segunda-feira, 26 de agosto de 2013

ACE: Iniciativa para flexibilizar a Legislação Trabalhista


Por Clodoaldo Gomes (*)

Em setembro de 2011, o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC Paulista (SMABC) lançou, na abertura do congresso de sua categoria, uma cartilha em que apresentava aos trabalhadores seu projeto de Acordo Coletivo Especial (ACE). A cartilha continha um anteprojeto de lei que, no ato, foi entregue ao presidente da Câmara Federal, o ex-metalúrgico Marco Maia (PT-RS) – que se comprometeu a trabalhar pela sua aprovação –, e ao secretário-geral da Presidência da República, Gilberto Carvalho – que afirmou que iria encaminhá-lo ao Congresso Nacional em nome do Governo Dilma.

O projeto representa mais uma iniciativa de flexibilizar a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), no sentido de permitir que acordos estabelecidos entre patrões e sindicalistas prevaleçam sobre os direitos conquistados em lei pelos trabalhadores.

O que é o ACE?

O anteprojeto elaborado pelo SMABC faculta aos sindicatos de trabalhadores o direito de estabelecer, com uma empresa de sua base de representação, Acordo Coletivo de Trabalho com Propósito Específico, ou Acordo Coletivo Especial (ACE). Se aprovado pelo Congresso Nacional, o ACE pode estabelecer condições específicas de trabalho para os empregados da empresa abrangida e teria força de lei, mesmo que desrespeitasse direitos assegurados pela CLT.

Para realizar o acordo, o sindicato precisa estar habilitado para este fim no Ministério do Trabalho. Para conseguir essa habilitação, a entidade sindical precisa “ter regulamentado em seu estatuto e instalado em uma ou mais empresas de sua base de representação o Comitê Sindical de Empresa, composto por, no mínimo, dois, e, no máximo, trinta e dois membros, obedecida a proporção de dois membros para cada quinhentos ou fração de quinhentos trabalhadores sindicalizados por unidade de produção ou de serviço, quando for o caso” (inciso I do artigo VII do anteprojeto). Já a empresa precisa reconhecer o Comitê Sindical de Empresa (CSE) e não ter condenações judiciais transitadas em julgado por práticas antissindicais em ações movidas pelo sindicato com o qual deseja realizar acordo.

Além disso, o sindicato precisa possuir mais de 50% dos trabalhadores da empresa filiados e ter a aprovação de mais de 60% dos trabalhadores em escrutínio secreto.
O SMABC é um sindicato histórico, cuja base protagonizou, na década de 1970, grandes greves e mobilizações que marcaram a retomada do movimento sindical classista brasileiro, mas erra em apresentar tal proposta.

A CLT, criada em 1943 sob a Ditadura Vargas, com a pressão do movimento sindical dirigido pelos comunistas, transformou em lei um amplo conjunto de reivindicações que vinham sendo levantadas pela classe trabalhadora brasileira desde a década de 1920. Essas conquistas se mantêm, em sua essência, até hoje.

Além de estabelecer os direitos básicos de todo trabalhador, a CLT prevê a possibilidade de os sindicatos celebrarem com os patrões convenções (entre o sindicato patronal e o sindicato de trabalhadores) e acordos coletivos (entre o sindicato de uma categoria e uma determinada empresa). Estes instrumentos permitem que os trabalhadores de determinada categoria ou de determinada empresa que possuem uma organização sindical mais forte conquistem, através da luta, condições mais favoráveis que as previstas em lei.

A legislação se converteu, assim, em um importante instrumento de defesa dos trabalhadores contra a superexploração dos patrões. É por isso que a CLT tem sido alvo de vários ataques por parte da classe patronal. Em 2001, por exemplo, no segundo mandato de FHC (PSDB), foi enviado ao Congresso um projeto que ficou conhecido como “Projeto Dornelles”, o PL 5.483. O projeto também estabelecia, a exemplo do ACE e utilizando os mesmos argumentos, que aquilo que fosse negociado entre patrões e empregados valeria mais que a legislação. Sob pressão do movimento sindical, o projeto foi rejeitado.

Agora, vemos novamente a defesa da “modernização” das relações de trabalho. O problema é que a “modernidade” das relações de trabalho hoje é marcada pelos constantes ataques neoliberais contra os direitos dos trabalhadores, através da precarização das condições de trabalho. A outra “novidade” é o aprofundamento da política de conciliação de classe no movimento sindical. Ou seja, numa conjuntura como esta, flexibilizar a legislação para permitir que os trabalhadores possam abrir mão de seus direitos já conquistados é um tiro no pé.

O outro argumento utilizado pelos que defendem o ACE é a regulamentação dos Comitês Sindicais de Empresa, estruturas sindicais inspiradas na experiência histórica do sindicalismo do ABC – as Comissões de Fábrica. Entendemos como importantíssima a conquista do direito de organização por local de trabalho, mas estas estruturas precisam ser utilizadas para fortalecer a luta do sindicato por conquistar direitos iguais para toda a categoria e não cair no equívoco de negociações pulverizadas com cada empresa.


(*) Clodoaldo Gomes, membro da Coordenação Nacional do MLC

FONTE:  Movimento Luta de Classes

sexta-feira, 23 de agosto de 2013

O socialismo deve retomar a ofensiva

Por Miguel Urbano Rodrigues


Ao reler o capitulo XVIII de "Para alem do capital", de István Mészáros, senti a necessidade de escrever umas páginas para condensar a reflexão suscitada pelo trabalho do filósofo marxista húngaro. [1] 

O andamento da história conferiu uma grande actualidade ao ensaio do autor de "O Poder da Ideologia", redigido há mais de uma década. 

Mészaros recorda-nos que a chamada "crise do marxismo" levou muitos intelectuais progressistas a adoptarem uma posição defensiva precisamente numa época crucial em que deveriam empenhar-se numa ofensiva socialista. 

Lenine acreditava que a revolução de Outubro, na Rússia, fosse a espoleta de "turbulentas revoltas políticas e económicas" na Europa e fora dela. 

O desfecho da guerra mundial não confirmou essa esperança. O capitalismo sobreviveu. Após o fracasso da revolução na Alemanha e a derrota do Exército Vermelho às portas de Varsóvia, o dirigente bolchevique concluiu que era imprescindível defender a revolução russa do cerco imperial, custasse o que custasse. 

Mas a impossibilidade em prazo previsível da revolução mundial exigiu uma dramática revisão estratégica. 

O projecto socialista, que fora concebido para a ofensiva, viu-se forçado a uma defensiva. 

Mészáros analisa a contradição entre o pensamento de Lenine e o de Estaline sobre essa polémica questão. O primeiro, na ausência da revolução mundial, encarava a luta a travar como "uma operação para sustentar uma posição", operação que, após desenvolvimentos futuros favoráveis no plano mundial, permitiria retomar a ofensiva; Estaline "convertia a desgraça em virtude" convicto de que a vitoria socialista de Outubro abria por si só as portas a uma futura etapa superior do comunismo. 

O refluxo, após Versailles, do movimento revolucionário mundial tornou inevitável a permanência de uma estratégia defensiva. 

As esperanças dos que esperavam grandes convulsões sociais no rescaldo da crise de 1929-33 foram dissipadas pelo rumo da história. O mundo do capital sobreviveu sem dificuldade ao temporal iniciado com o crash da Bolsa de Nova York. A crise não era estrutural. A própria opção pelo fascismo na Alemanha de Weimar inseriu-se numa crise cíclica do capitalismo. 

