quinta-feira, 25 de julho de 2019

Sonho americano, versão socialista



Cresce entusiasmo de setores da sociedade — especialmente a juventude — diante uma candidatura à esquerda. Imaginário não remete mais às antigas demandas da classe operária amontoada nas fábricas. Por que só agora, depois de tanta resistência?



O Senador Bernie Sanders - Foto: Reuters


Por Edward Castleton, no Le Monde Diplomatique


Em entrevista recente na CNBC (6 maio 2019), Bill Gates insinuou que o entusiasmo suscitado por personalidades políticas como o senador Bernie Sanders e a deputada por Nova York Alexandria Ocasio-Cortez, que defendem ideias “socialistas” no seio do Partido Democrata, não o assusta de modo algum. A concepção que eles têm do socialismo exprimiria, segundo Gates, o desejo (compreensível), por parte de alguns de seus concidadãos, de aumentar os impostos, mas não a vontade de abolir o capitalismo como tal. Ora, Gates se diz adepto de uma maior progressividade do imposto e de um aumento das taxas sobre heranças, reduzidas a quase nada pelo presidente Donald Trump, ele também bilionário.

E ele não é o único a pensar assim. Warren Buffett declarou que, proporcionalmente, pagava menos imposto que sua empregada ou seu mordomo. Essa mistura de inquietação e filantropia distingue os bilionários norte-americanos dos ricos romanos da época de Santo Agostinho, os quais, seduzidos pelo além que lhes prometia o cristianismo, se convertiam à nova religião esperando conservar sua fortuna após a morte…

As recentes declarações de Gates não são apenas um alarde de boas intenções, mas exprimem também um contexto mais geral e mais radical. Sem dúvida, com seus aliados políticos, Sanders e Ocasio-Cortez, mesmo se proclamando “socialistas democratas” (ver artigo virando a página), não exigem a nacionalização de setores-chave da economia. O entusiasmo suscitado pela campanha de Sanders nas primárias democratas de 2016 deveu-se sobretudo à denúncia das taxas astronômicas das matrículas nas universidades norte-americanas e das despesas médicas igualmente extravagantes que o sistema de saúde nos Estados Unidos favorece. Se o primeiro tema é uma preocupação constante das classes médias, zelosas do futuro dos filhos (e inquietas com seu endividamento após a obtenção do diploma), o custo proibitivo da assistência médica deixa angustiadas todas as categorias sociais, com exceção das grandes fortunas do país.

Nenhum desses dois temas remete ao “socialismo” de outrora, mais facilmente associado a imagens de operários trabalhando e fábricas transbordando de atividade. Pelo visto, o que se entende por “socialismo” mudou muito na era do Antropoceno e das crises ecológicas. Os militantes que gravitam em torno de Sanders não idealizam as fábricas de chaminés fumegantes nem resumem suas esperanças à perspectiva do pleno emprego ou da independência energética, que poderiam favorecer a exploração do gás de xisto e a reabertura das minas de carvão – preconizadas por Donald Trump e seus aliados protecionistas, ansiosos por repatriar suas cadeias de produção.

Alguns ecos dessas reivindicações socialistas contemporâneas são perceptíveis em outros setores do Partido Democrata: por exemplo, quando a senadora Elizabeth Warren, candidata nas primárias para a eleição presidencial de 2020, propõe que os assalariados tomem assento, em grande número, nos conselhos de administração das grandes empresas. Mesmo candidatos mais moderados que Bernie Sanders ou Elizabeth Warren, como Pete Buttigieg, justificaram a popularidade atual do “socialismo” ao reconhecer que “o capitalismo desenganou muita gente”.1 De fato, os eleitores democratas têm hoje uma visão mais positiva do “socialismo” que do capitalismo (57% contra 47%). Este continua favorito para a maioria da população, mas numa proporção (56% contra 37% de opiniões desfavoráveis) nada habitual na história norte-americana2 – a ponto de a quase inexistência de proposta política socialista nos Estados Unidos ser considerada há muito tempo, por sociólogos e historiadores, como constitutiva da “exceção norte-americana”.

