscientização, da educação na construção progressiva de um mundo cada vez mais humano.

É preciso, porém, fazer alusão a uma diferença fundamental entre as concepções greco-medieval e moderna. Trata-se do deslocamento que se operou de uma impostação ontológica – característica da primeira – para uma impostação gnosiológica – que marca a segunda. Para a concepção greco-medieval, uma teoria geral do ser (ontologia) era uma condição prévia indispensável à resolução das questões relativas ao conhecimento. Para posterior comparação com a posição marxiana, é importante salientar o caráter metafísico da perspectiva greco-medieval.

Para a concepção moderna, ao contrário, uma teoria do conhecer era a condição primeira para a resolução das outras questões. Sintomático disto é que praticamente todos os grandes pensadores modernos iniciam seu trabalho abordando os fundamentos do conhecimento.
De um lado, portanto, temos a centralidade da objetividade e, de outro, a centralidade da subjetividade, com todas as conseqüências, em ambos os casos.

Marx supera as unilateralidades e deficiências destas duas perspectivas, demonstrando, de um lado, a radical historicidade e socialidade do ser social e, de outro, o modo como se articulam subjetividade e objetividade em uma síntese geradora da realidade social.

Tanto para os greco-medievais como para os modernos, o mundo dos homens não era, na sua integralidade, obra dos próprios homens. O caráter metafísico e a-histórico da posição dos primeiros é suficientemente conhecido. Quanto aos segundos, embora tenham sido eles, por primeiro, a acentuar a historicidade da história humana, deixaram subsistir um núcleo essencial que se encontrava fora do alcance da ação dos homens. Tratava-se da idéia de uma natureza humana de caráter egoísta, que precederia a interação social dos homens. E, como a economia era a expressão mais própria dessa natureza, ela, em suas determinações essenciais, seria regida por leis não sociais, mas naturais.

Ora, Marx demonstra que a realidade social, em sua absoluta integralidade e não obstante sua insuprimível articulação com a natureza, é in totum obra dos próprios homens. A demonstração disto, que aqui apenas resumiremos, parte da restituição à objetividade do seu caráter central, mas reformulando profundamente esta noção.

As bases dessa empreitada começam a ser lançadas quando Marx descobre que o trabalho é o fundamento ontológico do ser social. Esta é a pedra-de-toque do pensamento marxiano. Se ela for removida, todo o edifício virá abaixo. É a partir do exame dessa categoria que a práxis aparece como a categoria nuclear de toda a sua elaboração e que o processo de autoconstrução humana se torna o fio condutor de sua construção teórica.

Para Marx, a raiz do homem é o próprio homem e o ato que funda o homem, o ato ontológico-primário, é o ato do trabalho. Constatado isso, trata-se, então, para ele, de investigar o processo de tornar-se homem do homem, em suas múltiplas dimensões, mas matrizado pelo trabalho. Compreende-se, assim, porque ele deixou de lado a investigação filosófica direta para concentrar-se na forma concreta do trabalho naquele momento histórico. Mas, já aqui aparece a forma caracterizadora desta nova maneira de fazer ciência e filosofia. Somente após ter colocado as balizas filosóficas mais gerais (uma ontologia do ser social) e sem nunca deixá-las de lado, ele podia dedicar-se à investigação da matriz econômica sem cair no risco de desistoricizar ou fetichizar as categorias econômicas. Todas elas serão sempre vistas como momentos do processo de autoconstrução humana, como objetivações do próprio homem.

Examinando, então, o ato do trabalho, Marx constata que ele é um intercambio entre o homem e a natureza, através do qual o homem transforma esta última, adequando-a à satisfação das suas necessidades. Ressalta, contudo, que, ao transformar a natureza, o homem também se transforma a si mesmo. O ato do trabalho, por sua vez, é o resultado da síntese de dois elementos essenciais: a prévia-ideação e a realidade natural objetiva. A mediação entre estes dois elementos será constituída pela categoria da práxis.

Disto decorre, para Marx, que o trabalho é o ato a partir do qual o homem se cria a si mesmo, o ato que estabelece uma ruptura com o ser natural e dá origem ao ser social. Estabelecido este salto constituidor de um novo tipo de ser, todo o restante da história nada mais será do que o processo de tornar-se cada vez mais social do ser social.