No contexto defensivo, os órgãos de combate socialistas que actuavam, no âmbito de instituições de fachada democrática, podiam ganhar lutas secundárias, através de reformas impostas pela luta de massas, mas não vencer a guerra contra o capital. A correlação de forças não o permitia. 

Mészáros recorda que os dois pilares da classe trabalhadora no ocidente — os partidos e os sindicatos — se encontravam na prática inseparavelmente ligados a um terceiro membro da montagem institucional geral, o Parlamento, "mediante o qual se fecha o circulo sociedade civil - estado político e se converte nesse 'círculo mágico' paralisante ao qual não se pode escapar". 

Os acontecimentos que precederam a segunda guerra mundial confirmaram que é uma ilusão romântica encarar os sindicatos, isoladamente, como algo pertencente exclusivamente à sociedade civil, susceptível de ser utilizado contra o estado para uma transformação socialista profunda. Seria necessário muito mais do que o derrubamento, no estado burguês, do Parlamento para se produzir uma ruptura rumo ao socialismo. 

No seu ensaio Mészáros dedica uma atenção especial ao Parlamento. 

Até hoje — escreve — "não existe nenhuma teoria socialista satisfatória que diga o que se fazer com ele após a conquista do poder". 

Na concepção que Marx tinha da "política" como negação radical, o Parlamento aparecia como um instrumento perverso do sistema cuja função era "enganar os outros e, ao enganá-los, enganar-se a si mesmo". 

Marx admitia que em alguns países, nomeadamente na Grã-Bretanha, na Holanda, e até nos EUA, a transição do capitalismo poderia realizar-se por meios pacíficos, mas considerava extremamente difícil reorientar radicalmente a "sabedoria parlamentar" de modo a colocar o legislativo a serviço de objectivos antagónicos aos anteriores. 

Reflectindo sobre a experiência das sociedades do leste europeu onde durante mais de quatro décadas estiveram no poder governos que proclamavam a sua opção pelo marxismo leninismo, Mészáros conclui que "não basta demolir um dos três pilares do marco institucional herdado, porque de um modo ou outro o acompanham sempre os restantes. 

A actual crise estrutural do capital, insiste, é uma crise global, que levará à morte do sistema ou à destruição da civilização. 

A compreensão dessa evidência é ainda muito limitada. O controle hegemónico do sistema mediático permitiu após a desagregação da URSS persuadir centenas de milhões de pessoas, através da mistificação ideológica, que a luta de classes findara, o proletariado desaparecera e o capitalismo iria perdurar indefinidamente. 

Entretanto, a ofensiva contra o que resta do Estado do "Bem Estar Social", ao iluminar o aprofundamento da crise do capitalismo demonstrou que a actual, diferente de anteriores, colocava a humanidade perante uma crise estrutural de todas as instituições políticas. Não foi repentina. O seu processo de fermentação vem do começo dos anos 70. 

Para Mészáros o desfecho da confrontação com o capital do conjunto heterogéneo de forças socialistas dependerá de transformações que elas conseguirem introduzir na vida quotidiana, dominada actualmente por ubíquas manifestações das contradições subjacentes. Por outras palavras da habilidade para combinar num todo coerente, com implicações socialistas definitivamente irreversíveis uma enorme variedade de exigências e estratégias parciais que em si mesmas não necessitam ser especificamente socialistas. 

Nesse sentido — esclarece "as exigências mais urgentes do nosso tempo, que correspondem directamente a necessidades vitais de uma grande variedade de grupos sociais decentes, juntamente com as exigências inerentes à luta pela libertação da mulher e contra a discriminação racial são tais que, sem excepção, em principio, qualquer liberal genuíno pode fazê-las suas com empenhamento". 

Mas, perante as tendências e contradições do capital, as exigências de mudança radical somente podem ser formuladas na perspectiva de uma alternativa socialista global. Por isso mesmo a renovação criadora do marxismo, tal como a concebia Marx , se tornou imprescindível. 

O MITO DA DEMOCRACIA REPRESENTATIVA 

Volto ao tema do Parlamento e do seu papel instrumental no sistema. A desmontagem dos mecanismos perversos da democracia representativa é uma exigência da luta, porque a mitologia da falsa democracia está tão ancorada na consciência social que exerce forte influência na linguagem, na mundividência e nas formas de luta de muitos comunistas. 

As mudanças que temos testemunhado — sublinha Mészáros — "no funcionamento do próprio parlamento — mudanças que tendem a privá-lo até das suas limitadas funções autónomas do passado — não podem ser de maneira circular em termos da instável máquina eleitoral e das correspondentes praticas parlamentares. Os porta-vozes da hipostasiada "soberania absoluta do parlamento e os seus embates teóricos com os seus colegas parlamentares em torno da miragem da "perda da soberania para Bruxelas" (por exemplo) estão longe da verdade. Procuram soluções para as deploradas mudanças onde elas não podem ser encontradas, nos limites do próprio domínio político parlamentar". 

A política é demasiado importante para que as forças progressistas aceitem que ela possa ser conduzida pela chamada "classe política". A democracia autêntica, participada, nada tem a ver com as democracias parlamentares tuteladas pelo capital. 

Mészáros lembra que quando a burguesia concede a representantes da esquerda o título de "grandes parlamentares" devemos desconfiar. Essas personalidades políticas "aprenderam as regras do procedimento parlamentar e, com a ajuda delas, "continuam a levantar os assuntos desconfortáveis. Entretanto, a verdade realmente desconfortável é que os assuntos assim levantados são invariavelmente ignorados ou declarados "fora da agenda" pelo próprio Parlamento. 

O pensador húngaro documenta essa realidade sobretudo com exemplos do funcionamento da Câmara dos Comuns, o berço e modelo da democracia parlamentar. "Futilidades e marginalização política são os critérios para ser promovido ao alto posto de 'grande parlamentar' na esquerda. Desse modo alguns deles são admitidos no átrio da fama para colocar o sistema da democracia parlamentar além e acima de toda a "critica legitima concebível". 

Nas últimas duas décadas os partidos social democratas europeus, incluindo aqueles que ainda se dizem socialistas (Portugal, Espanha, Grécia, etc) não somente romperam com o marxismo como, aderindo ao neoliberalismo, se orgulham de administrar melhor do que os partidos conservadores uma economia capitalista moderna, moldada pelo neoliberalismo. 

Afirma Mészáros – e identifico-me com essa opinião – que "o papel principal dos partidos social democratas (incluindo antigos partidos comunistas rebaptizados) se .limita hoje a entregar o trabalho ao capital, e utilizar o povo como forragem eleitoral para os propósitos da legitimação espúria do status quo perpetuado sob o pretexto do processo eleitoral 'aberto' e «plenamente democrático". 

Essa tendência vem de longe. Cabe recordar que o velho Partido Social Democrata Alemão, quando ainda era revolucionário, começou a ceder em vida de Marx. Prometia então uma «transformação social radical, mediante a realização de reformas estratégicas até capitular abertamente perante as exigências do expansionismo nacional burguês com a irrupção da Primeira Guerra Mundial». 

A promessa de instaurar o socialismo por meios parlamentares estava condenada desde o início. Era uma impossibilidade transformar através do parlamento "um sistema de controle reprodutivo social sobre o qual não tinham nem podiam ter qualquer controle significativo". 