Numa série de trabalhos que se tornaram leitura obrigatória para muitos estudiosos das ciências sociais, o cientista político conservador Seymour Martin Lipset (1922-2006) tentou explicar por que o socialismo conseguiu se enraizar praticamente na Europa inteira, mas nunca nos Estados Unidos. A seu ver, essa peculiaridade se deve a quatro fatores principais: a natureza do sistema político norte-americano (a hegemonia de dois partidos, um só turno para as eleições presidenciais, um colégio eleitoral que privilegia o voto dos estados e o sufrágio universal indireto etc.); uma classe operária heterogênea (fruto das vagas sucessivas de imigração); a ausência histórica de alianças sólidas e duradouras entre os partidos políticos e os sindicatos; e, finalmente, o apego “cultural” a valores individualistas opostos às ideias socialistas.3

As análises de Lipset retomavam as do sociólogo alemão Werner Sombart, amigo de Max Weber e autor, em 1906, de um estudo hoje clássico [Pourquoi le socialisme n’existe-t-il-pas aux États-Unis? (Por que o socialismo não existe nos Estados Unidos?)].4 Bom conhecedor dos textos econômicos de Karl Marx e simpatizante do Partido Social-Democrata alemão, Sombart se interessou pelas formas que a modernidade assumiu nas sociedades capitalistas. Concluiu então que, embora a sociedade norte-americana fosse sem dúvida aquela em que o capitalismo aparecia da maneira mais crua, ela era, diferentemente das sociedades europeias da mesma época, avessa ao socialismo por razões em grande parte ligadas ao aburguesamento de sua classe operária. Segundo ele, os trabalhadores não se opunham nem ao capitalismo nem a seu governo, acomodando-se a um sistema político majoritário que favorecia alternadamente o monopólio de dois partidos. Mais ricos que seus colegas europeus, tinham também mais chances de se libertar de sua condição social graças ao trabalho.

Na passagem mais famosa do livro, Sombart escreve: “À medida que a situação material do assalariado melhorava e seu modo de vida ganhava em conforto, ele se deixava tentar pela depravação materialista. Via-se cada vez mais constrangido a gostar do sistema econômico que lhe oferecia todos esses prazeres; aos poucos, adaptava seu espírito aos mecanismos da economia capitalista, para finalmente sucumbir aos encantos que a rapidez das mudanças e o aumento considerável das quantidades mensuráveis exercem de maneira irresistível sobre quase todas as pessoas. Uma pontinha de patriotismo – o orgulho de saber que os Estados Unidos ultrapassavam todos os outros povos no caminho do ‘progresso’ (capitalista) – reforçava na base seu espírito comerciante, transformando-o em empresário sóbrio, calculista e desprovido de ideais, tal como o conhecemos hoje. Assim, todas as utopias socialistas fracassavam diante do rosbife e da torta de maçã”. À mobilidade social, que punha obstáculo ao enraizamento do socialismo nos Estados Unidos, acrescentava-se a mobilidade geográfica. A existência de uma fronteira sempre aberta e de terras disponíveis e baratas permitia aos insatisfeitos com o trabalho industrial esperar concretizar o “sonho norte-americano” do produtor autônomo, do proprietário individual.

Segundo Sombart, os trabalhadores norte-americanos, pelo fato de quererem se libertar de sua classe, não concebem a ideia de que esta possa acompanhá-los em sua ascensão social; raciocinam em termos de progresso individual, não de ação coletiva. Os sucessores do sociólogo alemão, como Lipset, insistiram muitas vezes no papel que a imigração possa ter desempenhado ao tornar ainda mais difícil a constituição de uma classe operária militante. Os trabalhadores estrangeiros que chegaram aos Estados Unidos no começo do século XX julgavam sua situação temporária. O objetivo deles era enriquecer rapidamente e voltar a seu país de origem. A grande imigração dessa época também tornou mais difícil uma aliança entre os operários qualificados da indústria (a maior parte nascida nos Estados Unidos), que tendiam a se sindicalizar, e os não qualificados (majoritariamente imigrantes), bem mais dispostos a aceitar condições de trabalho deploráveis. Enfim, a experiência comunitária dos imigrantes nas grandes cidades reforçava mais sua identidade étnica que sua identidade de classe.