São essas constatações a respeito da natureza do trabalho e da sua posição na estrutura do ser social que permitem a Marx demonstrar a radical historicidade e a radical socialidade do mundo dos homens. É isso, também, que lhe permite encontrar o modo como se articulam subjetividade e objetividade, superando o dualismo tradicional sem perder a especificidade de cada uma destas categorias.

Se, de fato, o trabalho é o ato ontológico fundante do ser social, então fica claro que nada há neste ser que seja imutável. Não obstante a insuprimível e eterna conexão do homem com a natureza, a historicização do ser social é radical. O que significa que se torna inviável a existência de qualquer tipo imutável de essência. Está, assim, infirmada, pela raiz, a idéia de um núcleo imutável da natureza humana (o egoísmo).

Fica claro, também, que a realidade social é, na sua integralidade, resultado da atividade social humana. Independente do quantum de consciência tenha disto e dos resultados alcançados, o homem se faz integralmente a si mesmo. Pode-se dizer, com os devidos cuidados, que a unidade mínima do processo social são os atos singulares dos indivíduos (ainda assim, sempre atos de caráter social). É a partir deles, individual ou coletivamente realizados, que se objetivam os campos, as forças, as instituições e as tendências histórico-sociais.

O exame da categoria do trabalho também permite perceber que subjetividade e objetividade não são duas categorias excludentes e irredutíveis. Certamente, a objetividade natural existia antes do homem. Não, porém, a objetividade social. No âmbito do ser social, subjetividade e objetividade têm o mesmo estatuto ontológico (quer dizer, a consciência não é um mero epifenômeno da realidade objetiva) e se constroem em determinação recíproca. Pode-se, com tranqüilidade, afirmar que espírito e matéria (social), consciência e realidade objetiva, subjetividade e objetividade engendram-se mutuamente. Eis porque seria absurdo afirmar simplesmente tanto que o homem é produto das circunstâncias, quanto que a realidade objetiva é produto das idéias (que o mundo é como nós o percebemos). Materialismo mecanicista e idealismo estão superados pela raiz quando Marx afirma que se é verdade que as circunstâncias fazem os homens, também é verdade que são os homens que fazem as circunstâncias.

Ora, se a realidade social, na sua integralidade, é obra dos próprios homens, está cortada, pela raiz, toda possibilidade de perenização de qualquer ordem social. E, por outro lado, se subjetividade e objetividade são dois momentos que se engendram mutuamente, que se determinam mutuamente, que têm o mesmo estatuto no plano do ser, que, não obstante suas diferenças, constituem uma unidade indissolúvel de cuja síntese resulta o ser social, então está fechada a brecha existente entre estas duas categorias, estão superadas as unilateralidades e deficiências das perspectivas greco-medieval e moderna.

Convém, porém, notar que essa historicização e socialização radical do ser social não teria sido possível sem a historicização e socialização do conceito de essência. A grande maioria dos marxistas considerou esse conceito um resquício metafísico, do qual Marx se teria desfeito na sua obra de maturidade. Contudo, ele aparece também em obras deste período, como os Grundrisse e O Capital. Marx fala freqüentemente em essência e fenômeno. O que significa que admite a existência efetiva da essência e que considera estas duas categorias como categorias diferentes. Dado o caráter radicalmente histórico do ser social, elas também teriam que ser necessariamente históricas. Além do mais, segundo ele, do ponto de vista ontológico, não há distinção entre essência e fenômeno. Ambas são categorias do ser. Sua distinção, então, como mostra Lukács na sua Ontologia do ser social, só poderia estar baseada na unidade/multiplicidade e na permanência/mudança.

É o que se pode verificar no exame do processo histórico. Os atos singulares humanos vão dando origem a certas determinações de caráter universal que se caracterizam por um grau maior de unidade e de permanência, embora nunca absolutas. Estas determinações, por sua vez, se manifestam sob uma enorme multiplicidade de formas e sofrem transformações muitíssimo mais rápidas. Temos, então, uma essência humana, cujo nível de unidade e de permanência é maior do que o dos fenômenos. Contudo, por ser resultado de atos sempre diferentes, ela não poderia ser imutável. Ela é apenas mais idêntica a si mesma, mais permanente e mais una do que os fenômenos sob cujas formas se manifesta.