Hoje, de tombo em tombo, a social-democracia contribui activamente para que a legislação dos Parlamentos seja um instrumento da castração dos movimentos laborais e dos direitos dos trabalhadores. O papel regulador básico do parlamento burguês consiste em legitimar a imposição das normas da "legalidade constitucional" ao trabalho que as desafia e simultaneamente persuadir o povo de que, agindo assim, defende a democracia. O objectivo inconfessado é forçar o trabalho a submeter-se ao capital. 

Anos atrás, quando apenas iniciava a luta que o levaria à presidência, o venezuelano Hugo Chavez — hoje o mais popular líder revolucionário da América do Sul —, repetindo criticas de Rousseau à farsa parlamentar, recordou que para os partidos tradicionais do seu país, o único dever do povo era votar nas eleições. E depois esperar que tudo se resolvesse. Sem qualquer participação popular obviamente. "Esses cantos de sereia — concluiu o actual presidente da Venezuela bolivariana — conduziram à passividade um povo que foi esquecendo que as grandes gestas se fazem pelo caminho dos sacrifícios, substância indispensável na hora de proceder às sementeiras da história. O acto do sufrágio transformou-se assim no principio e fim da democracia". 

O grande desafio de Chavez foi persuadir a sua gente de que era possível desmantelar o sistema para que o povo soberano se convertesse "em objecto e sujeito do poder". 

E isso aconteceu. 

A amplitude assumida pela revolta dos marginalizados em França, as manifestações contra a presença de Bush na Argentina e no Brasil, e, na Alemanha, em defesa de conquistas históricas do povo, são outros tantos indícios de que a maré dos protestos populares contra o sistema de dominação imperial volta a subir. Nos EUA a rejeição da guerra do Iraque cresce a cada dia. 

Não se infira da minha identificação com a critica de Mészáros à farsa da democracia representativa que pretendo retirar significado à participação das forças progressistas nos processos eleitorais. Essa seria uma atitude irresponsável. Penso pelo contrário que a presença de fortes bancadas dos comunistas e seus aliados nos parlamentos é muito importante. Repetidamente, em artigos e intervenções em Seminários internacionais tenho sustentado que na luta pelo desmascaramento das ditaduras da burguesia de fachada democrática tudo se deve fazer para reforçar a presença de representantes de partidos revolucionários nas instituições criadas pelo sistema. No caso português, a eleição de comunistas para a Presidência de dezenas de Câmaras Municipais demonstrou que nos municípios onde o povo lhes confere a oportunidade de exercer o poder, a transformação da sociedade, apesar da habitual hostilidade do governo central, reflecte quase sempre uma humanização da vida e a participação do povo como colectivo. 

No caso do Parlamento não existe a menor possibilidade na União Europeia de um partido progressista chegar ao governo, a menos que renuncie aos princípios e se submeta ao sistema, através de alianças espúrias, como ocorreu em França. Nem por isso é de subestimar em Portugal a intervenção dos comunistas. Mas — insisto — a utilidade social da presença comunista no Legislativo será sempre condicionada pela recusa de concessões a estratégias reformistas. A fidelidade ao objectivo primeiro — o socialismo distante — exige inclusive a intervenção parlamentar em defesa das lutas reivindicativas dos trabalhadores e a critica permanente às políticas dos partidos no poder. Mas exige paralelamente a denuncia firme da engrenagem do próprio sistema e a recusa de ilusões reformistas, a rejeição de uma mentalidade eleiçoeira. O capitalismo não é humanizável, tem de ser destruído. 

A credibilidade de um partido revolucionário entre os trabalhadores não resulta do simples apelo à mobilização para lutas que exigem deles enormes sacrifícios. As massas somente respondem a tais apelos quando as direcções das organizações revolucionárias lhes inspiram uma confiança quase ilimitada pela sua coerência, pela sua linha política, pela fidelidade aos princípios enunciados. 

Levar o povo português, como outros, a tomar consciência de que a actual crise global de civilização colocou a humanidade no limiar de uma viragem de desfecho imprevisível é uma tarefa gigantesca. Ela implica em primeiro lugar a necessidade de que milhões de pessoas consigam superar o envenenamento resultante de um sistema mediático monstruoso que desinforma e deforma. 

Na grande batalha contra o capitalismo, golpeado pela sua própria crise estrutural, a passagem da defensiva à ofensiva, imprescindível no combate frontal ao sistema exige — cito Mészáros — "o desenvolvimento de um movimento extra parlamentar como força condicionante total do próprio parlamento. E do marco legislativo da sociedade transnacional em geral. Tal como estão as coisas hoje em dia, o trabalho como antagonista do capital vê-se forçado a defender os seus interesses não só com uma, mas com ambas as mãos amarradas nas costas". 

Uma delas é atada por forças ostensivamente hostis ao trabalho, a outra pelas políticas reformistas dos sindicatos e, nos países da Europa Ocidental, da maioria dos partidos operários (os PC grego e português constituem quase as únicas excepções). 

Não sejamos românticos. O poder extraparlamentar do capital somente pode ser enfrentado pela acção dos trabalhadores, com o apoio dos sindicatos. 

Vale a pena citar palavras de Rosa Luxemburgo:

"o parlamentarismo é o viveiro de todas as tendências oportunistas hoje existentes na social democracia ocidental ele proporciona a base de ilusões do oportunismo, na moda, tais como a sobrevalorização das reformas sociais, a colaboração da classe e do partido, a esperança do avanço pacífico para o socialismo, etc(…) Com o crescimento do movimento laboral, o parlamentarismo converteu-se em trampolim para os políticos profissionais. Por isso mesmo, tantos ambiciosos fracassados da burguesia correm em tropel para se juntarem sob as bandeiras dos partidos socialistas(…) O objectivo é dissolver o sector actuante do proletariado na massa amorfa de um «eleitorado".

Transcorreram quase 90 anos, o mundo mudou profundamente, mas o desabafo de Rosa não perdeu actualidade. 

Hoje a luta contra o capitalismo difere da que então se travava em múltiplos aspectos. Em primeiro lugar porque ele, atingida a sua última fase, está ferido de morte, por mais lenta que possa ser a agonia. Em segundo lugar, porque, na tentativa desesperada para sobreviver, a sua estratégia põe em causa a continuidade da própria vida na Terra. É a humanidade colectivamente que o funcionamento do sistema ameaça. Incapaz de encontrar solução para a sua crise estrutural e reconstituir com êxito as condições da dinâmica expansionista, o capital, representado pelo seu pólo imperial mais agressivo, desencadeia guerras genocidas e promove o saque de recursos naturais em escala sem precedentes. 

Passar portanto da defensiva à ofensiva é uma exigência do tempo que vivemos imposta às forças e partidos para os quais a alternativa à barbárie é o socialismo.


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[1] István Mészaros, "Para Alem do Capital", págs 789 a 861, Ed. Boitempo, 2002, São Paulo, Brasil, ISBN 85-7599-001-4.  resistir.info publicará em breve o capítulo XVIII desta obra. 


(*) Jornalista e escritor português

FONTE: Resistir.info

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

A forma-partido é dispensável?

Em 2012, a Boitempo editou um pequeno livro de Alain Badiou que passou um tanto quanto desapercebido. A hipótese comunista tem dois propósitos explícitos: relançar a ideia de comunismo e discutir a pertinência contemporânea da forma-partido. Com as manifestações de junho e seus desdobramentos, talvez o livro volte a chamar a atenção. Visando contribuir para isso, segue abaixo um breve comentário.