Redefinir a classe operária

Sombart observava também que o grau mais elevado de integração cívica, obstáculo ao desenvolvimento de uma consciência de classe, se explicava pela inscrição do princípio da soberania popular na Constituição, pela abolição do sufrágio censitário e pelo direito de voto concedido à população masculina e branca a partir dos anos 1920. O cientista político Louis Hartz, de seu lado, postulou que a fraca consciência de classe dos norte-americanos se devia a uma dupla ausência: a de uma ordem social estruturada pelas corporações de ofício em um período feudal anterior e a da experiência de uma revolução social burguesa.5 Recorrendo a uma fórmula frequentemente citada, um contemporâneo de Hartz, o historiador Richard Hofstadter, concluiu que a América, em lugar de possuir ideologias, é sua própria ideologia.6

Contudo, entre a publicação do livro de Sombart e o armistício da Primeira Guerra Mundial, o país contou com um Partido Socialista poderoso, durante muito tempo encarnado por Eugene Victor Debs. Em 1910, o número de socialistas eleitos nos Estados Unidos era maior que o de trabalhadores eleitos no Reino Unido. Em 1912, os socialistas controlavam as cidades de Milwaukee (Wisconsin), Flint (Michigan), Schenectady (Nova York) e Berkeley (Califórnia). No mesmo ano, Debs conseguia 6% dos votos na eleição presidencial, enquanto seu partido acumulava números lisonjeiros, não apenas em estados como Wisconsin (com forte população de operários imigrantes alemães, já sensíveis à causa da social-democracia) e Nova York (onde viviam muitos judeus recém-chegados de origem russo-polonesa), mas também em alguns estados rurais do sul (Oklahoma, Arkansas, Texas e Luisiana).

Todavia, esses primeiros sucessos não tiveram futuro. Após a entrada dos Estados Unidos na guerra, em 1917, Debs e a maior parte dos dirigentes socialistas que a ela se opunham foram presos. A Revolução Russa exacerbou as tensões no seio de um partido já debilitado pela repressão, pois o socialismo da maioria de seus adeptos lançava raízes mais no evangelismo cristão e na crítica populista dos monopólios que nas obras de Marx e Lenin.

Vários observadores aventaram que o sucesso de Sanders em 2016, bem como sua popularidade atual, se explica pelo fato de ele atuar politicamente dentro de um partido já consolidado, com a esperança de mudá-lo para que se torne veículo de outras ideias, menos tributárias dos anseios e do financiamento das grandes empresas. Nem o ecologista independente Ralph Nader nem o socialista Debs influíram tanto na eleição presidencial. Mas o mais importante é, talvez, que em uma sociedade marcada pela inconsciência de classe das categorias populares o aburguesamento identificado por Sombart como um obstáculo ao socialismo nos Estados Unidos não seja mais tão consistente. Com o desaparecimento da mobilidade social nos últimos quarenta anos, a “vacina” contra o socialismo se tornou inócua.

Lipset, de seu lado, imaginava que a exceção norte-americana fosse desaparecer com a virada liberal dos partidos de esquerda europeus, os quais, à força de privatizar suas infraestruturas, acabariam por se parecer com o Partido Democrata de Bill Clinton. Ele não podia adivinhar que novas gerações de norte-americanos se descobririam socialistas nem que militantes democratas se aproximariam de Sanders quando se sentissem desprezados por um partido que, sob a presidência de Barack Obama, permitiu que a crise financeira de 2008 se transformasse em uma das maiores transferências de renda para o alto na história dos Estados Unidos.