Contudo, embora o trabalho seja o fundamento ontológico do ser social, este não se resume àquele. Com a complexificação da realidade social, surgem novas necessidades e novos problemas, que não poderiam ser enfrentados no âmbito do próprio trabalho. É a partir disto que surgem novas dimensões sociais, tais como direito, política, arte, ciência, religião, educação, etc., cada qual com uma natureza e funções específicas para a resolução destas novas questões.  Natureza e funções que só poderiam cumprir se tivessem uma autonomia (sempre relativa) com relação à matriz que lhes deu origem. Daí dizermos que elas têm uma dependência ontológica e uma autonomia relativa em relação à matriz fundante que é o trabalho.

Deste modo, o ser social vai se constituindo como um “complexo de complexos”, vale dizer, um conjunto articulado de categorias, em processo, tendo sempre como matriz fundante o trabalho. Daí porque a categoria da totalidade é absolutamente central no pensamento marxiano. Partindo do trabalho – matriz fundante- um fio condutor percorre – através de inúmeras mediações – o conjunto do processo de entificação humana, conferindo-lhe uma determinada lógica. De modo que, mesmo quando se constata a intensa fragmentação da realidade social – como no caso da sociabilidade capitalista – ainda assim, para além das aparências, há uma lógica que rege esta fragmentação e a raiz dela só pode ser encontrada no trabalho.

A partir desses pressupostos ontológicos, também toda a problemática relativa ao conhecimento científico ganha uma abordagem inteiramente nova. A resposta às questões epistemológicas, tais como: qual a natureza essencial da ciência; o que são o objeto e o sujeito do conhecimento e qual a relação entre eles; o que é a verdade e quais os critérios para defini-la; quais as possibilidades e os limites da razão; o que é o método científico; qual a relação entre juízos de fato e juízos de valor, sempre terão um equacionamento de caráter ontológico-prático, vale dizer, a partir da integralidade do processo histórico-social e não de caráter formalista, como é o caso das respostas que partem da perspectiva subjetivista moderna.

A extrema e essencial novidade da concepção marxiana se manifesta, a converso, nos próprios mal-entendidos e interpretações a respeito dela. Marx era ora enquadrado como economista, ora como sociólogo, ora como historiador, ora como filósofo. Mas, permanecia sempre um corpo estranho no interior do pensamento moderno. Nisso é canônica a interpretação que dele faz K. Popper, especialmente em sua obra A sociedade aberta e seus inimigos. Do mesmo modo, era e continua a ser enorme a dificuldade de caracterizar o estatuto científico da sua obra. E esta dificuldade foi partilhada até por muitos seguidores de Marx. Lembre-se o que disse Kautski (apud Löwy, 1987: 114): Não há dúvida de que O Capital seria uma obra ainda mais imparcial e científica, se o autor houvesse somado a seu gênio e rigor e a seu amor à verdade a bela qualidade de se situar acima de todas as lutas e contradições de classes... Como se sabe, a neutralidade científica, com tudo o que ela implica e acarreta, é marca essencial da concepção moderna da ciência.

Aplicar à cientificidade marxiana os parâmetros próprios da cientificidade moderna, seria, mutatis mutandis, o mesmo que querer avaliar esta última a partir dos parâmetros do saber greco-medieval. Segundo os parâmetros da cientificidade moderna, a obra marxiana carece, necessariamente, de valor científico. Entre outras coisas porque não faz a devida separação entre juízos de fato e juízos de valor. Ora, para Marx, é exatamente essa não separação que garante o caráter científico do seu pensamento.

Caracterizando a cientificidade moderna, diz José Paulo Netto (1989: 143):

Mesmo correndo o risco de excessiva esquematização, creio que no âmbito do racionalismo contemporâneo, há duas posições fundamentais em face do processo de conhecimento do social. A primeira – que possui inequívocas raízes na tradição neokantiana – concebe a análise dos fenômenos a partir de sua expressão empírica, como um andamento intelectivo, que conduz à formulação lógico-abstrata (universal) de um modelo ou paradigma compreensivo dos processos que eles sinalizam, das suas tendências e regularidades.  (...). A resultante da elaboração teórica, o produto teórico por excelência, é um modelo que a razão elabora e cria a partir do objeto empiricamente dado.