Por Ricardo Musse (*)


Vinte anos depois da queda do Muro de Berlin e da desintegração dos Estados socialistas do Leste europeu, Alain Badiou propôs uma reflexão coletiva sobre a situação atual e o futuro do movimento comunista. Sua primeira providência consistiu em organizar, com Slavoj Žižek, um encontro em Londres, em março de 2009, que contou com a presença, entre outros, de Terry Eagleton, Michael Hardt, Toni Negri, Jacques Rancière, Gianni Vattimo e Wang Hui.

A pauta inicial do debate foi o ensaio “A ideia do comunismo”, redigido por Alain Badiou para a ocasião. Sua contribuição mais duradoura para essa reflexão, no entanto, reside no livro A hipótese comunista, coletânea que reúne, além desse artigo, textos sobre Maio de 68, a Revolução Cultural Chinesa e a Comuna de Paris. Trata-se de uma escolha nada aleatória. Ao privilegiar esses acontecimentos, Badiou situa-se, de antemão, entre os que procuram ler a história a contrapelo, destacando não “revoluções vencedoras”, mas experimentos que foram derrotados.

No Prefácio do livro, Badiou discorre acerca dos atuais impasses que, em sua opinião, bloqueiam a continuidade do movimento comunista. A argumentação que preconiza a superioridade do capitalismo ou a ausência de alternativas – hegemônica na direita e na esquerda nos últimos 30 anos – parece-lhe obsoleta, convicção reforçada pela atual conjuntura marcada pela crise econômica, social e política.

Segundo ele, o arrazoado contra o comunismo decorre de uma inferência indevida, derivada de um fato incontestável: as tentativas comunistas fracassaram. Ora, mas o fracasso faz parte da experiência. Badiou não conhece, mas talvez pudesse citar em apoio ao seu raciocínio a letra de um conhecido samba de Paulo Vanzolini cujo refrão canta: “reconhece a queda / e não desanima / levanta, sacode a poeira / e dá a volta por cima”. O livro, porém, não se limita a uma exortação. Ao contrário, preocupado em investigar as causas desse fracasso coloca em discussão uma hipótese que considera indispensável para a retomada do movimento comunista.

Badiou ressalta um paradoxo do marxismo, detectado pelos anarquistas desde o Manifesto Comunista, e polo central da cisão que pôs fim à convivência pacífica entre estas alas no interior da Primeira Internacional. Marx e Engels preconizam que o desmantelamento do Estado, alvo prioritário do movimento e índice de uma sociedade comunista, deveria se efetivar por meio da conquista do Estado burguês por um partido, resultante da organização e da defesa dos interesses da classe trabalhadora. Segundo essa orientação, a tomada do poder visa dois objetivos opostos: assenhorear-se do Estado e fazê-lo desmoronar.

Convém observar que os marxistas nunca foram omissos em relação a essa questão. Em A guerra civil na França (1871), por exemplo, Marx saúda a descentralização administrativa, a gestão coletiva implantada pela Comuna de Paris sem, no entanto, deixar de atribuir a derrota do movimento à ausência de um poder central estável. Nessa esteira, na antevéspera do Outubro de 1917, Lênin desenvolveu, em O Estado e a revolução, o conceito de “ditadura do proletariado” como um dispositivo que permitiria atingir gradativamente os dois objetivos: consolidar o poder da classe trabalhadora e dissolver o Estado.

Na fórmula proposta por Lênin, Badiou reconhece apenas o embrião do partido-Estado, responsável último pelo viés autoritário e burocrático do Leviatã russo. Ele tampouco hesita em extrair a consequência máxima dessa rejeição: se o partido do proletariado tende, uma vez conquistado o poder, a se degenerar em partido-Estado, a solução passa pela supressão da forma-partido.

Com essa proposta, Badiou instala-se na fronteira do marxismo. Ao contrário do que se supõe a doutrina de Marx e Engels não se tornou hegemônica no âmbito do movimento comunista devido à sua superioridade analítica, à explicação do mundo moderno desenvolvida em O capital, mas antes por conta de seu arsenal prático que tem como eixo programático central a tarefa de organizar a classe trabalhadora em partidos políticos. Não é por acaso que a supremacia do marxismo sobre as demais correntes estabeleceu-se apenas na década de 1890 com a adesão oficial a essa doutrina pela Segunda Internacional – uma congregação de partidos de massas gestados, em maior ou menor medida, segundo os preceitos recomendados por Marx, num processo monitorado de perto por Engels.

Ciente disso, Badiou não se propõe a atualizar o marxismo, como é usual entre os partidários dessa linhagem. Projeta revigorar a “ideia comunista”, uma vertente mais ampla na qual Marx figura apenas como um entre muitos outros participantes. Embora ao longo do livro alguns parágrafos sejam despendidos na defesa de nomes próprios, estes desempenham papel secundário em A hipótese comunista. Seu assunto são os eventos revolucionários selecionados como campo de prova da tese do caráter dispensável da forma-partido.

O andamento do livro não segue o roteiro aqui exposto. Como um bom narrador modernista, Badiou oculta seu pressuposto, destacando-o somente como resultado de suas investigações. Para tanto, promove uma leitura original – e, diga-se de passagem, muito convincente – tanto da Comuna de Paris como de Maio de 1968. 

Primeiro experimento de administração proletária da sociedade, a Comuna permanece como “uma exposição histórica” de princípios a serem reativados. Marx percebeu isso, embora sua interpretação do evento tenha contribuído para solidificar a opção pela forma-partido. Nas palavras de Badiou:

“o partido realiza a ambiguidade do balanço marxista da Comuna, dá corpo a ela. O partido torna-se o lugar político de uma tensão fundamental entre o caráter de não Estado ou mesmo antiEstado, da política de emancipação e o caráter de Estado da vitória e da duração dessa política. E isso tanto se essa vitória for insurrecional quanto se for eleitoral: o esquema mental é o mesmo” (p. 105).

Segundo Badiou a Revolução Cultural Chinesa procurou resgatar os princípios postos pela Comuna, assumindo-a como modelo e fonte de inspiração, mas fracassou precisamente porque tentou fazê-lo ainda no âmbito da forma-partido. Maio de 68 rejeitou peremptoriamente essa modalidade de organização, mas nem por isso deixou de se confrontar com ela. Badiou atribui a derrota desse movimento em parte à hostilidade do PCF (Partido Comunista Francês), guardião do paradigma posto em questão.

Trata-se de uma interpretação pouco consensual, uma constante, aliás, quando se encontram em jogo questões relevantes. Se sua aposta é correta ou não, a resposta não está no vento, mas à nossa espreita, no desdobrar da história.
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(*) Ricardo Musse é professor no departamento de sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo. Doutor em filosofia pela USP (1998) e mestre em filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1992). Atualmente, integra o Laboratório de Estudos Marxistas da USP (LEMARX-USP) e colabora para a revista Margem Esquerda: ensaios marxistas, publicação da Boitempo Editorial.