Esses militantes procuram redefinir a classe operária em termos que não se aplicam tanto à indústria e à produção quanto à tecnologia e aos serviços, pouco importando a cor da pele dos assalariados. Esperam que, assim, as lutas de professores, enfermeiras, empregadas domésticas ou funcionários de restaurantes encontrem um lugar tão digno e legítimo no movimento socialista quanto os trabalhadores de siderúrgicas, os mineiros ou os operários, esses ícones proletários de outrora, quase todos brancos e do sexo masculino.

Por enquanto, porém, os militantes democratas mais à esquerda são recrutados principalmente entre os jovens oriundos das classes médias, que percebem a decadência de sua condição. Seu radicalismo político conseguirá mobilizar outras categorias sociais, antes sensíveis aos combates de Debs e hoje tentadas pela demagogia de Trump, que não moram mais nos mesmos bairros, cidades ou regiões dos novos “socialistas” norte-americanos?


Edward Castleton, historiador, é coautor de Quand les socialistes inventaient l’avenir, 1825-1860 [Quando os socialistas inventavam o futuro, 1825-1860], La Découverte, Paris, 2015


1 New Day [Novo dia], CNN, 16 abr. 2019.
2 Frank Newport, “Democrats more positive about socialism than capitalism” [Democratas têm uma visão mais positiva do socialismo que do capitalismo] e “The meaning of ‘socialism’ to Americans today” [O significado de “socialismo” para os norte-americanos hoje], Gallup, respectivamente 13 ago. e 4 out. 2018. Disponível em: <https://news.gallup.com>.
3 Cf., sobretudo, Seymour Martin Lipset e Gary Marks, It Didn’t Happen Here: Why Socialism Failed in the United States [Não aconteceu aqui: por que o socialismo não prosperou nos Estados Unidos], Norton, Nova York, 2000.
4 Werner Sombart, Pourquoi le socialisme n’existe-t-il pas aux États-Unis? [Por que o socialismo não existe nos Estados Unidos?], Presses Universitaires de France, Paris, 1992.
5 Louis Hartz, Histoire de la pensée libérale aux États-Unis [História do pensamento liberal nos Estados Unidos], Economica, Paris, 1990 (1. ed.: 1955).
6 Sobre esse assunto, cf. “Peut-on être socialiste aux États-Unis? Hier et aujourd’hui” [Podemos ser socialistas nos Estados Unidos? Ontem e hoje], Cités, n.43, Paris, 2010.


domingo, 21 de julho de 2019

As possibilidades econômicas da MMT: o caso chinês






Por David Deccache 


No início de março, a China anunciou um plano fiscal extremamente agressivo: dentre outros, irão injetar 800 bilhões de yuans na construção de ferrovias e 1,8 trilhão de yuans para construir estradas e transporte aquaviário.

Um desavisado poderia sugerir que tanto investimento teria que ter como contrapartida aumentos de tributos, contudo, o Partido Comunita Chinês pretende fazer o oposto disso: uma mega redução dos tributos. O governo cortará impostos e taxas para as empresas em um total de 2 trilhões de yuans (US$ 298 bilhões).

Um questionamento surge automaticamente ao nos depararmos com essa proposta de política fiscal: seria sustentável gastos acima da arrecadação por um longo período de tempo? Isso não geraria uma crise econômica? Algum economista heterodoxo mais desconfiado poderia alegar que uma política tão ousada só poderia ser realizada em um país como os EUA, que possui como moeda o dólar (o Yuan só passou a fazer parte da cesta de moedas de reserva do FMI em 2015)

Para respondermos a questão basta olharmos para as finanças públicas da própria China nas últimas décadas: ao analisar os anos de 1996 até 2016 constatamos que por todo o período a China gastou mais do que arrecadou, ou seja, a política fiscal chinesa é estruturalmente deficitária (Gráfico em anexo).