Ao contrário, ainda segundo ele,

A segunda posição – que me parece própria da vertente crítico-dialética -  também arranca da expressão empírica para apanhar a processualidade que a dissolve e resolve, na busca de suas tendências e regularidades; (...) A reflexão teórica, nesta ótica, não “constrói” um objeto: ela reconstrói o processo do objeto historicamente dado. A resultante da elaboração teórica, o produto teórico por excelência, é uma reprodução ideal de um processo real.

No limite, dados os pressupostos ancorados na subjetividade, a cientificidade moderna, embora permita ganhos parciais de conhecimento, vê-se interditada a possibilidade de compreender a realidade social como totalidade (categoria da qual abriu mão) atendo-se tão somente ao que é fenomênico e fragmentário. Do mesmo modo, vê-se impossibilitada de compreender a realidade social até a sua máxima profundidade uma vez que, por princípio, já eliminou a categoria da essência. O que se viu, de Kant para cá, é, de fato, a progressiva eliminação dessa categoria, limitando-se o conhecimento científico a operar sobre o universo fenomênico.

Como conseqüência, a concepção moderna de ciência, até hoje largamente dominante, exatamente por operar apenas sobre o mundo fenomênico, chega a um dilema do qual é incapaz de se livrar. Ou produz um conhecimento que apenas contribui para a reprodução desta forma de sociabilidade ou, quando se pretende crítica, é incapaz de ultrapassar o círculo estreito da denúncia ou do humanismo abstrato.

Ao contrário, a ciência marxiana, de caráter ontológico, produz, necessariamente, um conhecimento de caráter revolucionário, vale dizer, um conhecimento que, ao apanhar o objeto na sua integralidade (essência/fenômeno, totalidade), evidencia, ao mesmo tempo, as tendências mais profundas que se configuram no seu interior e, entre elas, a possibilidade de superação dessa forma particular em direção a uma forma superior.

À guisa de conclusão

Apreender a realidade social como algo que é integralmente resultado da atividade social dos próprios homens, ainda quando se lhes opõe como um poder hostil (alienação); compreendê-la como uma totalidade de partes, articuladas, em processo, cuja matriz fundante é o trabalho; nunca perder de vista que qualquer fenômeno social é sempre o resultado da interação entre subjetividade e objetividade; ao fazer ciência, partir dos dados imediatos, mas dissolvê-los, buscando a lógica mais profunda da qual eles são uma manifestação e, com isso, fazer emergir a possibilidade de superação de sua forma atual. É isto que caracteriza o novo patamar filosófico-científico instaurado por Marx. E é esta forma de fazer ciência e filosofia que deve ser resgatada se se quer um instrumento teórico adequado às enormes tarefas que a classe trabalhadora tem pela frente com o objetivo de superar o capitalismo e construir uma autêntica comunidade humana.

Sem deixar de reconhecer os grandes ganhos obtidos pela cientificidade moderna, especialmente no âmbito da ciência da natureza, mas também na ciência do social, é preciso deixar bem clara a diferença entre estes dois patamares e a superioridade da perspectiva marxiana – quando ontologicamente configurada – sobre a perspectiva moderna. Por esse motivo, reafirmamos a nossa idéia central: se o objetivo é obter um conhecimento da realidade social capaz de orientar a sua transformação radical, então, após Marx, não é mais possível fazer filosofia e ciência do mesmo modo como se fazia antes dele e como se continua fazendo na trilha aberta pela perspectiva moderna.
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[1] Infelizmente, a história das idéias tem sido, de modo predominante, uma história centrada nos indivíduos, com uma relação apenas circunstancial com as classes sociais. A pretexto de evitar uma relação mecânica entre idéias e a realidade objetiva – especialmente a das classes sociais – concede-se às idéias uma autonomia que, na realidade elas não têm. Contudo, entre uma autonomia absoluta e uma dependência direta e mecânica, existe a autêntica relação entre estes dois elementos: uma dependência ontológica das idéias em relação à realidade objetiva e uma autonomia relativa

Referências Bibliográficas

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(*) Professor do Dep. de Filosofia da Universidade Federal de Alagoas