FONTE: ControVérsia

domingo, 11 de agosto de 2013

A rebelião das massas: a origem dos movimentos sociais


Descontando-se os inúmeros e praticamente incontáveis levantes de massas que ocorreram na história da humanidade, sob o ponto de vista da época contemporânea, pode-se fixar sua erupção na política a partir de dois eventos muito próximos. Um deles, a Boston Tea Party (A Festa do Chá em Boston, que ocorreu em 1773), um tanto antes da eclosão da Revolução Americana (1776-1783); o outro, a Queda da Bastilha, de 14 de julho de 1789, foi responsável pelo desabamento de uma monarquia que já existia há mais de 13 séculos na França.

Por Voltaire Schilling

"É bastante fácil fazer surgir sentimentos na alma das multidões, mas é dificílimo refreá-los. Desenvolvendo-se, convertem-se em forças que não são possíveis dominar."
                                         Gustave Le Bon (1895)

As massas e a história


Queda da Bastilha, em 14 de julho de 1789
Foto: Getty 
Ambos os acontecimentos são marcos da espetacular ação das massas revolucionárias e da entrada delas definitivamente no universo da política, do qual por séculos estiveram ausentes. Esta, ao longo dos tempos, tinha sido monopolizada por aristocratas, fidalgos e plutocratas em geral, personagens das elites do seu tempo que definiam os destinos dos povos sem fazer-lhes consulta sequer.

Desta feita, era o homem comum, uma multidão de anônimos, quem arrombava as portas daquele Olimpo, obrigando-o a ouvir e a atender suas demandas. O filósofo Hegel, em carta a um amigo, registrou esta nova força que punha o mundo em andamento, afirmando:

Eu me oriento em que o Weltgeistes (O Espírito do Mundo) deu a palavra de ordem para o avanço: tal palavra de ordem é obedecida sem hesitação; esse ser se movimenta como uma falange encouraçada, fechada, irresistivelmente e com um movimento tão imperceptível quanto o sol quando se move, para frente, venha o que vier...

Carta a Niethammer

Esta erupção das massas generalizou-se ainda mais por ocasião da Revolução de 1848 - a "Primavera dos povos" -, movimento extraordinário que fez tremer quase que todas as capitais e cidades mais importantes da Europa, com reflexos inclusive na América Latina.

Para Elias Canetti, autor de um livro clássico sobre o assunto, Masse und Macht (Massa e Poder, 1960), esta excitação e presença das multidões nas ruas protestando ou insurgindo-se resultou da libertação do controle que a religião exercia sobre elas até a eclosão da Revolução Francesa de 1789. Desde então foram incontáveis os "estouros" que ocorreram em várias partes do mundo e que, tudo indica, não mais cessarão.

Marx exalta as massas

Karl Marx e Friedrich Engels
Karl Marx foi o primeiro filósofo moderno a captar as potencialidades transformadoras da multidão em marcha. Percebeu que a elas, e somente a elas, e não aos heróis das classes tradicionais, cabia "mudar o mundo", conduzindo-o para uma etapa superior da história da humanidade. Propôs, então, uma aliança entre os pensantes, os filósofos, os intelectuais, com a maioria sofredora, o proletariado moderno. Afinal, eram "as massas quem fazem a história", assegurou.

Este entusiasmo arrefeceu um tanto, não do lado de Marx e de seu companheiro Engels, mas de larga parte da opinião pública em geral quando dos dramáticos episódios provocados pela Comuna de Paris, ocorridos em março de 1871. Naquela oportunidade, milhares de trabalhadores da capital da França, homens, mulheres e crianças, levantaram-se em armas contra o governo de Versalhes que fizera concessões humilhantes aos alemães vitoriosos na Guerra Franco-Prussiana (1870).

A capital francesa ficou parcialmente destruída, com os prédios e monumentos incendiados ou postos abaixo. Para Marx, a Comuna, ainda que vencida e esmagada, representou, pela primeira vez na história, ainda que em esboço, o que certamente viria a ser um governo do proletariado.

Em Paris, a Massa tornara-se Poder mesmo que fora por apenas 72 dias. Ela "tomara o céu de assalto", segundo ele.

O sonho, ainda que inesperado para a maioria dos seguidores de Marx, paradoxalmente se fez realizado não na desenvolvida e civilizada Europa Ocidental, como ele previra, mas na bárbara Rússia dos czares autocratas e dos mujiques miseráveis. Lenin, líder bolchevique, assegurou que, a partir de 25 outubros de 1917, as massas conduzidas por seu partido estavam definitivamente no poder.

São Petersburgo e Moscou transformaram-se em palcos de enormes manifestações, marchas se sucediam, turbilhões humanos varriam os veneráveis logradouros tanto da capital da Rússia asiática como da bela cidade de Pedro. Vendo aquele espetáculo, com milhares de pessoas gritando slogans ou simplesmente andando, o linguista Mikhail Bakhtin desenvolveu na década de 1920 o conceito de carnavalização e polifonia da obra literária. Diversas vozes nela se fazem presentes como se fora nos ruidosos tempos das feiras medievais.

A origem socioeconômica das massas

A presença das massas, das extraordinárias multidões humanas, é um fenômeno mais ou menos recente na história. Anteriormente à Revolução Industrial, a população era majoritariamente rural. Encontrava-se espalhada pelo campo, vivendo em pequenas aldeias ou vilarejos isolados, com escasso número de habitantes. Não tinha como haver significativas concentrações como as que começaram a emergir nos conglomerados urbanos da Europa Ocidental entre 1750 e 1850. A chave para se entender a impactante presença delas, das multidões, têm como origem tecnológica a máquina a vapor, surgida em 1765.

O invento de James Watt teve como efeito direto a possibilidade de se instalar fábricas nos cinturões das cidades, liberando-as da necessidade de serem montadas à beira de rios ou riachos, muitos deles distantes do mercado consumidor. Com os engenhos veio a mão-de-obra. Milhares de operários começaram a se concentrar ao redor delas, tornando as fábricas o centro da sua vida econômica e social.

Na esteira delas, ampliou-se o setor de prestação de serviços, o comércio com suas lojas, os armazéns, as galerias, o setor financeiro com sua rede de bancos, o lazer com seus cafés, restaurantes, teatros etc.

Londres, por exemplo, capital do Reino Unido, quase duplicou a população em apenas um século: eram 527 mil habitantes que saltaram para 1.096.784 quando do primeiro censo oficial em 1801. Não sendo muito diferente, ainda em tempo diverso, do que ocorreu em Nova York, Paris, Berlim, Milão...

Agigantaram-se os centros industrializados no Ocidente igualmente pelo efeito da imigração interna. Milhares de camponeses, de lavradores e de gente do campo em geral, aproveitando-se da dissolução da Ordem Feudal, abandonaram seus sítios natais para tentar a vida nas metrópoles. A soma do crescimento natural com a chegada das levas de mão-de-obra do interior é que possibilitou a proliferação das megaconcentrações urbanas poucas vezes vistas anteriormente na história.

Eis aí a gênese concreta da sociedade de massas

O desconforto com as massas

Para os antigos citadinos causava estranheza e repulsa a repentina mudança que o crescimento econômico e populacional trouxe. Do dia para noite, em Londres, Paris, Berlim, Bruxelas, Milão, Manchester ou Liverpool, os cidadãos tiveram que passar a conviver com estranhos que ninguém sabia de onde vieram. Desconheciam modos urbanos, em geral eram rudes e incivilizados, agrupavam-se nos arrabaldes em meio à sujeira e à doença em casebres medonhos e fétidos, sem higiene alguma, e pareciam não se incomodar em conviver com esgotos ao ar livre. Manifestavam dificuldades de adaptação a uma cidade erguida com pedras e não com troncos e palha como o local de onde vieram.