E este modelo, baseado em uma política fiscal estruturalmente deficitária em paralelo a um mega intervencionismo estatal, culminou em um desastre econômico e social?

A resposta é um enfático NÃO.

A China, que era um país semi-feudal e miserável até metade do século passado, segundo o FMI poderá ultrapassar os EUA e se tornar a maior potência econômica do planeta até 2030.

E o sucesso econômico chinês tem se materializado em um verdadeiro milagre social: sob a liderança do Partido Comunista Chinês, desde 1981, a China retirou 853 milhões de pessoas da linha da pobreza – 78% da redução do número de pessoas que vivem na pobreza no mundo. Muitos alegariam que o fenômeno se dá por conta dos baixos salários, porém, nos últimos 11 anos, os salários horários na indústria chinesa cresceram 200%, ou seja, um crescimento anual médio de 9,6%. Algo extremamente impressionante. Os salários na China já são superiores aos pagos em outras economias periféricas como Brasil, México e Argentina.

A China é a grande prova do que o bom uso da soberania monetária é capaz.



sexta-feira, 12 de julho de 2019

Harvey: os insurgentes estão chegando



Geógrafo aposta que, nos próximos anos, surgirá uma nova e instigante esquerda a partir de lutas anticapitalistas. Ao atualizar e reorganizar a luta de classes, poderá dar salto ideológico: varrer o neoliberalismo, tanto das ruas quanto das mentes





David Harvey, entrevistado por Edgar Sapiña, no El Diario | Traduzido por IHU | Imagem: Reuters


David Harvey (Gillingham, 1935) é um geógrafo marxista de origem britânica que trabalha como professor na City University of New York (CUNY) e que se tornou um dos cientistas sociais de referência para muitos movimentos de esquerda. Nestes dias, visita Barcelona para apresentar seu novo livro La lógica geográfica del capitalismo (Editora Icaria), uma obra biográfica que oferece uma passagem histórica pela trajetória do autor, uma entrevista realizada em 2015, novos textos traduzidos para o espanhol e um capítulo inédito.

A entrevista é de Edgar Sapiña, publicada por El Diario, 14-06-2019. A tradução é do Cepat.



Eis a entrevista:

Você se define como anticapitalista, antes que socialista, comunista, anarquista ou populista. Por quê?

O capital tem muita influência sobre muitos aspectos da vida diária. Não é apenas a economia. É a cultura, a forma de pensar e as estruturas de conhecimento. Conceitos como o comunismo e o socialismo costumam estar muito associados com uma concepção de mundo muito rígida. As relações sociais entre as pessoas devem ser transformadas, mas isto requererá muitas transformações mentais. Por isso, penso que temos que retirar o capitalismo de nossas cabeças, assim como das ruas e da vida.

E o anticapitalismo é um termo que engloba mais aspectos que conceitos como socialismo ou comunismo?

Sim. Acredito que não estamos em uma posição suficiente para descrever, agora, uma alternativa ao capitalismo e quero escapar das caixas que são o comunismo, o socialismo ou o anarquismo.

Após um período de silêncio, parece que nos últimos anos houve um interesse crescente pelo comunismo. Aqui, na Espanha, por exemplo, em 2017, Alberto Garzón publicou Por qué soy comunista. Como se materializa o comunismo hoje?

Não sei. Também não sei o que Garzón pensa sobre o comunismo. Do que estou certo é que os níveis de desigualdade atuais são inaceitáveis. Não acredito em uma igualdade absoluta, acredito que certas desigualdades são interessantes, mas certamente as desigualdades de renda estão revertendo muitas das coisas que deveríamos poder alcançar.

Uma das coisas em que penso no final do dia é na qualidade das relações sociais entre as pessoas. Um dos efeitos de Donald Trump como presidente dos Estados Unidos foi a degradação das relações entre grupos de imigrantes e entre grupos com diferentes orientações sexuais. A transformação destas relações sociais está indo em uma direção muito negativa.