*Quem por primeiro usou o termo "classes perigosas" foi H. A. Frégier, chefe de polícia francês no livro Des classes dangereuses de la population dans les grandes villes et des moyens de lês rendre meilleures (1840), para definir setores sociais propensos à criminalidade.

O medo passou a ser constante para os habitantes das classes média e alta da cidade. Assaltos e roubos tornaram-se habituais. O crime vicejou como se fora um envenenamento da civilidade. A superpopulação em determinados bairros da periferia acoitava e irradiava ondas pestíferas que enchiam os demais de pavor. Surgiam as classes perigosas (ver Louis Chevalier: Les classes labouriesues et les classes dangereuxes).*

​O gênio contra a massa

Coube ao escritor e ensaísta escocês Thomas Carlyle, fortemente influenciado pelo romantismo alemão, com sua Teoria do Grande Homem exposta no livro Heroes, Hero-worship, and the Heroic in History (Sobre Heróis: O heroísmo e a veneração do herói na História, 1841), tratar de contrapor a figura do herói à presença ascendente das massas.

Para ele, o homem comum, a célula da massa, de nada valia a não ser como peão ou degrau para assegurar a projeção do herói e respaldar sua realização. Este é quem fazia a História. A consequência política disto foi sua condenação à democracia, "império do vulgar" na terra, e a consequente apologia da elite.

Vários outros escritores alemães que o antecederam já haviam manifestado sua ojeriza à presença da massa e do ser anônimo que proliferava naquela época, enaltecendo ao revés o Ser Excepcional. Nietzsche, após ter ficado profundamente chocado com os eventos trágicos da Comuna de Paris, foi quem melhor revelou este pavor à multidão, apostando no surgimento futuro de um übermensch, o Super-Homem (Assim falou Zaratustra, 1888). O fenômeno extraordinário que, desprezando as normas de conduta que regiam a maioria, conduziria o destino da humanidade no futuro (Além do Bem e do Mal). O pensamento contra-revolucionário e elitista dele forneceu os argumentos para uma formidável literatura anti-massa que surgiu na transição do século 19 para o 20.

O irracionalismo da massa

​Coube ao sociólogo e psicólogo francês Gustave Le Bon, por meio do seu famoso ensaio La psychologie des foules (Psicologia das Multidões, de 1895), demonizar as massas. Para ele, contemporâneo da Comuna de Paris de 1871, os imensos ajuntamentos humanos que se decidiam a marchar e a protestar nada mais eram senão que o irracionalismo posto em ação. Mesmo quando se mobilizavam por uma causa patriótica ou altruísta nada traziam de bom, a não ser a depredação e a desordem. Quando não a subversão social.

E isto, entre outras causas, se devia a metamorfose que ocorre com o indivíduo que adere à multidão contestadora. De alguém tímido, acanhado, normalmente respeitador das regras, ele, imerso em meio aquele mar humano que seguia pela avenida a fora que o tornava um anônimo, libertava-se facilmente das convenções e das noções de civilidade que recebera. Simplesmente sucumbe ao número, à "alma da multidão".

*O criminalista e penalista italiano Scipio Sighele, discípulo de Cesare Lombroso, retomou o tema e o ampliou no seu ensaio La folla delinquente (As classes criminosas, 1891). Não tinha contemplação para com as multidões, qualquer ajuntamento além do razoável tendia inevitavelmente ao comportamento criminoso.

Logo nos deparamos com sua vociferação, destravado, a fúria vai tomando conta dele e não tarda para que junte pedras pelo chão para lançá-las contra as vitrines ou contra as forças policiais. O manso vira fera. A massa, aceleradamente excitada, facilmente regride ao comportamento de uma manada, todos agindo do mesmo modo instintivo sem o amparo de qualquer raciocínio, e o individuo, como que um possesso, retorna ao estado da natureza hobbesiana ("o lobo do homem é o outro homem").*

Massa e Revolução

A surpreendente Revolução Russa de janeiro de 1905 abriu intenso debate em meio ao movimento socialista europeu, particularmente entre os teóricos social-democratas alemães (reformistas ou revolucionários) e os socialistas russos que participaram ativamente dos eventos que varreram o Império do Czar durante aquele ano. Perdida a Guerra russo-japonesa (1904), o governo de Nicolau II, logo em seguida ao massacre do Domingo Sangrento do dia 9 de janeiro (centenas de manifestantes foram fuzilados pela Guarda Cossaca em frente ao palácio de Inverno do Czar, em São Petersburgo), se viu frente a uma violenta contestação.

Não houve bairro proletário da Rússia, pelo menos nos grandes centros urbanos, que não tenha saído em peso às ruas para demonstrar sua raiva. Greves espontâneas eclodiram por todos os lados. As queixas pela inépcia militar logo se transferiram para uma generalizada confrontação contra o regime czarista como um todo. Tornou-se o maior levante de massas da Europa de então, muitas vezes superior à Comuna de Paris de 1871.

Rosa Luxemburgo, a famosa social-democrata de esquerda, judia polonesa que militava na Alemanha, exultou com o "espontaneismo" das classes trabalhadoras russas. Vislumbrou naquelas ações o futuro da Revolução Socialista. Concluiu que era delas de onde partiria a iniciativa da derrubada da ordem aristocrática/burguesa e não das direções acomodadas dos partidos socialistas europeus, um tanto paralisados pelos cuidados burocráticos e pela vida rotineira.

Vladmir Lenin chegou a outra conclusão. De nada serviam aquelas explosões espontâneas se não houvesse uma organização disciplinada e hierarquizada que desse um sentido àquilo, que conduzisse aquela enorme energia despertada pela multidão em fúria e disposta a tudo para tomar o poder pela força.

Anos mais tarde, Trotsky, que aderira a Lenin, explicou no seu livro História da Revolução Russa vol. I, detalhadamente a concepção leninista por meio da metáfora "do vapor e do êmulo". A massa em ebulição gerava uma enorme energia, mas que se não houvesse um êmulo para dirigi-la, toda a pressão gerada em pouco tempo se esvaía. O espontaneismo é fantástico, mas em nada redunda de positivo se não for orientado para um determinado fim (no caso, tomar de assalto o poder). Como os bolcheviques terminaram fazendo em outubro de 1917, na Segunda Revolução.

A massa contra-revolucionária

Certamente que um dos mais desconcertantes fenômenos políticos contemporâneos foi a plena adesão das massas aos movimentos nazi-fascistas que surgiram a partir do final da Primeira Guerra Mundial. Até então as aparições das multidões nas ruas em protesto sempre eram tidas como uma ameaça vinda da esquerda, dos que empunhavam as bandeiras vermelhas ou negras da revolução comunista ou anarquista. Eis que, acaudilhadas por Mussolini na Itália e por Hitler na Alemanha e por epígonos deles em outras partes do mundo, as massas postaram-se em marcha a serviço da contra-revolução. Abrigaram-se sob as bandeiras da antidemocracia e do anticomunismo para a mais total perplexidade dos teóricos da esquerda que até hoje jamais conseguiram elucidar esse mistério.