O comunismo evoluiu, após a queda do muro de Berlim, em 1989, e com a dissolução da União Soviética em 1991?

O comunismo é crítico, obviamente evoluiu a partir de 1989 e acredito que, de alguma forma, o colapso da União Soviética e tudo o que isso supôs permitiu a reavaliação do que deveria ser o projeto comunista. Temos um governo na China que chama a si mesmo de comunista. Muita gente não o leva a sério, mas deveriam. O que devem fazer ou para onde precisam ir é uma grande pergunta para mim.

Acredita que é uma sociedade comunista?

Não, não é uma sociedade comunista, mas ideologicamente eles reivindicam que até 2050 serão uma sociedade plenamente socialista. Eu levo muito a sério essa proclamação, apesar de algumas medidas que adotaram, como o intercâmbio mercantil capitalista. Há problemas de desigualdade social e de degradação ambiental, mas todos os países têm. Eles disseram que serão plenamente socialistas até 2050 e isto significa combater o problema ambiental e a desigualdade social.

Uma das coisas que sabemos da China é que quando dizem que irão fazer algo, fazem e de forma muito rápida. Não são democratas em nada, mas não se deve subestimar as possibilidades que a China tem. Trump está organizando uma política anti-China, nesse momento, e é um profundo erro por parte dos Estados Unidos, porque está estimulando a China a ser mais autônoma.

Duas das correntes de pensamento mais recentes são o feminismo e o ambientalismo. Como coexistem estes dois movimentos com o sistema econômico atual?

Uma das coisas interessantes destes dois movimentos é que o neoliberalismo colocou, a partir de 1970, uma grande ênfase no empreendimento e abriu a possibilidade para que o feminismo utilize esta ideologia para criar o que poderíamos chamar um feminismo corporativo. Esse é o feminismo de Hillary Clinton, um tipo de empreendimento satisfatório no qual, é claro, há a possibilidade de que as mulheres ocupem posições importantes no mundo acadêmico, por exemplo. O mesmo pode acontecer com o multiculturalismo e a orientação sexual.

O neoliberalismo pode ser visto como uma abertura que permite um progresso nos direitos do coletivo LGTBI e das mulheres. De qualquer modo, acredito que muitas feministas estão percebendo que o neoliberalismo não é a solução, mas, ao contrário, é o seu inimigo prioritário. Há uma transformação em algumas pensadoras feministas: dizem que não podem conquistar seus objetivos com o neoliberalismo e que é necessário avançar para posições anticapitalistas. O mesmo se pode dizer do movimento ambientalista.

Então, é compatível defender o capitalismo junto com o feminismo e o ambientalismo?

Se você defende o sistema econômico atual, estará defendendo um tipo de feminismo que se baseia em incorporar mais mulheres nas empresas, mas o problema, nesse momento, são as condições salariais das mulheres trabalhadoras, que estão vivendo em condições muito difíceis. São elas que estão sofrendo as políticas neoliberais. Enquanto uma mulher de classe média pode se beneficiar do neoliberalismo, muitas das trabalhadoras estão sofrendo muito sob as políticas de “austeridade”. Algumas mulheres e ambientalistas se beneficiam com o neoliberalismo, mas as principais problemáticas estão fora da dinâmica capitalista.

Você acredita que nos próximos anos o capitalismo evoluirá e defenderá o ambientalismo, em prol de gerar um lucro econômico com isso, ou se manterá no mesmo ponto em que está agora?

Há setores do mercado que estão buscando lidar com a mudança climática. Não digo que o capitalismo não tenha prestado atenção às questões ambientais, o que questiono é o limite do lucro capitalista. A industrialização da agricultura, por exemplo, criou um sério efeito secundário. Estes são problemas que levam ao limite a capacidade do sistema econômico capitalista.

As problemáticas que ultrapassam o material invisibilizam a luta de classes?

Há uma tendência que consiste em evitar a questão de classe. Particularmente a partir da queda da União Soviética, havia uma tendência que dizia que Marx e o conflito de classes sociais estavam mortos. Se perguntamos, agora mesmo, quais são os agentes ativos, em termos de políticas de esquerda, já não são os trabalhadores fabris.

O problema principal é se perguntar quem é o proletário hoje em dia. Quando fazemos esta pergunta, temos que pensar em uma configuração distinta. Outro dia, quando estava em um aeroporto, olhei pela janela e vi a força de trabalho. Quem faz funcionar um aeroporto? Quando você olha para os Estados Unidos, vê muitos negros, muitos imigrantes e mulheres assalariadas. Se toda esta gente abruptamente decide fazer greve, o aeroporto precisa fechar. O capital ficaria completamente bloqueado. Este é o novo proletariado.

Nesta década, os partidos de extrema direita cresceram. Nas últimas eleições europeias, venceram na França, Reino Unido, Itália, Hungria e Polônia. Como os partidos de esquerda devem responder, já que uma parte dos eleitores de extrema direita são antigos eleitores da esquerda?

É necessária uma reorientação das políticas de esquerda e acredito que as bases institucionais das políticas de esquerda não sobreviveram muito bem. As políticas de esquerda falharam em grande medida, nos últimos 10 a 15 anos, com algumas exceções. Por exemplo, o auge inicial do Podemos foi uma coisa muito positiva, mas acredito que ainda está em formação. Há uma vasta parte da população descontente com as políticas neoliberais. É um momento muito interessante. Tenho a sensação de que em um futuro muito próximo veremos um ressurgimento da esquerda, mas é preciso buscar uma nova voz e falar de um modo diferente. A conversa deve ser baseada em uma configuração ideológica distinta.

Em que se deve basear essa conversa?

Tem que estar baseada em como entender as políticas anticapitalistas na atual conjuntura. As transformações revolucionárias não serão violentas. Nos últimos 20 anos, vivemos uma pressão muito forte na rua. Um exemplo atual disso são os coletes amarelos na França. A grande pergunta é para onde vai politicamente. Temos que repensar como devem ser as políticas. Para isso, é preciso haver uma conversa sobre o que é o anticapitalismo.

Você considera a História e a Geografia duas disciplinas inseparáveis que, juntas, explicam o que está acontecendo no mundo. De qualquer modo, hoje em dia, são estudadas em separado. Isto é um erro do mundo acadêmico?

É um profundo erro. A especialização é importante, mas o que realmente não gosto é da criação de aprendizagens que se supõe que não devem se comunicar com outras disciplinas. Por que estamos segmentando desta forma? Uma coisa peculiar no mundo acadêmico nos Estados Unidos, não sei se também ocorre aqui, é que há uma constante demanda por multidisciplinaridade.

Por que acredita que a geografia é uma disciplina útil para compreender a realidade?

Um dos motivos é que o fato da Geografia não ser uma disciplina muito organizada, cria uma grande oportunidade. Duvido que teriam me deixado fazer em outra disciplina tudo o que fiz em Geografia. A Geografia é mais aberta, um pouco porque as pessoas não sabem exatamente o que é. Há um lado ruim: os administradores acadêmicos não sabem o que fazer com isso.

Não sei se está muito por dentro da situação política em Barcelona. Após as eleições municipais, Ada Colau buscará, neste sábado, ser reeleita prefeita com o apoio do PSC e da lista de Manuel Valls, que é apoiada por Cidadãos [de centro-direita]. Se isso acontecer, o partido [independentista catalão] ERC se tornará o principal partido da oposição [Esta previsão realmente se confirmou, na semana passsada (Nota de Outras Palavras)]. Qual seria o melhor cenário para governar Barcelona, em sua opinião?

A gestão de Colau foi muito importante para as pessoas que, como eu, acreditam que a organização do poder municipal é parte de um processo político muito crítico no mundo, nesse momento. Acredito que o que ocorre em nível municipal é importante e o governo de Colau foi uma mostra importante para o restante do mundo, ensinando que as coisas podem ser feitas.