Descontando-se os inúmeros e praticamente incontáveis levantes de massas que ocorreram na história da humanidade, sob o ponto de vista da época contemporânea, pode-se fixar sua erupção na política a partir de dois eventos muito próximos. Um deles, a Boston Tea Party (A Festa do Chá em Boston, que ocorreu em 1773), um tanto antes da eclosão da Revolução Americana (1776-1783)


BIBLIOGRAFIA
Canetti, Elias. Massa e Poder. Brasília: Editora da Universidade de Brasília/Melhoramentos, 1981.
Chevalier, Louis. Classes laborieuses et classes dangereuses à Paris pendant la première moitié du XIXe siècle. Paris. Edition Perrin, 2002.
Engels, Friedrich. A situação da classe operária na Inglaterra. Rio de Janeiro: Boitempo, 2007.
Gasset, José Ortega y. A rebelião das massas. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
Hook, Sidney. O herói na História. Rio de Janeiro. Zahar Editores, 1962.
Hugo, Victor. Os miseráveis. São Paulo: Hemus, 1979.
Le Bon, Gustave. Psicologia das multidões. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
Marx, Karl. A Guerra civil na França, in Obras Completas. Lisboa Edições Avante; Moscou: Editorial Progresso, vol II, 1983.
Negri, Antonio; Hardt, Michael. Multidão - Guerra e democracia na era do império. São Paulo: Editora Record, 2005.
Reich, Wilhelm. Psicologia das massas do fascismo. São Paulo: Martins Fontes, 1972.
Sighele, Scipio. A multidão criminosa. Ensaio de Psicologia Coletiva. Imprenta: Rio de Janeiro, Organização Simões, 1954.
Sue, Eugene. Les Mystères de Paris. Paris: Editions Gallimard, 2009.
Tchakhotine, Sergei. A mistificação das massas pela propaganda política. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1967.
Trotski, Léon. Histoire de la Révolution Russe. Paris: Éditions du Seuil, 1950.


FONTE: ControVérsia

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

‘Lutas devem seguir, já que governo não pretende atender demandas populares’



Por Gabriel Brito e Valéria Nader

  

Seguindo os ventos das mobilizações de massa que marcaram o mês de junho, pela primeira vez em longuíssimo período de tempo as centrais sindicais convocaram um dia nacional de lutas (11 de julho de 2013). O Correio da Cidadania entrevistou Paulo Pasin, membro do Sindicato dos Metroviários de SP (filiado à Conlutas), a fim de interpretar esse momento de possível retomada do protagonismo das lutas sindicais.

Para ele, os novos tempos marcam também a necessidade de novas formas de unificação, mais amplas do que aquelas com as quais tais entidades lidaram ao longo de sua trajetória. “Acredito que as mobilizações mostraram que o conceito de central sindical só ligada aos trabalhadores sindicalizados está ultrapassado”, disse.

A respeito da força do movimento popular e suas novas facetas, Pasin alerta que todos aqueles que não mudarem sua forma de fazer política, abandonando posições “conservadoras”, serão “atropelados pela nova geração”. No mais, ressalta que a adesão de algumas centrais se deveu unicamente às pressões sofridas nas bases. “A CUT tenta desviar o foco para a reforma política, o que na verdade dá cobertura para a estratégia do governo Dilma. Tanto é assim que, embora a mobilização seja unificada, teremos a disputa (da pauta) nas ruas”, explica.

Talvez em sua afirmação mais importante, Pasin lembra que, apesar dos novos tempos, a mobilização não poderá arrefecer, uma vez que não crê em respostas positivas dos governos. “Quando a Dilma apresentou os seus cinco pontos, chamando-os de pacto, vimos que o primeiro ponto foi a manutenção da atual política fiscal. Mantendo esse modelo, não é possível atender às demandas populares. E como ela não pode atender às demandas do povo, tentou desviar todo o clamor das ruas para os debates da reforma política”.

A entrevista completa com Paulo Pasin pode ser lida a seguir.

Correio da Cidadania: Como tem visto o atual momento, com a explosão de manifestações por todo o país?

Paulo Pasin: Nós vemos da seguinte forma: havia uma grande energia contida em todos os setores da sociedade, por conta da propaganda enganosa do governo de que a situação toda estava muito boa. Na hora do reajuste da tarifa, a juventude se colocou na rua, por todo o país, e canalizou uma série de demandas da população em relação a todos os serviços públicos que não são bem prestados, a exemplo de saúde, educação e particularmente os transportes nas grandes cidades.

Isso gerou uma nova situação, que agora questiona absolutamente todos os poderes. Principalmente, o governo federal, mas também questiona diversos governos estaduais e municipais, além do próprio Congresso Nacional. Estão todos sendo questionados pela mobilização da juventude brasileira, pois ela, além do resto da população em geral, percebeu que suas demandas não são atendidas por parte dos poderes constituídos.

Correio da Cidadania: Qual a importância do 11 de julho, com a convocatória das centrais sindicais, para manifestações através de greves, protestos e reivindicações de classe?

Paulo Pasin: Primeiramente, é preciso corrigir uma informação que muita gente tem repercutido: a de que a classe trabalhadora não participou dos protestos e mobilizações de junho. Não é verdade. Boa parte dos jovens que foram às ruas são trabalhadores. Talvez, não sejam trabalhadores organizados em bases sindicais, mas são trabalhadores também afetados pelo problema do transporte e pela falta de investimentos na saúde e na educação.

A classe trabalhadora entrou de forma organizada, a partir da convocação do 11 de julho, mas é uma continuidade da mobilização feita no mês de junho. Tanto é assim que nós, particularmente ligados aos transportes, não podemos perder o foco. A pauta original tem de ser mantida, isto é, a redução de tarifas, rumando ao projeto de tarifa zero, e a estatização dos transportes do país. Esse é o carro chefe, em nossa opinião, de todas as mobilizações. Depois, sim, vêm as demandas colocadas pelas centrais, tais como o fim do fator previdenciário, reajustes salariais, pela jornada de 40 horas semanais etc.

Correio da Cidadania: Mesmo assim, um chamado unificado das centrais é algo que não se via há muito tempo. Isso evidencia que o mês de junho marcou também um despertar? 

Paulo Pasin: Certamente evidencia. A marcação de um dia nacional de paralisação e mobilizações é reflexo claríssimo das manifestações do mês de junho. Mesmo porque muitas centrais que convocaram a atividade unificada só o fizeram, agora, por conta da pressão de suas bases de trabalhadores. Estes trabalhadores viram o maior e mais importante recado do mês de junho: é possível conquistar, desde que haja mobilização e presença na rua no sentido de lutar pelos seus direitos, através de seus movimentos.

Portanto, esses trabalhadores começaram a pressionar seus dirigentes sindicais, especialmente os das centrais, que estavam totalmente paralisadas, apoiando o governo, sem tomarem iniciativas. Tais centrais tiveram, assim, iniciativa graças às mobilizações do mês de junho.

Correio da Cidadania: Você enxerga, nesse sentido, como oportunista a participação de centrais sindicais mais ligadas ao governo, já que se viram internamente pressionadas?

Paulo Pasin: Há duas questões nesse sentido. A primeira é da parte da CUT. Embora tenha convocado unitariamente as mobilizações do dia 11, ela tentou, e continua tentando, desviar o foco da questão, colocando tudo no sentido da reforma política e do plebiscito. Quer tirar as demandas concretas da população do centro das reivindicações.