A questão independentista precisa ser abordada. Este é um fato muito particular que torna as coisas difíceis, não é uma coisa de partidos de esquerda contra partidos de direita. Pessoalmente, não me emociona muito a ideia de uma Catalunha independente. Acredito que isso não irá acontecer e não acredito que a União Europeia irá aceitar, mas isso é só minha opinião de fora. Posso ser persuadido [risos].


quarta-feira, 3 de julho de 2019

Esquerda domina todos os países nórdicos da UE






Por Clóvis Rossi 



A Dinamarca trocou a cor do bloco dominante em seu Parlamento, nas eleições desta quarta-feira (5), passando do azul (direita, extrema direita) para vermelho (esquerdas de vários matizes). Com isso, a social-democrata Mette Fredriksen deverá ser a primeira-ministra, já que seu partido teve maioria de votos, no geral e, naturalmente, no bloco vermelho.

O resultado vai além dos limites dinamarqueses: a ascensão de uma social-democrata na Dinamarca devolve todos os países nórdicos membros da União Europeia ao comando da centro-esquerda.

Além da jovem Mette Fredriksen (41 anos) na Dinamarca, na Suécia o primeiro-ministro é o também social-democrata Stefan Lofven, apontado para um segundo período em janeiro.

Fecha o círculo nórdico e europeu, Antti Rinne prestes a assumir a liderança de uma coligação de cinco partidos na Finlândia, na esteira das eleições de abril.

Há mais três países nórdicos (Noruega, Islândia e Ilhas Faroe) mas não fazem parte da União Europeia.

Recuperar o comando dos países nórdicos —que já foi feudo dessa corrente— é uma boa notícia para a social-democracia, que não está tendo exatamente desempenhos eleitorais brilhantes na Europa. Governa, é verdade, Espanha e Portugal, fez a maioria dos votos para o Parlamento Europeu na Holanda, mas vive declínio tremendo em centros relevantes.

Casos de Alemanha e França, para ficar apenas nos dois países mais ricos da União Europeia.

Mette Frederiksen substituirá a aliança de centro-direita que hoje governa a Dinamarca, com o primeiro-ministro Lars Lokke Rasmussen. Ele teve que depender, para formar a maioria, do Partido Popular Dinamarquês, um desses grupos xenófobos de extrema direita que anda assustando a Europa.

Nesta quarta-feira, o PPD foi o grande derrotado: perdeu mais da metade de seus votos e caiu abaixo de 10%.

Mas a sua força eleitoral em anos anteriores levou os partidos “mainstream” a adotar políticas duras contra a imigração, como é o caso até da agora vitoriosa social-democracia.

Frederiksen prometeu durante a campanha manter a política restritiva para imigrantes adotada pelo governo conservador e apoiada pelos xenófobos do PPD. Mas prometeu igualmente algo mais tradicional para a social-democracia: aumentar as despesas públicas para garantir um sistema social que é dos mais efetivos da Europa.

Aliás, os países nórdicos têm longa tradição de modelos de bem-estar social para os quais a contribuição da social-democracia foi essencial.

Essa mescla de políticas mais comumente associadas à direita/extrema-direita com programas típicos da social-democracia levou o jornal The New York Times a especular que a Dinamarca poderia se tornar “o laboratório do que serão os partidos de centro-esquerda doravante”.

Outro destaque da campanha eleitoral foi o avanço do meio ambiente como tema relevante: é prioridade para 46% dos dinamarqueses, contra 27% em 2017. É um dado coerente com os bons resultados colhidos pelos partidos verdes no pleito para o Parlamento Europeu.




https://www1.folha.uol.com.br/amp/colunas/clovisrossi/2019/06/esquerda-domina-todos-os-paises-nordicos-da-ue.shtml?__twitter_impression=true&fbclid=IwAR2xgRD6ZyyqYT9RmtbvUOfH5hKYmMgP_aqoMOVWhfl_Ohn65op