O que a população quer? Redução da tarifa do transporte, chegando ao passe livre, mais verba pra saúde, pra educação, e reajustes salariais. Mas a CUT tenta desviar o foco para a reforma política, o que na verdade dá cobertura para a estratégia do governo Dilma.

Tanto é assim que, embora a mobilização seja unificada, teremos tal disputa nas ruas. Setores ligados à CUT vão defender a reforma política como ponto central. Já as outras centrais que apoiam o governo, se de um lado não têm a mesma posição da CUT, de outro lado só chamaram as mobilizações porque as bases de suas categorias representadas fizeram pressões.

Nesse sentido, é positivo que elas chamem as mobilizações? É, porque deste modo se permite a unidade dos trabalhadores de uma maneira geral. Mas sabemos que são centrais que, assim que houver refluxo do movimento, ou quaisquer sinalizações do governo, não vão seguir na luta como as centrais sindicais que, desde o início, se mostram independentes em relação ao governo.

Correio da Cidadania: Esta data pode, de todo modo, marcar um ponto de inflexão no sindicalismo brasileiro, revertendo, ao menos em parte, o contexto predominante, onde cada central atua isoladamente e conforme seus próprios interesses?

Paulo Pasin: Não tenho dúvidas. Não só em relação ao sindicalismo. Tenho a convicção de que, depois dessa grande onda de manifestações da juventude, nenhuma entidade sindical, estudantil, enfim, organização política, seguirá sendo como antes. Está ocorrendo um choque profundo, no qual se permitirá, em muitos casos, separar o joio do trigo.

Quem estiver na rua ao lado do povo, colocando as demandas que afetam diretamente o capital, estará dentro da sintonia. Por exemplo, no caso dos transportes: se discutimos tarifa zero, precisamos discutir a fundo o lucro dos empresários, quem pode fazer PPP (Parceria Público-Privada) com os governos, porque é algo que gera lucros aos empresários etc.

Quem mantiver posição conservadora, naquela linha de que “tudo está melhorando no país”, será literalmente atropelado pela nova geração. E isso vai acontecer no movimento sindical. Exemplo: em meio a tais manifestações, vimos que, no final de semana passado, o sindicato dos ferroviários do Rio Grande do Norte, filiado à CUT, realizou seu congresso e já se desfiliou da CUT. Está se aproximando da nossa federação, que todos sabem ser independente e do campo da luta da classe, opondo-se a todo e qualquer ataque aos trabalhadores. Isso será um fenômeno generalizado.

Correio da Cidadania: Que direção acredita que os acontecimentos vão tomar de agora em diante e qual imagina que deve ser a postura das centrais sindicais mais combativas?

Paulo Pasin: Desde o início, há muito tempo atrás, desde a fatídica e infeliz divisão que ocorreu no último Conclat (Conferência Nacional das Classes Trabalhadoras), sigo defendendo a necessidade de setores independentes, não vinculados ao governo, fazerem a luta do povo, reunificando-se para além de uma central sindical.

Acredito que as mobilizações mostraram, inclusive, que o conceito de central sindical só ligada aos trabalhadores sindicalizados está ultrapassado. Os movimentos dos companheiros sem teto, de luta pela moradia, os companheiros que fazem as lutas da periferia, os estudantes, o movimento pelo passe livre (que vai além dos estudantes universitários, abarcando outros jovens do país) demonstraram o seguinte: nós precisamos construir instrumentos de unificação muito mais amplos do que já tivemos até hoje.

Durante as mobilizações, ocorreram eventos que, pra mim, foram muito marcantes. Por exemplo: no Rio de Janeiro, até o trajeto da marcha e o seu destino foram decididos em assembleias gerais, com mais de 3.000 pessoas, independentemente de serem de sindicato, do MPL, estudantes ou integrantes de movimento por moradia. Portanto, nós temos de ter a clareza de que precisamos unificar todos esses setores num processo muito mais amplo. Se uma coisa ficou marcada, em minha opinião, é que está colocada a necessidade de a gente se reunificar, até porque tais mobilizações também demonstraram o quanto nós somos diminutos. Nós somos pequenos perante todo o processo político.

Correio da Cidadania: Qual é a sua opinião sobre a lista de reivindicações em pauta? Quais seriam as mais importantes?

Paulo Pasin: Eu sigo achando, volto a frisar, a questão do transporte o centro do problema nacional, devendo ser tomada por todos os sindicatos. Esse foi um grande mérito dos companheiros do passe livre, porque eles tornaram muito claro que qualquer problema, qualquer questão que envolva o trabalhador e a juventude, passa também pelo transporte. Por exemplo, sem transporte ou com um transporte caro, impede-se que as pessoas tenham acesso ao trabalho. Muitas vezes, a pessoa que mora na periferia e não tem como procurar emprego, porque não tem como pagar uma tarifa de R$ 3,00, ou R$ 3,20, no Rio de Janeiro, ou R$ 4,50 na barca de Niterói/Rio de Janeiro.

E para se ter acesso ao lazer ou acesso à saúde, é preciso discutir transporte, tanto do ponto de vista de preço como de condições. Não podemos mais gastar 5 horas pra poder ir e voltar de um lugar, como ocorre hoje na cidade de São Paulo – e esses exemplos se estendem por outros estados do Brasil.

Outro ponto também muito importante é a questão do fim do fator previdenciário, porque penaliza violentamente a classe trabalhadora na aposentadoria. Ainda mais agora, já que esse governo tomou a decisão de retirar a contribuição do COFINS, a fim de desonerar os patrões de parte do que eles dizem que terão de ônus para diminuírem a tarifa. Ora, o COFINS é seguridade social, e o governo retirou a parte que a patronal paga da previdência. Portanto, vão insistir no argumento de que a previdência é deficitária e, por isso, a manutenção do atual fator previdenciário se faz necessária. Essa é uma pauta que entendemos como muito importante.

Em terceiro lugar, completando o conjunto fundamental, cito a questão da redução da jornada de trabalho sem redução de salário, algo que geraria mais empregos no país.

Correio da Cidadania: E o governo, como o enxerga nesse contexto todo? Acredita que vá atender às reivindicações?

Paulo Pasin: Não. Categoricamente, não. Quando a Dilma apresentou os seus cinco pontos, chamando-os de pacto, vimos que o primeiro ponto foi a manutenção da atual política fiscal. Ou seja, manter os superávits primários, manter o compromisso com o pagamento dos juros da dívida, portanto, o compromisso com o sistema financeiro internacional.

Mantendo esse modelo, não é possível atender às demandas populares, pois elas precisam de dinheiro. Precisamos, na verdade, inverter a lógica apresentada. Precisaríamos não pagar a dívida pública, precisaríamos penalizar os ricos com impostos maiores...

E ela falou exatamente o oposto.  Dessa forma, como ela não pode atender às demandas do povo, tentou desviar todo o clamor das ruas para os debates da reforma política. Isso comprova que ela não tem a menor intenção de enfrentar o grande lucro dos capitalistas, a dívida municipal, os subsídios aos empresários de ônibus...

Em resumo, a Dilma prefere ficar ao lado do poder econômico e contra as demandas populares. Portanto, a onda de lutas que gerou essa energia toda vai ter que seguir, porque os descontentamentos vão aumentar, e não diminuir, daqui pra frente. Isso porque o governo não tem a menor intenção de atendê-los.
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Valéria Nader, jornalista e economista, é editora do Correio da Cidadania; Gabriel Brito é jornalista.

FONTE: Correio da Cidadania